- 1 Para além destes imigrantes, também se entrevistou 40 ciganos portugueses residentes na Área metrop (...)
1Neste artigo procura-se dar conta de resultados parcelares referentes a algumas das características sociográficas e percursos sócio-profissionais dos imigrantes russos e ucranianos residentes na AML, e que se inscrevem no âmbito de uma pesquisa mais vasta e aprofundada1. Adicionalmente exploram-se algumas das motivações que os levaram a migrar, as estratégias mobilizadas para a concretização do projecto migratório e as dificuldades iniciais pressentidas em contexto migratório.
2A escolha do estudo dos imigrantes russos e ucranianos deve-se em grande medida ao facto de estarmos perante cidadãos estrangeiros não comunitários, com uma experiência recente de imigração em contexto nacional, supostamente mais próximos da sociedade receptora, pelo menos visualmente (aspectos de carácter físico) e em algumas dimensões culturais. Optou-se por estudar em conjunto os russos e ucranianos, pois apesar de serem grupos imigrantes heterogéneos no seu interior e entre si, há alguma afinidade e proximidade geográfica, histórica e cultural, já que até aos anos 90 do século passado faziam parte da ex-URSS. Os próprios auto-avaliam-se como os mais próximos, nomeadamente entre as 4 grupos imigrantes da Europa de leste com maior número de representantes. Por outro lado, os russos também não têm sido muito visados pelas pesquisas levadas a efeito entre nós, possivelmente devido à sua menor visibilidade, dada a sua dimensão ser menos significativa do que a de outros grupos imigrantes da Europa de Leste.
- 2 Consideramos apenas as quatro nacionalidades da Europa de leste com um maior número de estrangeiros (...)
3Especificando com mais pormenor as razões da nossa escolha, é facto inegável que o fenómeno da imigração proveniente dos países do Leste europeu é ainda relativamente recente na nossa sociedade, estando largamente por estudar. Até finais de 2004, o número de imigrantes com a situação regularizada via Autorizações de Permanência (AP’s) atingia já os 64 730 indivíduos de nacionalidade ucraniana (+ 1360 Autorizações de Residência (AR’s)), 7053 russos (+ 1124 residentes), 12 647 moldavos, 10 944 romenos com AP’S2. Estima-se que estes quantitativos fossem largamente superiores, pois estes valores não contemplam os que ainda não tinham regularizado a sua situação de permanência entre nós. Perante tais condicionantes, e numa perspectiva de complementaridade face à informação estatística disponível em Portugal sobre a imigração, a nossa pesquisa pretende fornecer outras informações, de carácter qualitativo, relativas às trajectórias de vida, identidades, redes de sociabilidade e contextos de discriminação.
- 3 Nesta pesquisa utiliza-se uma estratégia metodológica de investigação marcada por um certo pluralis (...)
4Relativamente ao itinerário de pesquisa empírica e numa perspectiva de aprofundamento e de aproximação ao «objecto real»3, mobilizou-se entre as principais técnicas: a análise documental, a análise estatística e a entrevista em profundidade. Constituindo a linguagem e o discurso duas das principais mediações através das quais se opera a transmissão das representações sociais, iremos, então, privilegiar como material de análise (corpus central) os depoimentos recolhidos por via da realização de trinta e quatro entrevistas em profundidade aos imigrantes russos e ucranianos.
5Relativamente à amostra meramente qualitativa de entrevistados neste estudo, a tendência dominante é para o predomínio dos homens (19 indivíduos, 12 ucranianos e 7 russos). No entanto, entre os russos a proporção entre ambos os sexos é mais equilibrada (8 mulheres para 7 homens). Nos ucranianos a discrepância é de 12 homens para 7 mulheres. Ainda que corresponda ao retrato demográfico dos entrevistados no âmbito da presente pesquisa, esta observação traduzo que se passa, a nível macro, nestes fluxos migratórios (verdados publicados anualmente pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras), já que na imigração com origem na Ucrânia é notória a preponderância dos efectivos masculinos, enquanto nos imigrantes russos há maior paridade numérica entre ambos os sexos.
6Os entrevistados têm idades compreendidas entre os 10 e os 60 anos, predominando, por um lado, o grupo que tem menos de 29 anos e, por outro, o que tem entre 40 e 49 anos, notando-se a presença de um contingente com uma idade um pouco mais elevada do que a habitual nas migrações laborais. Confirma-se que estamos perante uma imigração de natureza essencialmente laboral, acentuada pelos processos de desestruturação económica que afectaram estes países, como evidencia a sobre-representação dos indivíduos em idade activa.
7Entre os entrevistados, o processo de auto-identificação étnica está longe de ser linear e simplista, tratando-se de algo relativamente complexo. A existência de menores ambiguidades e tensões internas parece ser mais evidente entre aqueles que se auto-classificam como de «etnia ucraniana» (20 entrevistados), comparativamente aos que se auto-designam etnicamente como russos, mas que possuem cidadania ucraniana (4 entrevistados).
Quadro 1. Auto-identificação étnica segundo o sexo
- 4 Quando Estaline chegou ao poder o plano era «Russificar» o povo ucraniano. Entre outras medidas ado (...)
8Não podemos esquecer a política de «Russificação» imposta em muitas repúblicas, nomeadamente na Ucrânia, nos anos 19304. Nesta sequência, observa-se que treze entrevistados têm origens étnicas múltiplas ao nível da sua família de origem.
9A identificação étnica e nacional de alguns destes entrevistados é relativamente complexa e até ambivalente em algumas situações. A este respeito, Shulman5 relembra que «civic national identity in Ukraine seems to be substantially stranger than ethnic national identity…». A difícil delimitação das pertenças identitárias, nomeadamente étnicas e nacionais, por parte de alguns dos entrevistados (russos e ucranianos) prende-se em grande medida com os acontecimentos político-militares que condicionaram o percurso histórico de algumas destas regiões da Europa central e de leste. Retomando aqui alguns dos mais elucidativos depoimentos dos entrevistados, Leonid deixa transparecer do seu discurso que a sua relação de pertença à Ucrânia não passa de uma mera inscrição territorial. No entanto, considera-se «russo de primeira» (40 anos, nacionalidade russa (cidadania ucraniana), regularizado), pois os seus antepassados, tal como os seus pais, eram russos e passaram a residir na Ucrânia desde o período da «Russificação».
Quadro 2. Miscigenação étnica nas famílias de origem, segundo a auto-classificação étnica
- 6 A República da Crimeia sempre foi historicamente habitada predominantemente por russos, mas desde 1 (...)
