A ocupação da sede da PIDE/DGS em 1974
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1Em contextos de rebelião, a luta contra os aparelhos repressivos é crucial e a vitória sobre estes, materializada na tomada quer das prisões, quer das suas sedes e edifícios, onde por vezes havia presos, em trânsito ou em interrogatórios, afigura-se da maior relevância. Ao corporizarem o carácter repressivo e arbitrário do poder, a ocupação destes espaços adquire um grande valor simbólico. Foi por a Bastilha representar a natureza discricionária do poder real (e não pelo número de presos ou pelas suas condições) que a sua tomada, a 14 de Julho de 1789, se tornou o marco emblemático da Revolução Francesa e, mesmo, o evento fundador da contemporaneidade ocidental, constituindo um caso paradigmático dum símbolo libertador.
2Por vezes, estes aparelhos repressivos, nomeadamente as polícias políticas, protagonizam a resistência dos regimes opressivos, em confrontos com muitas vítimas – como foi o caso da Roménia, em 1989, em que a acção da Securitate contribuiu para o elevado número de mortos.
3Em Portugal, cuja revolução é sobejamente conhecida pelo seu carácter pacífico, as mortes do 25 de Abril ocorreram à porta da PIDE/DGS, sendo apenas aí, nesse dia, que correu sangue.
4Importa, assim, reconstituir e estudar o conjunto de acontecimentos que constituem o fim da polícia política e das suas prisões, a saber, a ocupação da sede da PIDE/DGS na capital, das prisões de Caxias e Peniche, a tomada de instalações regionais da PIDE/DGS, como as do Porto ou Coimbra, e ainda o seu final nas colónias. Convirá também analisar as atitudes e comportamentos do poder, das Forças Armadas, dos partidos políticos, dos movimentos sociais, dos cidadãos face à PIDE/DGS e aos seus membros, bem como examinar os comportamentos dos vários agentes do aparelho – nestes campos, salientem-se tópicos de estudo como a acção da Comissão de Extinção da PIDE/DGS (entre os quais o seu funcionamento, as solicitações que lhe chegaram e as respostas encontradas ou não) ou ainda os poucos julgamentos.
- 1 Este texto resulta em parte do projecto de investigação «Militares na Política. O Papel da Marinha (...)
5Neste texto, tratar-se-á da ocupação da sede da PIDE/DGS na rua António Maria Cardoso, em Lisboa. Utilizar-se-ão obras já publicadas, com ou sem carácter de fontes primárias, bem como relatórios e testemunhos escritos, provenientes sobretudo de militares do Exército, e ainda testemunhos orais, prestados por oficiais da Marinha, até hoje escassamente recolhidos, que possibilitam outras perspectivas1.
Pide/DGS: que fazer?
- 2 Os protagonistas são aqui referidos com os postos que tinham no 25 de Abril de 1974.
6É dia 26 de Abril, já passa das 9 horas da manhã. O capitão-tenente Costa Correia e o major Campos Andrada acabam de entrar na sede da polícia política e o major Silva Pais, director da PIDE/DGS, diz que está solidário com os militares revoltosos2. Costa Correia pergunta-lhe: «Se é assim, por que é que os retratos dos anteriores governantes ainda estão na parede?» Responde Silva Pais: «Dêem-me uma cadeira que vou já tratar disso». E o último director da PIDE/DGS tira um dos retratos, ajudado por outros inspectores que tiram os outros. Rapidamente, os quadros de Salazar, Marcello Caetano e Américo Thomaz ficam no chão.
- 3 Intervenções de Luís da Costa Correia, 8/5/2009 (https://dsi.iscte.pt/videodifusao/sessoes/dh_20090 (...)
7Recuemos algumas horas. No dia 25, bem cedo, Luís da Costa Correia dirigiu-se à sua unidade, na Base Naval do Alfeite, depois de ouvir o primeiro comunicado do Movimento das Forças Armadas (MFA). O que não sabia, nem poderia saber, por não constar de nenhuma ordem de operações, é que lhe caberia a tomada de uma das instituições mais odiadas do Estado Novo. «Foi uma situação que veio ter comigo, um acaso que não recusei», diz, e explica que a ocupação da PIDE/DGS não estava prevista no plano geral das operações para o golpe militar de 25 de Abril. Estas foram afirmações suas no colóquio «Vozes da Revolução», que decorreu de 6 a 8 de Maio de 2009, no ISCTE – Instituto Universitário de Lisboa3.
