- 1 Glick Schiller, Basch e Blanc Szanton (1992); Feldman-Bianco (1992) e (2004).
- 2 Cunningham e Heyman (2004), Heyman e Campbell (2004).
- 3 Çaglar (2007); Feldman-Bianco (no prelo).
1Conjunturas históricas tendem a direcionar temas e paradigmas de pesquisa. Portanto, não é por acaso que, já no final da década de 1980, estudiosos das migrações internacionais estivessem a elaborar novas perspectivas teóricas a fim de captar os campos sociais de migrantes e seus vínculos com a terra natal, num período em que as diásporas de emigrantes estavam sendo incorporadas, por retórica ou legislação, na remodelação de nações pós-coloniais1. Em contraposição, atualmente, num contexto marcado por políticas de imigração que caracterizam os imigrantes como uma ameaça à segurança nacional, para além de um interesse renovado em questões relacionadas com a imigração e as fronteiras2, novas pesquisas estão começando a examinar as relações entre processos globais e locais e, nesse sentido, os vínculos que unem transmigrantes às localidades de imigração3.
- 4 Os protagonistas desse estupro, que ocorreu numa mesa de bilhar – vítima, réus e promotoria – eram (...)
2Assim sendo, em finais da década de 1980, quando iniciei pesquisa em New Bedford uma cidade da costa sul de Massachusetts, Nova Inglaterra, conhecida como a «capital dos portugueses na América», o meu olhar de etnógrafa me direcionou a discernir os significados da construção cultural da saudade na diáspora, num período marcado pelo ingresso de Portugal na Comunidade Européia e processos correlatos de incorporação de seus emigrantes no redesenho de uma nação pós-colonial que se fundamenta no direito às raízes, através de laços de sangue. Por conseguinte, minha análise enfatizou a re-elaboração da portugalidade e os vínculos mantidos entre transmigrantes e a terra natal. Se, naquela época, havia ainda ecos de um ruidoso caso de estupro, ocorrido em 1983 e que expôs New Bedford como «capital da gangue de estupradores portugueses da América»4, a posição e imagem dos portugueses na cidade parecem ter mudado no transcorrer dos últimos vinte anos. Hoje, restaurantes, padarias, cafés e folclore portugueses – enfim o comércio e as práticas sociais associadas à saudade (e, portanto, a portugalidade) – estão sendo incorporados, sob a chancela A Taste of Portugal (Um Sabor de Portugal), ao patrimônio histórico imaterial dessa cidade americana, como parte de um conjunto de tentativas governamentais para atrair o turismo em tempos neoliberais.
3Diante desses desenvolvimentos, volto-me, neste ensaio, a elucidar os processos simultâneos de incorporação, relativa participação e/ou exclusão de portugueses e lusos-descendentes em New Bedford, cidade que, em seus tempos áureos, esteve à vanguarda da economia baleeira (1815-1860) e têxtil (1880-1925) e cujos governantes têm procurado, desde então, atrair manufaturas, indústrias de serviço e, mais recentemente, o turismo. Com esse objetivo, examino as interligações entre a reestruturação da economia local e as mobilizações e práticas transnacionais desses transmigrantes, inclusive os impactos da remodelação do Estado pós-colonial português e de suas práticas transnacionais na costa sul de Massachusetts. Procuro discernir as mudanças de localização dos portugueses como um grupo étnico na cidade e a mercantilização da saudade enquanto «um sabor de Portugal» nessa conjuntura de reestruturação do capitalismo global, declínio da economia local, retração da transmigração portuguesa para a Nova Inglaterra e predomínio de políticas neoliberais.
4Dessa perspectiva, focalizo as interações dinâmicas entre processos globais e locais, no contexto das transformações que ocorreram na economia política global durante os últimos 20 anos. Essas transformações, além de reestruturarem New Bedford e os processos incorporativos que vinculam migrantes à cidade, estão fortalecendo as conexões transatlânticas das lideranças migrantes, bem como estimulando novas iniciativas transnacionais para reinventar a cidade econômica e culturalmente. Enquanto as localidades e regiões portuguesas se beneficiaram de investimentos comunitários, New Bedford e a vizinha Fall River sofreram declínio econômico. Nos últimos dez anos, esses distintos re-posicionamentos na economia política global resultaram em uma drástica redução da migração portuguesa para a costa sul de Massachusetts. Também começaram a estimular parcerias culturais, educacionais e econômicas, facilitadas por influentes intermediários bilíngües e biculturais, cujos campos sociais estão reforçando as interligações entre essas duas cidades americanas e localidades portuguesas, em especial com os Açores. Acima de tudo, esses desenvolvimentos revelam as repercussões da remodelação do Estado pós-colonial português e de suas práticas transnacionais na costa sul de Massachusetts, inclusive através da canalização de verba e doações para instituições locais e regiões americanas, como parte de sua política de cultura e investimentos.
