Navegação – Mapa do site

InícioNúmeros85Outros ArtigosRepresentações e orientações do m...

Outros Artigos

Representações e orientações do movimento sindical face ao trabalho e ativismo feminino em Portugal, 1850-1926

Representations and Orientations of the Trade Union Movement Towards Women’s Work and Activism in Portugal, 1850-1926
Joana Dias Pereira
p. 217-241

Resumos

A relação entre classe e género tem sido alvo de inúmeros estudos na literatura internacional. Em Portugal, porém, é um tópico pouco estudado. Este artigo trata da emergência de um novo repertório de ação coletiva feminina durante a industrialização portuguesa e as consequentes representações e orientações sindicais sobre a mulher trabalhadora. Baseia-se no escrutínio da imprensa operária e das teses aprovadas nos congressos sindicais organizados entre 1890 e 1926. Este artigo conclui que as mulheres trabalhadoras desafiaram o papel social e a sobre-exploração que lhes era imposta, induzindo representações e orientações contraditórias no seio do movimento operário, no qual, a par da resistência à participação associativa das mulheres, se identificam manifestações de solidariedade e de articulação entre as lutas masculinas e femininas. O aprofundamento desta análise é fundamental para ultrapassar simplificações e compreender o papel da mulher e da feminização do trabalho no processo de emergência do movimento operário em Portugal.

Topo da página

Notas do autor

A investigação para este artigo foi financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (CEECIND/00764/2017).

Texto integral

1Desde a tese seminal de Michelle Perrot (1988) sobre os excluídos da história que as mulheres trabalhadoras e as relações de género na esfera do trabalho se tornaram áreas de investigação relevantes. O género como categoria de análise e as mulheres como objeto de estudo histórico abalaram os paradigmas clássicos relativos quer à “formação”, quer à “experiência” da classe operária durante o processo de industrialização. Destacaram-se desde logo, e até à data, duas linhas de pesquisa centrais: a primeira questiona o papel dos sindicatos e dos partidos operários na construção social do género, nomeadamente através da disseminação das representações sobre a mulher e o seu papel social dominante, bem como as implicações na sua participação sindical; a segunda analisa o ativismo feminino e os desafios que este impôs à política de classe, designadamente através das suas práticas, retórica, objetivos e reivindicações próprias.

2Joan W. Scott (1993) argumentou que, ao longo do século XIX, os sindicatos estiveram entre os protagonistas da construção discursiva da divisão sexual do trabalho, aceitando a inevitabilidade da discriminação salarial e tratando as mulheres como concorrentes. Não obstante a participação feminina no protesto laboral, a sua organização sindical foi constrangida e subalternizada, concorrendo para a sedimentação do seu papel social ligado à maternidade e à domesticidade e, por isso, inconciliável com o trabalho assalariado. Kathleen Canning (1992), analisando a evolução da organização dos trabalhadores têxteis alemães entre 1890 e 1930, ilustrou diferentes ondas de “antifeminismo proletário”, coincidentes com o processo de feminização do trabalho e com períodos de desemprego masculino, como o que se seguiu à I Grande Guerra. Apesar da doutrina oficial do movimento operário, segundo a qual o trabalho assalariado era um pré-requisito essencial para a emancipação das mulheres, o discurso interno dos sindicatos representava a mulher trabalhadora como “cortadora de salários” e “fura-greves”. Por outro lado, mostrou o modo como as mulheres se apropriaram das organizações e da “retórica de classe”, impondo as suas visões e reivindicações específicas e denunciando a relação entre a imagem negativa da mulher no meio sindical e a sua opção por estratégias alternativas, como as greves espontâneas (Canning 1992).

3Mary Blewett (1990, 2019), tendo como caso de estudo a indústria do calçado de New England no longo século XIX, tem vindo a argumentar que as trabalhadoras desafiaram o papel subsidiário do trabalho feminino, concorrendo para o desenvolvimento do feminismo no seio do movimento operário. Por outro lado, a mobilização laboral levou-as a reivindicarem novos direitos para todas as mulheres e a promoverem debates inéditos sobre o seu papel social e a cidadania nos EUA. Nesta linha de argumentação, destacou-se igualmente a investigação de Mary Nash (1981) no contexto ibérico. Segundo a autora, a entrada da mulher no trabalho fabril determinou uma transformação das representações sobre os papéis sociais da mulher. A partir do II Congreso Obrero de Zaragoza, de abril de 1872, desenvolveu-se um “feminismo social” que antecedeu e constituiu uma alternativa ao sufragismo das classes médias (Nash 1981). Posteriormente, as interseções entre classe e género foram aprofundadas para descrever a nova função e condição da mulher trabalhadora associada ao processo de industrialização e à pluralidade de representações entre as organizações de trabalhadores, desde a consciência de “dupla exploração” à ideologia patriarcal (Aguado 1998).

4Este quadro analítico deu origem ao conceito de “sexo social”, concebido como uma categoria da sociedade contemporânea e definido como a “construção densa do género feminino”, através da negociação e da resistência às novas normas da sociedade fabril. Permite ilustrar as primeiras concentrações de mulheres trabalhadoras assalariadas, a sua crescente visibilidade pública, inserção no movimento sindical, ascensão a lugares de liderança e capacidade de disseminar perspetivas e reivindicações próprias (Gómez Martínez e Monge Juárez 2022). Os estudos têm-se baseado na imprensa periódica e, em menor escala, nas resoluções dos congressos operários. Tem sido possível analisar a evolução das práticas e dos discursos das e sobre as mulheres, argumentando-se que, apesar da persistência de representações que insistem na complementaridade do papel social da mulher, os discursos socialista e anarquista constituíram as vertentes mais radicais da crítica sobre a condição feminina durante o processo de industrialização, graças à crescente participação sindical e política das mulheres trabalhadoras (Tocino 2002; Navarro López 2016).

5Em Portugal, apesar da escassez de estudos empíricos sobre as representações da mulher no movimento sindical, a entrada dedicada às operárias do dicionário feminino em Portugal defende uma alegada “misoginia” dominante no seio do movimento operário, devido ao que supostamente era sentido como uma concorrência desleal (Guinote 2013, 789). Contudo, Alves (2017) ilustra uma evolução histórica na estratégia sindical relativa ao trabalho feminino e à organização das mulheres trabalhadoras, a partir do início do século XX. Segundo o autor, a inserção das mulheres no mercado de trabalho, e a concorrência que a sua sobre-exploração significava, determinou a adoção de uma orientação pragmática. Não obstante a perpetuação de representações associadas à domesticidade, pugnou-se pela igualdade salarial entre homens e mulheres e pelo recrutamento sindical destas últimas (Alves 2017, 161).

6A história do ativismo feminino no movimento sindical, embora excecionalmente explorada no contexto português, permite ilustrar a presença das mulheres desde a emergência do movimento operário. Alves e Gama (2013) analisaram processos de 778 associações de classe, concluindo que as mulheres participaram na fundação de 37 associações. Os autores recensearam um conjunto de 564 mulheres que integravam comissões promotoras de associações de classe, algumas correspondendo a profissões marcadamente femininas e outras revelando a adoção de uma estratégia de separatismo que encontra paralelos além-fronteiras (Alves e Gama 2013). É igualmente de destacar o estudo de Seixas (s.d.) sobre as operárias de Alcântara e o seu diversificado repertório de ação coletiva (Tilly 1978), que inclui nomeadamente a participação ativa das mulheres no movimento sindical, numa Comissão Promotora de um dos congressos têxteis e numa Comissão de Reclamação constituída em Lisboa.

7A investigação mais diretamente relacionada com o tema deste artigo, todavia, é aquela que deu origem à dissertação de mestrado de Olinda Gama, debruçando-se “não sobre a mulher nem sobre feminismos, mas sobre a forma como as relações de género são formuladas pelos autores libertários e como são abordadas nas publicações afiliadas a este ideário” (Gama 2014, 2). Não obstante as especificidades, a autora aponta como denominador comum nos discursos anarquistas o reconhecimento da hierarquia de género e a legitimação das reivindicações de igualdade. Os artigos analisados em três periódicos libertários assumem a soberania intelectual do homem, mas justificam-na com o menor investimento na educação da mulher, numa perspetiva claramente evolucionista. São acérrimos críticos das propostas feministas de matriz republicana, integrando a emancipação feminina na luta geral pelo progresso social e moral do indivíduo, de acordo com o projeto da anarquia. São, todavia, identificáveis indícios – “ora explicitamente, ora de modo subliminar – da visão de género dominante” (Gama 2014, 122).