10O entrevistado acrescenta ainda que a sua formação escolar e militar não foi feita em território ucraniano, mas sim na Rússia. Leonid encara como ofensivo e insultuoso tratarem-no como ucraniano. Zina tem outra trajectória pessoal e familiar e conta que antes de vir para Portugal vivia na República Russa da Udmúrtia (em Ijevsk), ressaltando com veemência que a sua nacionalidade e etnia são tártaras, embora disponha de cidadania russa. Uma outra situação é a descrita por Anna, oriunda de território ucraniano, mais concretamente da República Autónoma da Crimeia6. A entrevistada identifica-se como russa, alegando que os seus pais são russos, bem como todo o seu património cultural herdado e incorporado, incluindo a língua materna russa, clarificando que apenas dispõe de passaporte ucraniano, não sentindo qualquer outra afinidade com a Ucrânia. Assim, salienta que no passaporte «não está escrito a nossa nacionalidade» (26 anos, nacionalidade russa (cidadania ucraniana), empregada da administração, comércio e serviços). Rejeita assim a incorporação da sua república na Ucrânia, esclarecendo que: «morava na Ucrânia, no sul da Ucrânia e antes esta zona foi parte de Rússia. Depois o Presidente ofereceu a nossa zona para Ucrânia como Ucrânia, mas nossa zona ninguém fala ucraniano.»
11No que se refere a uma outra dimensão, a situação conjugal dos indivíduos, é bem vincada a tendência para que os imigrantes sejam casados ou vivam em união de facto. Em contrapartida, o número de divorciados e separados assume uma relativa importância entre os imigrantes russos (3 em 14). Só se encontram indivíduos solteiros no grupo etário mais jovem, ou seja entre os que têm 29 e menos anos (apenas 5 indivíduos (N=34)). A conjugalidade parece concentrar-se entre os 20 e os 25 anos, já que grande parte dos que vivem em união de facto ou estão casados assumiu tal situação antes dos 25 anos. De uma forma geral, os entrevistados tendem a casar dentro do seu grupo étnico-cultural. As relações conjugais mistas com os cidadãos da sociedade de acolhimento são pouco frequentes. No conjunto dos 34 entrevistados, apenas duas mulheres de nacionalidade russa são casadas com cidadãos portugueses e um homem ucraniano vive em união de facto com uma imigrante de nacionalidade brasileira.
12Relativamente ao número de filhos, observa-se que no conjunto dos entrevistados é clara a tendência para a polarização entre os grupos familiares nucleares com 2 filhos (11 entrevistados), seguindo-se de perto os que têm apenas 1 filho (10 entrevistados). A média de filhos por família é de 1,2 filhos. Contudo, é relevante sublinhar que 10 indivíduos (N=34) ainda não têm filhos, na sua maioria são indivíduos com idades inferiores a 29 anos.
13Comparativamente à sua família de origem, por norma, a família actual dos entrevistados é menos numerosa. Uma das principais similaridades é o facto de se tratar essencialmente de famílias conjugais com filhos (casal com filhos, geralmente 2). Entre os entrevistados, observam-se ainda outras estruturas familiares: famílias sem núcleo conjugal (5 pessoas sós) e famílias conjugais sem filhos (7 casos de casais sem filhos).
14Entre os dois grupos migrantes, constatam-se algumas nuances relativamente à presença dos filhos no país de acolhimento. Mais de metade dos russos trouxe os filhos, tendo apenas dois entrevistados deixado os filhos no país de origem, o que pode estar associado a projectos migratórios distintos, bem como à tendência para uma maior feminização da imigração russa comparativamente à ucraniana (mais masculinizada). Em oposição, a maior parte dos ucranianos (mais de 70%) deixou os filhos no país de origem; os restantes trouxeram-nos e vivem com todos ou pelo menos com um dos filhos. Para estes imigrantes, a vinda para Portugal implicou um afastamento social e espacial face aos filhos. Principalmente entre os imigrantes que deixaram parte ou mesmo a totalidade dos membros do seu núcleo familiar no país de origem, há uma preocupação constante em gerir de forma muito disciplinada e rigorosa o orçamento pessoal no país de acolhimento, procurando enviar remessas para o seu país de origem pelo menos uma vez por mês.
15Ao analisarmos a mobilidade intergeracional, pensamos que poderemos apreender indícios de transformação nos destinos dos indivíduos e dos grupos familiares. Numa primeira fase procedemos à comparação intergeracional entre o nível de escolarização e, num segundo momento, às formas de inserção laboral entre as duas gerações.
16Em geral, os entrevistados caracterizam-se por trajectórias intergeracionais marcadas por processos de mobilidade escolar ascendente, ostentando níveis de qualificação escolar superiores aos seus progenitores: 18 entrevistados num total de 34 conseguiram ir além do grau de escolaridade obtido pelo pai. Apenas 4 entrevistados exibem um decréscimo do volume de capital escolar face ao do seu progenitor.
Quadro 3. Comparação intergeracional entre o nível de escolaridade do pai e do Ego
- 7 De notar que esta evidência também foi observada por Anne de Tinguy et Alexandra Picard, em finais (...)
17No que diz respeito aos recursos escolares possuídos pelos entrevistados, regista-se que quase todos detêm um diploma escolar de estudos pós-secundários, cuja duração varia entre um e cinco anos. Diferentemente do que sucede com outros fluxos migratórios que têm por destino o nosso país, os que provêm da Rússia e da Ucrânia são de um modo geral altamente escolarizados, independentemente do género do indivíduo migrante. No entanto, não há uma homogeneidade social e cultural interna nos entrevistados. Entre os nacionais da Rússia e da Ucrânia constatam-se ligeiras diferenciações. Os russos7 parecem deter níveis de qualificação escolar superiores aos dos ucranianos.
Quadro 4. Grau de escolaridade segundo o sexo
18Por outro lado, observam-se ténues assimetrias em termos de género: os homens apresentam volumes ligeiramente mais elevados de capital escolar do que as mulheres, facto notório no que concerne ao ensino pós-secundário onde mais de 60% dos efectivos do sexo masculino (12 efectivos) possuem um diploma com quatro ou mais anos de duração, contra cerca de 30% das mulheres (apenas 5). Em compensação, o número de mulheres com um diploma de estudos médios sobrepõe-se ao dos homens (6 contra 3). A grande maioria dos entrevistados (26 indivíduos) possui diplomas de ensino médio e superior; no entanto, mais de metade exerce actividades profissionais pouco ou nada qualificadas, por isso dissociadas dos níveis de capital escolar que possuem.
19Porém, e apesar do pouco tempo de presença em Portugal, começam já a verificar-se algumas inflexões nos percursos profissionais que apontam para formas de incorporação em segmentos mais qualificados.
