- 1 O trabalho de campo em 1998 durou cerca de dois meses e foi financiado pela FINEP, dentro de um pro (...)
1Este artigo pretende descrever os processos identitários produzidos por imigrantes brasileiros na cidade do Porto ao final do século XX, inserindo-os num quadro de análise que leva em conta a inserção desses migrantes na sociedade portuguesa mediada pela produção de imagens sobre os brasileiros e pela delimitação de determinados espaços de trabalho. O trabalho se baseia nas experiências de pesquisa etnográfica ocorridas em 1998 e 20001.
2O texto explica rapidamente o cenário da emigração internacional brasileira na década de 90 do século XX, depois o cenário imigrante em Portugal, para em seguida refletir sobre os processos de inserção, construção de identidade e estabelecimento de relações de poder entre imigrantes brasileiros no Porto.
3Desde a década de 80 do século XX, o Brasil tem visto um processo emigratório crescente. Antes um país essencialmente recebedor de imigrantes, viu-se contraposto à situação cada vez mais corriqueira de um fluxo significativo de emigrantes internacionais. As emigrações tiveram inicialmente alguns destinos específicos: costa leste norte-americana, Paraguai e Japão. Em menor número aparecia a emigração para Europa, com destaque desde o início para Portugal como destino. A crise econômica dos anos 80, a incerteza econômica gerada pelo plano Collor (1991), a enorme desvalorização da moeda brasileira associada a processos inflacionários intensos, entre outros motivos, incentivaram a saída de milhares de brasileiros em busca de novos destinos. Mesmo a estabilidade econômica relativa, posterior à implantação do real, não estancou esse movimento. Essa experiência social coletiva tem gerado reflexões, análises e preocupações por parte de inúmeros agentes.
- 2 De Genova (2002).
- 3 Cavalcanti (2005).
4Os diferentes contextos de imigração produziram respostas diversas aos problemas de integração, emprego, educação, saúde e discriminação a que estão sujeitos os trabalhadores migrantes. Entretanto, os problemas em si não são muito distintos, mesmo considerando-se a enorme diversidade de lugares para onde os brasileiros emigram. Neste sentido, a questão dos imigrantes brasileiros indocumentados é a mais relevante a ser considerada. Em todos os contextos de imigração (com exceção do Japão) o número de imigrantes brasileiros em situação de indocumentação – questão tratada pelas autoridades dos respectivos Estados-Nação como «ilegalidade»2 – é muito relevante. Esta questão torna-se dramática para uma reflexão sobre o acesso à cidadania, uma vez que estes brasileiros indocumentados são, na verdade, não-cidadãos, na medida em que estão praticamente excluídos dos acessos a serviços importantes (saúde, previdência, educação), vivem sob constante medo da denúncia, são impedidos de ir e voltar do Brasil, têm o trabalho super-explorado, são muito mal remunerados e, por fim, convivem com a discriminação que recai sobre os «ilegais»3.
5Essas afirmações acima começaram a surgir nas monografias sobre brasileiros no exterior realizadas no começo da década de 90 do século passado, e o número cresceu exponencialmente até a data presente. Há uma diferença evidente, entretanto, entre aquelas primeiras etnografias e aquelas que se apresentam recentemente: a situação dos brasileiros imigrantes tem piorado sistematicamente, seja pelo aumento também exponencial da migração internacional de brasileiros, seja pelo enorme endurecimento das legislações sobre a imigração nos diversos países para onde os brasileiros partem. Destacam-se neste cenário a severidade atual das leis européias e o fechamento das fronteiras norte-americanas, bem como o aumento da vigilância sobre os indocumentados neste mesmo país. No começo da década as legislações e a fiscalização das polícias responsáveis pela imigração eram mais flexíveis, possibilitando aos imigrantes um número maior de estratégias de sobrevivência. Atualmente, as restrições legislativas e policialescas dificultam imensamente a vida desses brasileiros. Some-se a essas novas dificuldades a falta de uma assistência efetiva do Estado Brasileiro no que tange à garantia da cidadania destes emigrantes.
- 4 Para uma bibliografia mais extensa e volumosa sobre esse processo, consultar http://www.ufscar.br/~ (...)
- 5 Ver, por exemplo, Linger (2001); Roth (2002); Tsuda (2003a), (2003b), (2000), (1999a), (1999b), (19 (...)
- 6 Ver bibliografias coletadas indicadas na nota 3.
