Navegação – Mapa do site

InícioNúmeros56Críticas e debatesRecensõesCláudia Castelo, Passagens para Á...

Críticas e debates
Recensões

Cláudia Castelo, Passagens para África. O Povoamento de Angola e Moçambique com Naturais da Metrópole (1920-1974)

Edições Afrontamento, 2007
Marcos Cardão
p. 290-294
Referência(s):

Cláudia Castelo, Passagens para África. O Povoamento de Angola e Moçambique com Naturais da Metrópole (1920-1974), Edições Afrontamento, 2007.

Texto integral

1Na Exposição Colonial do Porto de 1934 o Estado Novo apresenta ao Mundo o novo mapa da nação portuguesa que, com as suas colónias, ostenta uma dimensão territorial equiparável ao «Velho Continente». Sob o mote «Portugal não é um país pequeno», o regime pretende colmatar a pequenez interna com a grandiosidade imperial. Esta ficção cartográfica refunda a vocação do país, qualificada de missionária, e inventa um novo espaço disponível para a expansão humana. Para concretizar o mito da terra virgem à espera de ser ocupada só faltava uma «raça de conquistadores» que cumprisse essa missão além-mar.

2Está lançado o mote para investigação da historiadora Cláudia Castelo que, depois de desvelar os sentidos da ideologia luso-tropicalista em «o modo português de estar no Mundo», reaparece com uma investigação de fôlego sobre o povoamento metropolitano nas colónias de Angola e Moçambique entre 1920 e 1974, colmatando deste modo uma lacuna que havia em estudos nesta área.

3O livro está dividido em três partes. A primeira, consagrada ao povoamento branco da África portuguesa, no qual são abordadas as principais concepções ideológicas e políticas que condicionaram a «corrida» a África. A segunda, em que se procede à caracterização sócio-demográfica do povoamento branco de Angola e Moçambique, através da utilização de gráficos e censos da população que permitem perspectivar quantitativamente o empreendimento colonizador. A terceira e última parte, onde são estudadas as relações dos colonos com o meio físico, as populações locais e a administração colonial.

4Estas três partes estão inseridas em três vertentes historiográficas: na primeira parte do livro a autora efectua uma história política das ideias «vista de cima», destacando a perspectiva das elites intelectuais e dos governantes; na segunda parte, caracteriza demográfica e social a população branca residente em Angola e Moçambique através de procedimentos estatísticos; na terceira parte, realiza uma história «vista de baixo» com a perspectiva das «pessoas comuns», utilizando para o efeito as metodologias da história oral como forma de introduzir um «sopro de vida» na narrativa histórica.

5Metodologicamente a autora seguiu os procedimentos de uma investigação em ciências sociais favorecida por uma abordagem multidisciplinar. Para o efeito recolheu e criticou fontes primárias; acolheu temas da sociologia; indicou os quadros demográficos existentes para cada época; recorreu a entrevistas informais para averiguar o impacto da ida para as colónias nalguns colonos; cruzou conceitos oriundos da antropologia, psicologia social e da literatura para «descortinar que representações dos colonos, dos africanos e da situação colonial povoam a literatura» (p. 32). Enfim, numa época em que a investigação científica envereda frequentemente pela resignação elegante do pós-modernismo, na qual se aceita incondicionalmente a complexidade do mundo e, consequentemente, o seu sentido disperso, ramificado e fragmentado, a autora mostra-se mais audaz e transpõe os códigos especializados de cada disciplina, com os seus jargões e léxicos particulares, procedendo a uma «totalização» conceptual, o que lhe pemite questionar crítica e rigorosamente o seu objecto historiográfico.

6A audácia de Cláudia Castelo materializa-se nos quatro princípios norteadores da sua investigação. No primeiro, questiona o desfasamento entre ilusão e a realidade no «modo português de colonizar», ou seja, aparentemente a retórica missionária e a interpenetração de culturas, tão caras ao luso-tropicalismo, foram uma miragem no terreno.

7No segundo, interroga se a imagem da transposição da aldeia rural, «tipicamente portuguesa», para os trópicos se concretizou efectivamente. Para o efeito, examina a preponderância da imagem dos portugueses que se estabeleceram nas colónias, frequentemente associados ao mundo rural, ao analfabetismo e sem experiência profissional. Neste ponto a autora pretende também «desfazer velhos mitos sobre a identidade nacional portuguesa» (p. 18) que estabelecem uma relação privilegiada dos portugueses com África, ao enfatizarem a afectividade e a cordialidade como características da colonização portuguesa.

8No terceiro, frisa a inexistência de características essenciais da identidade nacional portuguesa para o povoamento em África, porque é somente através da conjugação de «factores historicamente situados e explicáveis» (p. 19) que se devem encontrar as motivações para a «corrida a África».

9No quarto e último princípio, a autora insere o estudo do povoamento branco de Angola e Moçambique no âmbito dos estudos internacionais sobre o «colonialismo de povoamento», com vista a desenvolver estudos comparativos nesta área temática.