20De facto, tem vindo a adquirir uma crescente visibilidade a tendência para que alguns dos que possuem o ensino secundário, estudos médios e superiores exerçam actividades profissionais, social e tecnicamente mais qualificadas (11 entrevistados). Este grupo restrito, constituído essencialmente por ucranianos, exerce profissões que se inscrevem nos Quadros técnicos, intelectuais e científicos e nos Empregados da administração, comércio e serviços.
- 8 Almeida et al. (1988); Firmino da Costa et al. (1990); Firmino da Costa (1999).
- 9 Firmino da Costa et al. (1990), p. 195.
21Para conhecer melhor as características sócio-profissionais dos grupos em análise é fundamental captar a evolução das trajectórias individuais, familiares e mesmo intergeracionais. Neste contexto, seguem-se de perto outras análises8 efectuadas em contexto nacional e que caracterizam o grupo doméstico (actual e de origem) em termos de classe, tendo por base duas variáveis primárias principais: a profissão e a situação na profissão dos indivíduos (cônjuges/companheiro(a)s ou dos progenitores). A caracterização social que aqui se esboça não incide apenas no indivíduo, mas também na família, aqui considerada como uma possível unidade de análise classista. Como bem refere Firmino da Costa9, a família, ao ser encarada como grupo doméstico, é concebida como uma unidade em que se «partilha um conjunto de recursos e de condições de existência», se «estruturam princípios organizadores básicos dos sistemas de disposições», e é aí que «se gerem uma boa parte das estratégias de orientação de vida.»
Quadro 5. Comparação entre o grupo sócio-profissional e o nível de escolaridade do Ego
Legenda: QTIC – Quadros técnicos, itelectuais e científicos; EACS – Empregados da administração, comércio e serviços; OIC – Operários da indústria e construção; TNQIC –Trabalhadores não qualificados da indústria e construção; TNQCS – Trabalhadores não qualificados do comércio e serviços; SI – Sempre inactivos.
- 10 Fonseca, et al. (2004).
22No seu país de origem, os entrevistados exerciam profissões técnica e socialmente qualificadas, tendência ainda mais notória no caso dos russos. Observa-se ainda um escasso número de efectivos ucranianos que eram trabalhadores não qualificados, situação não observada entre os russos. Estas observações estão em sintonia com o constatado no estudo de Maria Lucinda Fonseca10, que detectou que 24,1% dos ucranianos tinham sido quadros médios no seu país de origem e 33,3% tinham sido trabalhadores especializados, registando no país de acolhimento um percurso profissional claramente descendente.
23Entre os entrevistados, antes da vinda para Portugal 7 indivíduos tinham já protagonizado uma trajectória profissional descendente, pontuada pela assunção de diversas actividades profissionais, por vezes pouco qualificadas e sem ligação com a sua formação académica. Andrey é ucraniano e, apesar de ter uma formação superior, no país de origem exercia funções de chefe de segurança num armazém, argumentando que «não consegui arranjar trabalho como engenheiro mecânico, e o ordenado como chefe de segurança era melhor do que de engenheiro» (26 anos, não regularizado, ensino superior). Também Irina é ucraniana e, embora seja diplomada em biologia e química, antes de deixar o seu país foi vendedora num mercado local; já anteriormente «fez muitas coisas (…) a trabalhar no biblioteca, acabei o instituto professora de bioquímica; estive a trabalhar na escola, estive a trabalhar numa fábrica de calçados» (38 anos, regularizada, ensino superior).
Quadro 6. Comparação entre os grupos profissionais de pertença no país de origem e no país de recepção (última profissão)
Legenda: QTIC – Quadros técnicos, intelectuais e científicos; TIICS –Técnicos nível intermédio e independentes do comércio e serviços; EACS – Empregados da administração, comércio e serviços; OIC – Operários da indústria e construção; TNQIC –Trabalhadores não qualificados da indústria e construção; TNQCS – Trabalhadores não qualificados do comércio e serviços; SI – Sempre inactivos.
24Comparativamente à situação sócio-profissional que detinham no país de origem, observa-se que 19 indivíduos transcorreram no país de destino um percurso de sentido descendente, tendo na sua maioria vindo a avolumar o operariado e o grupo dos trabalhadores não qualificados da indústria e construção, assim como os não qualificados do comércio e serviços. Porém, também se detectam processos de reprodução profissional, dado que 8 entrevistados exercem uma actividade similar à desempenhada no país de origem. Finalmente, para 4 indivíduos a sua vinda para o nosso país representa uma mudança positiva na sua situação face ao trabalho, uma vez que passaram a exercer uma actividade profissional e a fazer parte da população activa.
25Na sociedade de recepção, as taxas de actividade entre russos e ucranianos são muito similares, atingindo os 70% em ambos os grupos. No entanto, é de destacar a incidência do desemprego entre os entrevistados, principalmente entre os ucranianos (cerca de 25%). Estes dados diferem das taxas gerais de desemprego registadas pelo IEFP e pelo INE em 2003 para os «imigrantes de Leste»: afectava 6,5% dos russos e apenas 3,6% dos ucranianos. A crise económica e o desemprego, para além de atingirem os cidadãos nacionais, têm afectado os estrangeiros, principalmente os do PALP e os da Europa de Leste, aqui com um menor impacto.
26Relativamente à distribuição pelos diferentes grupos profissionais, é de realçar a tendência para uma maior diversificação e dispersão dos ucranianos pelos vários grupos sócio-profissionais, com destaque para os operários da indústria e da construção, assim como para os trabalhadores não qualificados dos serviços, da administração e do comércio. Nos russos denota-se uma certa tendência para a polarização entre o emprego na administração, comércio e serviços (recepcionista, administrativo, auxiliar de lar, empregada de balcão entre outras profissões) e as actividades profissionais não qualificadas dos serviços (contínuas e empregadas de limpeza doméstica, por exemplo).
27Numa perspectiva diacrónica, importa confrontar a situação profissional actual dos imigrantes com a situação inicial, aquando da sua chegada a Portugal. Apesar do arco temporal da sua presença entre nós ser ainda curto, é possível afirmar que se constatam alguns processos de recomposição sócioprofissional. Em particular, os homens quando cá chegam inserem-se no mundo do trabalho pelo exercício de actividades em sectores como a construção civil e as obras públicas, geralmente como operários não qualificados. Passados três a quatro anos, a mobilidade profissional é já perceptível, e hoje alguns trabalham noutros sectores de actividade e em postos de trabalho técnica e socialmente mais qualificados e prestigiantes.
28Entre os homens, parece ser mais notória a diversificação das actividades profissionais, verificando-se processos de transição do sector da construção civil para os serviços e também, para sectores de actividade que até há bem pouco tempo registavam uma presença de estrangeiros negligenciável, como são os casos da indústria transformadora e da agricultura11.