- 5 Georgeanna e AAronson (1993).
5Desde a era baleeira, a história de New Bedford, como cidade de imigrantes, é marcada por conexões transnacionais com Portugal – particularmente com os Açores – através das redes de mão de obra imigrante. Nos séculos XVIII e XIX, açorianos e cabo-verdianos foram os tripulantes das expedições baleeiras. Depois, as tecelagens locais, formadas por capital originado dessas expedições recrutaram trabalhadores europeus de diversas nacionalidades numa conjuntura histórica marcada por greves e mobilização de classe. Enquanto os operários ingleses e irlandeses se diferenciavam por sua alta qualificação, os açorianos, continentais, madeirenses e cabo-verdianos faziam parte das massas de imigrantes que foram incorporados às fábricas têxteis como trabalhadores sem qualificação. Por volta de 1910, os portugueses já constituíam 40% do operariado têxtil. Porém, estigmatizados como «Black Portugee» recebiam os piores trabalhos, sendo que especialmente os cabo-verdianos (que eram então parte da assim chamada colônia portuguesa) tendiam a trabalhar num setor conhecido como «departamento da escravidão»5.
6Após a reabertura dos portões de imigração na década de 1960, enquanto outras cidades e regiões dos Estados Unidos atraíram transmigrantes do Caribe e Índia, sucessivos contingentes de açorianos e continentais – continuaram a se dirigir a New Bedford e outras cidades da Nova Inglaterra. Esses recémchegados confrontaram um novo regime industrial de fábricas de trabalho intensivo que se alastraram pelas estruturas parcialmente abandonadas das antigas tecelagens de New Bedford. Entre as décadas de 1960 e 1980, a chegada desses contingentes foi facilitada por políticas governamentais americanas que estimulavam a migração em cadeia possibilitando a reunião de inúmeras famílias na Nova Inglaterra. Como essas políticas reforçaram a tendência das fábricas locais de empregar parentes recém-chegados de seus trabalhadores, a maioria dos trabalhadores fabris continuou a ser de origem portuguesa.
- 6 Feldman-Bianco (1992), (1994) e (1995).
7Similarmente às antigas gerações de trabalhadores, imigrantes de origem rural reconstruíram práticas sociais associadas ao seu passado agrícola – hortas, o fazer do vinho, costura, bordados e festas folclóricas – como uma forma de confrontar a monotonia do trabalho industrial. Se durante o turno de trabalho eram operários, em seu tempo livre continuavam camponeses e artesãos. Assim que podiam, compravam uma casa com um grande quintal, que possibilitasse o cultivo de uma horta e a criação de animais6. Através desses símbolos e práticas sociais reconstituíam a portugalidade nos bairros étnicos e, ao mesmo tempo, ajudaram a renová-los. Ao manter a cidade através de seu trabalho e investimentos nos bairros e pequeno comércio, esses migrantes atuaram também como agentes da revitalização urbana.
8Mas, em finais de 1980, inúmeras fábricas encerraram as suas atividades ou abandonaram a cidade, em decorrência da terceirização e, portanto, a produção passou a ser redirecionada para outros países. Concomitantemente, como parte de um padrão inter-relacionado na economia global, as indústrias locais de processamento do peixe estavam sendo incorporadas em companhias maiores, com o trabalho sendo realizado em outros lugares.
9A desindustrialização em New Bedford teve início ainda em meados de 1920, quando as tecelagens locais se mudaram para o sul dos Estados Unidos em busca de mão-de-obra mais barata e não sindicalizada. Posteriormente, o declínio das manufaturas e da pesca das últimas décadas, no âmbito da crise econômica e fiscal de Massachusetts, indicou um novo re-escalonamento dessa cidade, numa conjuntura histórica marcada pela flexibilização do capital e do trabalho, terceirização e, nesse sentido, pela atual reestruturação neoliberal de cidades.