8O destino da PIDE/DGS não era consensual.
- 4 Carvalho, Otelo Saraiva de, Alvorada em Abril, Lisboa, Portugália, 1977, pp.572 e 309.
9Num rascunho manuscrito do plano geral de operações, o major Otelo Saraiva de Carvalho previu a tomada da sede da PIDE/DGS por um grupo de 12 a 15 comandos, no mínimo, que deveria conquistá-la e dominá-la, de surpresa, aguardando a chegada de reforços. Porém, segundo o próprio, a missão foi logo abandonada devido à oposição do major Jaime Neves, oficial de comandos que a considerou muito perigosa4.
- 5 Santos, Boaventura Sousa (organização), A fita do tempo da revolução. A noite que mudou Portugal. A (...)
10A missão esteve depois para ser executada por uma companhia de atiradores do Regimento de Infantaria 1 da Amadora mas, à última hora, falhou5.
- 6 Carvalho, Otelo Saraiva de, Alvorada em Abril, pp. 265, 271, 278, 305, 328.
11O líder operacional do 25 de Abril tem referido várias razões para a omissão da ocupação da PIDE/DGS no plano operacional final. Para além da falta de meios para cumprir a missão, não possuiria elementos sobre a organização interna, as instalações ou o armamento existente na sua sede, pelo que não a teria definido como um objectivo prioritário a atingir nas primeiras horas do golpe, esperando que a PIDE/DGS viesse a cair quando os governantes caíssem, com uma menor intervenção das forças do MFA e com menos riscos de derramamento de sangue. Como a PIDE/DGS tivera um papel importante na contenção da revolta das Caldas da Rainha, a 16 de Março, teria considerado que o poder da polícia política era forte e teria temido os efeitos de uma possível reacção violenta6.
- 7 Intervenções de Vítor Crespo, 8/5/2009 (https://dsi.iscte.pt/videodifusao/sessoes/dh_20090508/). Nu (...)
12Ainda no colóquio «Vozes da Revolução», o então capitão-tenente Vítor Crespo, que esteve no posto de comando do MFA no quartel da Pontinha, sustenta que a ocupação da PIDE/DGS constava dos propósitos dos revoltosos: «A PIDE constituía um objectivo militar, não havia era nenhuma unidade militar disponível para o atingir, e por isso houve diligências na Marinha para que a PIDE não ficasse sem um ataque militar no próprio dia 25»7.
- 8 Esta perspectiva é também defendida pela historiadora Irene Flunser Pimentel, A História da PIDE, L (...)
13Contudo, Costa Correia defende a existência de diferentes atitudes dos militares perante a PIDE/DGS, sublinhando que o general António de Spínola, que recebeu a rendição do Presidente do Conselho de Ministros Marcello Caetano no quartel do Carmo a 25 de Abril e foi o primeiro Presidente da República após a Revolução, «até tinha nomeado o inspector Coelho Dias para exercer as funções de Director-Geral de Segurança»8.
- 9 Entrevista a Carlos de Almada Contreiras, 8/5/2009. A manutenção do aparelho da PIDE/DGS nas colóni (...)
14Também o capitão-tenente Carlos de Almada Contreiras – que, a partir do Centro de Comunicações da Armada, num subterrâneo, no Terreiro do Paço, fez a ligação entre as forças do MFA da Marinha e o posto de comando do MFA da Pontinha – afirma que a tomada da PIDE/DGS não estava no plano de operações final. Adianta que, durante a discussão do Programa do MFA, alguns sectores defendiam a extinção da PIDE/DGS no continente mas a sua conversão em polícia de informações militares nas colónias9.