29A comparação entre a primeira e a última actividade profissional exercidas no país de acolhimento revela que a tendência maioritária indicia trajectórias individuais marcadas por uma certa estacionariedade, o que também se poderá justificar dado o pouco tempo da sua presença em contexto nacional. Não obstante, alguma mobilidade sócio-profissional ascendente é observável nos homens, traduzindo-se no abandono de actividades profissionais de carácter não qualificado na indústria, construção, agricultura e pescas e na sua transição para os empregados da administração, comércio e serviços, operários da indústria e construção e para os quadros técnicos, intelectuais e científicos (12 indivíduos).
Quadro 7. Comparação entre a primeira e a última profissão exercida no país de recepção
Legenda: QTIC – Quadros técnicos, intelectuais e científicos; EACS – Empregados da administração, comércio e serviços; OIC – Operários da indústria e construção; TNQIC – Trabalhadores não qualificados da indústria e construção; TNQCS – Trabalhadores não qualificados do comércio e serviços; TNQAP – Trabalhadores não qualificados da agricultura e pescas; SI – Sempre inactivos.
30Em contraponto, o grupo sócio-profissional que registou maior tendência para a persistência das posições sócio-profissionais à chegada foi o dos trabalhadores não qualificados do comércio e serviços, onde geralmente se inserem os efectivos femininos. Importa evidenciar que 3 mulheres viram o seu percurso profissional sofrer uma inflexão no sentido descendente, tendo transitado do grupo dos empregados da administração, comércio e serviços para o dos trabalhadores não qualificados do comércio e serviços.
31A primeira experiência profissional apresenta variabilidades consoante a segmentação de actividades por género: as mulheres subdividem-se entre os empregados da administração, comércio e serviços (por exemplo, empregados comerciais e recepcionistas) e os trabalhadores não qualificados dos serviços (serviços domésticos e de limpeza); enquanto os homens, na sua maioria inserem-se no operariado, sobretudo no grupo dos trabalhadores não qualificados da indústria e construção.
32Nos processos de mobilidade profissional, nomeadamente na colocação de cada vez mais imigrantes no mercado de trabalho, as agências de trabalho temporário emergem nos discursos como tendo um papel relevante. Foi por via destes agentes que operam no mercado de trabalho que Igor encontrou em Portugal uma actividade profissional mais qualificada. O entrevistado conta que: «primeiro fui servente na construção civil. Depois, fui electricista (2 meses no ano 2000) na AutoEuropa através de uma empresa de trabalho temporário» (30 anos, nacionalidade russa, não regularizado, empregado da administração, comércio e serviços).
33Entre alguns dos que imigraram até 2001, encontram-se referências, ainda que não aprofundadas, à importância que então assumiam os «intermediários» ou «engajadores de mão-de-obra», que a troco de algum tipo de compensação faziam a mediação entre trabalhador e empregador, assegurando a contratação de alguns trabalhadores imigrantes. Com o tempo, a solicitação de apoio institucional para a procura de um lugar no mercado de trabalho (mas não só) torna-se recorrente. Em média, e após 2 a 3 anos de permanência entre nós, os imigrantes em situação de desemprego recorrem sem dificuldades à rede de instituições estatais e privadas que prestam apoio social, como por exemplo o Centro de Emprego, o Serviço Jesuíta dos Refugiados (JRS), a Porta Amiga das Olaias, a Associação Solidariedade Imigrante e a Igreja (católica, greco-católica e ortodoxa). Raramente solicitam o apoio de familiares e amigos que já estão em Portugal. Apenas 5 indivíduos declaram que quando cá chegaram, contaram com o auxílio de amigos e conhecidos.
Quadro 8. Estratégias para procura de trabalho
34Apenas dois entrevistados (N=34) assinalam o apoio prestado por familiares directos. Também são raras as situações em que os indivíduos têm cá familiares que extravasem a família nuclear (apenas 3 mulheres). Estas evidências empíricas deixam antever a fragilidade das redes sociais informais em que se inserem e movem. Quanto ao associativismo imigrante, em geral, os entrevistados têm uma opinião depreciativa face ao apoio que as associações podem proporcionar. Entre os interlocutores, apenas dois homens assumem cargos de direcção em associações de imigrantes, outros dois imigrantes dizem participar, mas simplesmente na qualidade de sócios. Sergey encara o associativismo imigrante, como uma «uma perda de tempo» (43 anos, ucraniano, não regularizado, desempregado, à procura emprego). Os imigrantes lamentam que não se conheça com clareza e transparência a acção destas organizações. Por outro lado, reclamam o apoio prestado, que geralmente não é imediato nem rápido. Por norma, antes de intervirem parecem cobrar honorários. Neste contexto, Leonid devolve a pergunta ao investigador, questionando: «Mas que eles fazem? Você sabe? Eles podem fazer alguma festa; agora se pessoa chega aí com problemas o que é que eles fazem? Vamos ligar para o advogado; pessoa pode arranjar advogado sozinha» (40 anos, nacionalidade russa, regularizado, operário da indústria e construção). Elena afirma que o primeiro objectivo destas associações é «ganhar dinheiro», salientando que o Estado português apoia financeiramente estas associações de forma até excessiva e sem controlo: «Para mim, já têm apoio enorme. Eu não sei na outro país, pode ser na Itália também apoia muito, já falaram mas… e em Espanha. Mas para país com dimensões e com riqueza como Portugal, eles fizeram muito» (34 anos, nacionalidade russa, regularizada, casada com cidadão português, empregada da administração, comércio e serviços).
- 12 Referimo-nos a um patamar temporal em que ainda existia a URSS. Tratando-se de um regime comunista (...)
35Relativamente à pertença de classe do indivíduo imigrante12, a população em presença apresenta um perfil de classe marcado por uma espécie de bipolarização: denota-se, por um lado, a crescente importância da pequena burguesia; por outro, continua ainda a ser relevante o peso do operariado (15 contra 13). Contudo, são perceptíveis variabilidades intra grupo imigrante na localização dos indivíduos no espaço social, e que se prendem não só com a sua pertença étnico-nacional, mas também com a variável género. As mulheres tendem a localizar-se maioritariamente entre os empregados executantes; em contrapartida, os homens inserem-se no operariado.
36Relativamente às origens étnico-nacionais, constata-se que enquanto nos russos é preponderante o peso dos empregados executantes, nos ucranianos prevalece ainda o grupo dos operários. No entanto, é entre os nacionais da Ucrânia que encontramos já a localização de indivíduos em grupos profissionais mais qualificados e mais prestigiados, uma vez que 4 entrevistados são já profissionais técnicos e de enquadramento.
- 13 Fonseca, coord. (2005), p. 104. A maior concentração de imigrantes neste período de tempo justifica (...)