- 7 Ver http:/coomondreams.org/news2001/0418-05.htm.
- 8 Barrow e Borges (2001).
- 9 Sá (2008).
- 10 Georgeanna e Schrader (2008).
10Essa nova reestruturação econômica ocorreu no estado todo. A criação da NAFTA levou à perda de um total estimado de 17.000 empregos em Massachusetts, entre 1993 e 20007. Várias regiões do estado conseguiram enfrentar as mudanças estruturais globais através da diversificação de suas economias locais e (ou) pela atração de indústrias de alta tecnologia. Entretanto, New Bedford e Fall River continuaram a depender em demasia da industria manufatureira. No decorrer da década de 1990, o impacto da NAFTA sobre as indústrias de confecções da localidade causou um declínio dramático de 55,1% no número de empregos fabris, de 20.528 em 1985 para 9212 em 19998. A perda de empregos no setor manufatureiro local foi ainda maior, chegando a um total de 61%, de 1985 a 2005, isto é se considerarmos um período de 20 anos9. Desde a década de 1990, a comercialização da pesca também diminuiu devido à alteração das leis regulamentando a pescaria que limitaram o número de expedições de pesca e, ao mesmo tempo, aumentaram o número de horas de trabalho no mar10.
11Conseqüentemente em 1995, o estado de Massachusetts designou New Bedford uma área «economicamente de calamidade pública». Na ocasião, um relatório do Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano considerou a cidade «duplamente exaurida» devido à «perda de população e altos índices de desemprego e de pobreza», indicando que a localidade, «perdeu mais de 11.000 empregos industriais e mais de 16% dos pescadores perderam seus trabalhos durante as últimas décadas» (Brownfields Show Case Community Sheet). A percentagem da população ativa diminuiu de 65% em 1985 para 50% em 2001 – ano em que a localidade foi classificada em 348 entre as 351 municipalidades de Massachusetts em termos de renda. Esses sinais marcam claramente o re-posicionamento de New Bedford no estado.
- 11 Agradeço ao Prof. Dr. Onésimo Teotônio de Almeida por essa informação.
12Como tantos outros trabalhadores mundo afora, a classe operária local foi forçada a confrontar a reestruturação do capitalismo global e o «trabalho flexível» sem segurança e sem benefícios. Dada essa situação, inúmeros cidadãos começaram a buscar alternativas de vida. A população diminuiu de 99.222 em 1990 para 93.768 habitantes no ano de 2000. Muitos portugueses decidiram migrar para outras regiões dos Estados Unidos, especialmente para a Flórida onde o custo de vida é supostamente mais baixo11. Outros optaram por retornar para a terra natal, levando em conta a melhoria das condições econômicas após o ingresso de Portugal na Comunidade Européia.
- 12 Sá e Borges (2008).
- 13 Há indicações que, com o declínio das manufaturas, o setor de serviços se transformou no maior empr (...)
- 14 Sá (2008).
13Para aqueles que permaneceram em New Bedford, a indústria de serviços em expansão junto com a decadente indústria manufatureira se apresentam como os maiores empregadores na cidade. Uma proporção significativa de trabalhadores portugueses conseguiu manter seus empregos na indústria manufatureira12. Aqueles que perderam seus trabalhos nas fábricas locais, devido à NAFTA, obtiveram o direito a treinamento, inclusive ao aprendizado da língua inglesa, que os habilitasse a exercerem outras capacitações. A maioria começou a procurar trabalho no setor de serviços da cidade e região circunvizinha13. Aparentemente, a maior parte dos homens adentrou ocupações manuais – especialmente na construção civil, enquanto as mulheres tenderam a obter empregos em escritórios, hospitais, serviço social, ou para cuidar de crianças e idosos14.