15Essa proposta de reformulação e saneamento da PIDE /DGS nas colónias, enquanto durasse a guerra, foi defendida pelo general Francisco da Costa Gomes, membro da Junta de Salvação Nacional que assumiu a Presidência da República a seguir a Spínola, já que aí as informações das Forças Armadas eram fornecidas pela PIDE/DGS. Foi esta aliás a proposta que vingou no Programa do MFA difundido a 26 de Abril, onde constava: «Extinção imediata da DGS, Legião Portuguesa e organizações políticas de juventude. No ultramar, a DGS será reestruturada e saneada, organizando-se como Polícia de Informação Militar enquanto as operações militares o exigirem». Porém, no Programa do MFA de 25 de Abril, com que os revoltosos partiram para o golpe, estava claramente escrito: «Extinção imediata da DGS, Legião Portuguesa e organizações políticas de juventude», sem a ressalva da situação colonial. Apenas no jornal República foi publicada a versão de 25 de Abril do Programa do MFA; nos outros meios de comunicação social, surgiu a versão de 26 de Abril, resultante das modificações finais introduzidas por Spínola e Costa Gomes na Pontinha. Aquele caso único do República explica-se pelo facto do primeiro-tenente Martins Guerreiro ter ido lá entregar, na manhã do dia 25, uma cópia do Programa; aliás, também noutros locais, os revoltosos se encarregaram de distribuir exemplares, em mão, como prevenção para o que viesse a acontecer.
O acordo do «tenente Barata» com Pinheiro de Azevedo
16Costa Correia conta que, tanto quanto se lembra, foi Almada Contreiras quem lhe ligou a dizer para tomar a sede da PIDE/DGS, na rua António Maria Cardoso. Contreiras recorda que, de madrugada, telefonou ao capitão-de-mar-e-guerra Pinheiro de Azevedo, comandante dos fuzileiros, mais tarde primeiro-ministro no VI Governo Provisório, a pedir que fosse mobilizada uma força de fuzileiros para a operação.
17Na sequência do convite para integrar a Junta de Salvação Nacional, que aceitou, Pinheiro de Azevedo fora avisado de que «alguém», um oficial do Movimento, o iria contactar após o início das operações. Assim, não terá estranhado os telefonemas de Almada Contreiras que, por razões de segurança, não revelou a seu nome e se identificou como «tenente Barata». Pinheiro de Azevedo concordou com a sugestão do «tenente Barata», pediu àquele a indicação de um oficial superior para comandar a força e deu ordens para que se avançasse para a sede da PIDE/DGS.
18Da margem Sul do Tejo, foi então enviado para o local um destacamento da Armada, liderado pelo capitão-tenente Eugénio Cavalheiro, que conseguiu passar a ponte, então Salazar, já controlada por forças revoltosas do Exército, antes das 9 horas da manhã. Os marinheiros acenaram os bonés, senha combinada, de improviso, entre o Centro de Comunicações da Armada e o Posto de Comando do MFA, para significar que estavam do lado da revolução.
- 10 Calvão, Alpoim, De Conakry ao M.D.L.P. Dossier Secreto, Lisboa, Intervenção, 1976, p. 114.
19Chegados à sede da PIDE/DGS, Cavalheiro deparou, lá dentro, com o capitão-tenente Alpoim Calvão, que prestara serviço militar na Guiné-Bissau e comandara, em 1970, a operação Mar Verde de invasão da Guiné-Conacri para combater o PAIGC que aí tinha fortes bases de apoio. Segundo Calvão, Cavalheiro apresentou-se como vindo tomar a «casa em nome da Nação» e interpelou Silva Pais, que pretenderia o diálogo, do seguinte modo: «Os senhores nunca quiseram dialogar com o povo. Não é agora altura de o fazer. Só pergunto se se rendem sem efusão de sangue»10. Num livro autobiográfico, Calvão sublinha o seu próprio papel na retirada dos marinheiros, ao alertar Cavalheiro para uma previsível carnificina, dadas as características do terreno e o armamento da PIDE/DGS. Efectivamente, de acordo com vários testemunhos, Cavalheiro foi intimado a retirar por Calvão, o que aconteceu pela hora de almoço. A rendição da PIDE/DGS ficou adiada por mais umas horas.
20Almada Contreiras insistiu junto de Pinheiro de Azevedo quanto à necessidade de realizar a acção, tendo este voltado a pedir a indicação de um oficial superior para cumprir a missão. Contreiras sugeriu-lhe que a operação fosse, desta vez, comandada por Costa Correia. E assim aconteceu na segunda tentativa para tomar a sede da PIDE/DGS.