37O segmento mais significativo da imigração da Rússia e da Ucrânia veio para Portugal em 2001, compondo-se por 16 indivíduos (cerca de 47% dos entrevistados). Esta data é sobretudo determinante entre os ucranianos (12 indivíduos num total de 20); em contraposição, metade dos russos (7 em 14) chegou ao nosso país já em 2000. O número de entradas desce de forma brusca em 2002, sobretudo entre os ucranianos. Esta mesma constatação é observada em estudos recentes, como o realizado sobre o fenómeno da reunificação familiar, cujo trabalho de campo ocorreu entre 2003 e 2004, onde se constatou que 65% dos europeus de leste tinham entrado em Portugal entre 1999 e 200113.
- 14 Segue-se de perto a tipologia de classes sociais (indivíduos e grupos domésticos) que tem vindo a s (...)
Quadro 9. Grupos profissionais e classe social14 do indivíduo segundo o género
38Tendencialmente, e em termos comparativos, os russos revelam uma maior propensão para terem o seu estatuto jurídico já regularizado (10 indivíduos). Também é entre estes imigrantes que encontramos as duas únicas entrevistadas com AR’s (Autorização de Residência).
- 15 Os direitos que eram concedidos aos imigrantes com AR’s eram diferentes dos conferidos aos que disp (...)
39Embora a maior parte dos ucranianos esteja numa situação regularizada, ainda há um segmento significativo que se encontra na situação de indocumentado. Exceptuando as duas entrevistadas que são de nacionalidade russa, os restantes imigrantes em situação regularizada dispõem de uma AP (Autorização de Permanência), que constitui um mecanismo legal que serve essen cialmente para regularizar a situação dos trabalhadores imigrantes, até aí não regularizada. Ou seja, são imigrantes que dispõem apenas de uma permissão temporária de estadia no nosso país, que requer uma renovação anual ao longo de 5 anos, podendo posteriormente ser convertida em AR. O volume inesperado destes fluxos migratórios colocou sérias dificuldades ao Estado português que se revelou ineficaz e incapaz de os regular e prever em termos prospectivos, o que justificou a adopção de medidas avulso que criaram diferentes categorias de imigrantes15.
Quadro 10. Ano de entrada em Portugal e estatuto jurídico segundo a nacionalidade
- 16 Fonseca et al. (2004), p. 7.
40Dos discursos produzidos, é possível afirmar que numa fase inicial este movimento imigratório teve uma composição essencialmente individual e isolada. Foi um projecto geralmente protagonizado pelo homem que chega indocumentado, o que reforça o carácter eminentemente económico da imigração. Gradualmente, passou-se a uma fase de consolidação da sua presença entre nós, acompanhada por uma tendência para a sua regularização e, por outro, para a reunificação familiar. Por se tratar de uma imigração recente e marcadamente laboral, Lucinda Fonseca e a sua equipa16 referem «o desenvolvimento de processos de separação espacial e temporal dos seus membros, designadamente porque a imigração é frequentemente faseada, não se deslocando todos os elementos do agregado familiar em simultâneo.»
41De uma forma geral, a mulher chega numa fase posterior, sozinha ou acompanhada apenas por alguns ou todos os filhos. Frequentemente, os filhos que não se juntam aos pais ficam no país de origem a cargo de familiares ou de amigos. Entre os entrevistados, 17 chegaram sozinhos, mas hoje têm ao seu lado o(a) companheiro(a) e alguns dos filhos. As poucas mulheres que vieram sozinhas são, por norma, divorciadas.
- 17 Fonseca coord. (2004), p. 7.
42Na sua maioria quando deixaram o seu país, os imigrantes entrevistados não dispunham em Portugal de qualquer familiar ou amigo. Estes imigrantes encontram-se numa fase do processo migratório pouco avançada, comparativamente à de outros grupos migrantes como os provenientes dos PALP, o que na óptica de Lucinda Fonseca, explica níveis relativos e menos significativos de imigração justificados pela reunificação familiar. A investigadora17 argumenta que a imigração proveniente de Leste está ainda numa situação de «pré-reagrupamento familiar», em maior consonância com os «modelos clássicos», uma vez que se trata de contingentes masculinizados, com saídas iniciais dominadas por homens e uma presença progressiva de mulheres devido aos processos de reunificação familiar.
Quadro 11. Com quem veio o entrevistado segundo o género
- 18 In Baganha e Fonseca (2002), p. 21.
- 19 Na Ucrânia o direito à liberdade de circulação, nomeadamente a consagração da entrada e saída do te (...)
43No que se refere às origens geográficas dos entrevistados, de notar que a maioria dos ucranianos provém da faixa ocidental da Ucrânia (16 entrevistados), de cidades que se localizam perto da fronteira ocidental, mais concretamente com a República da Moldova, a Roménia, a Polónia e a Hungria. Os entrevistados classificam os territórios de origem como «zonas de província», com características dominantemente rurais. A este propósito, Malynovska18 faz alusão às origens rurais dos trabalhadores ucranianos que migram para Portugal e outros países, ao afirmar que «male migrants from rural areas mostly specialize in construction and agriculture in Poland, Russia and Portugal». É, com efeito, da zona oeste que provém grande parte dos entrevistados, nomeadamente da cidade de L’viv, mas também de Ivano Frankivs’k, Chernivtsi, Odesa, Luts’k, Ternopil’, Kharkiv, Simferopol’ (República Autónoma da Crimeia), assim como de outras pequenas cidades circundantes19 (ver Mapa 1).
- 20 A Rússia engloba 16 repúblicas e territórios autónomos, incluindo no seu seio uma «multitude de pov (...)
44Entre os russos, apenas 10 entrevistados declaram que viviam na Federação Russa20, provindo o maior número de Moscovo (3 indivíduos), seguindo-se Omsk (2), e Saratov (2), que se localiza junto à fronteira com a Ucrânia. Apenas 2 entrevistados residiam em 2 das Repúblicas autónomas da Federação Russa: a da a Tchetchénia (na cidade Grozni) e a da Udmúrtia (em Ijevsk) (ver Mapa 2).
45Alguns entrevistados revelaram que lhes foi difícil deixar o seu país, tendo experienciado, quer no momento da partida, quer quando cá chegaram, emoções diversas e ambivalentes. Foi com dificuldade que as verbalizaram. Entre os interlocutores encontramos quem confesse que partiu contrariado, atitude manifesta pelo menos em 2 entrevistados ainda jovens e que tiveram que acompanhar os seus pais. Viktor tem 20 anos, chegou em 2002 e confessa o quanto lhe custou ao dizer: «Chorei muito…, amigos diante da paragem autocarro… muito difícil, muito difícil sair. Começamos a ter carro, a ir à discoteca» (nacionalidade ucraniana, regularizado, 10 anos de escolaridade). Também Tatiana veio em 2001 e declara que foi difícil deixar os amigos. Embora ambos reconheçam que a vida no seu país era mais divertida, admitem que não dispunham do mesmo estilo de vida que cá usufruem, nomeadamente ao nível das oportunidades de consumo.
