1Em 1987, Joaquim da Costa Leite observou que a legislação portuguesa de emigração elaborada pelos governos da monarquia constitucional era ainda considerada como tendencialmente restritiva. Segundo o autor, a interpretação, sustentada por Miriam Halpern Pereira na obra A política portuguesa de emigração (1850-1930), de 1981 (reeditada em 2002), seria tributária das críticas de contemporâneos contrários às medidas governamentais. Para Pereira (2002), a vontade de conter a emigração era confirmada pela exigência de passaporte para deslocamentos externos, o que dissuadia os interessados em emigrar. Contrapondo-se a essa interpretação, Leite (1987, 466) defendeu que as condições para a obtenção do passaporte seriam “fáceis de entender segundo o espírito da época” e não contrariavam os ideais liberais que facultavam ao indivíduo escolher onde residir e trabalhar.
2Os diferentes ângulos pelos quais o passaporte foi examinado por Pereira (2002) e Leite (1987) conduziram a distintas interpretações sobre a emigração de indivíduos desprovidos do documento ou com passaportes falsos. Para Pereira (2002), a clandestinidade observada em Oitocentos era a estratégia encontrada por aqueles impedidos pelas leis do reino de deixar o país, sendo um indício do caráter restritivo da legislação. Já para Leite (1987), a emigração clandestina resultava da pressa dos indivíduos em deixar o país em momentos de crise e da atuação de engajadores e capitães de navios que iludiam as autoridades. Se, para Leite, o estado português oitocentista não dispunha de recursos suficientes para barrar os embarques clandestinos; para Pereira, a clandestinidade decorria da tolerância dos agentes estatais. Para a historiadora, estes últimos não eram rigorosos na execução das leis proibitivas (aprovadas para agradar a burguesia agrária contrária à emigração) devido às vantagens sociais e financeiras do fluxo emigratório.
3No cerne do debate estão a exigência do passaporte e a capacidade estatal para endossá-la. Herdada do Antigo Regime, a obrigatoriedade de passaporte para deslocamentos internos e externos foi reforçada no século XIX, tanto em Portugal, pelos governos da monarquia constitucional, como em outros países europeus. Apesar das críticas dos defensores da liberdade de circulação, o documento foi ressignificado e sua importância atualizada. Em meados do século, o passaporte tornou-se obsoleto devido à facilidade de falsificação, à precariedade da descrição de seus portadores e à disseminação das linhas férreas. Em Portugal, a necessidade do documento foi reiteradas vezes questionada, até que em 1863 a exigência do documento para deslocamentos internos foi abolida. Os passaportes de exterior existiram até 1907, quando deixaram de ser obrigatórios aos viajantes, mas permaneceram indispensáveis aos emigrantes.
4Este artigo recupera os debates ocorridos em Portugal acerca do documento com dois objetivos: (i) examinar se os passaportes para deslocamentos internos e externos contrariavam princípios liberais, como a igualdade perante a lei, a defesa da propriedade e da liberdade individual e a livre circulação de pessoas e mercadorias; (ii) analisar os fatores que inviabilizaram a completa abolição dos passaportes de exterior pelos governos da monarquia constitucional. Para tanto, será mobilizado um corpus documental composto por projetos de lei, estudos elaborados pelo Ministério do Reino, representações recebidas por este superministério responsável pelo controle das populações e debates parlamentares que barraram ou viabilizaram alterações legais na matéria. Essas fontes permitem observar o processo de elaboração de leis relativas aos deslocamentos internos e externos de portugueses, conhecer os fatores que impulsionaram ou travaram modificações legais e acessar aspectos da sociedade que os agentes estatais almejavam transformar.