6A bibliografia brasileira e internacional sobre o assunto produziu trabalhos sobre a imigração brasileira em suas cinco principais opções de escolha: Paraguai, Estados Unidos, Japão, Itália e Portugal4. Entretanto, a distribuição dos trabalhos entre os países é desigual. Japão e Estados Unidos são, de longe, os lugares onde brasileiros são mais conhecidos. Paraguai, Portugal e Itália contam com alguma produção, mas nem de longe comparável aos trabalhos sobre brasileiros no Japão e Estados Unidos. Os trabalhos sobre brasileiros nos Estados Unidos concentram-se na costa leste, principalmente na área de Boston, mas também há trabalhos sobre brasileiros em outras localidades. Os trabalhos sobre brasileiros no Japão dividem-se entre cidades como Oizumi, Toyota, Tóquio etc. Há a peculiar característica desse objeto de pesquisa ser de grande interesse de intelectuais americanos, a maioria de nipo-americanos, contando com uma expressiva produção bibliográfica sobre os dekasseguis brasileiros5. Outros trabalhos tratam sobre brasileiros em Buenos Aires, Lisboa, Porto, Roma, Suíça, Itália, Canadá e demais países da América Latina6.
- 7 Os números sobre a emigração internacional brasileira eram e continuam a ser incertos – estimativas (...)
7Como se vê, ao final da década de 90 do século XX, Portugal tinha um lugar relativamente periférico entre os principais destinos de imigrantes brasileiros, que claramente preferiam deslocar-se para EUA, Japão e Paraguai, até então. Essa situação mudou ao adentrar o século XXI, ganhando Portugal destaque relativo no cenário migratório brasileiro. Agora não mais por conta dos números, que ainda são bem menos expressivos que os das migrações para EUA e Japão, mas por conta da importância que a migração brasileira veio a ganhar no cenário Português, principalmente ao longo desse século. Não seria exagero dizer que, atualmente, a emigração de brasileiros para Portugal tem tanto destaque na mídia e mesmo na academia que a emigração de brasileiros para os EUA e Japão. Entretanto, em 2000, quando a pesquisa da qual trata esse artigo foi realizada, a situação era de transição: os números ainda não evidenciavam a elevação do número de imigrantes brasileiros em Portugal, mas a experiência empírica indicava que a situação estava mudando7. Passemos agora a uma análise desse cenário português de imigração ao final do século XX.
8O quadro português de imigração insere-se no que se chama de imigração na Europa do Sul, conjunto que reúne quatro países: Portugal, Espanha, Itália e Grécia. Até mais ou menos a década de 70, esses países tinham um perfil emigratório, com o predomínio de correntes de emigração para os países da Europa do Norte. A partir da década de 70 estes países começaram a sofrer alterações profundas nas características dos movimentos populacionais. Junto ao movimento de emigração veio a se juntar um movimento imigratório que cresceu e o superou, conferindo um perfil diferenciado a estes países.
9Se estruturalmente passavam por momentos parecidos, no que tange às populações que compunham este movimento, as características eram bem diferentes. A imigração no sul da Europa é tanto alvo de imigração direta como de migrações de passagem e estes países serviram como plataforma de passagem para os países mais desenvolvidos. Por conta do movimento imigratório recente, as taxas de imigração destes quatro países encontram-se entre as maiores da União Européia.
- 8 Baganha e Góis (1998/1999), p. 236.
10No caso de Portugal, especificamente, a imigração internacional era apenas um de alguns dos fluxos populacionais, embora fosse já evidente, ao final do século XX, a proeminência dessa movimentação. Outros fluxos internos eram a emigração, o regresso de emigrantes e o retorno de pessoas das ex-colônias. O regresso de imigrantes teve seu ápice na década de 70, e F. Machado (1997) estimava em cerca de 400.000 os retornos nesta época que, no entanto, vieram a diminuir em seguida. A emigração continuava relevante em 1996, como afirma o autor, o que torna a situação de Portugal específica na Europa (comparável apenas com a Irlanda). Baganha e Góis (1998/1999) indicavam que em 1991 a porcentagem de imigrantes na população portuguesa, oficialmente era de 1,5%. Entre 1953 e 1973, aconteceu uma transferência constante de mão de obra do sul da Europa para o norte mais industrializado. Entre 1965 e 1974, cerca de 1.018.000 migrantes deixaram Portugal, dos quais 63% foram para França e 14% para Alemanha8.
- 9 Baganha e Góis (1998/1999 p. 254), fazem essas afirmações a partir de dados de 10 países europeus, (...)
11Para Baganha e Góis (1998/1999), durante a década de oitenta a Europa do Sul exerceu uma atração imigratória maior que outras regiões européias. As tradicionais áreas de imigração na Europa cresceram entre 1981 e 1991, cerca de 2% em relação ao número de imigrantes, enquanto a Europa do Sul, no mesmo período, viu sua população de imigrantes crescer 10%9.