46Natacha revela uma outra intensidade e diversidade de emoções, até pela sua posição no ciclo de vida e por ter optado fixar o seu grupo familiar, pelo menos a médio prazo, em Portugal. O marido de Natacha já cá estava quando ela veio com os 2 filhos viver para Portugal, em 2002. A entrevistada diz que: «custou imenso», expressando que não consegue explicitar o que experienciou, porventura insegurança e receio perante a imprevisibilidade de «começar uma vida de novo». Natacha deixa transparecer que no momento da partida se apoderou dela um sentimento de vazio e ansiedade. Assim, afirma:
«Deixar e saber que vamos e temos que começar uma vida de novo… sem nada, só com umas malas… só de saber que vamos e temos que começar uma vida de novo… sem nada, só com umas malas. Ficámos com os filhos. Uma mala de brinquedos deles e livros deles» (37 anos, nacionalidade ucraniana, regularizado, ensino superior, quadro técnico intelectual e científico).
Mapa 1. Principais locais na Ucrânia de proveniência dos entrevistados
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Mapa 2. Principais locais na Rússia de proveniência dos entrevistados
48Muito raramente, estes entrevistados, quando fazem alusão às suas origens nacionais usam a palavra país: o mais comum é evocarem a designação: a «nossa terra». Parece que a pertença geográfica e territorial se sobrepõe a todas as outras dimensões, nomeadamente à política e nacional. A palavra que mais se aproxima do que usualmente designamos por «saudade» é, para estes imigrantes, o termo «nostalgia». Pavel tem 29 anos, também é ucraniano e diz que sente «muita nostalgia. Aqui, ouço música que lá era impensável ouvir, odiava essas músicas. Aqui, gosto dessa música, até dá vontade de chorar…» (não regularizado, ensino superior, operário da indústria e construção, detido). A tristeza latente e os sentimentos de ausência manifestam-se e exteriorizam-se por via das lágrimas mesmo entre os homens.
49Mas há também quem manifeste que não foi nada difícil abandonar o seu país (6 indivíduos). As razões invocadas são diversas, ora porque eram solteiros, não tendo companheiro(a) e filhos, ora porque já antes estiveram a trabalhar fora do seu local de residência, ora porque estavam demasiado desagradados com a situação e com o rumo do seu país em termos políticos e económicos. Para Dima o projecto migratório assume um carácter intencional e despojado de saudosismo, referindo:
«… por acaso para mim não foi tão difícil a partida porque solteiro, não é casado… tinha pais, tinha família, só que não tinha aqueles usos como pessoas têm, por exemplo, maridos, mulheres, filhos que têm de se deslocar porque querem ter uma vida melhor e não têm possibilidade de aproveitar a força e capacidade» (28 anos, nacionalidade ucraniana, regularizado, ensino superior, operário da indústria e construção).
50Pelo menos 3 entrevistados mostram-se desgostosos com o seu país de origem nos seus discursos, emergindo como um «lugar não habitável», rejeitado e a evitar dada a corrupção, o poder desmesurado das organizações criminosas que, formal ou informalmente, controlam o funcionamento das instituições, a insegurança (principalmente na Rússia) e o caos económico e político em que a Ucrânia esteve mergulhada até ao Verão de 2004. Dima é ucraniano e mostra-se desapontado com a situação sócio-política do seu país, nomeadamente a incerteza, a insegurança e a ausência de uma sociedade meritocrática. Assim, e de forma convicta, assinala:
«… as pessoas não podem viver; e eu até encontro aqui com algumas razões que as pessoas estão caladas, não falam e o governo aqui abusa muito também, por toda a parte o governo sempre abusa, isso é….parece normal para eles mas não é normal para nós, parece habito e tradições, cada um quer provar mais, digamos assim. Só que aqui era uma liberdade mais do que lá; era pessoa que trabalhasse um mês tinha certeza que no final do mês tinha um salário que dava para pagar a casa, que dava para pagar a luz, isto e aquilo e comprava alguma coisa; agora lá não, lá uma pessoa para fazer isso tem que, ou entrar no caminho errado, ou não sei…» (28 anos, nacionalidade ucraniana, regularizado, ensino superior, operário da indústria e construção).
51Mas as três principais causas subjacentes à partida da maioria dos entrevistados inscrevem-se num plano essencialmente pessoal, associado normalmente a um quadro de carências materiais e de falta de perspectivas face ao futuro, nomeadamente os baixos salários auferidos no país de origem ou o facto de estarem desempregados. Estas constituem as razões dominantemente invocadas pelos homens, assim como a necessidade de ajudar os filhos, assegurando-lhes uma educação superior e de qualidade. Na verdade, estes motivos não podem ser dissociados do contexto social, económico e político, em que os actores sociais se movem. Mesmo para aqueles que tinham trabalho no seu território de origem, o pouco que ganhavam só permitia cobrir as despesas com a alimentação, não sendo possível comprar «quase mais nada». Também alguns dos entrevistados revelam que não recebiam o seu salário há meses, outros recebiam-no mas com atrasos ou então em troca de géneros. Natacha tem 37 anos, é ucraniana e explica bem como é que sobrevivia com um salário em géneros:
«Então, eu trabalhava na escola mas últimos 2 anos não recebia nada. Não nos pagavam o ordenado e quanto tempo tem, quantos meses antes disso começaram a dar, em vez do dinheiro, a dar-lhe produtos alimentares. Mas aquilo, hoy era pasta de Vodka nós depois tínhamos que vender e com um preço …muita baixo para conseguir vender aquilo. Hoje era, por exemplo, um saco de massa que não dava o que podia as crianças e eu comemos» (regularizada, casada, 2 filhos, ensino superior).
- 21 Fonseca, coord. (2005), p. 9.