A PIDE/DGS abre fogo sobre a população
21Nas imediações da sede da PIDE/DGS, as ruas estavam cheias de gente que se interrogava sobre o destino da polícia política e exigia a sua ocupação, gritando e, por vezes, atirando pedras ao edifício.
22A PIDE/DGS disparou, a partir da sede, por duas vezes, a última das quais pouco depois das 20 horas, o que causou dezenas de feridos e 4 mortos: Francisco Carvalho Gesteiro, empregado de comércio de 18 anos, José James Hartley Barneto, de 37 anos, José Guilherme Carvalho Arruda, estudante de 20 anos, e Fernando Luís Barreiros dos Reis, um soldado de 24 anos.
23O comandante da primeira força militar a chegar ao local após a retirada inicial dos fuzileiros, o regimento de Cavalaria 3 de Estremoz, afirma no seu relatório:
- 11 Publicado em Almeida, Diniz de, Origem e Evolução do Movimento dos Capitães, Lisboa, Edições Sociai (...)
«Cerca das 20h 30, fui alertado pela população de que elementos da DGS tinham aberto fogo (…) Em face desta informação, dirigi-me para a rua António Maria Cardoso e fim de evitar mais derramamento de sangue. Foram enormes as dificuldades para [atingir] o local pois a população com o seu desejo de vingança e completamente fora de si impedia qualquer manobra. (…) A população pedia vingança e que se atacasse o edifício, em cujas janelas se viam alguns elementos da corporação. Verificando que a força era pequena para iniciar o cerco, ordenei a comparência de reforços que estavam junto ao Quartel do Carmo (…). Verificando [ainda] que as forças eram insuficientes, solicitei ao comando do Movimento instruções e reforços para fechar completamente o cerco. Como não foram recebidas ordens para um ataque que continuava a ser exigido pela população, este não foi realizado. Tentei explicar à população a nossa atitude. Após bastantes esforços, fui compreendido e, apesar de não arredarem pé, não interferiram, pedindo unicamente para não os deixarmos fugir. Durante o espaço de tempo que mediou [entre] a chegada das forças de RC3 ao local e a vinda de reforços, constituídos por dois destacamentos da Marinha (…), foram capturados doze elementos da DGS e abatido um que fugira ao dar-se-lhe ordem para se entregar»11.
24Tratou-se do servente António Lage, um funcionário da DGS, de 32 anos, morto, pois, nessa situação.
25Costa Correia recorda que as forças sob o seu comando, chegadas à sede da PIDE, após os «assassinatos de civis e os feridos causados», eram compostas por um destacamento de fuzileiros especiais e uma companhia de fuzileiros.
«Fizemos o cerco em coordenação com as forças do Regimento de Cavalaria de Estremoz que já lá estava. Tinham pouca gente, por isso combinámos que eles ficariam na parte das traseiras e nós na parte mais dianteira”. O cenário era “de alguma calma durante a noite, mas com populares inquietos com o facto de a PIDE ainda não estar ocupada», lembra Costa Correia.
26Perguntando a Costa Correia se não havia agitação pelo facto de terem morrido várias pessoas, este responde: «Sim, isso sim. Mas tenho a impressão que muitas pessoas tinham ido para casa ouvir as comunicações e as notícias. Não havia muitos populares na rua naquela noite. De manhã, depois, começou a haver muito mais».
A polémica queda da PIDE/DGS
- 12 Pimentel, História da PIDE, pp. 516-517.
27Foi de manhã, no dia 26, que se deu então a tomada da PIDE/DGS. Ocorreu, na altura, um episódio sobre o qual tem havido duas «versões», de acordo as palavras de Irene Pimentel, na História da PIDE12.
- 13 Pimentel, História da PIDE, e Andrada, Carlos Campos de, «A verdade dos factos», Público, 15/4/1994 (...)