8Este artigo procura aprofundar o conhecimento sobre a emergência da mulher trabalhadora na esfera pública, as representações do trabalho feminino e as orientações sindicais face ao processo de crescente feminização do setor industrial, no período de emergência e de consolidação do movimento operário, desde meados do século XIX até ao golpe militar de 1926. Este contributo baseia-se na análise exaustiva de duas fontes: a imprensa operária e as 23 resoluções dedicadas ao trabalho feminino aprovadas nos congressos sindicais organizados entre 1890 e 1926. A primeira parte deste artigo procura ilustrar a evolução do ativismo das mulheres trabalhadoras neste período, nomeadamente a sua adesão ao novo repertório de ação coletiva em emergência no seio do movimento operário e o desenvolvimento da sua intervenção autónoma. A segunda parte, por sua vez, examina as representações sindicais do trabalho e, sobretudo, do ativismo feminino, de forma a confirmar, relativizar ou negar as teses clássicas sobre a alegada “misoginia” do movimento sindical português. Finalmente, na terceira parte são analisadas as orientações veiculadas nos congressos sindicais corporativos, considerando a diversidade da realidade industrial portuguesa.

1. A participação feminina na emergência e na consolidação do movimento sindical

9Em Portugal, os estudos sobre o trabalho feminino na transição para a modernidade destacam a persistência da divisão sexual do trabalho e das identidades femininas definidas mais através das suas funções familiares do que pelo trabalho, ainda encarado como um prolongamento daquelas (Pereira 2012). Baptista (1999) ilustra o modo como a perpetuação destas representações se reflete até nos censos da população, onde o trabalho feminino se assume como subsidiário e diluído entre “os membros da família auxiliando os respetivos chefes”. Não obstante esta invisibilização, os dados oficiais revelam a crescente feminização do trabalho industrial, sobretudo nos setores têxteis e da alimentação, e as características específicas do trabalho feminino, ao domicílio, adventício e complementar em relação ao rural. A feminização era acompanhada pela sobre-exploração da mão de obra feminina e pela substituição da mão de obra masculina.

  • 1 Ministério das Obras Públicas – Estatística industrial. Ano de 1917, Boletim do Trabalho Industrial (...)

10Segundo a Estatística Industrial de 1917,1 a mão de obra feminina correspondia a 34% da população ativa à escala nacional, sendo 55,5% em Braga, 49,7% em Faro, 46,8% no Porto e 28,5% em Lisboa. Segundo os censos de 1930, contando com “os membros da família auxiliando os respetivos chefes”, as mulheres representavam já, no setor industrial, 45% da população ativa. Os dados disponíveis comprovam a disparidade entre os salários femininos e masculinos. Segundo o anuário estatístico de 1925, no Porto variavam entre 47% (setor da alimentação) e 79% (setor dos tabacos) dos masculinos e em Lisboa entre 46% (setor do vestuário) e 63% (setor dos tabacos). Importa analisar o impacto deste processo na organização dos trabalhadores. O movimento operário português emergiu em meados do século XIX, conheceu o seu clímax durante a primeira república portuguesa (1910-1926), recuou dramaticamente sob a repressão ditatorial e as associações de classe foram oficialmente ilegalizadas em 1933, quando não se convertiam em sindicatos corporativos. As evidências empíricas apontam para uma precoce participação das mulheres trabalhadoras, apesar dos constrangimentos que lhes eram impostos, como se verá mais adiante.

  • 2 Jornal do Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas, 15 de outubro de 1853.

11A primeira expressão do associativismo moderno entre as camadas populares foi o mutualismo, que, na sua origem, assumia uma natureza multifuncional, incluindo a resistência da comunidade artesanal à transformação das relações laborais, estando na origem direta do movimento sindical (Pereira 2020). As mulheres participaram no mutualismo desde a sua fundação, em meados do século XIX; data de 1852 a primeira tentativa de criar uma associação exclusiva e de iniciativa feminina, denominada Associação Fraternal das Senhoras.2 Baptista (2014) contabilizou a existência de mais 14 associações mutualistas exclusivamente femininas durante o período em análise, a que se somou a participação de mulheres nas associações “para ambos os sexos”. Em 1889, as mulheres representavam cerca de 20% dos associados a nível nacional e, em 1898, 31,42% dos mutualistas da capital (Baptista 2014, 200-201). Esta precoce participação é tanto ou mais significativa se tivermos em consideração que o associativismo popular, na sua origem, teve o género como um dos principais fatores de exclusão. Segundo Goodolphim (1876), autor do primeiro levantamento das associações populares, esta exclusão devia-se às condições de trabalho e moléstias associadas à condição feminina, que resultavam em graves prejuízos para as associações mistas. A análise dos estatutos destas últimas revela que, mesmo quando aceites, as mulheres eram excluídas das assembleias gerais e não podiam eleger nem ser elegíveis.

  • 3Às operárias de Portugal”, O Pensamento Social, 8 de dezembro de 1872, p. 2.

12A necessidade de integrar os estratos semiqualificados e indiferenciados nas lutas laborais, porém, assegurou um maior empenho na mobilização da participação feminina. De acordo com as diretivas da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT),, que recomendava a formação de secções femininas, as mulheres integraram as primeiras “associações de resistência” fundadas na década de 1870, “as operárias do fabrico do tabaco estão quase todas, senão todas, associadas. A classe de fiação e tecidos, também conta grande número de sócias!”.3 Após o reconhecimento legal do sindicalismo, em 1891, formalizou-se, desde logo, um pequeno conjunto de associações de mulheres – a Associação de Classe das Costureiras de Lisboa (1895), a Associação de Classe das Costureiras e Ajuntadeiras de Lisboa (1896), a Associação de Classe das Lavadeiras (1896) e Associação de Classe das Parteiras (1897).

  • 4 “Arrentela”, O Sindicalista, 7 de janeiro de 1912, p. 3.
  • 5 “Questão vital: carestia de vida”, O Sindicalista, 20 de abril de 1913, p. 4.
  • 6 “Costureiras e ajuntadeiras”, O Sindicalista, 27 de novembro de 1910, p. 2.
  • 7 Navi, “A questão feminina: uma reclamação justa”, A Voz do Operário, 13 de julho de 1911, p. 1.

13Estas associações integraram as estruturas federativas, com as suas dirigentes a assumirem posições de destaque nas assembleias nacionais, como Luísa Mendonça, da Associação de Classe das Costureiras, ou Emília Xavier, da Classe das Parteiras; locais, como a camarada Palmira, da Associação das Operárias das Fábricas de Setúbal; e sectoriais, como as “duas companheiras da fábrica da Arrentela”, presentes na comissão administrativa da Associação de Classe dos Operários Manufatores de Lanifícios.4 Participaram também nas iniciativas públicas, como ilustra a intervenção da camarada Piedade, operária conserveira, no comício contra a carestia de vida que teve lugar no Casino Setubalense em abril de 1913.5 Quando, em 1910, a transformação do regime político impulsionou a ação coletiva centrada no Estado, com a proliferação de propostas de reforma social veiculadas pelos movimentos sociais e dirigidas aos novos governantes (Pereira 2020), as associações de mulheres acompanharam o movimento geral e apresentaram imediatamente uma representação ao governo da República. As costureiras e ajuntadeiras exigiram o cumprimento da legislação protetora do trabalho das mulheres e menores na indústria, que sobretudo limitava o horário de trabalho e assegurava o descanso dominical.6 A mesma classe enviou uma representação ao presidente da Assembleia Constituinte, em 1911, desta vez contra os serões, reivindicação que foi secundada pelas operárias costureiras do Depósito Central de Fardamentos, que exigiam também a igualdade de trabalho entre homens e mulheres.7

  • 8 “Um ataque ao feminismo”, A Voz do Operário, 16 de fevereiro de 1913, p. 2.

14As expectativas criadas pela transformação do regime levaram ainda à fundação de uma organização política de mulheres trabalhadoras presidida por Margarida Marques, da Associação de Classe das Costureiras. A União das Mulheres Socialistas (UMS), fundada a 17 de junho de 1912, assumia como propósitos: defender e propagar as ideias socialistas e os benefícios que adviriam para a mulher com a implantação do socialismo, o qual lhe traria a sua autonomia, a sua liberdade de ação, os seus direitos e deveres como os homens, isto é, a sua emancipação social. A UMS assumiu, desde logo, um conjunto de reivindicações relacionadas com o papel das mulheres na economia doméstica, destacando temáticas como a carestia de vida ou a habitação. Aderiu também a reivindicações feministas, como a abolição da regulamentação legal da prostituição, a proteção à infância ou o sufrágio feminino. Sabemos que a UMS organizou saraus e conferências, entre outras atividades de propaganda; também participou em polémicas na imprensa combatendo o antifeminismo, defendendo que a “superioridade do homem sobre a mulher não é um facto de ordem fisiológica ou psíquica, mas unicamente um facto de ordem social, alimentado por princípios de pré-histórica tirania”.8

  • 9 “Tomar: Carta de uma Operária!”, O Primeiro de Maio, p. 3.

