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Dossier: Emigração e Imigração

Apresentação

Miriam Halpern Pereira e Fernando Luís Machado
p. 9-11

Texto integral

1O que distingue um migrante de um cidadão nacional? Ser residente estrangeiro, ou seja de outra nacionalidade é a resposta certa, contudo não necessariamente a aplicada, nem na linguagem comum, nem na linguagem científica. Migrantes são os muitos milhares de seres humanos que se deslocam, através do mundo, em busca de trabalho melhor remunerado que no país de origem. Mas não de qualquer trabalho, apenas de trabalho assalariado desqualificado, em geral manual. Não é comum incluir na categoria de migrante o trabalho científico, as profissões liberais, os homens de negócio, nem os funcionários de organizações internacionais. Contudo, a verdade é que eles também são migrantes, quando optam pela mudança de residência de um país para outro. A pequena ponderação estatística e a sua situação económica e social, desde logo bem diferente dos trabalhadores migrantes desqualificados, explicam o seu tratamento diferenciado. No caso português, embora habitual, esta exclusão determina uma perspectiva deturpada do nosso passado. É corrente a ideia de que só recentemente Portugal se tornou um país de imigrantes. Contudo, desde longa data acolhemos artesãos e mercadores estrangeiros, alguns homens do saber e com profissões liberais. Constituíram-se comunidades de diferentes nacionalidades, como a «nation française» ou a feitoria inglesa, entre outras, estruturas indispensáveis no quadro jurídico estratificado do Antigo Regime. Nada semelhante veio proteger os negros metropolitanos, mesmo após a sua libertação com Pombal. Ainda hoje pouco se sabe sobre esta mão-de-obra e a sua contribuição para a economia, é um domínio do conhecimento histórico quase virgem.

2O tratamento do fenómeno da migração, nas duas vertentes, é eminentemente ideológico e político, na sua concepção e na visibilidade que lhe é concedida. A emigração portuguesa dentro do espaço colonial é um caso evidente dessa construção. Os colonos, expressão aqui utilizada no sentido amplo, eram cidadãos portugueses e residindo nas colónias não mudavam de nacionalidade, mas o seu estatuto alterava-se. Movendo-se dentro de um espaço africano considerado português, o passaporte tornara-se desnecessário desde 1907, o que tornou a contagem dos emigrantes difícil. Por sua vez os africanos só se podiam tornar cidadãos portugueses se fossem assimilados. O conceito de cidadania é central na definição das fronteiras entre uns e outros, brancos, negros e mestiços.

3Na imagem do país que se pretende difundir, na ideia de progresso e desenvolvimento, o fenómeno migrante tem ponderação diferente, consoante se trata de imigração ou de emigração. O primeiro é conciliável e até sinal de expansão económica. O segundo é apontado como indicador no mínimo de persistentes bolsas de pobreza, de atraso, portanto inconveniente para uma concepção de sucesso económico e cultural. Assistiu-se assim à tentativa da sua obliteração, aconteceu durante o Estado Novo, nos anos 60, e repetiu-se nos últimos anos. O esquecimento e marginalização nos meios científicos tem sido recorrente, mesmo nas décadas de 60-70, quando a imprensa deu espaço amplo à emigração para diferentes países europeus, a investigação sobre este tema teve expressão reduzida. Como continuou a acontecer nas décadas seguintes com a reconversão do destino da emigração portuguesa da Europa em direcção a vários países americanos de norte a sul, a África da Sul e a Austrália. Existe uma nítida disparidade entre a dimensão da investigação dedicada à emigração do passado século XIX e início do século XX, hoje muito considerável, e a escassez de estudos sobre a emigração contemporânea.

4É surpreendente a invisibilidade académica da emigração na última década ou década e meia. Como se fosse um fenómeno sem importância, o que não é o caso. Nesse mesmo período de quinze anos, aproximadamente, os fluxos de saída aumentaram muito, para novos e velhos destinos, sobretudo na Europa, mas também para outros continentes. E não foram só os cientistas sociais que, com algumas boas excepções, ignoraram a nova emigração portuguesa. O mesmo se passou no campo mediático e político. A emigração não existia e apenas se falava das «comunidades portuguesas no mundo» a propósito do dia 10 de Junho ou da questão da participação eleitoral dos emigrantes. A ausência da emigração foi particularmente chocante na Expo 98, centrada no tema Oceanos, cuja abordagem histórica ficou confinada ao tempo distante e confortável dos Descobrimentos.

5A obliteração da emigração como fenómeno relevante na sociedade portuguesa actual coincidiu com a atenção intensa e generalizada dada à imigração. Em menos de duas décadas acumulou-se uma quantidade impressionante de trabalhos sobre imigração e imigrantes, feitos a partir de todas as disciplinas das ciências sociais, da generalidade dos departamentos universitários e centros de investigação, e tem havido financiamentos regulares para investigar o tema, que se tornou objecto de forte investimento político e institucional. Não sendo esta a única, nem a principal razão para o esquecimento da emigração, também o explica em parte. Nos últimos anos, a situação começou a alterar-se. A emigração começou a aparecer com alguma frequência nos jornais e na televisão, associada à denúncia de casos de exploração de trabalhadores portugueses no estrangeiro. O assunto passou a ter eco no discurso político, tornou-se incontornável. A constituição recente de um Observatório da Emigração reforçará, provavelmente, a sua presença académica.

6Destaque-se a singularidade migratória portuguesa no contexto da Europa Ocidental. Portugal é o único país da União Europeia a quinze que tem, ao mesmo tempo, emigração laboral e imigração laboral. Os portugueses que emigram vão preencher maioritariamente postos de trabalho desvalorizados, semelhantes aos que são ocupados pela maioria dos imigrantes que vêm trabalhar para Portugal. Todos os países europeus têm fluxos de entrada e de saída de população migrante. Mas Portugal é o único em que esse duplo movimento é feito por um contingente numeroso de trabalhadores com fracas qualificações. Paralelamente, Portugal recebe uma imigração profissional altamente qualificada, oriunda sobretudo da União Europeia e, aspecto novo e ainda pouco estudado, exporta também, embora em pequeno número, profissionais muito qualificados, algo que já existiu, mas se confundiu com a emigração política, na fase de emigração massiva dos anos 60 e 70 do século passado. Embora sejam cálculos difíceis de fazer, devido à fragilidade das fontes oficiais e aos problemas de recolha de informação fiável, as saídas hoje podem mesmo superar as entradas, ao contrário da percepção mais comum.

7Por tudo isto, pareceu-nos ser interessante tratar, no mesmo número de uma revista científica, os dois fenómenos: emigração e imigração. Se bem que os textos aqui apresentados os tratem separadamente, as ideias neles expostas e os resultados de pesquisa apresentados permitem a todos os interessados estabelecer múltiplas articulações entre os dois processos de mobilidade. Na zona de intersecção analítica desses dois processos estão várias questões importantes entre elas destacando-se as seguintes: avaliar se está em curso uma lógica de substituição de emigrantes por imigrantes; comparar os discursos e as práticas políticas portuguesas nos dois domínios, impondo-se a análise comparada da questão da nacionalidade e cidadania, vista sob os dois prismas.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Miriam Halpern Pereira e Fernando Luís Machado, «Apresentação»Ler História, 56 | 2009, 9-11.

Referência eletrónica

Miriam Halpern Pereira e Fernando Luís Machado, «Apresentação»Ler História [Online], 56 | 2009, posto online no dia 15 outubro 2016, consultado no dia 22 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/1923; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.1923

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Autores

Miriam Halpern Pereira

CEHCP - ISCTE

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Fernando Luís Machado

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