10Em «Passagens para África» são analisados três períodos históricos nos quais foram considerados vários modos, nem sempre coincidentes, de povoamento branco das colónias. O primeiro período, entre a segunda metade do século XIX e 1920, resumiu-se a medidas isoladas que previam a criação de colónias agrícolas, como a fundação da colónia branca de Moçâmedes (1849-1850). Na realidade, no final do século XIX a demanda de novos «Brasis» era ainda inconsequente, tal como atestam as parcas tentativas de fomentar o povoamento branco, que frequentemente esbarravam com a escassez de recursos e a falta de planificação estatal.

11O segundo período, situado entre a década de 1920 e a década de 1950, caracterizou-se por dois movimentos distintos. Na década de 1920 houve políticas de incentivo à colonização branca em Angola, elaboradas por Norton de Matos (alto-comissário da República para Angola, 1921-1924) e Vicente Ferreira (alto-comissário em Angola durante a Ditadura Militar, 1926-1928). Contudo, estas políticas foram «descontinuadas» nas primeiras décadas do Estado Novo por imposições orçamentais. A década de 1930 impôs o desinvestimento estatal em matéria de povoamento dirigido e restringiu a migração para as colónias de indivíduos sem capitais e formação técnica, ou seja, neste quadro coube à iniciativa privada efectuar as diligências necessárias para a colonização. Não obstante o desinvestimento em matéria de povoamento dirigido, esta época caracterizou-se pela forte «ofensiva ideológica», dirigida por Armindo Monteiro, que visava «enfeitiçar» os portugueses pelo império.

12Cláudia Castelo salienta que razões de ordem económica, social e simbólica impediam a emigração quantitativa de portugueses para as colónias. Entre as quais estavam a salvaguarda dos interesses da burguesia colonial, a prevenção de conflitos raciais, a precaução quanto à possibilidade de existir desemprego entre a mão-de-obra europeia não especializada, «o fantasma dos poor whites e o embaraço perante a cafrealização» (p. 375). Estes impedimentos foram contornados após a II Guerra Mundial, período em que o colonialismo português se socorreu de novas formas de legitimação como forma de contornar a submissão racial e o recrutamento coercivo de trabalhadores, característicos da economia de exploração que até então praticava. Assim, foi sob os auspícios da ideologia luso-tropicalista que o poder político projectou o povoamento rápido e intenso das colónias com naturais da metrópole.

13Neste âmbito surge o terceiro período histórico, coincidente com o I Plano de Fomento, no qual se desenvolveram os projectos de povoamento rural das colónias, como os colonatos-modelo da Cela (Angola) e do Limpopo (Moçambique), autênticos ícones do regime salazarista. Esta foi a primeira vez na história da colonização contemporânea portuguesa que se colocaram meios financeiros avultados ao serviço do povoamento das colónias. Um acontecimento relevante, pois nos três períodos históricos abordados pela autora foram recorrentes os confrontos ideológicos entre duas grandes correntes de povoamento: uma delas apologista da colonização intensiva dirigida pelo Estado; a outra, partidária de uma colonização de capitais e quadros assentes na propriedade privada. A corrente dominante a partir da década de 1950 foi a primeira, profundamente devedora da ideologia colonial da época que apregoava uma missão histórica a cumprir pelo povo português em «terras ultramarinas». Em suma, para salvaguardar a nação pluricontinental o povoamento metropolitano de Angola e Moçambique passou a ser o novo imperativo categórico do regime.

14Na primeira parte do livro Cláudia Castelo estuda detalhadamente o povoamento rural, sem dúvida o modelo de povoamento mais consensual entre as elites políticas. Na década de 1950 inicia-se a «cavalgada heróica» lusitana rumo a terras «ultramarinas» através da implementação de colonatos-modelos que, de acordo com as concepções hegemónicas da época, seriam a forma mais adequada de transplantar para África pedaços do Portugal rural. Para o efeito, o regime salazarista suportou os custos da criação de infra-estruturas e exerceu uma forte acção pedagógica junto da população branca, para uma clara correspondência entre ideal colonizador e a grandeza da tarefa a cumprir. Apesar desta «gesta colonizadora» desembocar na expropriação das terras aos povos autóctones; para a narrativa oficial, o que contava eram as proezas técnicas e a reprodução da cultura portuguesa nos trópicos, habitualmente adornadas pelas visitas periódicas aos colonatos de personalidades do regime, nas quais se vitoriava o «predisposição» lusa para fundar comunidades agrícolas ultramarinas.