15Não obstante esta crescente participação, são muito poucos os artigos assinados por mulheres na imprensa operária, impedindo uma análise mais profunda do pensamento e da estratégia das ativistas femininas. Na maior parte dos casos o discurso direto das mulheres surge na forma de cartas enviadas às redações, que em algumas situações são reveladoras de tensões no seio do movimento. Por exemplo, uma correspondente de Tomar queixou-se de que os homens escarneciam das mulheres por pertencerem à associação, como se porventura elas não tivessem o mesmo direito que os homens.9 Outros testemunhos revelam a dualidade entre uma consciência de classe e uma consciência de género, nomeadamente nas descrições do quotidiano laboral e doméstico das mulheres trabalhadoras, sublinhando a sobrecarga a que estavam sujeitas:

  • 10 “Oeiras: carta de uma operária”, Primeiro de Maio, 6 de agosto de 1905, p. 3.

A mulher vive muito mais sacrificada do que o homem, não porque o trabalho seja mais árduo, mas porque enquanto o homem, depois do seu penoso trabalho, espairece em qualquer casa de venda as suas mágoas com os seus amigos, a mulher, depois do seu trabalho na oficina, chora em casa agarrada aos filhos e à sua miséria. O homem distrai-se com os seus amigos e esquece por vezes a sua desgraçada e penosa situação. A mulher labuta e pensa sempre no que há de fazer para o jantar, na renda da casa, na educação dos filhos, em tudo, enfim.10

16Se estas tensões e constrangimentos explicam parcialmente a diminuta e autónoma organização formal das mulheres, o mesmo não se verifica no que respeita à sua adesão ao movimento reivindicativo. Só existem estatísticas relativas às greves de todo este período, e até 1974, para os anos de 1903-1912, publicadas em 1919 no Boletim do Trabalho Industrial. Esta amostra revela que as mulheres participavam nas greves desde os inícios do século XX, ainda que em número inferior ao dos homens. Os dados – claramente parciais, se comparados com as notícias de imprensa – destacam a participação das mulheres na indústria textil do Norte do país, com 8250 mulheres a participarem em greves na zona do Porto, Braga e Covilhã nestes anos, sobressaindo a sua adesão massiva a determinadas paralisações, até em número superior ao dos homens. É também exemplo deste protagonismo a greve de 1911 na indústria das conservas, em que todas as 1820 mulheres aderiram, ao passo que apenas 550 homens num total de 1341. Não temos estatísticas oficiais para a segunda onda de agitação social iniciada durante a Grande Guerra, mas os relatórios policiais e a imprensa operária dão conta de um aumento expressivo do protagonismo feminino nas lutas em torno do consumo, iniciadas no inverno de 1916, e na nova vaga de greves a partir de 1917.

  • 11 “Fraternidade Operária em Almada”, O Pensamento Social, 6 de outubro de 1872.
  • 12 “Movimento de resistência da classe de manipuladores de tabaco”, O Pensamento Social, 19 de janeiro (...)
  • 13 O Pensamento Social, 15 de fevereiro de 1872, p. 2.

17É neste âmbito, e desde o primeiro surto grevista em Portugal, que se podem identificar tendências contraditórias, revelando que também se teciam laços de solidariedade entre os dois sexos. Em outubro de 1872, as aspadeiras da Fábrica do Olho de Boi, em Almada, entraram em greve por melhores salários e contra os maus-tratos dos seus superiores, sendo secundadas pelos operários tintureiros da mesma fábrica, que abandonaram o trabalho até as exigências das suas companheiras serem respondidas.11 Em janeiro de 1873, no movimento vitorioso da classe de manipuladores de tabaco, as mulheres desempenharam um papel de destaque, integrando uma comissão representativa,12 e impuseram desde logo a questão da igualdade salarial: “As companheiras da fábrica de Xabregas recusaram-se a manipular charutos por menos preço do que os homens”.13

  • 14 “Indústria corticeira em Vendas Novas”, A Greve, 25 de março de 1908, p. 2.

18A reportagem das greves femininas revela também a sua iniciativa e direção autónomas. Por exemplo, ao relatar a greve corticeira de 1908, em Vendas Novas, A Greve destaca a iniciativa das rolheiras e a adesão das operárias escolhedoras, e, mais tarde, dos quadradores mecânicos que “seguiram-lhes o nobre exemplo”. Foi organizada uma sessão de esclarecimento no Centro Democrático Escolar Heliodoro Salgado, “em consequência de não caberem na sede da associação de classe”, presidida pela companheira Maria das Dores Caçapo, secretariada pelas companheiras Iria Marques e Laura da Conceição, sendo nomeada uma comissão composta por três operárias e três operários e comissões de vigilância compostas por grevistas de ambos os sexos.14

  • 15 “Greve de Setúbal”, O Sindicalista, 12 de março de 1911, p. 2.

19É certo que as tensões entre homens e mulheres não deixaram também de marcar o movimento grevista. A resistência dos operários fazia-se sentir sobretudo entre os antigos artesãos, ameaçados pela introdução de maquinaria e do proletariado fabril destinado a substituí-los. Com base no exemplo da greve conserveira de Setúbal, de março de 1911, é possível ilustrar estas tensões e alianças que se desenhavam no seio do movimento, em que as questões de género se relacionam com as de qualificação. Se os “trabalhadores das fábricas”, indiferenciados ou semiqualificados, pugnavam pelos interesses das suas companheiras, considerando a melhor estratégia para combater a sua substituição, os soldadores viam nas mulheres um potencial inimigo, sendo os primeiros a abandonar o movimento e acabando por assumir uma atitude francamente hostil ao mesmo.15

20Não obstante, à exceção dos estratos mais ameaçados pela transformação do modo de produção, os restantes trabalhadores não especializados apoiavam a luta pela emancipação económica das mulheres. Para estes estratos, a reivindicação da igualdade salarial mitigaria a concorrência da mão de obra feminina, o que poderá justificar os múltiplos movimentos de solidariedade identificados durante o período em análise. Durante a greve, os industriais procuraram dividir o proletariado fabril, impondo, com o apoio das autoridades, um escrutínio secreto sobre a persecução da greve na Associação de Classe dos Trabalhadores das Fábricas. Dos 179 associados, 177 votaram pela manutenção do apoio às mulheres das fábricas. Para além da solidariedade dos seus companheiros, as operárias conserveiras contavam ainda com o apoio da estrutura sindical local. O correspondente de O Sindicalista em Setúbal redigiu o seguinte apelo à organização operária:

  • 16O Sindicalista em Setúbal”, O Sindicalista, 16 de abril de 1911, p. 2.

A todas as associações operárias do país cabe como um dever de humanidade enviarem os donativos que puderem para a União das Associações de Setúbal. As mulheres das fábricas têm sido umas heroínas, que bem merecem o apoio de todos os trabalhadores pela sua intransigência e martírio. A mulher da classe operária merece também que o homem da classe operária a defenda, a dignifique e lhe preste, enfim toda a solidariedade que seja possível.16

  • 17 “Ação sindical”, O Germinal, 22 de junho de 1912, p. 3.

21São de relatar, igualmente, as lutas femininas em defesa do seu direito de associação e a sua receção pelas restantes organizações de trabalhadores, sendo, mais uma vez, de destacar o exemplo das operárias conserveiras de Setúbal, a mais importante associação operária feminina deste período, com 3000 filiadas. Em junho de 1912, o gerente da fábrica Ferdinand Garrec & Cª declarou que não queria na fábrica operárias filiadas na associação de classe. A maior parte delas abandonou o trabalho, bem como muitos rapazes. As mulheres distribuíram um manifesto que defendia a liberdade de associação para as mulheres e a união de todas as classes profissionais locais.17 Na onda global de greves e protestos populares (Wrigley 1993) iniciada em 1917, as mulheres destacaram-se na orientação da contestação operária para a esfera do consumo e na sua articulação com as greves laborais. O seu protagonismo nas chamadas “revoltas da fome” está sobejamente documentado nos relatórios policiais e nas missivas enviadas pelas autoridades locais às centrais, já analisadas por Pereira (2014). A partir destes protestos surge um novo repertório de ação coletiva que se articula à escala nacional, com a aprovação em comícios organizados em todo o país, a partir de 1917, de um caderno reivindicativo ao governo, no qual se exige, em paralelo, a regulação dos mercados de alimentos e das relações laborais. Este movimento esteve na origem da “Greve Geral de Todos os Consumidores”, de 18 novembro de 1918, e de mais uma série de greves contra a carestia de vida, em várias povoações, vilas e cidades do país (Pereira 2014).

