Navegação – Mapa do site

InícioNúmeros85RecensõesMaurizio Isabella, Southern Europ...

Recensões

Maurizio Isabella, Southern Europe in the Age of Revolutions. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2023. xviii + 685 pp. ISBN 9780691181707.

José Luís Cardoso

Texto integral

1Para quem julgava que tudo, ou quase tudo, tinha já sido dito sobre a era das revoluções, este livro de Maurizio Isabella vem enfaticamente comprovar que, afinal, muito havia ainda por contar. Ao centrar a sua abordagem na Europa do Sul, na zona vasta do Mediterrâneo e das suas conexões atlânticas, Isabella renova e revive a homenagem braudeliana a um espaço geográfico que surpreende o nosso entendimento histórico, neste caso no que diz respeito ao tempo das revoluções liberais. Portugal, Espanha, Piemonte, Nápoles, Sicília e Grécia, de oeste a leste, são as experiências históricas que Isabella revisita para reivindicar a sua relevância decisiva para a compreensão da nova era que as revoluções liberais abriram. Tratados de forma subalterna ou acessória – ou mesmo votados ao silêncio e esquecimento pela historiografia estabelecida, de matriz anglo-saxónica e francesa –, os países da Europa do Sul são neste livro posicionados em lugar central, deixando de ser encarados como meras franjas das repercussões da revolução americana de 1776 ou da revolução francesa de 1789. Esse é um dos principais objetivos definidos à partida e que acaba por se tornar num dos grandes méritos deste livro: proceder a uma revisão ousada da historiografia das revoluções liberais, colocando no centro de análise os países da Europa do Sul e os movimentos revolucionários que neles ocorreram a partir da década de 1820. O tempo de Hobsbawm, que inaugurou reflexão segura sobre a era das revoluções há mais de 60 anos, está agora definitivamente datado e ultrapassado.

2O livro procura e consegue uma abordagem comparativa, transnacional e conectada. Este desafio metodológico obriga o autor a não apresentar de forma separada a narrativa histórica de cada uma das revoluções em presença. Ou seja, as nações ou países abrangidos oferecem os materiais de investigação que para o autor não são suscetíveis de compartimentação nacional, preferindo um tratamento cruzado de temas e problemas concebidos de forma reflexiva. Os diferentes casos de estudo apresentam traços comuns fáceis de identificar: a explícita rejeição dos excessos jacobinistas franceses, a incorporação e assimilação da cultura político-constitucional inglesa e americana, e o contexto vulnerável da ordem política internacional saída do Congresso de Viena, pouco recetiva a experimentações políticas de cunho revolucionário. Alguns deles (com destaque para Portugal e Espanha) juntaram o abalo nas soberanias políticas das monarquias absolutas, mais ou menos ilustradas, ao confronto com as soberanias emergentes de novas nações que se libertaram dos velhos impérios. Tiveram de lidar com disputas de poder, afirmando a vontade de regiões e nações ávidas de construir identidades soberanas. Adotaram novos modelos de linguagem política, valorizando a aprendizagem de novos conceitos que deram expressão a mudanças profundas em projeto e em execução: liberdade, igualdade, constituição, cidadania, direitos e deveres, separação de poderes, reforma, regeneração, revolução – eis alguns dos termos que o novo vocabulário político foi incorporando.

3Em coerência com a orientação metodológica adotada, o livro de Maurizio Isabella desenvolve-se em quatro partes ou núcleos temáticos. A primeira parte trata da presença militar no desenvolvimento das revoluções, sublinhando o papel imprescindível do exército na eclosão de pronunciamentos, revoltas e rebeliões que ditaram o triunfo de governos constitucionais. Não esquece o papel que os militares também tiveram no desencadear de movimentos contrarrevolucionários, assim como a inevitável ocorrência de guerras civis que criaram obstáculos ou bloqueios aos percursos de construção de novos regimes políticos liberais. Os exércitos e fações em presença ganharam experiência em ações de estratégia e tática militar nas prolongadas lutas ou guerras de libertação contra as tropas napoleónicas, ao longo do período que antecede as revoluções liberais. E tiveram o suporte institucional de sociedades secretas e lojas maçónicas que contribuíram para dar espessura ideológica ao combate contra os regimes de monarquia absoluta. Apesar de não ignorar a presença de outros atores sociais relevantes para o sucesso dos pronunciamentos ou movimentações militares, Maurizio Isabella não coloca em pé de igualdade a contribuição de outros protagonistas – designadamente magistrados e homens de negócio – que, a avaliar pelo caso português, colaboraram eficazmente na construção e liderança do bem-sucedido guião revolucionário. A razão para tal subalternização residirá, porventura, na intenção de destacar, nesta primeira e mais extensa parte do livro, o facto de as revoluções na Europa do Sul terem ficado a dever o seu desfecho ao modo como decorreram as mobilizações de forças militares.

4O segundo núcleo temático abrange a formação da cidadania e da cultura constitucional, com destaque para a génese de uma consciência cívica que inclui a assunção e validação da importância que revestem os poderes locais e provinciais que resistem a processos de centralização. Percebemos, deste modo, como a soberania que reside na nação se exerce em múltiplas escalas de participação cívica territorial. A demonstração do alcance desse envolvimento dos cidadãos na vida pública é feita através do estudo dos processos eleitorais que estiveram na base do funcionamento de assembleias parlamentares, assim como dos movimentos peticionários em defesa de direitos e prerrogativas que os novos regimes políticos permitiam concretizar. Apesar das diferenças e nuances registadas em cada um dos países ou nações, a abordagem comparativa de Maurizio Isabella permite observar indiscutíveis traços de convergência entre eles.