12As transformações estruturais por que passou a Europa, com o movimento de unificação, e o mundo, com a globalização, resultaram nessa aceleração da imigração na Europa do Sul. A mudança da estrutura da indústria, a relocalização das fontes de fornecimento de mão de obra, redirecionamento de fluxos de capitais e novos padrões de competição internacional acabaram por transformar radicalmente a estrutura e funcionamento dos mercados de trabalho nos países da Europa, ainda mais radicalmente os da Europa do Sul.
- 10 Baganha e Góis (1998/1999), p. 265.
- 11 Machado (1997), p. 39 e p. 41.
13No caso português, os fatores que propiciaram os fluxos de imigração, segundo F. Machado (1997), remontam à década de 60. Nesse período, o aumento do investimento estrangeiro na sequência da industrialização progressiva inaugurou a entrada de quadros profissionais e dirigentes provenientes da Europa rica, enquanto a emigração de portugueses cria oportunidades de trabalho, basicamente na construção civil. Inicialmente, esses postos de trabalho foram ocupados principalmente por caboverdeanos (imigração de substituição). Após o 25 de abril de 1974 e a descolonização, voltaram centenas de milhares de portugueses residentes das ex-colônias e alguns milhares de africanos imigrantes fixaram-se em Portugal, fugindo da instabilidade política em África. Obviamente que os outros fluxos de pessoas que atravessaram Portugal têm influência nesta área: o retorno de emigrantes portugueses do Brasil traz imigrantes brasileiros no seu rastro, possibilitando a constituição mais rápida de redes de imigração. Provavelmente o mesmo aconteceu com os retornados, possibilitando, num primeiro momento, uma imigração predominantemente em «português». Mas foi só a partir dos anos 80 que a imigração para o trabalho assumiu expressão significativa. O principal fluxo de imigrantes vinha de Cabo Verde e estendia-se aos demais PALOPs (especialmente Angola e Guiné-Bissau). No ambiente de imigração em Portugal, Baganha e Góis10, apoiando-se em F. Machado, afirmavam que havia uma clivagem entre a população africana que residia em Portugal em 1974 e a que se fixou entre 1975 e 1980. Foi a partir dessa década que aumentou grandemente a política de obras públicas, principal mercado de trabalho para os imigrantes. Para Machado, a preponderância de uma imigração «lusófona» caracterizava Portugal como um destino de segunda classe para a imigração. Isso se explica pela menor atratividade de Portugal em termos de trabalho e salários. As «afinidades histórico-culturais» tornariam a opção de imigrar para Portugal um pouco mais compensadora, devido ao controle da língua. Para Machado, como também para Baganha e Góis, «as autoridades portuguesas têm mantido, no entanto, de forma expressa ou tácita, preferência pelos imigrantes dos países lusófonos»11.
- 12 Machado (1997), p. 28.
- 13 Dados compilados em Malheiros (2007).
14Os pedidos de regularização em 1993 e 1996 demonstravam uma predominância da imigração africana dos Palops (cerca de 70%)12. Já em 2000 os brasileiros eram a segunda comunidade imigrante em Portugal13. Isso indicava um crescimento muito rápido, considerando-se que o cenário imigrante em Portugal era predominantemente formado pelos oriundos dos PALOPs. Esse rápido crescimento indicava um vigor do movimento que se mantém até hoje.
15Na virada do século, o fenômeno da imigração com origem nos países do leste europeu causou uma grande modificação no quadro geral das diferenças em Portugal, inserindo um contigente enorme de pessoas que não tinham nenhuma relação histórica ou simbólica com Portugal. A intensidade dessa migração causou mudanças muito rápidas nas relações entre as populações migrantes, mas com o avançar do século XXI, o movimento migratório de brasileiros provou-se mais regular, chegando hoje a ser a maior comunidade de imigrantes em Portugal, levando-se em conta o número de não-documentados que é muito elevado, dado a intensidade do fluxo e o alto número de recusas de entrada. A recusa de entrada de brasileiros, segundo o SEF14, em 2006 foi de 1749, contra 435 da Venezuela, país que vem logo em seguida em número de cidadãos aos quais foi recusada a entrada em Portugal. Obviamente, o número alto de recusas de entrada significa uma intenso volume de tentativas de entradas.
16O cenário do final do século XX indicava, dessa forma, uma diminuição do fluxo dos imigrantes dos PALOPs, comunidades migrantes mais antigas em Portugal, uma ascensão vertiginosa da migração brasileira, que num prazo de duas décadas tornou-se a comunidade mais significativa de imigrantes em Portugal. Por outro lado, os dados ainda não indicavam o fenômeno da migração oriunda do Leste europeu. Tinha-se, portanto, um cenário de migração majoritariamente falada em português, o que teve, conforme veremos abaixo, implicações muito significativas na vida dos imigrantes brasileiros naquele momento.