  • 18 O Trabalho, 18 de junho de 1916, p. 3.
  • 19 O Trabalho, 7 de julho de 1916, p. 3.
  • 20 “Em Almada: a greve das fábricas de conservas. Prisão de vários camaradas – a atitude dos industria (...)
  • 21 “Em Aldeia Galega: greve de chacineiras”, A Batalha, 18 de janeiro de 1921, p. 2.
  • 22 “Em Aldeia Galega: operárias chacineiras”, A Batalha, 30 de janeiro de 1920, p. 2.

22Para além destes repertórios transgressivos e aparentemente desorganizados, as mulheres envolveram-se igualmente nas lutas laborais, em alguns casos sendo pioneiras de movimentos mais alargados nas suas comunidades. Em junho de 1916, as mulheres das fábricas de Setúbal reivindicaram aumentos salariais, “reconhecendo que a vida está cara, e que as mulheres, nem por serem mulheres, deixam de comer, vestir e calçar”.18 Todo o pessoal das fábricas se solidarizou com as operárias, parando a produção naquelas em que existia a pendência.19 A greve em Almada, no verão de 1919, na qual as fábricas de conservas estiveram sem laborar mais de cinco semanas, teve também por mote reivindicações do pessoal feminino e o apoio moral dos restantes trabalhadores.20 Em janeiro de 1920, as chacineiras de Aldeia Galega, em número superior a 700, voltaram à luta, paralisando o trabalho por mais de mês e meio, de forma a forçar os industriais a cumprirem as oito horas e a concederem um aumento salarial de 40%.21 A Associação de Classe dos Trabalhadores Rurais decretou greve em solidariedade com as suas camaradas, paralisando o trabalho de cerca de 3000 pessoas neste concelho.22

  • 23 “O Congresso Corticeiro prossegue os seus trabalhos”, A Batalha, 5 de novembro de 1924, p. 1.

23Estes exemplos de solidariedade não deixam de ser contrariados com outros testemunhos de tensões entre os sexos, que em parte explicam a pouca adesão formal das mulheres ao movimento operário organizado. Cite-se o relato do delegado de Faro ao Congresso Corticeiro de 1924. Segundo ele, o facto de os homens terem aceitado que os patrões lhes aumentassem os salários em 10%, na condição de um semelhante aumento não ser concedido às mulheres, determinou o abandono do sindicato pelas mesmas.23 Em suma, as mulheres aderiram ao novo repertório de ação coletiva inaugurado com a emergência do movimento operário em Portugal, desde a greve à organização e direção do movimento organizativo, do comício público à petição ao estado. Para além disso, desenvolveram uma intervenção política autónoma, ilustrada pela fundação da União das Mulheres Socialistas. Tiveram ainda um protagonismo essencial na articulação das lutas nas esferas da produção e do consumo. Esta emergência das operárias na esfera pública foi conquistada não sem a resistência de alguns setores da organização sindical.

2. Representações do trabalho e do ativismo feminino

24Ilustrado e analisado o ativismo feminino, importa verificar qual a sua receção de forma a confirmar, relativizar ou negar as teses clássicas sobre a alegada “misoginia” do movimento sindical português. Muito embora seja escasso o protagonismo da mulher enquanto publicista na imprensa operária, a questão feminina assume um lugar de destaque, que permite analisar as representações discursivas que acompanharam a crescente feminização do setor secundário e a mobilização social das trabalhadoras. Em 1911, o/a ativista socialista de pseudónimo “Navi” sintetizava as posições controversas sobre a mulher que conviviam no movimento sindical, as que a empurravam para a domesticidade e a maternidade, as que a consideravam mais vulnerável à exploração capitalista e as que defendiam que o trabalho assalariado era condição da sua emancipação:

  • 24 Navi, “A questão feminina: horários de trabalho – exploração da mulher”, A Voz do Operário, 6 de ag (...)

Uns atendendo a que o enfraquecimento da mulher representa não só a degenerescência dela como a de toda a raça e que moralmente é sempre pernicioso arrancar a mulher do seio da família para a lançar na atmosfera corruptora e viciosa da oficina, entendem que o trabalho não deve ser permitido. Há ainda quem, atendendo à sua situação injustamente inferior nas sociedades atuais, privada de direitos políticos, inabilitada pela rotina de fazer parte de associações profissionais, o que a priva dos meios de defesa e a expõe mais a descoberto aos abusos e às espoliações dos patrões, também condene a sua entrada na indústria. Mas em contraposição, há quem entenda que o trabalho constitui para a mulher muitas vezes o único meio de se sustentar a si e aos seus, mantendo uma vida honesta e um espírito de Independência.24

  • 25 Ecco dos Operários, 6 de setembro de 1850.
  • 26Às operárias de Portugal”, O Pensamento Social, 8 de dezembro de 1872, p. 2.
  • 27 O Pensamento Social, 5 de janeiro de 1873.

25A evolução destas representações pode ser perscrutada na imprensa operária desde a sua emergência, nomeadamente pela voz do dirigente histórico Francisco de Sousa Brandão que, no pioneiro Ecco dos Operários, se insurgia por as mulheres “que tem as mesmas necessidades de sustento, de vestuário, de habitação que qualquer homem, ganhem a metade, um terço, um quarto, do seu salário”.25 No entanto, é sobretudo no seio da Fraternidade Operária, e na sequência dos primeiros contactos portugueses com o movimento operário internacional, que se destaca o tema da emancipação feminina, assumindo-se que as associações de resistência que estavam a ser criadas tinham por fim acabar com todas as explorações, “elevando a mulher ao grau de respeitabilidade a que tem jus o seu sexo”.26 O Pensamento Social, órgão da federação, estabelecia a permuta com o jornal A Esperança, publicado em Genebra pelo comité central da Associação Internacional das Mulheres, defendendo a necessidade de reconhecer a mulher como “um ente ativo e inteligente, arrancá-la do vil abatimento em que a tem lançado os devassos e demagogos, dando-lhe a máxima liberdade, dispensando-lhe ao mesmo tempo a devida instrução, eis um dos elevados fins da Associação Internacional dos Trabalhadores”.27

  • 28 O Pensamento Social, maio de 1872.

26Em maio de 1872, debatia-se no seio do movimento operário internacional o papel social da mulher, contrariando-se as teses segundo as quais esta deveria estar cingida ao espaço doméstico. No Congresso de Saragoça, de 4 a 11 de abril de 1872, já analisado por Nash (1981), o conselho federal da AIT aprovou um parecer que criticava a tese apresentada no anterior congresso de Barcelona. Publicado em O Pensamento Social, o parecer veiculava que a proposta original era “inspirada de um sentimentalismo tradicional”, na medida em que defendia a emancipação da mulher do trabalho fabril, para que esta se dedicasse exclusivamente ao doméstico e à família. Em 1872, porém, o conselho federal defendia que o trabalho fora de casa era o único meio de “pôr a mulher em condições de liberdade” e que não era a “concorrência das mulheres” que “perturbava as relações entre o capital e o trabalho”, mas o “monopólio que exerce a classe exploradora”.28

  • 29 “A Mulher na Sociedade Atual”, O Pensamento Social, maio a julho de 1872.
  • 30 O Pensamento Social, 26 de janeiro de 1873.

27Os internacionalistas punham em causa a conceção de família tradicional, que relacionavam com a propriedade. Numa série de cinco artigos publicados entre maio e julho de 1872, é desenvolvidamente criticado o papel conferido à mulher na sociedade da época, em particular a noção da exclusiva vocação para a esfera doméstica e o casamento, a legislação do casamento, a regulamentação da prostituição, entre outros tópicos do discurso feminista, sempre em relação com a sobre-exploração das mulheres na indústria.29 É de realçar a crítica elaborada nas páginas deste jornal de inspiração socialista às conceções veiculadas pelo republicanismo contemporaneamente emergente, que continuavam a conferir à mulher um papel social distinto do do homem, vocacionado para a família e a educação. Entre outros exemplos destaca-se um artigo não assinado em que se critica um Estudo Económico-Social de Magalhães Lima, pelo facto de o grão-mestre da maçonaria não fugir, nesta questão da mulher, à influência das ideias geralmente aceites, que conferiam à mulher um lugar especial nas relações sociais.30

  • 31 “O programa socialista II”, O Protesto: periódico socialista, 17 de agosto de 1884.
  • 32 “O problema da mulher”, O Protesto: periódico socialista, 9 de outubro de 1887.

