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Críticas e debates

O nó górdio da biografia

António Manuel Hespanha
p. 218-220

Texto integral

1A biografia é um género historiográfico que, depois de muitos anos de relativo desfavor, conhece hoje uma visível expansão.

2Alguma coisa terá que ver com os gostos de leitura mais difundidos, pois é um facto que a biografia – que se manteve sempre como o género de eleição de alguns historiadores – hoje disparou porque tem público.

3Ter público, todavia, não quer dizer tanto como às vezes parece.

4Pode, por um lado, ter pouco a ver com a observância das regras de arte da comunidade historiográfica. Se houvesse estudos de mercado disponíveis, talvez concluíssemos que existiria uma grande homologia entre o público do romance histórico e o público das biografias «históricas».

  • 1 A que parece se vai seguir outra janela, agora para senhoras (rainhas).

5Pode, por outro lado, atrair os historiadores para campos para eles menos interessantes, mas conjunturalmente populares, por boas ou más razões. A meu ver, isso é muito claro na série das biografias dos reis de Portugal, recentemente editada. Se não me engano, a série foi pensada como uma «janela de mercado» aberta pela nostalgia de romantismo suscitada nos seus leitores pela História de Portugal da mesma editora, por muitos considerada como «muito estrutural», desprovida daquele brilhozinho dos heróis, dos santos e dos sábios. E, perante esta «janela de oportunidades»1, que se abria aos editores, mas também aos autores, muitos deslocaram, algo contrafeitos – como se nota em alguns textos –, para uma narrativa que se queria essencialmente biográfica, não deixam de aí meter, sempre que podiam e a título de descrição dos mais variados «contextos», os seus reais interesses de historiadores e a sua real expertise profissional.

6Mas, por outro lado, ter público não resolve problemas de epistemologia ou de teoria da história.

  • 2 «Order from noise is a special case of the principle of selective variety: noise or random perturba (...)

7Na verdade, o facto de o objecto da narrativa histórica ser uma pessoa – e não um grupo, um corpo de ideias, uma fatia de tempo, um contexto de acção (a economia, o gosto artístico, certa tecnologia) – não resolve o problema crucial do conhecimento histórico, que é o da possibilidade para o historiador de conhecer «o que realmente se passou». Eventualmente, até o agrava, dada a multiplicidade de planos de análise da acção individual, bem como a pluralidade de planos de relação social (relações familiares, grupais em geral, com movimentos de ideias ou de gosto, com habitus de comportamento, com redes comunicacionais, etc.) que se cruzam nesse ponto que é o biografado. Bem sei que esta complexidade de cada pessoa é justamente uma das bandeiras de luta daqueles que clamam por uma repersonalização da história, uma restauração da complexidade insindicável que nós sentimos que somos. E que há quem creia que, também aqui valeria a hipótese de Heinz von Foerster de que o sentido se libertaria da acumulação de uma variedade infinita e aleatória de variáveis (order from noise)2. Às vezes, temos a impressão disto. De que se recolhermos muita informação sobre um indivíduo, ou sobre um acontecimento, esse material como que se organiza perante os nossos olhos, transformando-se numa narrativa coerente ou plausível. Infelizmente, estas ilusões são fortemente abaladas quando nos damos conta de como a coerência ou a plausibilidade das narrativas varia em função do olhar do historiador.

8Li, há pouco tempo, The kite runner, de Khaled Hosseini; e, pouco depois, vi o filme baseado no livro. Há fragmentos da narrativa que são plausíveis para nós, sobretudo se já formos preparados par nos confrontarmos com uma cultura como aquela que imaginamos ser a do Afeganistão (uma enorme simplificação), entre os anos 70 e os anos 90. Quanto ao resto, ou integramos cada episódio, cada suposto sentimento, cada reacção, em modelos de narrativa que vamos buscar à nossa experiência ou ao nosso arquivo de narrativas – presumivelmente, eurocentrado (e muitas-coisas-mais-centrado) – ou, pura e simplesmente, deixamos a história com «brancos», como se faz hoje no restauro. No primeiro caso, obtemos uma história «bem contada», amável de ler, candidata aos «10 mais», mas que raramente will fit the landscape. No segundo caso, obtemos uma narrativa fragmentária, repleta de indeterminações, sincopada de ler, e tão frustrante para o espectador comum como aquelas peças museológicas em que quase tudo é gesso branco, com uns caquinhos recuperados da cerâmica original.

9Bem, mas mesmo estes «caquinhos» têm «cabelos». Na verdade, a sensação de que há coisas óbvias nos comportamentos do outro assenta numa falácia historiográfica – a de supor que a «geometria da alma», nos seus níveis mais profundos (nos sentimentos, nos cálculos, nas categorias intelectuais, emocionais ou sensitivas), é comum a todos e que, por causa dessa comunidade, entendemos tudo o que é categorialmente humano. É uma ideia porventura falaciosa; e, se o não for, é pelo menos insusceptível de ser provada. E é justamente aqui que encalha a hermenêutica filosófica e, com ela, o projecto de uma história compreensiva.

