Mattoso, José, D. Afonso Henriques, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; Branco, Maria João, D. Sancho I, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; Vilar, Hermínia, D. Afonso II, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005; Fernandes, Hermenegildo, D. Sancho II, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; Ventura, Leontina, D. Afonso III, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; Pizarro, José Augusto de Sotto Mayor, D. Dinis, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; Souza, Bernardo de Vasconcelos e, D. Afonso IV, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005; Pimenta, Cristina, D. Pedro I, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005; Gomes, Rita Costa, D. Fernando, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005
Mattoso, José, D. Afonso Henriques, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006
Branco, Maria João, D. Sancho I, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006
Vilar, Hermínia, D. Afonso II, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005
Fernandes, Hermenegildo, D. Sancho II, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006
Ventura, Leontina, D. Afonso III, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006
Pizarro, José Augusto de Sotto Mayor, D. Dinis, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006
Souza, Bernardo de Vasconcelos e, D. Afonso IV, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005
Pimenta, Cristina, D. Pedro I, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005
Gomes, Rita Costa, D. Fernando, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005
Texto integral
1Entre 2005 e 2006, o Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa, em colaboração com o Círculo de Leitores, deu à estampa a colecção «Reis de Portugal», dirigida por Roberto Carneiro e coordenada cientificamente por Artur Teodoro de Matos e João Paulo Oliveira e Costa, que a Editora Temas & Debates está ao presente a reeditar.
- 1 Bernard Guenée, Entre l’Église et l’État. Quatre vies de prélats français à la fin du Moyen Âge, Pa (...)
2Esta colecção trouxe para o primeiro plano da historiografia portuguesa o género biográfico, tradicionalmente pouco cultivado entre nós e relegado durante longos anos para um nível secundário, em especial pela escola dos Annales e pelos seus seguidores. Menosprezada em favor de uma história estrutural cujo principal objecto são os homens no seu todo e não os indivíduos, a biografia conhece, porém, um renovado interesse desde as décadas finais do século passado. Talvez porque, como Bernard Guenée sugere, na introdução à obra que dedicou à vida de quatro prelados medievais, a história estava cansada «de não ter face nem sabor», e o estudo das estruturas, embora conferisse coerência ao passado, tornava-o «demasiado simples», como se a evolução do mundo fosse «coerente e necessária»1. Com a biografia, recupera-se o papel do acaso, do acontecimento, dos encadeamentos cronológicos, e ao discurso historiográfico ganha, de novo, um rosto humano.
- 2 Vd. Jacques Le Goff, Saint Louis, Paris, Gallimard, 1996 e Saint François d’Assise, Paris, Gallimar (...)
3Renasce, pois, esta forma de fazer história, considerada uma das mais difíceis por Jacques Le Goff, que também a ela se abalançou2. E é neste contexto de reabilitação da biografia que se insere o projecto da colecção «Reis de Portugal», cujos volumes respeitantes aos monarcas da primeira dinastia constituem o objecto desta recensão.
- 3 Acerca dos rumos recentes da historiografia portuguesa sobre a época medieval, vd. Armando Luís de (...)
- 4 A única excepção é Maria Cristina Pimenta, investigadora da Universidade do Porto, que aí se formou (...)
4O arrojado trabalho de biografar estes nove monarcas foi entregue a um conjunto de outros tantos historiadores que se pode considerar bem representativo da vitalidade que a medievística portuguesa conhece hoje, depois do grande impulso e da profunda transformação ocorridos neste domínio da historiografia a partir da década de 80 do século passado3. Nessa altura, a criação de cursos de mestrado (primeiro na Universidade Nova de Lisboa, depois na Universidade do Porto, mais tarde na quase totalidade das instituições públicas de ensino superior que leccionavam cursos de História) teve como consequência um incremento notável dos estudos sobre a Idade Média. Um dos vultos maiores desse processo foi José Mattoso, da Universidade Nova de Lisboa, que assina a biografia de D. Afonso Henriques. Os restantes autores, docentes e investigadores de seis universidades portuguesas e de uma americana, são, quase todos, seus directos discípulos, por terem sido seus alunos ou contado com a sua orientação em projectos de mestrado e doutoramento4.