28A noção de que no movimento operário a mulher assumia um protagonismo inédito foi também valorizada pelos primeiros socialistas, que reivindicavam para si o pioneirismo na promoção da igualdade de género. Sobre o projeto e as concretizações do jovem partido, realçava o editorial de O Protesto Operário: “Quem proclamou a igualdade humana, entregando, pela primeira vez, a presidência das assembleias a uma mulher?”.31 Mais tarde, muito embora os ativistas do jovem Partido Socialista assumissem reivindicações comuns com o movimento feminista – o abolicionismo, com condenação da regulamentação da prostituição, os direitos políticos e civis, o sufrágio das mulheres, as leis da família e do casamento –, defendiam em harmonia com o movimento operário internacional uma orientação própria. Nas páginas do órgão socialista são traduzidas e publicadas as posições dos seus congéneres além-fronteiras, como o Le Socialiste, nas quais se distinguia que enquanto as burguesas emancipadas economicamente reclamavam a libertação política, as esposas e filhas dos proletários entravam nas oficinas, demonstrando que em face do trabalho social não havia já diferença de sexo.32

  • 33 “Socialismo Feminino”, O Protesto: periódico socialista, 30 de julho de 1893.

29Comparando o movimento operário com outros “movimentos coletivos em elaboração”, os socialistas afirmavam que o primeiro saíra já do seu “período sentimental”, apoiando-se numa sólida organização e articulando as reivindicações políticas e económicas das mulheres, nomeadamente o sufrágio universal, a regulamentação e a igualdade do trabalho feminino. A ideia de um “Socialismo Feminino”, defendida nas páginas dos jornais operários, afirmava que “a mulher tem direito a emancipar-se dos que exploram o seu trabalho”, e que “não é só nos arranjos internos da casa” que as mulheres são exploradas, uma vez que “em todas as oficinas o elemento feminino constitui hoje uma força e é mais explorado de que o operário, seu companheiro”.33 O I Congresso das Associações de Classe, de 1895, recomendava um “especial cuidado na organização de associações exclusivamente compostas de mulheres [...] mesmo as domésticas para receberem praticamente noções do seu valor e da sua posição social” (Sousa 1971, 54).

  • 34 “A Mulher e a Família”, O Despertar, 21 de fevereiro e 13 de março de 1904.

30Para além do movimento socialista, o sindicalismo revolucionário também desenvolveu novas conceções sobre o papel social da mulher. Em 1903, O Despertar chamava a atenção para o valor do trabalho reprodutivo da mulher, comparando a exploração no seio da família tradicional à exploração entre classes – “Se houvesse que avaliar-se, segundo as regras da economia política, o trabalho que a mãe presta no lar doméstico, o preço seria inestimável” – e instigando as mulheres a rebelarem-se “contra o matrimónio, contra a propriedade e contra o Estado”.34 Em 1904, o Despertar traduzia excertos da obra La Femme Esclave, do anarquista francês René Chaughi, nos quais criticava o papel social e a opressão que recaíam sobre a mulher, reivindicando a igualdade face ao homem em todas as dimensões da vida familiar, cívica e política. A Greve, em 1908, publicou também, com grande destaque, uma série de textos dedicados à questão feminina, centrando-se na relação entre a exploração e a luta dos operários e das mulheres, chamando a atenção para a inserção das reivindicações femininas nos programas de vários partidos e movimentos progressistas além-fronteiras.

  • 35 “Carta de Vendas Novas”, A Vida, 28 de junho de 1907, p. 2. Seixas (s.d., 28) descreve um episódio (...)
  • 36 Espólio Manuel Joaquim de Sousa. Arquivo Histórico Social da Biblioteca Nacional, Núcleo de Milit (...)

31Estas perspetivas eram divulgadas no seio do movimento operário em franca ascensão e junto das operárias em luta. Destaque-se o exemplo da participação do famoso anarquista Bartolomeu Constantino no comício corticeiro de Vendas Novas, em 1907, no qual defendeu que a mulher devia entrar em todas as manifestações de atividade proletária, competindo com o homem nas artes, nas indústrias e na ciência, que não se deviam coartar as tendências intelectuais e profissionais da mulher pelo facto de ela fazer essa concorrência. Segundo o correspondente, no fim da sessão inscreveram-se como sócias da secção das operárias da Associação de Classe todas as mulheres presentes, ficando inscritas mais de 50 operárias.35 É de destacar ainda a forma como foi representado o ativismo feminino na imprensa e nas memórias sindicais. Manuel Joaquim de Sousa, futuro secretário-geral da Confederação Geral do Trabalho, relatando a greve têxtil de 1903, confessou que uma das imagens que mais marcaram a sua juventude foi a coragem das tecelãs ao paralisarem a força de cavalaria da polícia municipal, prostrando-se de joelhos com os filhos erguidos nos braços.36 Esta representação da mulher, capaz de enfrentar as forças policiais, está presente em várias descrições. Estas representações, contudo, conviviam, como Gama (2014, 122) notou na sua dissertação, com a visão de género e os estereótipos dominantes sobre as mulheres.

  • 37 “As greves dos corticeiros”, O Corticeiro, 14 de janeiro de 1911, p. 1.
  • 38 “A parada operária de 27”, A Greve, 2 de junho de 1918, p. 1.
  • 39 “Greve geral no Barreiro”, A Batalha, 12 de junho de 1919, p. 1.

32No movimento corticeiro que paralisou as fábricas do Barreiro e de Belém, em janeiro de 1911, o jornal O Corticeiro sublinhava: “O ardor e tenacidade salientando-se duma forma honradíssima nas mulheres grevistas, que formando uma muralha infranqueável se têm postado às portas das fábricas impedindo a entrada seja a quem for que as pretenda atraiçoar”; e concluía: “É este um belo exemplo de coragem e solidariedade social, provando-se mais uma vez que a mulher é o protótipo do sacrifício moral”.37 Também a descrição de A Greve da manifestação convocada pela União Operária Nacional para 27 de maio de 1918, em solidariedade com as e os grevistas tabaqueiros, descreve as mulheres a avançarem em frente da multidão em direção à polícia de armas em punho.38 O relato de A Batalha sobre a greve geral do Barreiro, em junho de 1919, valorizava o papel das mulheres neste movimento: “Foi admirável a atitude do elemento feminino que [...] percorreu num curto espaço de tempo todos os ateliers chamando para a greve as que principiaram a trabalhar. [...] As mulheres ante o movimento grevista, dão os mais belos exemplos de abnegação”.39

3. Orientações sindicais face ao trabalho feminino e à participação sindical

  • 40 “Delegados ao Congresso”, A Federação, 28 de março de 1897, p. 2.

33O “trabalho” e “emancipação feminina” estão finalmente presentes nas teses aprovadas nos congressos associativos, revelando as orientações oficiais do movimento. Como ilustra a Tabela 1, a questão do trabalho feminino está presente desde o primeiro congresso sindical em 1890, tornando-se preponderante no pós-guerra. Desde o Primeiro Congresso das Associações Portuguesas, em 1882, que o movimento associativo defendia “que se equiparem em tudo os direitos da mulher aos do homem nas associações, banindo restrições odiosas, incongruentes, e conseguindo por esta reforma indireta a sua emancipação civil e política” (Chagas et al. 1883). Não obstante as limitações à participação feminina nas associações, impostas pela lei de 9 de maio de 1891, os congressos populares da década de 1890 desenvolveram esta premissa, defendendo a sua organização com os mesmos direitos dos homens (Fonseca 1979). Assim, as poucas associações femininas fazem-se representar nos primeiros congressos operários, assumindo as suas delegadas um papel dirigente em várias sessões.40

34Os primeiros congressos sindicalistas na década de 1890 pugnavam essencialmente pelo cumprimento da legislação reguladora do trabalho feminino. No primeiro congresso operário de 1891 foi defendida a concretização do decreto de 10 de fevereiro de 1890, que autorizava o governo a legislar nesse sentido. A 14 abril de 1891, foi finalmente promulgada a lei protetora do trabalho de mulheres e crianças, prevendo a limitação das horas de trabalho diário no máximo de oito, a criação de creches nas fábricas com mais de 50 mulheres e a proibição de empregar mulheres nas quatro semanas após o parto. Nos restantes congressos até 1909, enquanto a hegemonia do Partido Socialista era incontestada, foi em torno do cumprimento da lei que as teses relativas à questão feminina se debruçaram. Apesar do seu limitado alcance, reduzindo o horário de trabalho, a legislação mitigava o impacto da concorrência feminina.

  • 41 “Congresso Nacional Operário”, A Voz do Operário, maio a setembro de 1910.