  • 3 Zygmunt BAUMAN, Legislators and interpreters - On Modernity, Post-Modernity Intellectuals. Ithaca, (...)

10Pode pensar-se que a questão da incomunicabilidade – pelo menos, no que respeita às barreiras culturais de grupos – se atenua com a mundialização e com aquela dissolução das identidades comunitárias que caracteriza a emergente «sociedade líquida» (Z. Baumann). No entanto, este novo cosmopolitismo, ligado à difusão mundial de mensagens mediáticas que veiculam «cascatas de senso comum» superficial (Cass Sunstein), gera apenas uma comunicabilidade superficial, mais propensa ao equívoco do que ao esclarecimento3. E, de resto, de fora ficaria sempre o nível mais básico da comunicação intersubjectiva, que apenas é resolúvel partindo de uma hipótese quase teológica – a da integral unidade a-temporal e a-espacial do género humano.

11Naturalmente que esta questão básica da epistemologia histórica não se põe apenas em relação à biografia. Mas, na biografia, é mais aguda. Se tratamos de história estrutural, de história de grandes conjuntos, de grandes grupos, de grandes «continentes de acção» ou de grandes fatias de tempo, todos temos a consciência que, para encontrar regularidades, desprezámos muitos detalhes, que amputámos a vida vivida e que aquilo que se apresenta é uma versão reconstruída dessa vida. Pagámos este preço para simplificar a complexidade e para tornar legível um certo campo histórico, com as prevenções e a consciência de que esse campo é uma construção nossa. Em contrapartida, na biografia, a tentação é grande de pensar que estamos a tocar em nós mesmos, que mantemos com o biografado uma familiaridade para-incestuosa, que nos transformámos nele e que podemos por isso esquadrinhar todos os recantos da sua interioridade e dar conta de todos os detalhes dos seus comportamentos. É coisa de que nos damos frequentemente conta ao falar com os autores de biografias. Possuíram o seu objecto ou estão possuídos pelo que julgam ser ele.

12Coisa parecida acontece, de resto, com a chamada auto-biografia. Que, na verdade, é a biografia do eu-passado contada pelo eu-presente, possivelmente na perspectiva dos seus projectos de eu-futuro. Tudo isto envolvido num projecto de construção de uma identidade coerente, não esquizofrénica, não estilhaçada em eus-em-situação.

13Porventura, é justamente pelo seu tom cumulativamente auto-biográfico que a biografia nos atrai. Porque, falando do biografado, podemos falar de nós, o que raramente acontece na árida história não anedótica (événementielle). Podemos exprimir, ao falar de ele, aquilo que conta na maneira de ser do eu. E, a meu ver, é isto que a biografia tem que assumir – que se trata de um género historiográfico especialmente repassado de intimismo e subjectividade. Muito próximo de uma história romanceada, em que o acrescento de elementos ficcionais não aumenta dramaticamente o carácter ficcional do todo. Estarão, todavia, os historiadores dispostos a aceitar esta convivência de géneros? Ou preferirão – em homenagem ao seu fascínio por discurso «de Verdade» – cortar o nó górdio que se desenha entre história e literatura?

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Notas

1 A que parece se vai seguir outra janela, agora para senhoras (rainhas).

2 «Order from noise is a special case of the principle of selective variety: noise or random perturbations will help a self-organizing system to find more stable states in its fitness landscape». Cf. http://pespmc1.vub.ac.be/ordnoise.html; pensadores integráveis numa teoria aleatória dos sistema: http://pespmc1.vub.ac.be/CSTHINK.html#Foerster.

3 Zygmunt BAUMAN, Legislators and interpreters - On Modernity, Post-Modernity Intellectuals. Ithaca, N.Y., Cornell University Press, 1982; Alone Again - Ethics After Certainty, London, Demos, 1996; Globalization. The Human Consequences, New York, Columbia Univ. Press, 2000; Liquid Modernity, Cambridge: Polity Press, 2000; Community. Seeking Safety in an Insecure World, Cambridge: Polity Press. 2001; Cass R. SUNSTEIN, Republic.com, Princeton, Princeton University Press, 2001

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

António Manuel Hespanha, «O nó górdio da biografia»Ler História, 56 | 2009, 218-220.

Referência eletrónica

António Manuel Hespanha, «O nó górdio da biografia»Ler História [Online], 56 | 2009, posto online no dia 15 outubro 2016, consultado no dia 22 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/2038; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.2038

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Autor

António Manuel Hespanha

Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa

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Direitos de autor

CC-BY-NC-4.0

Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.

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