- 15 IGT/ACIME/SEF, 2002.
- 16 Os números eram os códigos oficiais do INE – Instituto Nacional de Estatística português, em 2000, (...)
17Os três grandes grupos de atividades econômicas executadas por imigrantes brasileiros em Portugal no final do Século XX eram, segundo o SEF15, aqueles englobados pelas categorias [1] 451/45516, com 25,5%, a [2] 551/555 com 22% e a [3] 701/748, com 22,5%. O primeiro grupo [1] se refere a atividades relacionadas com a construção civil, e deve-se notar que era nominalmente a atividade econômica que mais empregava brasileiros, embora num nível significativamente abaixo da média dos imigrantes em geral, que ficava em 39,5%. Os brasileiros trabalhavam menos na construção civil que os demais imigrantes. O segundo grupo [2] tratava do comércio com restaurantes em geral, desde hotéis até cafés e snack bares. Pela experiência em pesquisa, posso dizer que a profissão predominantemente executada por brasileiros nesse campo de atividade econômica era a de garçom. Com 22% dos brasileiros trabalhando nesta área, tínhamos uma grande diferença com relação aos imigrantes em geral, que eram apenas 11,3% atuando no mesmo campo (se excluíssemos os brasileiros da média geral, a diferença aumentaria ainda mais).
18Se somarmos ao «atendimento ao público em geral», categoria que utilizo para definir a principal atuação dos brasileiros no mercado de trabalho naquele momento, as categorias [4] 501/505, [5] 511/517 e [6] 521/526, teremos outro quadro. O grupo [4], com 1,68% de brasileiros, refere-se a atividades no comércio de automóveis e combustíveis, o grupo [5], com 4,4% de brasileiros, a atividades no comércio grosso (atacado) em várias áreas e o grupo [6], com 6% de brasileiros, ao comércio a retalho em geral (varejo). As principais profissões que brasileiros desempenhavam nesses campos econômicos eram as de vendedores diretos ao público, seja como frentistas, vendedores em lojas nos shoppings, vendedores em lojas atacadistas, etc. A soma destas atividades era de 12,3%, contra 8% da média de todos os imigrantes. Somando aos 22% dos brasileiros que trabalhavam na hotelaria (categoria [2]), teríamos 34,3% de brasileiros atendendo ao público, numa estimativa que pressupõe que todos trabalhavam como atendentes, o que não é, obviamente, certo. Mas vale como exercício de análise.
- 17 A discriminação completa das categorias pode ser encontrada em Machado (2003), pp. 309-318.
- 18 O número total de brasileiros legalizados em 2001 corresponde aos 22.411 de imigrantes com autoriza (...)
- 19 Para uma outra composição desses dados, para 1991 e 2001, ver Peixoto et al. (2007).
- 20 Malheiros (2007); Peixoto et al. (2007).
19A categoria [3] 701/748, com 22% de brasileiros à época, é extremamente vasta. Nela caberiam desde promotores de venda e compra de bens imobiliários, aluguéis de automóveis e máquinas em geral, consultoria de informática e comércio de informática em geral, consultoria jurídica, arquitetura, engenharia, publicidade, até segurança e limpeza industrial17. A categoria é tão vasta que acaba sendo pouco útil. Nela estavam desde o engenheiro altamente qualificado até o trabalhador de uma agência de segurança privada, desde o advogado até o funcionário de uma consultoria em informática. Estavam contidos desde a famosa imigração qualificada brasileira até mais um grupo significativo de atendentes ao público. Mas ainda assim, vamos imaginar que estes brasileiros fossem todos qualificados e que a soma das categorias [3], [4], [5] e [6], feita acima, representasse um número razoável de atendentes. Teríamos uma distribuição de cerca de 34% de brasileiros servindo o público, 22,5% trabalhando com a construção civil e 22% em empregos mais qualificados. Os demais 21,5% desempenhariam diversas atividades. Diferentemente do relatório no qual se baseiam tais análises, que afirma que a construção civil era quem mais empregava brasileiros, podemos visualizar que o trabalho de atendimento e relacionamento com o público era um nicho mais favorável aos brasileiros (a média dos imigrantes em geral nas mesmas categorias era de cerca de 19%). Lembremos que os números acima se referem ao contingente de 22.558 brasileiros que se regularizaram no regime especial de autorização de permanência em 2001 e não aos brasileiros em geral. Mas como o número de regularizações ultrapassou o de imigrantes legalizados em 2000 (22.411) em mais de 100%, podemos pensar que esses números indicavam o real perfil da imigração brasileira, que continuava crescendo18. Os dados acima também indicam a importância da profissão «empregado de balcão e empregado de mesa» entre os brasileiros, e apenas entre os brasileiros. No Porto, a construção civil ainda não tinha em 2000 a mesma importância que parecia já ter para os brasileiros em Lisboa e o principal emprego dos brasileiros era mesmo na hotelaria e restauração19. Os dados da imigração mais recente indicam um peso maior para a construção civil e para os serviços não-qualificados, em relação à década de 90 do século passado20.