14Por conseguinte, trabalhadores portugueses, tanto quanto outros trabalhadores em diferentes partes do mundo, estão hoje expostos à maior vulnerabilidade econômica em ocupações que requerem a flexibilização do trabalho e que não oferecem sequer estabilidade ou benefícios sociais. Entretanto, de um modo aparentemente paradoxal, esses portugueses melhoraram seu posicionamento dentre o operariado local. Dada a drástica redução da migração açoriana e continental para a Nova Inglaterra, novos contingentes da América Latina e do Caribe que se radicaram na cidade passaram a ocupar os empregos que não requerem qualificação nas remanescentes manufaturas e nas indústrias de processamento de peixes. Como a maioria desses novos contingentes – oriundos da Guatemala, México e Nicarágua e, em menor extensão, do Brasil – é constituída por migrantes indocumentados, esses trabalhadores acabaram por formar uma «subclasse» explorada pelos patrões e exposta às políticas restritivas de imigração do pós 11 de setembro. São esses trabalhadores indocumentados as vítimas das «batidas» dos agentes da segurança nacional às fábricas locais que tem resultado em prisões e deportações sem possibilidade de processos ou apelos.
- 15 Lang (2008). Como parte dos esforços de revitalização econômica, em 1996 foi formado o New Bedford (...)
15Nesse contexto, portugueses e luso-descendentes que galgaram trajetórias de sucesso como comerciantes e profissionais têm feito uso de seus campos sociais e práticas transnacionais para atuarem como intermediários tanto para a sua terra natal quanto para as localidades e região de fixação nos Estados Unidos. Alguns desses intermediários transnacionais se envolveram com os «esforços conjuntos do governo local em parceria com os governos estadual e federal, organizações de cidadãos e comerciantes, agências sem fim lucrativo e instituições de educação superior com relação à implementação de políticas de desenvolvimento econômico» para endereçar, nas palavras do prefeito de New Bedford, «os desafios do século XXI»15.
16Em 1997, esforços para financiar novas iniciativas de reinvenção urbana na localidade, por meio de investimentos internacionais, frutificaram. Através da intermediação de açorianos influentes residentes na cidade, o Ministério dos Negócios Exteriores (na época sob o comando de um açoriano) alocou uma verba de US$ 500.000,00 para a construção de uma ala especial no Museu da Baleia com o intuito de retratar a cultura material dos baleeiros açorianos que haviam se fixado em New Bedford. Essa doação possibilitou que os baleeiros açorianos fossem finalmente incorporados ao patrimônio histórico da elite da cidade. O Conselho de Desenvolvimento Econômico de New Bedford também realizou várias tentativas no sentido de atrair empresas portuguesas para o parque comercial da cidade e Zona Livre de Comércio, resultando, por exemplo, na abertura de alguns bancos portugueses na cidade. Diretores desse Conselho visitaram Portugal à procura de investimentos e, mais recentemente, uma delegação de 50 pessoas, composta de lideranças governamentais, educadores e gente de negócios (e intermediada por um influente comerciante açoriano de Fall River) viajou para os Açores numa missão comercial com o intuito de reforçar laços educacionais, culturais e econômicos com a Costa Sul de Massachusetts. Há, inegavelmente, grande interesse por parte de empresários dessa região americana em obter acesso aos mercados europeus através dos Açores.
17A promoção de New Bedford como ponto turístico – com atrações multiétnicas e multiculturais – tem sido um outro elemento importante dos esforços de revitalização econômica da cidade. E a identidade portuguesa que havia sido racializada e posteriormente associada à alcunha de New Bedford como a «capital da gangue de estupradores portugueses da América», finalmente se tornou um componente visível e desejável do patrimônio cultural da cidade. Como parte das estratégias do Departamento de Turismo e Marketing para atrair turistas, os restaurantes, as padarias e as festas portuguesas tradicionalmente celebradas durante o verão – incluindo o Dia de Portugal, que era até inícios da década de 1990 uma celebração por e para portugueses e descendentes – têm sido promovidos como um «Sabor de Portugal», tornando-se, assim, constitutivos da intangível (mas bastante comercializada) diversidade cultural.
18Nova legislação caracterizando os imigrantes como uma ameaça à segurança nacional começou a ser implementada nos Estados Unidos em 1993, cinco anos antes do malfadado «11/9». Além de restringir acesso aos benefícios sociais, essa lei postula que os imigrantes que cometeram pequenas infrações são elegíveis à deportação. Desde então e especialmente com o Ato Patriótico de 2004, quando a legislação americana contra migrantes indocumentados se tornou ainda mais restritiva, as deportações são o maior drama para migrantes documentados e indocumentados nessa era de multiculturalismo neoliberal.