- 5 Assinale-se desde já que esta autora contou com a colaboração de António Resende de Oliveira, da me (...)
5Estes historiadores escreveram, na sua maioria, sobre monarcas cuja época constituíra já o enfoque das suas principais investigações. Seguindo a ordem de sucessão dos reinados, os casos mais evidentes são os de Maria João Branco (Universidade Aberta), autora da biografia de D. Sancho I, que analisara no seu doutoramento a relação entre os poderes régio e eclesiástico no tempo desse monarca e do seu sucessor; de Leontina Ventura (Universidade de Coimbra), biógrafa de D. Afonso III, cuja nobreza de corte fora o tema da sua tese doutoral5; e de José Augusto de Sotto Mayor Pizarro (Universidade do Porto), doutorado com um estudo sobre a nobreza no tempo de D. Dinis, rei cuja vida agora analisa. Por seu turno, a José Mattoso, autor do volume dedicado ao primeiro rei em substituição de Luís Krus, entretanto falecido, devem-se múltiplos e inovadores trabalhos sobre D. Afonso Henriques e o seu tempo. A ligação entre as investigações realizadas e os monarcas biografados é também notória no tocante às pesquisas em torno da nobreza levadas a cabo por Bernardo Vasconcelos e Sousa (Universidade Nova de Lisboa), em que assume grande protagonismo o tempo de D. Afonso IV; assim como no que respeita ao estudo de Rita Costa Gomes (Universidade de Towson, Estados Unidos) sobre a corte régia nos séculos finais da Idade Média que contempla, naturalmente, a de D. Fernando.
6Os três restantes autores, pelo contrário, alteraram a cronologia e a incidência temática das suas investigações habituais. Hermínia Vilar (Universidade de Évora), cujos principais estudos, depois de uma tese de mestrado sobre a morte na Baixa Idade Média, são dedicados à história eclesiástica, é a biógrafa de D. Afonso II; Hermenegildo Fernandes (Universidade de Lisboa), com pesquisas centradas essencialmente em torno do Alentejo e da convivência entre cristãos e muçulmanos nesse território, escreve a vida de D. Sancho II; e Cristina Pimenta (Universidade do Porto), desde sempre investigadora das Ordens Militares na Idade Média tardia, debruça-se sobre a figura de D. Pedro I.
7Identificados os biógrafos, olhemos as biografias.
- 6 Artur Teodoro de Matos, João Paulo Oliveira e Costa, «Biographies of the kings of Portugal», e-Jour (...)
- 7 Retomando a imagem proposta por Pierre Bourdieu, «L’illusion biographique», Actes de la Recherche e (...)
8Não existe uma introdução geral que explique os critérios e objectivos que presidiram à colecção, mas a apresentação deste projecto pelos seus directores científicos noutros locais6 e, naturalmente, a leitura das biografias permite-nos verificar que se procurou estudar as vidas dos monarcas quer enquanto reis, quer enquanto homens, integrando-os sempre no seu tempo, tanto a nível da conjuntura nacional como internacional, não negligenciando também a abordagem do destino que a memória de cada um sofreu. Busca-se, portanto, e na linha do que hoje se considera dever ser o desígnio das biografias históricas, analisar a figura de cada monarca sem esquecer a «paisagem» na qual se inseria7 e a imagem que dele foi sendo construída no correr dos séculos. Para alcançar tais objectivos, não se aplicou uma estrutura uniforme às várias biografias, antes se deu liberdade aos autores quanto à sua organização, pelo que cada obra se divide num número variável de partes e capítulos, complementados por um conjunto de anexos, em que o peso assumido pelas várias dimensões a analisar é diverso, de acordo com os elementos disponíveis, com as diferenças inerentes aos biografados e com o plano geral da obra concebido pelo seu autor.