35Na alvorada do século XX, a Igreja Católica procurou dar vida a um movimento concorrencial formado por “agremiações populares católicas”. No seu congresso de 1909, em Braga, foi aprovado um modelo de estatutos para a criação de associações de mulheres e de raparigas, numa clara tentativa de construir um movimento associativo alternativo àquele que até então era hegemonizado pelo Partido Socialista Português. A “secção de senhoras” apresentou também as suas resoluções, que iam ao encontro das reivindicações gerais do movimento sindical, designadamente o cumprimento da legislação de 1891. Em 1909, surgia ainda uma terceira corrente sindical, de influência sindicalista revolucionária. Os seus partidários abandonaram o Congresso Nacional Operário, que se reunia desde julho de 1909, e a partir de setembro reuniram-se no Congresso Sindical e Cooperativo. Em ambos, a regulamentação do trabalho feminino foi contemplada, ainda que com orientações radicalmente distintas. Na preparação do Congresso Nacional Operário de 1909 foi atribuída à costureira Margarida Marques a responsabilidade de redigir a tese relativa ao trabalho feminino, sendo a primeira tese operária de autoria feminina. Infelizmente, o texto não foi publicado nem há referência à sua discussão nas atas das sessões. Foi, contudo, aprovada uma moção protestando contra o não cumprimento da lei reguladora do trabalho das mulheres e menores e uma resolução pugnando pelos direitos civis das mulheres.41 Nos congressos nacionais seguintes, hegemonizados pela tendência sindicalista revolucionária, as teses foram unânimes na defesa do direito ao trabalho das mulheres, destacando a necessidade de fomentar a sua organização e pugnar pela igualdade salarial entre ambos os sexos.

  • 42 “A defesa das Mulheres e menores no trabalho”, A Batalha, 11 de agosto de 1925, p. 2.

36No último congresso operário antes da ditadura, em 1925, as resoluções referentes ao trabalho feminino reconheceram que “sendo a mulher mais vítima do que o homem da exploração capitalista, há toda a conveniência em que ela se organize a fim de resistir a essa exploração”. Simultaneamente, defendiam que “desde que a produção da mulher é equivalente à do homem, o seu salário deve ser justamente equivalente e assim teremos diminuído a concorrência do braço masculino, atenuando a exploração da mulher”.42 Estas orientações, todavia, não eram consensuais no seio do movimento sindical. Apesar de a União Operária Nacional, a partir de 1914, e a Confederação Geral do Trabalho, de 1919, terem conseguido impor às federações agremiadas estas orientações, não faltam exemplos de teses corporativas que espelham a resistência à concorrência feminina na indústria. Destacam-se sobretudo nos setores mais afetados pela feminização do trabalho. As queixas surgem associadas ao facto de as mulheres auferirem salários inferiores, à introdução da máquina manejada por mulheres em substituição do trabalho artesanal, executado por homens, ou à utilização do seu trabalho ao domicílio. A análise das atas e das resoluções das reuniões e congressos corporativos reflete um maior leque de sensibilidades, por um lado, e que a aceitação da orientação central era mais estratégica do que doutrinal. Isto é, a aceitação das mulheres nas associações e a sua mobilização para a reivindicação de igualdade salarial era imposta pela efetiva e crescente participação feminina no mercado de trabalho em direta concorrência com os artesãos e os operários organizados.

37O primeiro congresso corporativo a centrar-se na questão de A mulher na Indústria foi o I Congresso Nacional Gráfico. A tese aprovada descreve os avanços da legislação e dos debates internacionais em torno deste tema e enumera as indústrias nas quais o trabalho feminino fazia “a mais perniciosa concorrência ao masculino”. Não deixava, contudo, de alinhar com as orientações centrais no sentido de reivindicar a equiparação dos salários do homem e da mulher. Foi no período do pós-guerra, porém, que se multiplicaram as teses relativas à questão feminina, permitindo uma mais abrangente análise destas representações e orientações. Para este período é possível estabelecer relações entre as orientações sindicais e o peso relativo do trabalho feminino, uma vez que, pela primeira vez, em 1930, os censos fornecem dados desagregados por setor. O setor têxtil era aquele com maior percentagem de mulheres empregadas, correspondendo a 60% dos efetivos. Na discussão da tese O emprego da mulher na Indústria, na Conferência Nacional da Indústria Têxtil, em 1922, as opiniões dividiram-se entre os que defendiam a integração das mulheres na organização, os que as consideravam “mais domável”, entendendo que o melhor que havia a fazer era a propaganda contra a sua concorrência aos homens, aconselhando-as e convencendo-as de que não deviam abandonar o lar, e ainda aqueles que sublinhavam que, não sendo isso possível, o melhor era manter a doutrina da tese do congresso nacional de 1919, segundo a qual a ação imediata devia ser conseguir para a mulher salário igual ao do homem.

  • 43 “O V Congresso dos Trabalhadores Rurais Portugueses”, A Batalha, 19 de dezembro de 1922, p. 1.

38Estas representações são igualmente refletidas nas teses apresentadas nos congressos dos trabalhadores rurais, onde as mulheres representavam 48% da mão de obra ativa. Em 1922, o debate sobre a tese A mulher e os menores na indústria rural revelava a ameaça que a mulher constituía para o trabalho masculino, bem como o papel social que lhe era conferido. Parte dos delegados consideravam que “a mulher deve ser só para o lar, mas na atualidade é necessário, já que pela força das circunstâncias é impelida a trabalhar, que execute serviços que não a prejudiquem”. Outros delegados defendiam que a mulher devia ser “excluída de todo o trabalho agrícola, porque é demasiadamente pesado para ela, prejudicando também o homem na sua situação económica”. Havia ainda aqueles que sublinhavam “que a vida da forma como está, obriga as mulheres a trabalhar para ajudar o lar”. Segundo o relator da tese, “a mulher na agricultura não vem nada ajudar o lar, verificando-se o contrário” e que apenas o facto de não ser possível evitar a sua participação determinava a exigência de igualdade salarial. A par desta exigência, a tese aprovada apontava igualmente no sentido de a federação desenvolver “uma forte propaganda de forma a interessar a mulher nos trabalhos domésticos”.43 No congresso de 1925, os rurais voltam a focar a questão. Mais uma vez eram sublinhadas as “más consequências do trabalho da mulher”, mas, tal como noutros setores, o enfoque era, desta feita, colocado na necessidade de associação, sublinhando até a necessidade de a federação criar uma cota mais reduzida para as mulheres, por estas não auferirem salários equivalentes aos dos homens.

39Noutro setor de alargada feminização, como o da alimentação, no qual as mulheres representavam cerca de 50% dos efetivos, a tese aprovada no seu I Congresso, em 1924, defendia igual e inequivocamente a sindicalização feminina e apresentava até diretivas para o seu eficaz envolvimento, como, por exemplo, a propaganda sindical entre as mulheres e a sua formação, através da fundação de uma escola de militantes, para que pudessem mobilizar as companheiras. No setor corticeiro, onde o peso do trabalho feminino atingiu 43% em 1930, o congresso de 1920 aprovou a tese O Trabalho das Mulheres e menores dentro das Oficinas, na qual, em harmonia com a orientação central, era defendida a igualdade salarial como uma necessidade imposta pelo industrialismo e pela exploração. Esta resolução não deixou de considerar o papel social da mulher incompatível com o trabalho industrial:

  • 44 “III tese: O trabalho das mulheres e menores dentro das oficinas”, O Corticeiro, 15 de junho de 192 (...)

A mulher, pela sua compleição fisiológica, é um ser tido como mais inferior ao homem, sendo assim, logicamente se poderá concluir que, uma vez dedicado a qualquer trabalho um pouco mais violento, enfraquecerá a sua estrutura orgânica, contribuindo esse facto mesmo para o seu definhamento mental [...]. Ao mesmo passo que esta verdade mais se reconhece, reconhece-se também que lhe escasseia o tempo para cuidar da educação dos seus filhos e dos elementos de higiene a aplicar de modo a torná-los homens válidos para o trabalho e conscientes para o desempenho de uma mais larga missão social [...]. O mesmo que se dá com os filhos no que respeita ao seu tratamento, se verifica com o seu companheiro. Ela que devia ser o ente que podia prodigalizar ao homem no lar uma série de confortos para recompensar as agruras da existência, não o pode fazer pela simples razão das suas atenções serem absorvidas pelo trabalho das oficinas [...]. Finalmente, a entrada da mulher dentro das fábricas arrancando-a ao mister do seu lar, é trocar-lhe as qualidades de mãe, esposa e viciar-lhe a verdadeira missão que tem a desempenhar, é arredá-la do seu fim social e racional para que foi criada.44

  • 45 “O segundo Congresso Marítimo”, A Batalha, 7 de setembro de 1922, p. 1.