52Por isso mesmo, encontramos alguns indivíduos que optaram por imigrar numa fase do seu ciclo de vida em que supostamente deveriam ostentar uma certa estabilidade económica e financeira. No entanto, não foi isso que aconteceu. Assim sendo, alguns casais com filhos maiores e até casados, decidiram imigrar para ajudar os filhos e os netos. A decisão de migrar radica assim, em grande medida, numa lógica familiar21. Os entrevistados revelam que os filhos são ainda jovens e que, ora estão desempregados, ora auferem baixos salários, apesar de exercerem profissões qualificadas, não permitindo recobrir as despesas do agregado doméstico. Georgui tem 54 anos e no seu país de origem ficou sem trabalho, afirmando que com o que ganha cá procura essencialmente ajudar as filhas e os netos que ficaram na Ucrânia. O entrevistado declara:
«… eu ajudar…sim, família e filhos, sim, se tem problema para a Ucrânia, porque está pequeno, filhos que trabalha agora médico, é pequeno por dia trabalho, 12 euros, 12 euros. A maior, este Maria, 30 anos, trabalha médico anestesia. Outro, especialista para turismo, acabou a universidade….Não haver trabalho, examene e acabou os examene e especialista por turismo. Está difícil o trabalho. Precisa ajudar família primeiro» (nacionalidade ucraniana, regularizado, casado, 2 filhos, 11 anos escolaridade, operário da indústria e construção).
53As despesas de educação são uma das maiores preocupações dos entrevistados com filhos menores. Todos pretendem que os filhos obtenham um diploma de ensino superior, mas temem não poder pagar, já que dizem que anualmente é necessário em média cerca de 1500 a 2000 dólares para pagar as despesas escolares associadas a um curso superior. Para além disso, há quem fale em corrupção no ensino. Se no passado eram as classificações que contavam, hoje em dia, não há garantias de que esse critério seja de per si suficiente, já que o dinheiro se sobrepõe a valores e práticas que, outrora eram respeitados. Inna é russa, tem 38 anos, veio para Portugal em 2001 e expressa o seu descontentamento face à actual conjuntura que marca o seu país de origem, dizendo:
«… mas se eu vou para Rússia eu tenho trabalho, mas também não tenho dinheiro… igual, mas aqui… aqui, acho eu, para meus filhos porque eles temos cabeça e podes estudar, mas na Rússia quando tens cabeça e não tens dinheiro tu tens notas muito maus. Se tu pagas para professora mais tem notas boas» (regularizada, casada, 2 filhos, ensino médio, trabalhadora não qualificada dos serviços).
54É recorrente os entrevistados dizerem que «já não dava para continuar», o que deixa antever que atingiram uma situação-limite, designadamente ao nível da capacidade de garantir a subsistência física a um nível aceitável.
55No que se refere às estratégias de angariação de meios para pagar as despesas de viagem, vistos e outros custos associados, detectam-se entre os interlocutores algumas diferenças ao nível das práticas. A este respeito, saliente-se que nove efectivos, maioritariamente homens se escusaram a desvendar que meios mobilizaram para proceder ao pagamento dos custos. Ainda que sem fundamentos empíricos para sustentarmos tal afirmação, não nos parece contudo totalmente descabido afirmar que estes entrevistados receavam e evitavam abordar este assunto, possivelmente porque estariam envolvidos ainda em processos de dívida, nomeadamente com indivíduos que tinham ligações a organizações criminosas.
56O pagamento também se efectivava por via das poupanças acumuladas (5 homens), assumindo a solidariedade familiar alguma importância, assim como a contracção de empréstimos a particulares. Este é um dos expedientes que alguns dos imigrantes usaram, em detrimento do recurso a empréstimos bancários, o que se deve quer aos elevados juros cobrados, quer à atitude de desconfiança que manifestam face às entidades bancárias. Vladimir denuncia: «Não confiamos nos bancos porque no fim da URSS os bancos desvalorizaram moeda e ficamos sem nosso dinheiro. Agora, guardamos dinheiro em casa» (37 anos, nacionalidade ucraniana, não regularizado, ensino superior).
57Entre os entrevistados que contraíram dívidas para viajar para Portugal, é possível encontrar 3 situações-tipo: a) aqueles que já saldaram as dívidas (2 casos); b) os que ainda as estão a pagar (1 caso que foi verbalizado, mas admite-se haver mais, nomeadamente entre os tais 9 entrevistados que se escusaram a revelar os meios de financiamento) e, c) aqueles que por motivos diversos tiveram que suspender os pagamentos. Particularizando a situação daqueles que interromperam o pagamento, Oxana deixou de cumprir os pagamentos em dívida, em virtude de ter ficado desempregada (41 anos, nacionalidade russa, não regularizado, ensino superior). Antes de vir para Portugal, Alex hipotecou a casa da sua família, tendo deixado de pagar as prestações em dívida desde a sua reclusão prisional. Em represália face ao não pagamento a sua família ficou sem alojamento, O entrevistado conta como é que a sua família foi desapossada do seu próprio alojamento:
«… pediu um crédito de 8 meses para vir para Portugal, e dei a casa em troca. Agora a minha família está sem casa e pai (76 anos) e mãe (72 anos) foram viver para casa de minha amiga na Ucrânia. Eu mandava 100-200 Euros para os meus pais. Eu tinha dívidas de 1300 dólares, consegui pagar metade, todo o mês pagar. 10% da dívida. Quando fiquei preso faltava pagar 500 dólares» (45 anos, nacionalidade russa (cidadania ucraniana), não regularizado, ensino técnico, operário da indústria e construção, detido).
58No entanto, os entrevistados não contraíram dívidas só para virem para Portugal, uma vez que antes da decisão da partida, alguns dos imigrantes (5) viviam já num quadro de destituição, em que a acumulação de dívidas era uma prática recorrente, uma vez que quotidianamente se confrontavam com dificuldades e problemas de sobrevivência. Trata-se de indivíduos que, quando vieram para o nosso país, já tinham dívidas pendentes, mostrando-se incapazes de as saldar, tendo este contexto também condicionado a sua decisão de partir. Olga tem 40 anos, é ucraniana, e faz referência às dívidas pré-existentes à sua vinda e que envolvem a sua família e «redes mafiosas»:
«Nossa família tem problem finanças; na Ucrânia nossa família tem pequeno restaurante e nossa família tem outra coisa como mercada vender qualquer coisa e temos garagem e depois nossa garagem roubar pessoas, máfia; e nossa família deve dinheiro outras pessoas e agora essas pessoas quer volta dinheiro e nossa família não pode dar dinheiro como trabalha na Ucrânia, porque na Ucrânia vida muito mal; e só como trabalha aqui eu posso, não posso rápido, mas muito tempo posso ter dinheiro» (nacionalidade ucraniana, 40 anos, regularizado, ensino técnico, trabalhadora não qualificada dos serviços).
Quadro 12. Estratégias mobilizadas para aceder ao «pacote» proposto pelas agências turísticas segundo o género
59A maioria dos entrevistados chegou a Portugal por via terrestre, em carrinhas de 7 lugares, embora também haja casos pontuais de alguns que vieram em autocarros de passageiros, sendo raras as situações em que ocorreram viagens de avião e se sujeitaram ao controle estreito das fronteiras aéreas (apenas, 2 casos). Por norma, a viagem dura entre 3 a 5 dias. Pelo menos 3 entrevistados foram directamente do país emissor para Espanha, tencionando instalar-se naquele país. Porém, a maior rigidez legal em matéria de imigração experimentada em Espanha entre 2001 e 2002 e o controle policial mais apertado impossibilitaram a sua permanência no país vizinho.