- 21 Ver uma síntese da discussão em Malheiros 2007.
20A bibliografia portuguesa sobre a migração brasileira costuma aceitar a hipótese que a migração brasileira sofreu uma mudança qualitativa e numérica a partir dos últimos dois anos do século XX, tendo se convencionado a expressão «segunda vaga» para os brasileiros que chegaram após esta época21. Os brasileiros com que convivi em 2000 eram mais próximos ao perfil da «segunda vaga» (níveis de instrução mais reduzidos e concentrados em trabalhos menos qualificados), apesar de a maioria estar em Portugal, àquela altura, havia mais de cinco anos. A diferença crucial em relação à «segunda vaga» era o lugar no mercado de trabalho, onde a construção civil tinha muito menos importância que atualmente e, para mulheres especialmente, o trabalho doméstico praticamente inexistia.
- 22 Conferir o trabalho de Thomaz (1997).
21Os trabalhadores brasileiros, portanto, dirigiam-se principalmente para o mercado de atendimento ao público. A restauração e hotelaria ainda era, em 2000, a melhor fonte de empregos, como vimos acima, principalmente por uma suposta «vantagem estrutural» dos brasileiros: eles tinham (e ainda têm) fama de festivos, simpáticos e falavam português. Essa fama garantiu espaço no mercado e uma posição privilegiada na hierarquia das alteridades imigrantes. O que chamo de «hierarquias das alteridades» é uma forma de escalonar em termos valorativos as diferentes populações que se encontravam dentro de Portugal. Defendo a idéia de que a hierarquia que qualifica as populações imigrantes em Portugal, e na qual os brasileiros têm um lugar privilegiado, é fruto das hierarquias coloniais portuguesas, tão bem expostas nas grandes feiras coloniais do começo do século XIX22.
- 23 Grasfogel (2000); Quijano (1998).
- 24 A partir do final do século XX, entretanto, a situação modificou-se com a chegada de grandes contin (...)
22Antes de seguir, é preciso indicar o contexto simbólico no qual se inseriam e eram inseridos os brasileiros, de forma a precisar qual era e como foi formada a «hierarquia das alteridades» portuguesa, ou seja, a estrutura simbólica que escalonava em termos de status as diferentes populações em Portugal. Entendo que a colonialidade do poder23, ou seja, a manutenção das estruturas raciais-hierárquicas que permearam toda a reflexão imperial portuguesa era a responsável pela perenidade de uma forma racializada de encarar a diferença, mas então reconstruída em termos étnicos. Em outras palavras: os sujeitos de diferentes nacionalidades que emigraram para Portugal até meados da década de 90 do século passado encontraram uma escala na qual foram inseridos, principalmente pelo fato de que até 1998 a maior parte da imigração em Portugal foi composta por gente das ex-colônias. A presença de imigrantes dos PALOP e do Brasil em Portugal, majoritariamente24, facilitou a perenidade do pensamento colonial. Esta perenidade resultou na reconstrução dentro de Portugal da antiga ordem imperial, agora reorganizada com base nas populações imigrantes.
- 25 FOX (1990).
- 26 O Primeiro Império Português vai de 1450 a 1550, fundado no domínio das rotas marítimas para a Ásia (...)
- 27 Castelo (1998); Alexandre (1998); Alexandre (2000).
- 28 Thomaz (1997).
- 29 Machado (2003).
23A organização simbólica das alteridades, ou seja, a forma como os sujeitos de diferentes nacionalidades e lugares são hierarquizados pela ideologia nacionalista25 hegemônica em Portugal, é conseqüência do pensamento colonial português retomado após a perda do Brasil, em 1822, no período conhecido como o Terceiro Império26. No século XX, esse pensamento, fundado em convicções evolucionistas, disfarçou-se nas teorias do lusotropicalismo (à portuguesa) e, atualmente, na lusofonia27. Enfim, a experiência do Terceiro Império28 é fundamental para entender a configuração do universo simbólico no qual se inseriam os brasileiros, e como nele o Brasil tinha uma função específica – a de exemplo para a África portuguesa – que influenciou a forma como ele era considerado e como seus imigrantes foram inseridos na vida portuguesa29.