15No início da década 1960 era evidente o fracasso da colonização agrícola. Os colonatos sorviam somas avolumadas de dinheiro; o estabelecimento de colonos ficou aquém do pretendido; a produção agrícola foi insatisfatória; e a expropriação das terras das populações autóctones generalizou a insatisfação e potenciou os conflitos raciais naquelas áreas. A conjugação de fracassos levará, nos anos 60, ao ensaio de uma nova política de fixação. À porta da guerra colonial são criadas as Juntas Provinciais de Povoamento (JPP) de Angola e Moçambique, com funções de supervisionamento e coordenação de todas as actividades de povoamento rural das colónias. Porém, como Cláudia Castelo afirma: «apesar das enormes verbas investidas pelas JPP, o número de metropolitanos (colonos e suas famílias) fixados era ridiculamente baixo: tanto em Angola como em Moçambique menos de 1% da população europeia ali residente. (…) Constata-se que a constituição de colonatos mistos foi um mero expediente de propaganda. Além de serem poucos em número, também não conseguiram afirmar-se como locais de integração e harmonia multirracial» (p. 161).

16Na segunda parte do livro a autora procede à caracterização sociográfica da migração portuguesa para as colónias, apresentando de forma clara e pertinente alguns dados desmistificadores, como a confirmação da pequena dimensão do movimento migratório para as colónias em comparação com a emigração para o estrangeiro, ou seja, apesar da propalada «vocação ultramarina» do povo português a realidade material da emigração era iniludível.

17A autora evidencia que o auge do fluxo migratório para as colónias foi tardio (sobretudo quando comparado com a colonização da Argélia), situando-se na década de 1950, sendo a segunda metade dos anos 60 já de abrandamento. Durante a guerra colonial a taxa de fixação com carácter permanente foi menor, embora tenha havido um substancial aumento da população branca temporária por causa da presença dos contingentes militares. Contra todas as evidências em contrário a autora esclarece que, apesar do elogio da mestiçagem como «método pacífico» de colonização, a partir da década de 1950 o número de uniões mistas e filhos mestiços foi muito reduzido: «Curiosamente, o estigma social sobre a miscigenação reforçou-se numa altura em que, por via do luso-tropicalismo, se exaltava a propensão do português para a relação de amor (e não de interesse) com as gentes dos trópicos.» (p. 291).

18Para além da existência de uma colonização dirigida de carácter rural e com emigrantes com baixos níveis de qualificação, desenvolveu-se também a migração espontânea para as colónias que, em termos escolares e profissionais, se situava acima da média nacional. No final de 1973 a população branca que residia permanentemente em Angola e Moçambique rondaria as 500 mil pessoas. Em traços gerais, era uma população maioritariamente urbana, pouco miscigenada, equilibrada em termos sexuais, com uma elevada percentagem de jovens, índices de instrução acima da média nacional e com vários activos no sector terciário.

19Depois de caracterizar os colonos socialmente, a autora situa-os culturalmente na terceira parte do livro. Para tal recorre a uma pletora de fontes, fornecendo-nos um retrato das atitudes e mentalidades dos colonos brancos de Angola e Moçambique, discutindo as percepções que os colonos tinham de si e do meio físico e humano envolvente; as barreiras raciais, conflitos e discriminações; as causas de descontentamento e reivindicação.

20Nesta terceira parte do livro a autora assume a difícil tarefa de caracterizar as percepções dos colonos, na qual é inevitável recorrer a generalizações como: «os colonos valorizavam a iniciativa privada, eram mais liberais nos costumes e mais informais nas relações sociais entre pares» tinham «maior apetência pela aventura, pelo o risco, pelo novo e pelo moderno, e partilhavam uma visão do mundo mais aberta» (p.380). Esta é uma das auto-representações que os colonos faziam de si e que frequentemente incorre na vulgarização de atributos particulares de cada «comunidade»: «os portugueses de Angola costumavam verse como mais tolerantes em questões raciais, em contraponto às concepções e práticas declaradamente racistas dos portugueses de Moçambique» (p.381). Independentemente do breviário de representações, mais ou menos essencialista, de cada «comunidade», a «mágoa» e o «ressentimento» da descolonização paulatinamente deram lugar à tropicalização a saudade, com a substituição de tropos como o xaile negro «metropolitano» por palmeiras, sol e espaços «ultramarinos». A tendência memorialista contemporânea é um dos sintomas do «fado tropical» que teima em persistir no capítulo das representações identitárias, mas também é uma das formas que muitos arranjaram para reencontrar as «jóias de África».

21Para finalizar, seria redundante sublinhar a importância da investigação de Cláudia Castelo. A sua consistência e rigor historiográfico fazem de «Passagens para África» uma obra incontornável para o estudo do império português.

Topo da página

Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Marcos Cardão, «Cláudia Castelo, Passagens para África. O Povoamento de Angola e Moçambique com Naturais da Metrópole (1920-1974)»Ler História, 56 | 2009, 290-294.

Referência eletrónica

Marcos Cardão, «Cláudia Castelo, Passagens para África. O Povoamento de Angola e Moçambique com Naturais da Metrópole (1920-1974)»Ler História [Online], 56 | 2009, posto online no dia 15 outubro 2016, consultado no dia 14 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/2033; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.2033

Topo da página

Autor

Marcos Cardão

ICS – UL / FCT

Artigos do mesmo autor

Topo da página

Direitos de autor

CC-BY-NC-4.0

Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.

Topo da página
Pesquisar OpenEdition Search

Você sera redirecionado para OpenEdition Search