9A arquitectura dos diversos volumes resulta, assim, muito variada. A abordagem do destino historiográfico dos monarcas, por exemplo, tanto se encontra integrada na introdução como no correr da obra, podendo também surgir individualizada, ora no princípio da biografia (o que sucede nos volumes dedicados a D. Afonso III, D. Dinis, D. Afonso IV e D. Pedro I), ora no final do volume (solução seguida em relação a D. Afonso II e a D. Fernando, neste último caso remetida até para os anexos). O enquadramento conjuntural, por seu turno, vem logo no início das obras sobre D. Sancho I, D. Dinis, D. Pedro I e D. Fernando, mas nos restantes volumes é feito à medida que a biografia progride e em paralelo com ela. Quanto ao percurso de vida propriamente dito, a sua apresentação mais comum segue a cronologia dos eventos, do nascimento até à morte, mas pode ser feita de modo diferente, como sucede na biografia de D. Sancho II, que começa por nos apresentar o rei deposto, e na de D. Fernando, que abre com o seu casamento. Independentemente da ordenação adoptada, distinguem-se sempre com nitidez duas fases, definidas pelo exercício ou não da soberania régia: a um tempo anterior à subida ao trono segue-se o da governação, e este assume, como seria de esperar, o peso fundamental nestas obras.
- 8 A título exemplificativo, vejam-se, nos volumes consagrados a D. Sancho II e a D. Afonso III, as da (...)
10Ao texto das biografias segue-se, como disse, um conjunto de anexos, que varia de volume para volume mas inclui, sempre, uma cronologia, a lista de fontes e bibliografia consultada, um índice remissivo e alguns esquemas genealógicos. Cada cronologia apresenta as datas mais relevantes da vida do rei biografado, a par dos principais eventos da história portuguesa, dos outros reinos ibéricos, da restante cristandade e do Islão, acrescentando-se na biografia de D. Fernando alguns dados sobre a Ásia e a África. As tabelas elaboradas constituem um valioso auxiliar para quem quiser verificar e comparar datas; por isso mesmo, há que usar nelas de um extremo rigor e corrigir, em nova edição, algumas discrepâncias que, infelizmente, se podem encontrar8.
- 9 Ou seja, os livros de registo de D. Afonso II, D. Afonso III, D. Dinis e D. Fernando. Já depois da (...)
- 10 Essa distinção não é feita nas biografias de D. Afonso III, D. Afonso IV e D. Pedro I, que englobam (...)
11A seguir à cronologia, surge o elenco das fontes e dos estudos que alicerçam o trabalho realizado. No tocante às fontes manuscritas, as mais referidas são os registos ainda por publicar das chancelarias régias9, núcleos primordiais da documentação produzida pelos monarcas; não se esperaria que, em obras de síntese como estas, se recorresse de modo sistemático a outras fontes inéditas, cuja indicação evidencia bem a carência que se continua a fazer sentir entre nós no âmbito da edição documental. As obras impressas distinguem, em geral, as fontes publicadas e os estudos10, atingindo estes últimos um total de títulos que ultrapassa sempre a centena, desde os mais clássicos aos mais recentes, não apenas portugueses mas também de historiadores de outras nacionalidades. As listas apresentadas, além de nos informarem sobre a bibliografia existente, permitem-nos conhecer o material de que os autores se serviram. É de salientar que os títulos dados à estampa desde 1990 representam cerca de 48% dos estudos referenciados, correspondendo uma média de 15% a obras publicadas de 2000 em diante, o que comprova claramente quer a importância, já referida, da produção historiográfica das décadas recentes, quer a actualização bibliográfica sobre a qual assentam os trabalhos em análise.
12Segue-se um índice remissivo, onomástico e toponímico em simultâneo, que permite ao leitor encontrar com prontidão referências a pessoas e lugares mencionados no texto. Nunca é demais louvar a presença deste tipo de índices em obras historiográficas, que ganham por esta via uma utilidade acrescida; pena é que, por vezes, haja erros na indicação do número das páginas para as quais se remete, possivelmente por alterações de última hora na paginação do livro.
- 11 Veja-se, por exemplo, D. Dinis, p. 52-53, 225; D. Afonso IV, p. 23, 162; D. Pedro I, p. 164, 166, 1 (...)
- 12 Um caso paradigmático é a esquematização dos laços que unem a nobreza de corte de D. Sancho I (D. S (...)