- 30 Peixoto et al. (2007); Padilla (2004).
24Naquele momento histórico, a lusofonia acabou por reforçar as hierarquias coloniais, nas quais o Brasil ocupava um lugar intermediário entre africanos e portugueses. Ora, este processo refletiu-se diretamente na vida dos imigrantes brasileiros. Uma das conseqüências dessa hierarquização foi que os estereótipos sobre brasileiros vigentes em Portugal atuaram como uma prisão. Constantemente submetidos às representações solidificadas pela hierarquia racial, comuns em Portugal, muitos imigrantes brasileiros acabaram por representar papéis preestabelecidos. Uma suposta «essência» do brasileiro, que a seguir discuto, passou a ser algo real, capital cultural «encontrável», ou seja, cultura objetivada. Por conta desta objetivação, a presença dos brasileiros era mais notada no que é considerado «hotelaria», que são os serviços de restaurantes, casas noturnas, bares e lojas de atendimento em geral. Os brasileiros eram empregados em função da necessidade do mercado de trabalho e da predisposição simbólica que os encaixava em determinada categoria. Mais recentemente, entretanto, os brasileiros ocupam cada vez mais postos de trabalho na construção civil e serviço doméstico30, numa espécie de descolamento gradual dessas imagens coloniais.
- 31 Santos (2002); Feldman-Bianco (2001); Machado (2006).
- 32 Machado (2003).
25O universo simbólico português era (e é), portanto, marcado por densas representações sobre o Brasil. Quando imigrantes brasileiros lutavam por direitos especiais, apelando à lusofonia (na idéia de que há uma fraternidade entre os que falam português) reforçavam o lugar subalterno que determinadas conotações desta ideologia lhes conferia e, de certa forma, legitimavam o discurso oficial do Estado, baseado em percepções de uma diferença estrutural e constante, etnicizada31. Os brasileiros ocuparam um lugar especial, devido a sua posição privilegiada na hierarquia racial, embora subalterna. Este lugar especial na hierarquia foi composto através de uma série de representações sobre o Brasil que derivavam do denso campo simbólico que envolve o Brasil em Portugal. Os resultados desse lugar foram os processos de exotização32.
- 33 Sobre a produção dos discursos colonialistas, ver, entre outros, McClintock (1995); McClintock (199 (...)
26Determinadas características eram esperadas dos trabalhadores brasileiros. As principais eram a alegria, simpatia e cordialidade. Acreditando que os brasileiros eram portadores atávicos dessa série de características, os empregadores portugueses procuravam por esses imigrantes para determinados trabalhos. Por isso o atendimento em geral era a grande fonte de emprego para brasileiros na cidade do Porto. Muitos trabalhavam como garçons, vendedores de lojas, representantes de vendas, músicos. De certa forma, o brasileiro no Porto, naquele momento era um entertainer. O papel do entertainer delegado ao brasileiro não era, contudo, isento de conotações ideológicas: o processo que se desenrolava era o de uma subordinação sistemática do brasileiro aos estereótipos que rotulavam todos os brasileiros como pessoas alegres e simpáticas. Estes estereótipos têm também outras conotações, pois ao mesmo tempo em que brasileiros eram considerados alegres, eram vistos como menos intelectualizados, sexualmente desregrados e pouco educados. Ou seja, reproduzia-se uma antinomia clássica do pensamento colonial, que era a divisão do mundo entre civilização e selvageria33.
- 34 Machado (2003), (2004), (2006).
- 35 Said (1990).