- 16 Sob a liderança do Centro de Assistência ao Imigrante de New Bedford (um centro formado pelos portu (...)
- 17 Feldman-Bianco (1994).
19Ainda em 1997, a fim de contornar as já restritivas leis de imigração, lideranças biculturais iniciaram extensa campanha de «naturalização» como estratégia para assegurar que os imigrantes portugueses nos Estados Unidos tivessem voz política e acesso aos benefícios sociais americanos16. Essas campanhas de naturalização se justapuseram à política da dupla nacionalidade e cidadania promovida pelo Estado pós-colonial português, que enfatiza a incorporação de portugueses no exterior e o seu papel enquanto «representantes de Portugal» nas respectivas localidades de fixação. Conseqüentemente, o mote «para ser um bom português, é necessário ser um bom americano», utilizado por lideranças luso-americanas durante a campanha de Americanização da década de 1930 a fim de persuadirem imigrantes a solicitarem cidadania americana e se assimilarem na sociedade americana, foi redefinida pelo então Presidente Mário Soares, durante uma visita realizada a New England em 1987, com o propósito de estimular o biculturalismo17.
20Como parte desses esforços, a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), uma instituição privada e financeiramente independente criada pelo governo português em 1985 para promover as relações entre Portugal e os Estados Unidos e que visa «contribuir para o desenvolvimento de Portugal, através de apoio financeiro e estratégico a projectos inovadores e através do incentivo à cooperação entre a sociedade civil portuguesa e a americana»18 aderiu à «Campanha de Naturalização». Como corolário, lançou em 1999 o Portuguese-American Citizenship Project, com o objetivo de promover a cidadania e o envolvimento cívico das comunidades luso-americanas espalhadas pelos Estados Unidos. Esse projeto ajudou a estruturar a campanha em diferentes regiões dos Estados Unidos e tem resultado em aumento da representação de cidadãos de descendência portuguesa em cargos públicos na Nova Inglaterra. Presentemente, sete dos onze vereadores de New Bedford são descendentes de portugueses e uma oitava, viúva de um vereador português, ainda retém o sobrenome do marido. Imigrantes portugueses e Luso-Americanos também fazem parte do comitê escolar e do comitê eleitoral da localidade. Mas nem todos estão envolvidos com a política étnica.
- 19 Feldman-Bianco (1992).
- 20 Sá (2008).
21Nesse sentido, torna-se importante observar que, muito embora a maioria dos imigrantes açorianos e continentais que se radicaram em New Bedford e cidades vizinhas entre finais da década de 1950 e 1980 tivessem iniciado suas vidas como trabalhadores fabris ou pescadores, houve entre eles um processo gradual de mobilidade social diferencial e incorporação desigual. Muitos conseguiram obter suas aposentadorias nos Estados Unidos e, dessa forma, ter acesso à estrutura americana de benefícios sociais. Também, pelo menos desde a década de 1970, filhos e filhas de imigrantes conseguiram estudar nos Estados Unidos. Muitos dos que conseguiram um diploma universitário começaram a servir como intermediários e intermediárias culturais entre os imigrantes e as instituições americanas. Esses intermediários culturais se beneficiaram das ideologias multiculturalistas em vigor e de seu bilingüismo e biculturalismo para galgar posições nas estruturas governamentais locais ou no sistema educacional bilíngüe regional ou, ainda, nas instituições portuguesas que foram criadas na década de 1970 com a ajuda de verbas americanas na localidade e região19. Outros conseguiram estabelecer seus próprios estabelecimentos comerciais ou, então, se tornaram profissionais em diversos campos de especialização. E, embora em menor número, há imigrantes portugueses e luso-americanos que se tornaram milionários20.
22Nesse cenário, os portugueses – caracterizados ainda no começo da década de 1970 como uma «minoria invisível» e um «caso de desaparecimento étnico»21 – parecem ter melhorado a sua localização estrutural como um grupo étnico em New Bedford, inclusive no campo da política. Esse avanço é resultado de uma combinação de fatores, incluindo a drástica redução da migração do continente e dos arquipélagos dos Açores e Madeira, a gradual incorporação desigual de imigrantes e seus descendentes na localidade e na região, os processos resultantes da mobilidade social ascendente e da suburbanização e o fato de que, pela primeira vez em mais de um século, os mais recentes contingentes de imigrantes que estão se radicando na localidade não são portugueses.