13Todos os volumes terminam com a apresentação das genealogias do monarca biografado, da dinastia em que se inserem e dos 34 reis que, do século XII ao XX, ocuparam o trono português. Outros esquemas genealógicos foram por vezes também incluídos, elucidando o leitor sobre laços familiares diversos, mormente de rainhas, de bastardos régios e de nobres mencionados no texto. Estes esquemas, a meu ver, ficariam melhor integrados no corpo da obra, como, aliás, acontece em alguns volumes11, pois lado a lado com o texto seria mais fácil seguir as inevitavelmente intrincadas explanações em torno de linhagens e relações parentais. Poderiam estas genealogias tornar-se ainda mais esclarecedoras se houvesse uma uniformização dos símbolos utilizados, legendas desses mesmos símbolos, que quase sempre faltam, e se, além disso, fossem introduzidas datas, mesmo só aproximadas, que permitissem ao leitor situar melhor no tempo as personagens referenciadas. Há também que ter em conta que alguns dos esquemas apresentados são de tal modo complexos que se tornam dificilmente inteligíveis, sobretudo quando se concentram no espaço limitado de uma página ou, no máximo, de duas páginas contíguas12.
- 13 D. Sancho I, p. 274-279.
- 14 D. Sancho II, p. 268-272.
- 15 Assim sucede já, por exemplo, em D. Sancho I, p. 14, 88, 142; D. Afonso II, p. 22; D. Afonso IV, p. (...)
- 16 D. Fernando, p. 188-194.
- 17 D. Fernando, p. 194-246.
- 18 D. Fernando, p. 247-258 e 258-261, respectivamente.
14Outros elementos podem ainda constar dos anexos, sobre os quais não me vou deter dada a sua variedade, limitando-me a destacar aqueles que me parecem especialmente importantes como instrumentos de trabalho postos ao dispor dos investigadores. É o caso do itinerário de D. Sancho I, que nunca antes tinha sido apresentado13; das tabelas elencando toda a documentação conhecida emanada da chancelaria de D. Sancho II14; e das listas de oficiais da cúria régia, patentes em todas as biografias, com excepção da de D. Fernando. Vários mapas, reflectindo múltiplas realidades, são também incluídos; mas sente-se a falta de um maior investimento em representações cartográficas, que seriam especialmente úteis se colocadas a par com o texto15, permitindo ao leitor visualizar os espaços à medida que vão sendo referidos. Ainda quanto aos anexos, note-se que o volume dedicado ao último monarca da dinastia inclui nessa parte, para além dos elementos comuns a todas as biografias, uma edição em português actualizado da Lei das Sesmarias16 e alguns excertos da Crónica de D. Fernando relativos às guerras com Castela17, assim como a reflexão sobre a construção da memória do rei já mencionada e uma breve referência a leituras actuais a seu respeito18.
- 19 No tocante às inscrições, atente-se também na súmula do corpus epigráfico do reinado de D. Sancho I (...)
- 20 Um lapso ocorre na legenda das figs. 15a e 15b do volume dedicado a D. Sancho II: aí se chama «selo (...)
15À semelhança dos restantes volumes da colecção, os livros em análise contêm um conjunto de imagens, agrupadas num único caderno de fundo negro, que ilustram, e bem, os biografados, o seu tempo, eventos e espaços com eles relacionados. Uma boa parte reproduz representações dos reis e de outras personagens em iluminuras, estátuas, túmulos com os seus jacentes ou retratos modernos. Surgem também igrejas e castelos, claustros e capitéis, vistas de cidades e vilas, a par de páginas de códices iluminados, provenientes sobretudo dos scriptoria de Alcobaça, Lorvão e Santa Cruz. A memória escrita fornece o maior número de ilustrações: a inscrita em epígrafes gravadas na pedra19 e, sobretudo, a plasmada em livros e documentos. Chamo especial atenção para a reprodução desses verdadeiros símbolos da realeza que são os sinais de soberania usados desde D. Afonso Henriques a D. Sancho II20, os selos dos monarcas e as suas subscrições autógrafas (é pena só serem reproduzidas as de D. Dinis, de D. Afonso IV e de D. Leonor Teles). Merece ainda destaque o lugar concedido à numismática, reproduzindo-se moedas cunhadas por todos os reis, à excepção de D. Afonso IV e D. Pedro I, e a outros achados arqueológicos, de que se apresentam alguns exemplos notáveis, por exemplo, nos volumes dedicados a D. Afonso Henriques, D. Sancho I e D. Afonso II.