28Nesta obra, a historiadora cita a versão de Campos Andrada. Em artigo publicado em 1994, este major afirma ter sido nomeado pelo general Spínola «comandante de todas as forças militares para a ocupação da PIDE/DGS». Quando chegou à rua António Maria Cardoso, num jipe de Lanceiros 2, unidade a que pertencia, encontrou forças do Regimento de Infantaria 1 da Amadora, da Cavalaria 3 de Estremoz e de Santarém: reuniu com os respectivos comandantes que, a partir de então, ficaram sob o seu comando. Ainda de acordo com Campos Andrada, a porta da PIDE/DGS estava fechada e só então se encontrou com Costa Correia, «que comandava uma companhia de fuzileiros, com ordem de a pôr sob o [seu] comando» e que lhe pediu para o acompanhar «no facto histórico da rendição da polícia política». Assim, Campos Andrada «[deseja] sublinhar, para que historicamente conste, que foi [ele] e mais ninguém quem comandou as forças militares do MFA que receberam a rendição e aprisionaram a DGS»13.
- 14 Pimentel, História da PIDE; Antunes, Fernando, «Comandante Costa Correia: o homem do day after», Vi (...)
29A outra versão referida por Irene Pimentel centra-se em Costa Correia. No colóquio «Vozes da Revolução», este oficial da Marinha recorda-se de ter pedido para que, de entre os elementos da polícia política que tinham sido presos, fosse escolhido «o mais desembaraçado» para servir de emissário e levar uma intimação de rendição ao ainda director-geral Silva Pais. Dentro da sede, estariam «centenas de pessoas». Estando à porta da PIDE/DGS, Costa Correia lembra-se de ter visto Campos Andrada a correr pela rua para se juntar ao grupo que ia entrar nas instalações da polícia política, obtida a garantia do director da DGS de que não haveria hostilidades. «Entrou connosco, e não se pode dizer que a sede já estivesse ocupada. O Regimento de Cavalaria de Estremoz também entrou. Eles, aliás, é que se encarregaram da ocupação interna e a Marinha ficou a assegurar o cerco exterior de protecção para evitar linchamentos», recorda Costa Correia. À entrada seguiram-se os procedimentos formais, «que duraram cinco minutos». «As forças do Exército que entraram connosco ficaram a recolher todas as armas e a fazer uma revista às instalações. Depois retiraram-se e a Marinha ficou com o controlo geral da sede», conclui Costa Correia14.
30No rescaldo das operações, dia 26 adentro, Almada Contreiras e Otelo Saraiva de Carvalho ainda consideraram necessários reforços, tendo este último enviado dois carros blindados para a área, que estacionaram na Rua do Alecrim apontados para a PIDE/DGS.
31Quando, no colóquio «Vozes da Revolução», se perguntou a Costa Correia se assumir o controlo da PIDE/DGS constituía um dos objectivos principais naquele dia, replicou que a resposta era difícil. «Na revolução, havia muitas revoluções misturadas e não existia um pensamento comum e único. Enquanto uns olhavam para a PIDE como um organismo altamente repressivo, o cerne em que se apoiava a política portuguesa, outros, e mais o Exército por força das operações militares em que estavam envolvidos, olhavam para a PIDE também como um instrumento que os ajudava nas colónias», explica. «Tudo isso acabou por se reflectir nas operações». Como prova da ambiguidade, Costa Correia sublinha, por exemplo, o facto de o general Spínola já ter assinado um documento que teve em mão, com selo branco, nomeando o inspector Coelho Dias para chefiar a DGS. E continua: «foi uma operação simples», embora «com diversas acções paralelas porque não havia um comando homogéneo».
32Em jeito de balanço, Costa Correia afirma: «Era uma revolução e não uma evolução. Havia comandos paralelos como acontece nas revoluções, que não são totalmente organizadas. À revolução inicial, feita por unidades principalmente do Exército, juntou-se a intervenção do general Spínola, com um golpe dentro do golpe, e depois todo um processo de contradições que se foi mantendo ao longo de diversos meses».
33Facto é que o decreto-lei n.º 171/74, datado de 25 de Abril, extinguiu a DGS na ainda chamada metrópole. E que, na manhã de dia 26, a sede da polícia política foi ocupada e, a partir de então, os presos políticos libertados das prisões onde estavam. Foi o início do 14 de Julho português, um corte simbólico com um outro Antigo Regime.
34Interessa estudar este processo libertador. Neste momento, relendo os materiais publicados, por vezes pouco difundidos, e recolhendo testemunhos orais de protagonistas que não são as principais figuras geralmente ouvidas, são possíveis desde já algumas afirmações.