27Os brasileiros passavam pelo que chamei de «processo de exotização»34. Estes processos são fenômenos sociais de efetivação dos estereótipos, têm relação íntima com a sua produção, mas vão além da mera constatação da sua existência. Esses processos referem-se não apenas à imposição de imagens estereotipadas a determinadas populações, que poderíamos chamar de orientalismo35, ou seja, os processos de construção de imagens sobre o outro que passam a ter autonomia simbólica, num processo de «encarceramento simbólico» dos nativos. Para além de ser submetida ao «orientalismo», a praxis da população brasileira no Porto se relacionava com as imagens constituídas do imaginário hegemônico português de uma forma específica. Ou seja, os imigrantes brasileiros não apenas eram submetidos à construção das imagens estereotipadas por determinados agentes de poder, mas também eram sujeitos ativos da exotização. Assim, adaptar-se mais eficientemente aos estereótipos portugueses podia conferir maior poder a determinadas pessoas, que impunham a sua própria forma de brasilidade como hegemônica. Os processos identitários, então, dialogavam intimamente com os idiomas portugueses de representação simbólica dos brasileiros. E esse diálogo era perpassado por relações de poder e hegemonia entre os imigrantes brasileiros no Porto, resultando num certo padrão ou modelo ideal de identidade construído e propalado por determinados agentes que encarnavam, de alguma forma, uma conjunção entre as imagens portuguesas sobre o brasileiros e lugares de poder importantes dentro da comunidade, justamente por conta da adequação, agora ativa, aos estereótipos. Os imigrantes brasileiros, longe de serem receptáculos de estereótipos construídos à revelia das suas vontades, estavam, portanto, também engajados no reforço sistemático destes estereótipos. Os brasileiros não eram apenas objetos da estereotipação, mas sujeitos ativos na promoção destes estereótipos. Esse processo de auto-subordinação se deu justamente através da inserção no mercado de trabalho. Quero indicar que a forma como os brasileiros na cidade do Porto organizavam sua vida coletiva permite entender como eles progressivamente foram se tornando «exóticos», no sentido determinado por um universo simbólico português abarrotado de imagens sobre os brasileiros.
28O trabalho era o principal caminho para os processos de exotização, já que os lugares oferecidos pelo mercado de trabalho português eram, naquele momento, relativos aos estereótipos: animadores, músicos, capoeiristas, dançarinos, jogadores de futebol e atendentes ao público em geral. Como o trabalho da maioria estava ligado às imagens essencializadas/estereotipadas do Brasil, os imigrantes procuravam reforçar a sua autenticidade enquanto brasileiros. Quanto «mais brasileiros» aparentavam ser, maior influência eram capazes de exercer entre os brasileiros, ganhando maior legitimidade entre os portugueses com os quais encontram-se em posição simbolicamente subordinada, já que os empregos eram mais facilmente conquistados por «aqueles que sabiam o seu lugar».
- 36 Na tese de doutorado (Machado, 2003) demonstro que não é apenas o controle do mercado de trabalho q (...)
29Encaixar-se no estereótipo português sobre o brasileiro facilitava a vida do imigrante, que conseguia seu emprego mais rapidamente. Por outro lado, a imagem que o imigrante passava a vender como a do «autêntico brasileiro» era esta imagem exotizada. Num movimento coletivo de exotização, as percepções sobre a identidade brasileira começaram a se aproximar dos estereótipos portugueses. Os estereótipos ganharam vida e os brasileiros viraram a imagem que deles esperavam os portugueses. Tendo em vista que as relações de poder entre os imigrantes passavam, entre outras coisas, pelo controle de uma larga rede de possíveis empregadores portugueses, os líderes acabavam sendo alguns entre os que podiam ser acionados em casos de busca de emprego. Esses líderes,eram brasileiros que, tendo se encaixado nas imagens correntes sobre o Brasil, conseguiram inserir-se solidamente no mercado de trabalho36. Em outras palavras, tornaram-se intermediadores, cuja situação de mediação proporcionava acúmulo de poder entre os demais imigrantes brasileiros.
30A influência dos «mais autenticamente brasileiros» não se restringia à esfera econômica, mas a toda a vida social da «comunidade brasileira», pois, tendo construído lugares de poder a partir da própria subordinação simbólica aos estereótipos portugueses, passaram a ser os referenciais num processo de construção de identidades entre os brasileiros no Porto. Como Hall (1996), acredito que as identidades são processos em construção, nunca imobilizadas e sempre sujeitas aos jogos de poder da vida cotidiana. Para Hall, o processo de identificação, pelo qual construímos nossas identidades culturais tornou-
- 37 Sobre imigrantes em lugares específicos de mediação como «intermediários culturais» ver Feldman-Bia (...)
31-se provisório, variável e problemático; não há identidade fixa; ela é formada e transformada continuamente e é definida historicamente; o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos; as identidades não são unificadas em torno de um eu coerente. A partir dessa perspectiva processualista da identidade, marcada pela percepção da importância das relações de poder na construção de identidades, podemos perceber o papel dos intermediadores brasileiros no Porto37.
32Eles atuavam como pivôs do processo de construção de uma identidade cultural brasileira imigrante focada na incorporação dos estereótipos portugueses. Assim, os brasileiros «micos-de-circo», como um dos meus amigos imigrantes os descrevia, passaram a sair do universo de representação português para o cotidiano das disputas políticas entre imigrantes brasileiros. Foi possível verificar um processo de «subordinação ativa» aos estereótipos, no sentido de ser um reforço sistemático. Esse reforço sistemático acabou, obviamente, por fortalecer as imagens estereotipadas a que os brasileiros estavam sujeitos em Portugal.