5Evidentemente, projetos de leis ou debates parlamentares não espelham a totalidade da realidade oitocentista, mas permitem entrever o entendimento que agentes políticos tinham da realidade que visavam transformar (ou preservar) pela prática legislativa, além de evidenciar os embates em torno de princípios liberais por vezes contraditórios, como a liberdade de circulação e a igualdade perante a lei. Essas fontes tampouco nos aproximam do dia a dia da aplicação dos dispositivos legais (análise que ultrapassa o alcance deste trabalho), mas por elas pode-se vislumbrar os limites do poder infraestrutural do estado português oitocentista. Os debates parlamentares e demais textos analisados revelam o conflito entre a “imaginação utópica” de um estado liberal alimentada pela elite política e “sua concretização prática” (Almeida, Branco e Sousa 2015, 461). Eles evidenciam que, nas disputas entre liberais em Portugal, predominou um liberalismo adversário “de um governo ativo no que respeita às liberdades políticas”, mas defensor de ações garantidoras da “ordem social e civil” (Hespanha 2007, 19). Pelo exame do corpus documental aqui mobilizado será perceptível, ainda, que o projeto de uma arquitetura estatal centralizadora encontrou resistências e dificuldades para se concretizar.
6Na primeira parte do texto, a instituição dos passaportes em Portugal no Antigo Regime, a atualização da exigência do documento após a revolução liberal de 1820 e as propostas e entraves à extinção dos passaportes de interior são analisados à luz das reflexões desenvolvidas por Vincent Denis (2006), Gérard Noiriel (2001, 2006) e John Torpey (2000). Esses autores examinaram as práticas de identificação dos indivíduos utilizadas pelos dirigentes dos estados-nação que se consolidavam em um momento de crescente mobilidade populacional. Para os pesquisadores, o passaporte permitiu delimitar a abrangência do poder infraestrutural dos estados, alavancado com a revolução industrial (Mann 1984, 206), e localizar os membros da comunidade nacional. Ao monopolizarem os meios legítimos de circulação (Torpey 2000), os modernos estados nacionais vincularam os indivíduos à entidade abstrata da nação.
7Na segunda parte, serão observados os debates acerca dos passaportes de exterior e os fatores pelos quais não foram extintos aquando da abolição dos documentos para trânsito interno. A manutenção da exigência dos passaportes para quem saísse do reino prende-se à emigração portuguesa e à compreensão de que era necessário manter algum controle estatal sobre o fluxo emigratório, não para reprimi-lo, mas para garantir a igual distribuição do serviço militar e assegurar aos emigrantes os direitos civis dos cidadãos portugueses. Seguindo a linha interpretativa aberta por Joaquim da Costa Leite (1987), o texto evidenciará que a imposição do documento não contrariava o liberalismo moderado da carta de 1826, vitorioso em meados do século, mas estava de acordo com a distinção dos cidadãos entre ativos e passivos e com o entendimento de que esses últimos precisavam da tutela estatal (Silva 2009, 151). Antes de prosseguir, importa esclarecer que não serão aqui aprofundados os debates sobre a exigência de passaporte para as colônias portuguesas, abolida em 1907, o que demandaria uma reflexão sobre o império português que ultrapassa os limites deste artigo.
8Inventado no Antigo Regime, o passaporte revestiu-se de novos significados durante a formação dos modernos estados-nacionais. Anterior a outros documentos de identidade, o documento teve sua utilidade renovada quando os indivíduos deixaram de estar ligados entre si pela obediência a um mesmo rei e passaram a pertencer à entidade abstrata da nação (Noiriel 2001, 493). Perante o esfacelamento da pertença a ordens e estamentos e a aceleração dos deslocamentos, reafirmar a obrigatoriedade do documento e assegurar o monopólio estatal dos meios legítimos de circulação foi etapa importante perseguida pelos agentes da administração pública para distinguir os membros de uma mesma nação e submetê-los aos mesmos dispositivos legais (Torpey 2000). Assim, a manutenção dos passaportes por estados constitucionais não deve ser entendida como um anacronismo, mas como parte do fortalecimento do poder infraestrutural dos estados no século XIX.