16A riqueza e a variedade das ilustrações contrastam, no entanto, com o aproveitamento que delas é geralmente feito. Não existem remissões sistemáticas senão na biografia de D. Fernando, e as legendas que as acompanham são por vezes demasiado lacónicas para permitirem ao leitor, sobretudo o menos familiarizado com a temática, perceber a sua importância e os motivos por que foram seleccionadas. É possível que, se a opção editorial fosse outra e, em lugar de estarem isoladas num caderno à parte, acompanhassem o texto, a sua valorização fosse mais fácil e imediata.
17Uma outra imposição editorial diz respeito à densidade da mancha gráfica e ao tamanho reduzido de letra que a maioria dos volumes apresenta, em especial os dedicados a D. Afonso Henriques, D. Sancho I e D. Sancho II. O leitor necessita, verdadeiramente, de esforçar a vista; pode, até, glosando os escribas contemporâneos dos reis sobre os quais lê, queixar-se das agruras do labor empreendido e da dor de olhos que causou. São aspectos que estão a ser tidos em conta na reedição da Temas & Debates, e ainda bem, pois estes livros merecem ser lidos nas melhores condições, para que o leitor retire o maior proveito de obras que constituem, sem dúvida, importantes e inovadores contributos no campo da historiografia portuguesa.
- 21 D. Afonso Henriques, p. 10 e 12, respectivamente.
- 22 D. Afonso Henriques, p. 9.
- 23 D. Sancho II, p. 9.
18São-no, antes de mais, na sua qualidade de primeiras biografias levadas a cabo na actualidade acerca dos monarcas da Dinastia de Borgonha, elaboradas de acordo com princípios de rigor científico e assentes numa cuidadosa análise crítica das fontes e nos resultados das investigações mais recentes. É claro que entre estas e as biografias dos reis da época moderna ou contemporânea as diferenças são, necessariamente, muitas. Para estes, dispomos de retratos, de textos escritos pelas suas próprias mãos, de um sem número de testemunhos directos e indirectos que possibilitam o seu conhecimento não apenas como soberanos, mas mesmo para além da esfera pública em que actuaram, podendo-se com alguma segurança traçar um perfil da sua maneira de ser e penetrar no mundo dos seus gostos, afectos e emoções. De alguns dos monarcas da primeira dinastia, em especial os mais antigos, nem sequer as datas basilares das suas vidas são certas; não existem retratos fidedignos de qualquer deles; e muito pouco se sabe sobre o que pensavam ou sentiam, aquilo de que gostavam ou como seria a sua vida privada. Afirma José Mattoso que a sua biografia é a «narrativa possível, em função da compreensão do personagem e das suas acções», resultando em «uma espécie de sucessão de ‘quadros vivos’» ou uma «apresentação comentada de uma série de slides»21. Para conseguir obter uma imagem coerente do sujeito biografado, o historiador tem de usar, segundo o mesmo autor, «uma grande dose de imaginação», no sentido de necessitar de recorrer a «raciocínios dedutivos», «informações indirectas» e «hipóteses explicativas»22. Tem também, nas palavras de Hermenegildo Fernandes, de «raspar os sucessivos restauros que a construção de uma memória sempre implica, para chegar à pintura por baixo deles»23; e esta tarefa é tanto mais difícil quanto os elementos da pintura original são poucos e frágeis, por vezes até danificados pelos acrescentos que sofreu. Nenhuma de tais dificuldades e limitações, porém, diminui a importância de que estas biografias se revestem e dos novos retratos dos monarcas que propõem.
- 24 Sobre essa recente emergência da história política na medievística portuguesa, vd. Armando Luís de (...)