5E o mesmo sentido de proximidade transnacional se verifica na terceira parte do livro, dedicada ainda ao tema da participação política, mas desta vez incidindo na emergência de uma esfera pública revolucionária. Em todos os países se assiste a uma explosão de publicação de panfletos, jornais e diversos tipos de materiais impressos apelando à participação ativa dos cidadãos na criação de uma nova ordem constitucional. A liberdade de imprensa e de expressão, o alargamento dos circuitos de comunicação de ideias e projetos, a partilha pública de opiniões sobre os mais diversos assuntos de âmbito social, económico, financeiro e político provocaram uma efervescente mobilização de cidadãos empenhados em serem protagonistas de mudanças que pressentiam inevitáveis. A criação de redes de sociabilidade, de novos rituais de celebração dos valores fundadores dos movimentos revolucionários, dos propósitos de construção gradual de uma memória de participação política foram ingredientes adicionais que deram visibilidade acrescida a uma esfera pública capacitada para legitimar ou impugnar os propósitos e os ritmos das revoluções em curso.

6A quarta e última parte do livro é a menos extensa e é dedicada ao tema da relação entre política e religião. De forma breve, a questão essencial em análise é a de compreender o modo como as revoluções respeitaram a fidelidade religiosa das populações. Sem questionarem ou rejeitarem o peso da religião na vida dos cidadãos, as revoluções e os seus intérpretes civis ou militares forçaram ou induziram as hierarquias e instituições da Igreja (em especial nos países de matriz católica) a processos de reforma e de acomodação à nova ordem liberal, em busca de uma reconciliação entre fé e liberdade. É certo que existiram núcleos de confronto e resistência aos tempos de mudança política. Porém, as divisões no clero não impediram a secularização da política verificada na era das revoluções. O livro termina de forma sugestiva com breves incursões biográficas sobre quatro personagens que Maurizio Isabella elege como representativos dos processos de construção da nova ordem liberal em Espanha, Portugal, Grécia e Nápoles. No caso português a escolha incide sobre Bernardo de Sá Nogueira (visconde e marquês de Sá da Bandeira), destacando o seu papel na busca de estabilidade ao longo de uma carreira militar e política que atravessou os mais decisivos momentos da construção e consolidação da monarquia constitucional, do vintismo ao rotativismo.

  • 1 ICS – History Book Corner, Research Group Memory, History and Society, disponível online (link).

7Em recente podcast, no qual tive oportunidade de discutir com Maurizio Isabella a orientação metodológica e os temas principais que desenvolve neste livro, questionei o autor de Southern Europe in the Age of Revolutions sobre a razão desta escolha, ou melhor, sobre as razões de exclusão de outros possíveis candidatos. A resposta foi convincente e convido o leitor a ser ouvinte e confirmar tal impressão.1 Neste mesmo podcast, também chamei a atenção para os riscos de uma opção deliberada em não incluir neste livro nenhuma reflexão sobre temas de âmbito económico e financeiro. Atendendo à relevância dos projetos de regeneração económica que acompanharam a construção dos regimes políticos saídos das revoluções liberais, atendendo sobretudo à riqueza dos debates parlamentares e na esfera pública sobre o papel da economia política enquanto argumento e fundamento de transformação e mudança, parece lícito chamar a atenção para esta ausência infeliz.

  • 2 Maurizio Isabella, Konstantina Zanou (eds.), Mediterranean Diasporas. Politics and Ideas in the Lon (...)

8Todavia, este reparo não invalida o enorme apreço por uma obra que constitui, sem sombra de dúvida, um marco incontornável e um desafio irrepreensível ao conhecimento convencional produzido pela historiografia da era das revoluções. Um livro servido por excelente escrita e por aturada investigação de fontes originais e bibliografia secundária que Maurizio Isabella laboriosamente analisou e discutiu com uma vasta comunidade de historiadores interessados nas experiências dos países da Europa do Sul, ultrapassando o desgastado alibi de que o desconhecimento da língua legitima a ignorância da História. Os resultados deste notável empreendimento desafiam-nos agora a prosseguir e a aprofundar linhas de pesquisa que beneficiam de abordagens comparativas e transnacionais, situando cada caso nacional no contexto global em que se insere. A historiografia da Europa do Sul – para a qual Maurizio Isabella já havia contribuído com outros livros de sua autoria2 – sai muito enriquecida e reconhecida pelos contributos desta obra.

Topo da página

Notas

1 ICS – History Book Corner, Research Group Memory, History and Society, disponível online (link).

2 Maurizio Isabella, Konstantina Zanou (eds.), Mediterranean Diasporas. Politics and Ideas in the Long Nineteenth Century (Londres: Bloomsbury Publishing, 2016); Maurizio Isabella, Risorgimento in Exile. Italian Émigrés and the Liberal International in the Post-Napoleonic Era (Oxford: Oxford University Press, 2009).

Topo da página

Para citar este artigo

Referência eletrónica

José Luís Cardoso, «Maurizio Isabella, Southern Europe in the Age of Revolutions. Princeton and Oxford: Princeton University Press, 2023. xviii + 685 pp. ISBN 9780691181707.»Ler História [Online], 85 | 2024, posto online no dia 27 novembro 2024, consultado no dia 12 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/14121; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/12uuy

Topo da página

Autor

José Luís Cardoso

Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa, Portugal

jcardoso@ics.ulisboa.pt

Artigos do mesmo autor

Topo da página

Direitos de autor

CC-BY-NC-4.0

Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.

Topo da página
Pesquisar OpenEdition Search

Você sera redirecionado para OpenEdition Search