9Em Portugal, o passaporte foi instituído durante a Guerra de Restauração (1640-1668), pelo alvará de 6 de setembro de 1645 (Alves 1994). A providência ia ao encontro das políticas mercantilistas do século XVII, que entendiam a população como parte da riqueza do país, razão pela qual os agentes da administração procuravam registrar os súditos, controlar sua mobilidade e restringir a emigração dos artesãos mais qualificados (Denis 2006). Com a descoberta do ouro em Minas Gerais, o passaporte tornou-se, em 1709, indispensável a quem se dirigisse à América portuguesa e, em 1720, passou a ser concedido apenas a negociantes que se comprometessem a regressar ao reino. Foi apenas em meados do século XVIII que a racionalização administrativa conduziu ao esforço dos estados para identificar súditos e controlar os deslocamentos populacionais (Denis 2006, 41).
- 1 As citações de obras estrangeiras foram traduzidas livremente.
10No caso português, os mecanismos de identificação dos indivíduos e de controle dos deslocamentos foram aprimorados pela administração pombalina (Pereira 2015, 357). A lei de 25 de junho de 1760 encarregou os ministros dos bairros de registrar moradores. Em seguida, foi instituída a obrigatoriedade do passaporte a quem se ausentasse de Lisboa ou de outras comarcas. A legislação pombalina inseriu-se nos “projetos grandiosos” que floresceram no século XVIII para “registrar o conjunto da população” e obrigar “todo viajante a se deslocar munido de um documento elaborado a partir desses registros” (Denis 2006, 42).1 Com isso, os estados procuravam garantir os necessários recursos humanos (Torpey 2000, 7) e assegurar que os deslocamentos acontecessem de forma segura e disciplinada (Noiriel 2006, 34). Em um momento de crescente mobilidade populacional, o passaporte permitia identificar forasteiros, funcionando como um atestado de boa conduta conferido pela autoridade do local de origem do transeunte.
- 2 Edital de 19-02-1811. Coleção Geral da Legislação Portuguesa, 1811.
11Em meio às convulsões políticas do fim do XVIII e início do XIX, os passaportes assumiram novas funções. Abolidos em 1791 pelos revolucionários franceses, que os consideraram “símbolo do arbítrio e do autoritarismo do Antigo Regime” (Noiriel 2001, 450), os passaportes foram restituídos. Em 1792, o documento deveria controlar a nobreza, suspeita de deflagrar a contrarrevolução. Além disso, com o movimento revolucionário, os indivíduos deixaram de pertencer a um estamento para participarem de uma comunidade nacional que igualava os cidadãos perante a lei – e os distinguia daqueles pertencentes a outro estado-nação. O passaporte garantia, assim, a ligação dos indivíduos à nação concretizando a pertença dos cidadãos à comunidade nacional. Em Portugal, durante a Guerra Peninsular (1807-1813), o responsável pela Intendência Geral de Polícia determinou que pessoa alguma deixasse o reino sem passaporte. O documento indicava “os sinais individuais do portador, seu nome, filiação, naturalidade, estado, ocupação, lugar da morada e subscrição do portador, quando saiba ler e escrever”.2 Era obrigatório o averbamento do passaporte por quem deixasse as povoações ocupadas pelo exército aliado e por quem as adentrasse, vindo das terras ocupadas pelos inimigos.
12Após a revolução de 1820, a relevância do passaporte foi renovada pelo regulamento de 25 de maio de 1825. No âmbito da organização do novo estado liberal, os agentes estatais instauraram a Secretaria Geral dos Passaportes para padronizar a concessão do documento, obviando as falsificações, e proteger a revolução e o liberalismo. O regulamento de 1825 obrigava todo indivíduo que se afastasse cinco léguas do local de residência a portar o passaporte. A relação dos passaportes concedidos era repassada à secretaria, que centralizava o conhecimento sobre os deslocamentos. Reforçavam-se, assim, os laços que uniam os cidadãos ao estado-nação que se erigia sobre as ruínas das antigas pertenças estamentais. A renovação da importância do passaporte durante as ameaças de D. Miguel ao liberalismo evidencia a validade da observação feita por António Hespanha (2004), para quem o liberalismo foi em Portugal o mesmo que em qualquer lugar: um projeto que, para se realizar, precisava de romper com alguns de seus pressupostos. Era preciso fortalecer o aparelho estatal para que, um dia, fosse possível prescindir dele.