- 25 Expressão usada por Jacques Le Goff e Pierre Toubert, «Une histoire totale du Moyen Âge est-elle po (...)
19Nesses retratos, o seu papel enquanto governantes ocupa, como já foi dito, um lugar preponderante, o que decorre da dimensão fundamental que o exercício do poder necessariamente assume na vida dos reis, e que mais se avoluma quando, como é o caso, a memória que subsistiu dos monarcas se centra sobremaneira na forma como dirigiram os destinos do território subordinado à sua autoridade. A história política recupera por isso, através destas obras, uma posição de relevo, depois de durante várias décadas ter sido preterida para um segundo plano, e de apenas nos últimos anos ter, de novo, ganho terreno24. Uma parte essencial destas biografias consiste, pois, no estudo da actuação de cada um destes reis, dando a conhecer os principais vectores da sua política governativa e integrando-a no respectivo contexto conjuntural e estrutural. Análises deste tipo faziam falta na nossa historiografia, e constituem verdadeiras sínteses sobre a época em que cada rei viveu, distinguindo-se das visões globais propostas pelas mais recentes Histórias de Portugal por partirem de enfoques diferentes e se estruturarem em função não de um tempo longo, mas das vidas das personagens régias, que desempenham o papel de «temas globalizantes»25 em torno dos quais as várias linhas de análise ganham sentido.
20Mas as biografias, além de olharem estes nove soberanos na sua qualidade de governantes, analisam-nos também, como dissemos, enquanto indivíduos. Apesar das dificuldades já evocadas para estudos de tal natureza incidindo sobre personagens medievais, a abordagem empreendida a este nível traz-nos igualmente novidades dignas de realce. Aqui se encontra toda uma série de dados, revistos e sistematizados, quanto às datas e momentos fundamentais das suas vidas, o que é de grande utilidade. Traça-se, na medida do possível, o seu retrato físico e psicológico, aproveitando os escassos testemunhos que podem elucidar a esse respeito. Abordam-se as questões da sua vida privada, desde o nascimento e a infância até ao casamento, o nascimento dos filhos e, finalmente, a morte. Procura-se entrever os seus sentimentos, gostos e emoções. Os resultados obtidos são forçosamente incompletos e com zonas obscuras, mas pretendem aproximar-se o mais possível da realidade, que, para tal, se tenta despojar das múltiplas camadas de lendas e interpretações que ao longo dos séculos lhe foram sendo acrescentadas.
- 26 A este respeito, veja-se o que diz Jacques Le Goff sobre a importância do estilo da escrita nas bio (...)
21Estas obras propõem-nos, assim, leituras renovadas sobre os nove monarcas biografados, as quais formam um todo coerente por seguirem os mesmos princípios metodológicos e terem idênticos objectivos, mas apresentam também grandes diferenças entre si. Escritas por historiadores diferentes, estão, como não poderia deixar de ser, profundamente marcados pela interpretação que cada um faz do passado revelado nos documentos e pela forma como escreve. Se em nenhuma obra historiográfica o autor está ausente, nas biografias a presença do seu cunho pessoal torna-se ainda mais marcada, e o estilo de escrita assume uma especial importância26. Ao lê-las, não se fica a conhecer melhor apenas o rei biografado, mas também o seu próprio autor.
22Cada uma destas nove biografias mereceria ser apreciada de forma autónoma, no seu conteúdo como na sua forma, colocando em evidência as novidades concretas que traz em relação ao rei biografado, apontando os seus pontos fortes e as suas fragilidades, questionando dúvidas que pode suscitar; mas também analisando as opções tomadas pelo autor e o modo como organiza o seu discurso. Não era esse, porém, um objectivo alcançável nesta recensão conjunta, que procurou observar as obras em apreço como um todo, integrando-as no seu contexto historiográfico, analisando as suas características formais e estruturais, e apreciando o que têm em comum mais do que as especificidades próprias de cada uma. Uma apreciação individualizada seria impossível no espaço disponível, e qualquer tentativa de as resumir em algumas ideias fundamentais revelar-se-ia demasiado redutora, pelo que se optou por apresentar os principais contributos que, de um modo global, acrescentam ao conhecimento da época a que se reportam.