40Houve setores nos quais esta questão dividiu irremediavelmente os delegados das diferentes associações de classe. Foi o caso dos trabalhadores das cargas e descargas da Federação Marítima. A tese proposta previa que a Federação Marítima ficava com o encargo de organizar as mulheres no sentido de igualar o seu salário ao dos homens. Os delegados do Norte não aceitaram a resolução, tendo de ser aprovada uma questão prévia, reconhecendo ser perniciosa para a região a organização sindical das mulheres e dando completa autonomia aos sindicatos marítimos do Norte para não fazerem sindicalização do elemento feminino. Os delegados do Sul aprovaram a moção recebendo um telegrama enviado por um grupo de mulheres carregadoras que saudaram o congresso e fizeram ardentes votos para que se pudessem juntar aos carregadores na luta contra o capitalismo.45

  • 46 “As mulheres e os menores na indústria gráfica”, A Batalha, 4 de novembro de 1924, p. 2.

41Finalmente, a tendência verificada nos setores com altas taxas de trabalho feminino é contrariada pelas orientações dos setores em que a feminização do trabalho qualificado era ainda pouco ameaçadora, como o subsetor gráfico (Durão 2002). Na Conferência Intersindical Gráfica de 1924 foi discutida e aprovada a tese As mulheres e os menores na Indústria Gráfica, na qual a federação se propunha diligenciar para que “a admissão de aprendizes e mulheres nas oficinas se limite ao mínimo” e velar pela sua educação profissional e associação. No debate da tese, os delegados fizeram “interessantes considerações sobre a atividade da mulher nas indústrias, acentuando os prejuízos que disso advém principalmente nas indústrias tóxicas, onde a saúde física rapidamente se lhes arruína”.46 É contrariada também entre os ofícios de origem artesanal, como, por exemplo, a tanoaria. Nestes setores, defendiam-se as posições masculinas, argumentando com a incompetência técnica das mulheres, a que se somava a sua submissão face à ameaça industrialista. A tese intitulada O trabalho das mulheres e menores nos armazéns e oficinas, aprovada no II Congresso Tanoeiro de 1925, sublinhava:

  • 47 “O trabalho das mulheres e menores nos armazéns e oficinas”, O Tanoeiro, 1 de agosto de 1925, p. 3.

A nossa indústria, tanto na especialidade de acondicionamento vinícola nos armazéns como nas oficinas construtoras do vasilhame, caixas, etc., o êxodo de mulheres e menores está tomando tal incremento que põe em sério risco de desnaturação técnica todo o trabalho, pela simples razão de se ter já estabelecido uma tal concorrência de braços geradora de tão grande subserviência que manieta seriamente a marcha da nossa organização sindical na conquista das suas reivindicações profissionais morais e económicas.47

  • 48 “O II Congresso da Indústria de Tanoaria”, A Batalha, 11 de agosto de 1925, p. 1.

42Importa referir que a intervenção do secretário-geral da CGT, neste mesmo congresso, procurava ditar a orientação central da organização, destacando “o papel importante que o elemento feminino tem desempenhado nesta sociedade”, não sendo “admissível que a mulher trabalhando tanto ou quase como o homem, seja explorada tão miseravelmente. É necessário, pois estabelecer idênticos direitos para os quais os trabalhadores do sexo masculino devem contribuir com os seus esforços”;48 o que não deixa de estar também refletido na tese citada. Em suma, a análise das teses debatidas nos congressos corporativos permite destacar diferentes tendências que conviviam no movimento sindical, mas também uma evolução no sentido de se assumir cada vez mais como necessária a inclusão das mulheres nas associações operárias e a sua mobilização como a estratégia mais eficaz para mitigar os efeitos concorrenciais do trabalho feminino. Esta estratégia foi veiculada pela organização central e imposta como orientação oficial a todas as federações associadas na CGT, não sem resistência, sobretudo dos setores mais qualificados e tradicionais. Resta sublinhar que a consagração destas orientações estar plasmada nas teses não significa que tenham sido cumpridas, na prática, ao nível da base. Como já foi referido, não faltam evidências do contrário.

Tabela 1. Teses sindicais relativas ao trabalho feminino entre 1891 e 1931

Tabela 1. Teses sindicais relativas ao trabalho feminino entre 1891 e 1931

4. Conclusão

43Os estudos sobre a mulher trabalhadora têm destacado a resistência ao trabalho feminino e a tendência de o movimento operário concorrer para a perpetuação das representações da mulher dominantes na sociedade patriarcal, afastando-as das organizações sindicais (Perrot 1988; Canning 1992; Scott 1993), mas também o impacto da feminização do trabalho fabril nos debates sobre o papel social da mulher (Nash 1981; Blewett 1990, 2019; Aguado 1998; Tocino 2002; Gómez Martínez e Monge Juárez 2022). A presente análise, incidindo sobre a imprensa e as teses sindicais, identificou diferentes práticas e discursos da e sobre a mulher trabalhadora, que, como além-fronteiras, se relacionam com conjunturas históricas específicas. A resistência artesã à incorporação das mulheres variou de setor para setor durante o lento e incipiente processo de industrialização, coexistindo com manifestações de efetiva solidariedade entre sexos, principalmente durante os movimentos grevistas. Como também ilustrou Canning (1992) para o caso alemão, destacaram-se as divergências entre as orientações políticas centrais, no sentido da integração das mulheres na organização operária e a sua persistente exclusão à escala corporativa. Em Portugal, é igualmente inequívoca a relação entre as crises de emprego masculino, como de meados da década de 1920, e os discursos que empurravam as mulheres para a domesticidade ou que as apresentavam como aliadas pouco fiáveis (Canning 1992).

44Não obstante estas resistências, as fontes analisadas revelam paralelos com outros contextos (Gómez Martínez e Monge Juárez 2022) onde a concentração industrial é acompanhada pela crescente visibilidade da mulher trabalhadora e da “questão feminina”, a emergência de mulheres em lugares de liderança sindical, a fundação de organizações autónomas e a imposição de reivindicações próprias, nomeadamente a proteção do trabalho feminino e infantil. Esta visibilidade e ativismo asseguraram a disseminação em Portugal do designado “feminismo social” (Nash 1981) e a inauguração de debates sobre temas inéditos (Aguado 1998), como o valor do trabalho reprodutivo, colocando certas tendências do movimento operário na vanguarda da luta pela emancipação feminina (Navarro López 2016). Como foi referido, são escassos os estudos sobre a temática em Portugal, esperando-se que esta investigação concorra para a sua multiplicação. É necessário superar simplificações e compreender o papel da mulher e da feminização do trabalho no processo de industrialização e de emergência do movimento operário em Portugal. Impõe-se ainda superar alguns limites ao conhecimento no que se refere à relação entre a gestão da aprendizagem e das qualificações e a subalternização do trabalho feminino, num período de transição entre a produção artesanal e o industrialismo (Downs 2005). No futuro, será também importante comparar as representações do papel da mulher em meio operário e popular com as das elites letradas e, sobretudo, do emergente movimento feminista do início do século XX.

Topo da página

Bibliografia

Aguado, Ana M. (1998). “Treball, gènere i identitat femenina a la societat valenciana contemporània”. Cuadernos de Geografía, 64, pp. 325-337.

Alves, Paulo Marques (2017). “Da exclusão à sub-representação – dois séculos de relações problemáticas entre sindicatos e mulheres”. Cive Morum (Center of Studies and Civic Intervention), 3, pp. 158-177.

Alves, Paulo Marques; Gama, Olinda (2013). “A militância no feminino nos primórdios do sindicalismo em Portugal”. UBIMUSEUM – Revista Online do Museu de Lanifícios da Universidade da Beira Interior, 2, pp. 183-195.

Baptista, Virgínia (1999). As mulheres no mercado de trabalho em Portugal: representações e quotidianos. Lisboa: Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres.

Baptista, Virgínia (2014). “As mulheres e o mutualismo – do final da monarquia ao Estado Novo”, in E. Ferreira (ed), Percursos feministas: desafiar os tempos. Lisboa: UMAR, pp. 198-208.

Blewett, Mary H. (1990). Men, Women, and Work: Class, Gender, and Protest in the New England Shoe Industry, 1780-1910. Illinois: University of Illinois Press.

Blewett, Mary H. (2019). We Will Rise in Our Might: Workingwomen’s Voices from Nineteenth-century New England. Cornell: University Press.

Canning, Kathleen (1992). “Gender and the Politics of Class Formation: Rethinking German Labor History”. The American Historical Review, 97 (3), pp. 736-768.

Chagas, Pinheiro, et al. (1883). Primeiro Congresso das Associações Portuguesas. Lisboa: Typ. Universal.

Downs, Laura L. (2005). Manufacturing Inequality: Gender Division in the French and British Metalworking Industries, 1914-1939. Ithaca: Cornell University Press.

Durão, Susana (2019). Oficinas e tipógrafos: Cultura e quotidiano de trabalho. 2.ª ed. Lisboa: Etnográfica Press.

Fonseca, Carlos (1979). História do movimento operário e das ideias socialistas: Os primeiros congressos operários, vol. II. Lisboa: Publicações Europa-América.