60O decurso da viagem é, por vezes, marcado por sobressaltos e eventos indesejáveis, revelando alguns dos entrevistados o receio em serem abordados por «organizações criminosas» que, em determinadas zonas dos países de passagem imobilizavam as camionetas e perpetravam assaltos aos passageiros. A dada altura, estes eventos tornaram-se de tal modo recorrentes que eram as próprias agências turísticas a avisar os clientes. Irina vivenciou de perto esta situação e revela como reagiu:
«Estrada foi difícil porque estavam mafiosos na estrada que me obrigaram a pagar mais. (…) nós fomos avisados que pode acontecer. Nós pagávamos e pronto, eles iam embora. Por exemplo, eles queriam tanto dinheiro, eles entravam dentro do autocarro, nós pagávamos. Comigo foi só uma vez; com marido não, passou e não pagou nada. Eu paguei na fronteira, Alemanha, Polónia… e já… antes de França… Caminho muito má… bandidos à espera…» (38 anos, nacionalidade ucraniana, regularizada, ensino superior, empregada da administração, comércio e serviços).
61Já à entrada da fronteira nacional, o marido de Natacha foi coagido a pagar 300 dólares a estes indivíduos, supostamente pertencentes a grupos de extorsão, que entraram na camioneta, oferecendo os seus préstimos na procura de trabalho. Natacha afirma que o marido teve que pagar esse valor para poder entrar e permanecer em Portugal:
«Foi logo quando chegaram cá, metade de pessoas que veio voltaram para trás, voltaram para o país porque elas chegaram a Lisboa e veio umas pessoas e disseram que ‘vocês acham que vocês vêm cá e aqui é paraíso’ e tinha que pagar 300 dólares às pessoas para arranjaram emprego. E metade voltou para o país e ele ficou porque não tinha outra hipótese. Ele sabia que não pode voltar porque… não havia outra hipótese…Arranjaram-lhe trabalho fora de Lisboa. Passou… no Redondo» (37 anos, ucraniana, regularizada, ensino superior).
62À chegada a Portugal alguns entrevistados (6) passaram por situações similares, nomeadamente aqueles que traziam o contacto telefónico de intermediários que tinham como função angariar trabalho, ou que traziam a promessa de trabalho. Destes entrevistados, três confessam que pagaram antecipadamente esses serviços, os quais, no entanto, nunca chegaram a ser prestados. Em oposição, os outros, apesar de pagarem o que foi ajustado previamente, acabaram por sofrer represálias por parte dos intermediários, sendo roubados, ficado sem passaporte e outros documentos e acabando mesmo por ser despedidos. Por exemplo, Vladimir dispunha de alojamento proporcionado pelo empregador, mas acabou por ficar sem domicílio e por ir viver para a rua. Esta situação e outras similares indiciam a ausência de redes de solidariedade e apoios informais que se poderiam mobilizar em situação de dificuldade e de problemas, facto que diferencia esta imigração face a outros migrantes (por exemplo, dos PALP) em que há redes de inter-ajuda que facilitam a instalação do indivíduo.
63Tratando-se de uma pesquisa qualitativa, um dos grandes objectivos consistiu em evidenciar relações de interdependência, causalidades múltiplas e dinamismos sociais, que nem sempre são passíveis de ser apreendidos através de estudos quantitativos e extensivos. Foi nosso objectivo contribuir para desmistificar a ideia de que os «imigrantes de Leste» são um todo, uno e homogéneo. A par das regularidades, no seu interior, encontram-se diversidades e singularidades. Os russos e os ucranianos não se constituem assim em entidades homogéneas, havendo antes uma diversidade de protagonistas, de trajectórias de vida e de formas de representação.
64Estes imigrantes apresentam uma experiência migratória muito recente em contexto nacional, não tendo estabilizado ainda a sua presença em Portugal, continuando a ocorrer processos de imigração, re-migração e de retorno de carácter temporário, definitivo ou circulatório. No entanto, e entre os entrevistados, já é possível vislumbrar processos de recomposição social.
65Os imigrantes da Rússia e da Ucrânia vieram para Portugal por motivos essencialmente económicos e, na sua maioria, não conheciam e nunca tinham ouvido falar de Portugal. Estas correntes migratórias tiveram os seus picos de maior intensidade em 2000 e 2001 e foram inicialmente compostas por homens isolados, que se encontravam em situação irregular, mas que hoje em dia já dispõem, na maioria dos casos, de um estatuto regularizado. Estes indivíduos são caracterizados por uma certa mobilidade geográfica e residencial.
66Já no país de origem, e antes de virem para Portugal, alguns destes imigrantes tinham iniciado trajectórias sócio-profissionais descendentes, que na maioria dos casos se perpetuaram em contexto migratório. Na sua quase totalidade os imigrantes são trabalhadores por conta de outrem, disseminando-se por diferentes grupos sócio-profissionais; predominam, porém, os operários e os trabalhadores não qualificados da indústria e da construção, para além dos trabalhadores não qualificados dos serviços e dos empregados da administração, comércio e serviços, e indiciando já alguma estabilidade profissional. Apesar das elevadas taxas de actividade masculina e feminina, é relativamente significativa a taxa de desempregados (cerca de 1/4). É clara a supremacia dos que são portadores de diplomas de estudos de nível médio ou superior, o que traduz uma importante diferença face à população portuguesa. As diversidades intra-imigrantes consubstanciam-se numa maior prevalência de migrantes do sexo masculino entre os ucranianos, enquanto nos russos há um maior equilíbrio entre homens e mulheres. Comparativamente aos ucranianos, os russos tendem a exercer actividades profissionais mais prestigiadas e qualificadas, detendo níveis de escolaridade mais elevados; para além disso, na sua esmagadora maioria, encontram-se regularizados, tendo chegado a Portugal em 2000, ou até antes. Por seu turno, a maioria dos ucranianos chegou em 2001 ou anos seguintes e tendencialmente insere-se em segmentos menos qualificados do mercado de trabalho. Quanto à conjugalidade os imigrantes parecem não ocupar uma posição tão contrastante face à população maioritária, se atendermos a algumas das suas características sócio-demográficas básicas. A maioria dos entrevistados é casada ou vive em união de facto, o início da conjugalidade tem frequentemente lugar antes dos 25 anos, ocorrendo ainda nesta fase o nascimento do primeiro filho. O modelo de conjugalidade é mais próximo do da sociedade de acolhimento.