- 22 Feldman-Bianco (2004).
23Acima de tudo, deve-se levar em conta a mudança de posição do Estado português na economia global e o crescente papel desempenhado por um nacionalismo de longa distância acionado por intermediários biculturais e bilíngües para mudar a imagem de Portugal e dos portugueses nas cidades da Nova Inglaterra. Este processo foi iniciado ainda em 1985, quando do ingresso do Estado pós-colonial português no espaço comunitário europeu. Enquanto a remodelação de Portugal pós-colonial em uma nação baseada no jus sanguini (e, portanto, nos direitos às raízes) obedeceu às políticas da CEE no que diz respeito à livre circulação de pessoas na Fortaleza Europa, os esforços do Estado pós-colonial português para incorporar seus emigrantes e descendentes na nação proporcionaram aos membros da diáspora portuguesa direitos de dupla nacionalidade e cidadania, direitos esses que se tornaram recursos valiosos em localidades como New Bedford. Inicialmente, as autoridades governamentais portuguesas delimitaram acesso diferencial às associações diaspóricas em seus diálogos e negociações com o Estado português, sendo eventualmente criado um Conselho Mundial das Comunidades Portuguesas em 1996. Entrementes, desde a regulação de fronteiras realizada em 1991 no âmbito de Schengen e particularmente após a formação em 1996 da Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP), autoridades governamentais têm tentado se beneficiar de contactos transnacionais para reforçar a posição de Portugal na União Européia e, por extensão, na economia política global22.
24Através das ações combinadas dos Ministérios de Negócios Estrangeiros, da Cultura e da Economia, o governo construiu uma indústria de informações, baseada na promoção do patrimônio cultural português, diretamente vinculada a uma agenda neoliberal que visa negociar investimentos, expandir mercados e o turismo, beneficiando-se tanto das relações com suas ex-colônias – especialmente o Brasil – quanto da incorporação de emigrantes e luso-descendentes em países diversos. Como parte desses esforços, autoridades governamentais portuguesas progressivamente tenderam a reforçar as suas relações com os afluentes e influentes da diáspora capazes de ocupar posições de poder nas localidades e países de fixação, assim como desempenhar intermediação para a inter-relacionada política portuguesa de cultura e investimentos. Com essa orientação, o Estado português criou o Instituto Camões encarregado de disseminar a cultura ancestral de Portugal no mundo através de atividades que incluem exposições do longínquo passado das explorações marítimas. Nesse contexto, a atuação da FLAD deve ser entendida tanto em relação ao nacionalismo de longa distância do Estado português quanto aos esforços dos afluentes e influentes da diáspora para aumentar seu poder político como um grupo étnico na política americana.
- 23 Feldman-Bianco (1992).
25No passado, imigrantes portugueses e seus descendentes precisavam optar entre continuarem portugueses ou se assimilarem e se tornarem americanos23. Considerando que os cabo-verdianos faziam parte da comunidade portuguesa, a rejeição (e, portanto, invisibilidade) da identidade portuguesa evitava a questão racial e o estigma de «Black Portuguese». Essa estratégia proporcionava aos luso-descendentes possibilidade de «passagem» para as altas esferas da sociedade americana, mesmo que, em muitos casos, retivessem a língua e tradições portuguesas. Depois, na década de 1970, como parte de seus esforços para se estabelecerem como parte da maioria, os influentes e afluentes decidiram não fazer parte do Programa de Ação Afirmativa. Dessa forma, puderam se distanciar de um status minoritário racialmente demarcado – um caminho seguido, por exemplo, pelos imigrantes cabo-verdianos após a independência de Cabo Verde. Nas últimas duas décadas, novas gerações de imigrantes e de luso-descendentes que galgaram mobilidade social se uniram ao já estabelecido estrato de luso-americanos – descendentes dos mais antigos contingentes portugueses, alguns dos quais já haviam reconstruído a sua portugalidade após as políticas americanas terem abandonado a ênfase na assimilação em favor de ideologias multiculturalistas. Membros desse estrato social têm reconstruído a memória histórica das descobertas e promovido a política de alta cultura do Estado português para realçarem sua própria posição como representantes de um Portugal «moderno» – em oposição às arraigadas imagens de um «velho» Portugal formado por camponeses culturalmente conservadores.