23Além de uma análise conjunta das nove biografias, esta apresentação é, também, um convite à sua leitura, de modo a que cada um possa apreciar, por si próprio, os retratos régios que nos são propostos nestas obras que, no seu conjunto e cada uma per se, são doravante imprescindíveis tanto para a investigação em torno dos reis da primeira dinastia, como para se obter uma visão global da história portuguesa desses séculos.
Notas
1 Bernard Guenée, Entre l’Église et l’État. Quatre vies de prélats français à la fin du Moyen Âge, Paris, Gallimard, 1987, pp. 13-14.
2 Vd. Jacques Le Goff, Saint Louis, Paris, Gallimard, 1996 e Saint François d’Assise, Paris, Gallimard, 1999 (trad. portuguesa, Lisboa, Ed. Teorema, 2000). Na introdução à biografia de S. Luís (pp. 13-27), o autor faz uma importante reflexão acerca do género biográfico, retomando ideias já anteriormente expostas em «Comment écrire une biographie historique aujourd’hui?», Le Débat, n.º 54, mars-avril 1989, pp. 48-53.
3 Acerca dos rumos recentes da historiografia portuguesa sobre a época medieval, vd. Armando Luís de Carvalho Homem, Amélia Aguiar Andrade, Luís Carlos Amaral, «Por onde vem o medievismo em Portugal?», Revista de História Económica e Social, n.º 22, 1988, pp. 115-138 e Armando Luís de Carvalho Homem, «O medievismo em liberdade. Portugal, anos 70-anos 90», Signum. Revista da ABREM: Associação Brasileira de Estudos Medievais, n.º 3, 2001, pp. 173-207.
4 A única excepção é Maria Cristina Pimenta, investigadora da Universidade do Porto, que aí se formou e recebeu a orientação, para mestrado e doutoramento, de Luís Adão da Fonseca.
5 Assinale-se desde já que esta autora contou com a colaboração de António Resende de Oliveira, da mesma universidade, no capítulo sobre «Distracções e cultura» (D. Afonso III, pp. 223-262).
6 Artur Teodoro de Matos, João Paulo Oliveira e Costa, «Biographies of the kings of Portugal», e-Journal of Portuguese History, vol. 5, n.º 2, Winter 2007 [http://www.brown.edu/Departments/Portuguese_Brazilian_Studies/ejph/] Vd. também a breve apresentação da colecção patente no website do Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa [http://www.ucp.pt/site/custom/template/ucptplminisite.asp?SSPAGEID=1948&lang=1&artigoID=1979].
7 Retomando a imagem proposta por Pierre Bourdieu, «L’illusion biographique», Actes de la Recherche en Sciences Sociales, vol. 62, n.º 1, 1986, p. 72, que Rita Costa Gomes, aliás, cita no início da apresentação da biografia de D. Fernando (p. 6): «Qui songerait à évoquer un voyage sans avoir une idée du paysage dans lequel il s’accomplit?»
8 A título exemplificativo, vejam-se, nos volumes consagrados a D. Sancho II e a D. Afonso III, as datas apontadas para a viuvez de D. Matilde, primeira mulher do futuro D. Afonso III (1232 ou 1234?), para o seu consórcio com o infante português (1238 ou 1239?), ou para o casamento de D. Sancho II (1241 ou 1243?) (D. Sancho II, p. 288-290; D. Afonso III, p. 186).
9 Ou seja, os livros de registo de D. Afonso II, D. Afonso III, D. Dinis e D. Fernando. Já depois da publicação das biografias, foi dado à estampa o primeiro livro da chancelaria do Bolonhês por Leontina Ventura e António Resende de Oliveira, Chancelaria de D. Afonso III. Livro I, Coimbra, Imprensa da Universidade, 2006, vols. 1 e 2. A ausência de referências a fontes manuscritas na biografia de D. Afonso II é, com certeza, um lapso, pois ao longo do texto há numerosas remissões, em notas de rodapé, para documentos inéditos utilizados pela autora.