33Em minha opinião, esse processo de subordinação ativa aos estereótipos resultou na construção de um lugar subalterno dos brasileiros na cidade do Porto. Era um processo de inserção espontânea de grande parte dos imigrantes aos lugares previamente oferecidos pela sociedade portuguesa: o lugar de grandes entertainers. Os brasileiros eram vistos por um lado como grandes artistas, criativos, inventivos e, por outro, como vagabundos, sexualmente depravados e burros. O lugar que cabia ao brasileiro imigrante em Portugal era o de entreter os portugueses.
34É preciso fazer a ressalva que havia (e há) uma fonte dupla de produção dos estereótipos que viraram realidade na experiência dos imigrantes brasileiros pobres do Porto: havia o próprio Estado brasileiro, preocupado em vender a imagem do tropical exótico e da nação mestiça – para fins de turismo e solidificação da identidade nacional –, e havia a sociedade portuguesa, que tem, desde o período colonial, constantemente reelaborado imagens sobre o Brasil. Neste artigo deixei de lado a produção de estereótipos sobre os brasileiros fabricada pelo próprio Estado nacional e sociedade civil brasileiras, dedicando especial atenção à segunda das fontes, a sociedade portuguesa, a fim de analisar as especificidades dos processos de exotização em Portugal. Acredito que, embora possam ser vislumbrados em outros contextos nacionais, tais processos acontecem sempre de forma diferenciada, segundo as sociedades de recepção dos imigrantes.
35Esse trabalho tratou de ilustrar o desenvolvimento de construções identitárias entre os imigrantes brasileiros no Porto, ao final do século XX. Esse momento foi marcado pelo início de uma expansão considerável do número de imigrantes brasileiros em Portugal, mas tinha ainda diferenças marcantes em relação aos processos mais recentes relativos a essa população em Portugal. Tentei demonstrar como a organização portuguesa de uma hierarquia de alteridades, ainda basicamente circunscrita ao universo das ex-colônias portuguesa, teve impactos importantes na construção do que chamei de processos de exotização entre os imigrantes brasileiros no Porto. Procurei ressaltar que esse processo de exotização é fruto tanto de representações impostas na forma de estereótipos quanto de mecanismos de subordinação ativa dessa população, ou seja, da ação dos próprios imigrantes.
- 38 O chamado «acordo Lula», de 11 de julho de 2003.
- 39 Peixoto e Figueiredo (2007). E, por fim, como destaca Malheiros (2007), p. 28.
36O grande contingente de brasileiros que escolheram Portugal como nova pátria, nos anos seguintes ao período aqui retratado, complexificou imensamente o quadro da imigração brasileira em Portugal. Trabalhos atuais, como o de Malheiros (2007), indicam as enormes mudanças no perfil da imigração brasileira, processo que vem se intensificando. Atualmente os brasileiros são formalmente o maior grupo de estrangeiros em Portugal e houve uma concentração mais aguda de brasileiros na região de Lisboa. Esse grande crescimento da população imigrante brasileira levou, inclusive, à assinatura de um acordo bilateral entre Brasil e Portugal, que possibilitou a legalização extraordinária de imigrantes brasileiros38. A percentagem de trabalhadores ativos na população imigrante brasileiros cresceu e o perfil laboral mudou radicalmente: houve uma ocupação muito significativa de brasileiros no setor secundário, principalmente a construção civil e serviço doméstico, o que era muito incomum no Porto, em 200039, ocorreu a feminização progressiva da imigração brasileira, que «regista a mais elevada proporção de mulheres de todos os grandes grupos de imigrantes com residência legal em Portugal».
- 40 Machado (2006); Malheiros (2007).
37Aparentemente essa migração recente não se restringe apenas aos mecanismos de exotização como forma de inserção no mercado de trabalho, incentivando uma variedade intensa de distintas construções identitárias40. Nesse novo cenário, as representações portuguesas sobre os brasileiros continuam sendo muito importantes, mas não parecem ter a capacidade que apresentavam em 2000, a de conter todas as referências da experiência de vida dos imigrantes.
- 41 Resultados recentes de pesquisa desenvolvida entre imigrantes brasileiros retornados de Portugal na (...)
38Verificamos atualmente uma flexibilidade maior na ocupação de postos de trabalho, uma fuga dos processos de exotização (em geral significando processos de invisibilização41), uma variação da experiência, uma importância crescente da religião na organização da vida coletiva dos imigrantes etc. A reflexão aqui apresentada pretende ser uma contribuição, agora já de caráter historiográfico, ao entendimento desse fluxo migratório tão relevante para a sociedade portuguesa.