Gama, Olinda (2014). Anarquismo e relações de género – o olhar anarquista no início do século XX. Lisboa: ISCTE (dissertação de mestrado).

Gómez Martínez, María Rosa; Monge Juárez, Mariano (2022). “El sexo social, orígenes del movimiento obrero y feminista en una ciudad del Mediterráneo occidental: Elche, 1884-1903”. Arenal. Revista de Historia de las Mujeres, 29 (1), pp. 75-96.

Goodolphim, José Costa (1876). A Associação. Lisboa: Typ. de T. Q. Antunes.

Guinote, Paulo (2013). “Operárias”, in J. Esteves, Z. O. de Castro (dir), Feminae: Dicionário Contemporâneo. Lisboa: Comissão para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, pp. 789-794.

Nash, Mary (1981). Mujer y movimiento obrero en España. Barcelona: Fontamara.

Navarro López, Jorge (2016). “El lugar de la mujer en el Partido Obrero Socialista: Chile, 1912-1922”. Izquierdas, 28, pp. 162-190.

Pereira, Joana D. (2014). “O ciclo de agitação social global de 1917-1920”. Ler História, 66, pp. 44-55.

Pereira, Joana D. (2020). Associativismo livre: uma história de fraternidade e progresso. Lisboa: Almedina.

Pereira, Miriam Halpern (2012). Do estado liberal ao estado-providência: Um século em Portugal. São Paulo e Lisboa: EDUSC e CEHC-IUL.

Perrot, Michelle (1988). Os excluídos da História: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Scott, Joan W. (1993). “A mulher trabalhadora”, in M. Perrot, G. Duby (eds), História das mulheres, vol. 4. Porto: Editora Afrontamento, pp. 443-475.

Seixas, Maria Augusta (s.d.). As operárias de Alcântara e as suas lutas antes e durante a I República. Lisboa: UMAR.

Sousa, Manuel J. (1971). O sindicalismo em Portugal. Porto: Afrontamento.

Tilly, Charles (1978). From Mobilization to Revolution. Boston: Wesley Publishing Co.

Tocino, Gloria E. (2002). “Las mujeres en el anarquismo español (1869-1939)”. Ayer, 45, pp. 39-72.

Wrigley, Chris (1993). Challenges of Labour: Central and Western Europe 1917-1920. New York: Routledge.

Topo da página

Notas

1 Ministério das Obras Públicas – Estatística industrial. Ano de 1917, Boletim do Trabalho Industrial, nº 116, 1926.

2 Jornal do Centro Promotor dos Melhoramentos das Classes Laboriosas, 15 de outubro de 1853.

3Às operárias de Portugal”, O Pensamento Social, 8 de dezembro de 1872, p. 2.

4 “Arrentela”, O Sindicalista, 7 de janeiro de 1912, p. 3.

5 “Questão vital: carestia de vida”, O Sindicalista, 20 de abril de 1913, p. 4.

6 “Costureiras e ajuntadeiras”, O Sindicalista, 27 de novembro de 1910, p. 2.

7 Navi, “A questão feminina: uma reclamação justa”, A Voz do Operário, 13 de julho de 1911, p. 1.

8 “Um ataque ao feminismo”, A Voz do Operário, 16 de fevereiro de 1913, p. 2.

9 “Tomar: Carta de uma Operária!”, O Primeiro de Maio, p. 3.

10 “Oeiras: carta de uma operária”, Primeiro de Maio, 6 de agosto de 1905, p. 3.

11 “Fraternidade Operária em Almada”, O Pensamento Social, 6 de outubro de 1872.

12 “Movimento de resistência da classe de manipuladores de tabaco”, O Pensamento Social, 19 de janeiro de 1873, p. 1.

13 O Pensamento Social, 15 de fevereiro de 1872, p. 2.

14 “Indústria corticeira em Vendas Novas”, A Greve, 25 de março de 1908, p. 2.

15 “Greve de Setúbal”, O Sindicalista, 12 de março de 1911, p. 2.

16O Sindicalista em Setúbal”, O Sindicalista, 16 de abril de 1911, p. 2.

17 “Ação sindical”, O Germinal, 22 de junho de 1912, p. 3.

18 O Trabalho, 18 de junho de 1916, p. 3.

19 O Trabalho, 7 de julho de 1916, p. 3.

20 “Em Almada: a greve das fábricas de conservas. Prisão de vários camaradas – a atitude dos industriais”, A Batalha, 5 de setembro de 1919, p. 2.

21 “Em Aldeia Galega: greve de chacineiras”, A Batalha, 18 de janeiro de 1921, p. 2.

22 “Em Aldeia Galega: operárias chacineiras”, A Batalha, 30 de janeiro de 1920, p. 2.

23 “O Congresso Corticeiro prossegue os seus trabalhos”, A Batalha, 5 de novembro de 1924, p. 1.

24 Navi, “A questão feminina: horários de trabalho – exploração da mulher”, A Voz do Operário, 6 de agosto de 1911, p. 1.

25 Ecco dos Operários, 6 de setembro de 1850.

26Às operárias de Portugal”, O Pensamento Social, 8 de dezembro de 1872, p. 2.

27 O Pensamento Social, 5 de janeiro de 1873.

28 O Pensamento Social, maio de 1872.

29 “A Mulher na Sociedade Atual”, O Pensamento Social, maio a julho de 1872.

30 O Pensamento Social, 26 de janeiro de 1873.

31 “O programa socialista II”, O Protesto: periódico socialista, 17 de agosto de 1884.

32 “O problema da mulher”, O Protesto: periódico socialista, 9 de outubro de 1887.

33 “Socialismo Feminino”, O Protesto: periódico socialista, 30 de julho de 1893.

34 “A Mulher e a Família”, O Despertar, 21 de fevereiro e 13 de março de 1904.

35 “Carta de Vendas Novas”, A Vida, 28 de junho de 1907, p. 2. Seixas (s.d., 28) descreve um episódio com este mesmo ativista, citando o jornal O Socialista, em que aquele perturba uma conferência de Adelaide Costa, na Associação Têxtil, em 1912. É necessária mais investigação sobre as posições de Constantino, mas é possível que o incidente se tenha devido à acesa competição entre anarquistas e socialistas pela hegemonia do movimento sindical neste período.

36 Espólio Manuel Joaquim de Sousa. Arquivo Histórico Social da Biblioteca Nacional, Núcleo de Militantes, caixa 42.

37 “As greves dos corticeiros”, O Corticeiro, 14 de janeiro de 1911, p. 1.

38 “A parada operária de 27”, A Greve, 2 de junho de 1918, p. 1.

39 “Greve geral no Barreiro”, A Batalha, 12 de junho de 1919, p. 1.

40 “Delegados ao Congresso”, A Federação, 28 de março de 1897, p. 2.

41 “Congresso Nacional Operário”, A Voz do Operário, maio a setembro de 1910.

42 “A defesa das Mulheres e menores no trabalho”, A Batalha, 11 de agosto de 1925, p. 2.

43 “O V Congresso dos Trabalhadores Rurais Portugueses”, A Batalha, 19 de dezembro de 1922, p. 1.

44 “III tese: O trabalho das mulheres e menores dentro das oficinas”, O Corticeiro, 15 de junho de 1920, p. 2.

45 “O segundo Congresso Marítimo”, A Batalha, 7 de setembro de 1922, p. 1.

46 “As mulheres e os menores na indústria gráfica”, A Batalha, 4 de novembro de 1924, p. 2.

47 “O trabalho das mulheres e menores nos armazéns e oficinas”, O Tanoeiro, 1 de agosto de 1925, p. 3.

48 “O II Congresso da Indústria de Tanoaria”, A Batalha, 11 de agosto de 1925, p. 1.

Topo da página

Índice das ilustrações

Título Tabela 1. Teses sindicais relativas ao trabalho feminino entre 1891 e 1931
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/docannexe/image/13997/img-1.jpg
Ficheiros image/jpeg, 524k
Topo da página

Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Joana Dias Pereira, «Representações e orientações do movimento sindical face ao trabalho e ativismo feminino em Portugal, 1850-1926»Ler História, 85 | 2024, 217-241.

Referência eletrónica

Joana Dias Pereira, «Representações e orientações do movimento sindical face ao trabalho e ativismo feminino em Portugal, 1850-1926»Ler História [Online], 85 | 2024, posto online no dia 27 novembro 2024, consultado no dia 11 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/13997; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/12uut

Topo da página

Autor

Joana Dias Pereira

Instituto de História Contemporânea, NOVA FCSH, Portugal

joanapereira@fsch.unl.pt

Artigos do mesmo autor

Topo da página

Direitos de autor

CC-BY-NC-4.0

Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.

Topo da página
Pesquisar OpenEdition Search

Você sera redirecionado para OpenEdition Search