10 Essa distinção não é feita nas biografias de D. Afonso III, D. Afonso IV e D. Pedro I, que englobam numa mesma alínea as fontes impressas e os estudos, obviando assim à sempre difícil tarefa de distribuir por um ou outro grupo trabalhos que, em rigor, se podem integrar em ambos. No volume dedicado a D. Dinis opta-se ainda por uma divisão bibliográfica diferente, distinguindo estudos e obras gerais para além das fontes manuscritas e impressas.
11 Veja-se, por exemplo, D. Dinis, p. 52-53, 225; D. Afonso IV, p. 23, 162; D. Pedro I, p. 164, 166, 177.
12 Um caso paradigmático é a esquematização dos laços que unem a nobreza de corte de D. Sancho I (D. Sancho I, p. 316-317.
13 D. Sancho I, p. 274-279.
14 D. Sancho II, p. 268-272.
15 Assim sucede já, por exemplo, em D. Sancho I, p. 14, 88, 142; D. Afonso II, p. 22; D. Afonso IV, p. 199.
16 D. Fernando, p. 188-194.
17 D. Fernando, p. 194-246.
18 D. Fernando, p. 247-258 e 258-261, respectivamente.
19 No tocante às inscrições, atente-se também na súmula do corpus epigráfico do reinado de D. Sancho II que chegou até nós, apresentada na biografia deste rei, nas p. 273-275.
20 Um lapso ocorre na legenda das figs. 15a e 15b do volume dedicado a D. Sancho II: aí se chama «selos» ao que, evidentemente, são «sinais».
21 D. Afonso Henriques, p. 10 e 12, respectivamente.
22 D. Afonso Henriques, p. 9.
23 D. Sancho II, p. 9.
24 Sobre essa recente emergência da história política na medievística portuguesa, vd. Armando Luís de Carvalho Homem, «O Estado Moderno na recente historiografia portuguesa: historiadores do Direito e historiadores «tout court». 2. Uma «nova história política» da Idade Média portuguesa», in A génese do Estado Moderno no Portugal tardo-medievo (séculos XIII-XV), coord. Maria Helena da Cruz Coelho e Armando Luís de Carvalho Homem, Lisboa, 1999, p. 63-76.
25 Expressão usada por Jacques Le Goff e Pierre Toubert, «Une histoire totale du Moyen Âge est-elle possible?», in Actes du 100e Congrès National des Sociétés Savantes, Paris, 1977, p. 31-44.
26 A este respeito, veja-se o que diz Jacques Le Goff sobre a importância do estilo da escrita nas biografias históricas em «Comment écrire une biographie historique aujourd’hui?», p. 53.
Topo da páginaPara citar este artigo
Referência do documento impresso
Maria do Rosário Barbosa Morujão, «Mattoso, José, D. Afonso Henriques, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; Branco, Maria João, D. Sancho I, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; Vilar, Hermínia, D. Afonso II, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005; Fernandes, Hermenegildo, D. Sancho II, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; Ventura, Leontina, D. Afonso III, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; Pizarro, José Augusto de Sotto Mayor, D. Dinis, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; Souza, Bernardo de Vasconcelos e, D. Afonso IV, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005; Pimenta, Cristina, D. Pedro I, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005; Gomes, Rita Costa, D. Fernando, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005», Ler História, 56 | 2009, 223-230.
Referência eletrónica
Maria do Rosário Barbosa Morujão, «Mattoso, José, D. Afonso Henriques, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; Branco, Maria João, D. Sancho I, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; Vilar, Hermínia, D. Afonso II, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005; Fernandes, Hermenegildo, D. Sancho II, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; Ventura, Leontina, D. Afonso III, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; Pizarro, José Augusto de Sotto Mayor, D. Dinis, Lisboa, Círculo de Leitores, 2006; Souza, Bernardo de Vasconcelos e, D. Afonso IV, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005; Pimenta, Cristina, D. Pedro I, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005; Gomes, Rita Costa, D. Fernando, Lisboa, Círculo de Leitores, 2005», Ler História [Online], 56 | 2009, posto online no dia 15 outubro 2016, consultado no dia 21 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/2041; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.2041
Topo da páginaDireitos de autor
Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.
Topo da página