26Como parte da política de alta cultura do estado pós-colonial, o Center for Portuguese Studies and Culture foi formado em meados da década de 1990 na Universidade de Massachusetts Dartmouth por docentes de origem portuguesa, contratados pela instituição. Esse centro começou a desempenhar um proeminente papel na mudança da imagem de Portugal e dos portugueses na região através de uma multiplicidade de programas e atividades educacionais e culturais incluindo: programas de verão para o ensino de português; o estabelecimento de um Departamento de Português; publicações de versões para o inglês de obras literárias e científicas; a organização de seminários e conferências com renomados intelectuais portugueses; a criação de uma cátedra, a formação de arquivos para documentar a história dos portugueses nos Estados Unidos; e o lançamento de um novo Programa de Pós-Graduação em Estudos Luso-Afro-Brasileiros. Indicativos dos campos e práticas transnacionais que caracterizam a região, os programas acadêmicos e o Centro têm recebido apoio financeiro e verbas do estado de Massachusetts, da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento e inclusive do Estado português. Além do mais, através de coleta de doações, o Centro recebe apoio financeiro de imigrantes e luso-americanos afluentes da Nova Inglaterra e até da Califórnia para as suas atividades. A Universidade de Massachusetts Darmouth é uma das principais instituições do sudeste de Massachusetts que tem proporcionado acesso à educação superior a sucessivas gerações de imigrantes portugueses e descendentes. Operando em consonância com as políticas do Estado pós-colonial português, bem como com o Portuguese-American Citizenship Project, o Centro e o novo programa de pós-graduação estão descortinando novas possibilidades para estudantes dos Estados Unidos e do exterior, independentemente de suas origens nacionais e étnicas. Esse programa, por sua vez, tem aprimorado a imagem da própria universidade.
- 24 Tendo em vista o número considerável de mães que foram presas e separadas de seus filhos pequenos, (...)
27Essa interconexão entre políticas de cultura e políticas de investimentos aparenta mascarar as restritivas políticas de imigração atualmente em vigor nos Estados Unidos e as contínuas batidas de agentes da Imigração contra trabalhadores indocumentados. Em 2004 e também em 2007, New Bedford atraiu a mídia nacional devido às batidas dos agentes de «segurança nacional». Treze imigrantes indocumentados que trabalhavam numa indústria de processamento da pesca foram presos em 2004. Posteriormente, em 2007, agentes de segurança nacional prenderam 300 mulheres e homens, a maioria da Guatemala, Nicarágua e México. Embora em número menor, brasileiros e açorianos também estavam entre os presos. Contudo, diferentemente do passado, tendo em vista que os «mayas» se tornaram os novos «bodes expiatórios», a mídia totalmente ignorou os açorianos que haviam sido presos24.
28O mapeamento das conexões existentes entre processos globais e locais me possibilitou relacionar a incorporação dos migrantes portugueses na remodelagem de uma nação pós-colonial e a renovação da portugalidade em New Bedford com os processos simultâneos de re-escalonamento dessa cidade americana na economia política global. Dessa perspectiva, minha análise indica que a incorporação transnacional dos migrantes portugueses em Portugal está diretamente interligada à sua concomitante incorporação como agentes sociais ativos em suas localidade de fixação.
29O exame das interfaces entre o global e o local revela que, desde a década de 1980, a flexibilização do capital e o progressivo processo de terceirização, juntamente com o acordo NAFTA, engendraram em New Bedford um novo ciclo de encerramento das fábricas locais e seus deslocamentos para outros países onde a mão-de-obra é mais barata. Como parte desses mesmos processos, a implementação de políticas reguladoras levou à redução da pesca local. A resistência da decadente indústria manufatureira e o malogro em reconstruir o desativado sistema ferroviário, entre outras variáveis que limitam a diversificação da economia local, resultaram em um crescente declínio econômico da outrora celebrada «cidade baleeira».