- 15 Costa Correia explicou que a sua opção pelo posicionamento dos fuzileiros na frente da sede da PIDE (...)
- 16 Em obra publicada em 2004, António Alberto Ferreira, capitão do Regimento de Cavalaria 3 no 25 de A (...)
35Num contexto geralmente marcado por uma forte pressão da população que ocupava as ruas próximas, a tomada da sede da PIDE/DGS foi o culminar de um trajecto com várias etapas: primeiro, na manhã de dia 25, a operação inicial dos fuzileiros, mal sucedida; depois, o cerco mantido sobretudo por forças do Regimento de Cavalaria 3 de Estremoz, cujos efectivos orçavam pelos 100 homens; em seguida, o substancial reforço de 230 fuzileiros, organizados em duas forças, uma das quais já lá havia estado; finalmente, a ocupação e rendição da PIDE/DGS. No momento libertador, na manhã do dia 26, são indiscutíveis as presenças de Costa Correia, oficial de Marinha, pelo menos à frente de 230 fuzileiros, bem como de Campos Andrada, oficial de Cavalaria do Exército, às ordens de Spínola, também de Cavalaria, munido da autoridade emanada do general mas sem efectivos militares próprios15. As presenças destes militares e os seus modos de acção bem como a memória que transmitem são significativas das contradições que caracterizaram este momento, das tensões entre ramos das Forças Armadas, entre correntes políticas e personalidades, nomeadamente entre sectores do Exército e da Marinha, entre spinolistas e não-spinolistas16. Através da descrição densa destes eventos, é possível perceber como, em tempos de grande aceleração da História como o 25 de Abril e os processos revolucionários, se cruzam acções previstas para grupos organizados com outras desencadeadas por decisões pessoais, não programadas, ou com movimentações espontâneas; como se entrelaçam projectos amadurecidos com circunstâncias imponderáveis; como os homens lidam com as «janelas de oportunidades»; e quais os riscos que correm em momentos em que ainda não se sabe quem vai vencer. No fundo, trata-se de tentar perceber aquilo por que os homens agem e como o fazem, o grande propósito da História.
Notas
1 Este texto resulta em parte do projecto de investigação «Militares na Política. O Papel da Marinha na Transição para a Democracia em Portugal» (Centro de Estudos de História Contemporânea Portuguesa – ISCTE-IUL e Centro de Investigação e Estudos em Sociologia – ISCTE-IUL).
2 Os protagonistas são aqui referidos com os postos que tinham no 25 de Abril de 1974.
3 Intervenções de Luís da Costa Correia, 8/5/2009 (https://dsi.iscte.pt/videodifusao/sessoes/dh_20090508/) e entrevista na mesma data.
4 Carvalho, Otelo Saraiva de, Alvorada em Abril, Lisboa, Portugália, 1977, pp.572 e 309.
5 Santos, Boaventura Sousa (organização), A fita do tempo da revolução. A noite que mudou Portugal. Amadeu Garcia dos Santos, José Eduardo Sanches Osório, Nuno Fisher Lopes Pires, Otelo Saraiva de Carvalho, Vítor Crespo, Porto, Afrontamento, 2004, pp. 166, 189-190. Contudo, esta missão não consta do plano de operações publicado na obra referida de Otelo Saraiva de Carvalho.
6 Carvalho, Otelo Saraiva de, Alvorada em Abril, pp. 265, 271, 278, 305, 328.
7 Intervenções de Vítor Crespo, 8/5/2009 (https://dsi.iscte.pt/videodifusao/sessoes/dh_20090508/). Num debate em 2004, Vítor Crespo já se assumira como intérprete da Marinha ao defender a ocupação da PIDE/DGS, tanto nos preparativos do golpe como no decurso dos acontecimentos (ver: Santos, A Fita do Tempo…, pp 153-154). Não existiu porém qualquer ordem de operações que vinculasse uma unidade que fosse da Armada.
8 Esta perspectiva é também defendida pela historiadora Irene Flunser Pimentel, A História da PIDE, Lisboa, Círculo de Leitores /Temas e Debates, 2007, referência essencial na história da polícia política. Por seu turno, a PIDE/DGS estava também dividida entre os mais próximos de Spínola e Costa Gomes e os mais duros, entre os partidários da rendição e aqueles que, sob várias formas, queriam resistir. Sobre o destino da PIDE/DGS no 25 de Abril e nos dias imediatos, salientem-se os exaustivos artigos de António Araújo: «O fim da PIDE/DGS: narrativa de um passado recente», partes I e II, Atlântico, respectivamente Agosto/2005, n.º 5, pp. 40-48 e Setembro/2005, n.º 6, pp. 38-47. Dados detalhados e fontes primárias estão também em http://25abril.org/index.php?content=1&hora=1. Ver ainda Santos, A Fita do Tempo…, pp. 156-160, 208-209, 211, 216.
9 Entrevista a Carlos de Almada Contreiras, 8/5/2009. A manutenção do aparelho da PIDE/DGS nas colónias aconteceu efectivamente. Ver: Mateus, Dalila Cabrita, A PIDE/DGS na guerra colonial (1961-1974), Lisboa, Terramar, 2004, pp. 83-84.
10 Calvão, Alpoim, De Conakry ao M.D.L.P. Dossier Secreto, Lisboa, Intervenção, 1976, p. 114.
11 Publicado em Almeida, Diniz de, Origem e Evolução do Movimento dos Capitães, Lisboa, Edições Sociais, 1977, p.383. Disponível também em http://25abril.org/index.php?content=1&hora=1.
12 Pimentel, História da PIDE, pp. 516-517.
13 Pimentel, História da PIDE, e Andrada, Carlos Campos de, «A verdade dos factos», Público, 15/4/1994, p. 66.
14 Pimentel, História da PIDE; Antunes, Fernando, «Comandante Costa Correia: o homem do day after», Visão, 5/5/1994, pp. 36-37; Intervenções de Luís da Costa Correia, 8/5/2009. (https://dsi.iscte.pt/videodifusao/sessoes/dh_20090508/) e entrevista na mesma data.
15 Costa Correia explicou que a sua opção pelo posicionamento dos fuzileiros na frente da sede da PIDE/DGS, em alternativa às traseiras, durante o cerco e a ocupação se deveu, também, à vontade de dar visibilidade à Marinha no 25 de Abril.
16 Em obra publicada em 2004, António Alberto Ferreira, capitão do Regimento de Cavalaria 3 no 25 de Abril, salienta a sua própria ida e de Campos Andrada à sede da PIDE/DGS e a vistoria da mesma, antes da chegada de Costa Correia, embora depois mencione um conflito de comandos entre Costa Correia e Campos Andrada, resolvido a favor de Costa Correia e da atribuição da responsabilidade do edifício à Marinha, através de um contacto com o Posto de Comando da Pontinha. Neste mesmo livro, o inspector da PIDE/DGS, Óscar Cardoso, refere Costa Correia como o militar que convenceu finalmente a PIDE/DGS a render-se e que evacuou o seu pessoal - Bernardo, Manuel Amaro, Memórias da Revolução. Portugal. 1974-1975, Lisboa, Prefácio, 2004, pp. 43-44, 59-60, 65-66. Contudo, a estas afirmações do inspector da PIDE, Manuel Bernardo acrescenta uma nota, da sua lavra, esclarecendo que a ocupação da PIDE se deve a «oficiais do Exército», nas pessoas de António Alberto Ferreira e Campos Andrada.
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Título | Marinha e Exército junto à sede da PIDE/DGS. |
Créditos | Foto de E. Gageiro. |
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Ficheiros | image/png, 126k |
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Título | Populares exigem rendição da PIDE/DGS. |
Créditos | Foto de E. Gageiro. |
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Para citar este artigo
Referência do documento impresso
Luísa Tiago de Oliveira e Isabel Gorjão Santos, «A ocupação da sede da PIDE/DGS em 1974», Ler História, 57 | 2009, 125-134.
Referência eletrónica
Luísa Tiago de Oliveira e Isabel Gorjão Santos, «A ocupação da sede da PIDE/DGS em 1974», Ler História [Online], 57 | 2009, posto online no dia 01 junho 2016, consultado no dia 17 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/1894; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.1894
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