30Para a compreensão das atuais transformações e mobilizações, foi essencial considerar o posicionamento histórico de New Bedford como uma cidade que depende da mão-de-obra imigrante e, assim, desvendar o papel ativo e o alcance transnacional desempenhado por populações transmigrantes e suas redes sociais na configuração dos processos em curso. Num cenário americano marcado pela prevalência de ideologias multiculturalistas, a renovação da portugalidade e o florescimento da etnicidade portuguesa em New Bedford e, por extensão, na costa sul de Massachusetts, estão diretamente vinculados à concessão de direitos de dupla cidadania e nacionalidade pelo Estado português às suas populações diaspóricas espalhadas pelo mundo. Esses direitos conectam institucionalmente os portugueses de New Bedford não somente a Portugal, mas, também, ao espaço econômico e político da comunidade européia. Ao mesmo tempo, o Estado pós-colonial português, assim como o governo regional dos Açores e, em menor extensão, também o da Madeira, estão ganhando uma presença mais forte na Nova Inglaterra. Com a intensificação das inter-relacionadas políticas de cultura e investimentos, autoridades governamentais estão cada vez mais focalizando suas atenções nos influentes da diáspora portuguesa a fim de situá-los como atores políticos, culturais e econômicos em seus respectivos países e regiões de fixação.
31O ingresso de Portugal no espaço comunitário europeu e as estratégias do Estado pós-colonial português em relação à sua diáspora tiveram um impacto positivo para a mudança da imagem dos migrantes portugueses e seus descendentes em New Bedford. Como parte dessas estratégias, a FLAD tem desempenhado um importante papel na canalização de verbas e na promoção do projeto de cidadania. Essas estratégias não somente proporcionaram espaços para lideranças imigrantes e luso-descendentes se posicionarem na política americana, mas também as inseriram como intermediárias entre a costa sul de Massachusetts e a terra natal. Esse alcance transnacional dos transmigrantes portugueses e especialmente seu acesso ao espaço comunitário europeu os posiciona mais centralmente no cenário político e econômico de cidades decadentes, como New Bedford e Fall River. Essas lideranças – formadas pelos afluentes e influentes da diáspora – não somente estão facilitando as parcerias educacionais e econômicas com a terra natal (em especial com os Açores), como também se tornaram mediadoras na canalização de dotações portuguesas e, por extensão da União Européia, inclusive proporcionando acesso aos mercados europeus, para as cidades da costa sul de Massachusetts.
32Há uma evidente melhora na imagem dos portugueses em New Bedford e região circunvizinha. A diminuição drástica da migração dos Açores e do continente e a chegada em New Bedford de imigrantes da América Latina e do Caribe, que passaram a ocupar os mais baixos escalões da força de trabalho imigrante, como também a separação entre a «comunidade» portuguesa e a cabo-verdiana após a independência de Cabo Verde, para além dos esforços dos novos centros de cultura portuguesa nas universidades localizadas na costa sul e região adjacente, contribuíram, em seu conjunto, para uma renovada imagem dos portugueses enquanto um grupo étnico em New Bedford. Contudo, é a presença do Estado pós-colonial português na economia política e cultural dessa decadente região que definitivamente contribui para a nova e mais positiva imagem de Portugal e dos portugueses em New Bedford.
33Em suma, os transmigrantes portugueses se tornaram parte dos esforços de reposição, tanto de New Bedford e Fall River quanto do Estado português, na atual conjuntura neoliberal. Mas, dada as diferenças de agendas, esses transmigrantes são convocados para cumprir papéis diversos. Enquanto os centros apoiados pelo Estado português investem na promoção da alta cultura portuguesa e na política de investimentos, o governo local, ao utilizar a chancela «A Taste of Portugal», tem se empenhado na mercantilização da culinária e dos festivais folclóricos portugueses, enquanto parte do patrimônio cultural intangível de New Bedford, em seus esforços para atrair turistas para a cidade e região.
34Entrementes, os processos de flexibilização do capital e do trabalho, juntamente com uma política imigratória americana que criminaliza imigrantes, através de uma perspectiva na segurança nacional, resultaram na crescente exploração e vulnerabilidade econômica dessas massas de imigrantes, das quais grande parte dos portugueses continua a fazer parte.