- 3 Diário da Câmara dos Deputados (doravante, DCP), nº 24, p. 319 (17-02-1835).
- 4 DCP, nº 36, p. 482 (05-03-1835).
- 5 Parecer relativo ao projeto de lei nº 100-A, 24-03-1836. Arquivo Histórico Parlamentar (doravante, (...)
13Em 1835, a aparente estabilidade política pós-guerra civil (1832-1834) possibilitou o questionamento dos passaportes para deslocamentos internos. O deputado Leonel Tavares defendeu extinguir o documento, pois os “ladrões andam por toda a parte sem passaporte”, enquanto “os homens de bem e cidadãos pacíficos é que se vêem forçados a este incómodo e despesa”.3 Pouco depois, Tavares e Joaquim Velozo da Cruz apresentaram um projeto de lei para abolir os passaportes de interior. Admitido,4 o projeto foi encaminhado à Comissão de Administração Pública,5 cujo parecer não foi discutido. Em 1837, quando uma guerrilha miguelista se reunia na serra do Algarve, a exigência do passaporte foi renovada pela portaria de 27 de setembro de 1837. O diploma recomendava escrúpulo na concessão dos passaportes, na legitimação dos viajantes e na abonação “de seu respectivo comportamento civil e político”, além do cumprimento de todas as precauções para impedir o trânsito de suspeitos. A vigilância da circulação dos indivíduos era feita, ainda, em nome da defesa do regime liberal.
- 6 Diário da Câmara dos Pares do Reino (doravante, DCPR), nº 85S1, p. 1113 (02-07-1849).
- 7 O debate e as citações que se seguem encontram-se no DCPR, nº 85S1, p. 114.
14As convulsões sociopolíticas que marcaram a década de 1840, como a ascensão de Costa Cabral, a revolta da Maria da Fonte (1846) e a Patuleia (1847), não favoreceram debates acerca da abolição dos passaportes. Foi apenas em 1849 que o assunto voltou ao parlamento, quando o par do reino, conde de Taipa, foi encontrado sem passaporte numa hospedaria em Setúbal durante uma visita policial. O caso foi analisado pela Comissão de Legislação, que propôs que o assunto não tivesse andamento.6 O tom corporativo marcou a discussão na Câmara dos Pares e a inexistência de crime foi sustentada com o argumento de que o conde era conhecido em Setúbal.7 Alguns pares, contudo, não se limitaram a defender o colega e interrogaram a eficácia dos passaportes de interior. Duarte Leitão sublinhou que as leis dos passaportes foram elaboradas em circunstâncias extraordinárias e questionou sua necessidade cotidiana. Para o conde do Lavradio, o documento era inútil, pois “nunca o criminoso deixou de ter passaporte para transitar, e quando não o tem vai à estrada, mata um passageiro que leva passaporte e fica habilitado para transitar livremente”. O par do reino identificou a principal falha do passaporte: a imprecisão da descrição física dos indivíduos possibilitava o uso do documento por impostores. O ministro da Justiça defendeu o passaporte como uma medida policial necessária, mas reconheceu a possibilidade de se flexibilizar a legislação. Coube a Sá da Bandeira defender a liberdade de circulação. A seu ver, o documento causava “gravíssimos inconvenientes para o comércio e para a agricultura” por dificultar a circulação de pessoas e de mercadorias. Para os corrigir, redigiu o projeto nº 135, pelo qual ninguém seria obrigado a tirar passaporte para circular dentro do reino em tempos de paz – projeto que não foi discutido.
- 8 DCPR, nº 12S1, p. 215 (22-02-1855).
- 9 O debate e as citações que se seguem encontram-se no DCPR, nº 39S1, pp. 585-587 (02-05-1855) e nº 4 (...)
15Com a Regeneração (1851) consagrou-se “em definitivo esse novo centrismo consensualizado em torno da ideia de progresso” (Justino 2016, 60) e inaugurou-se uma estabilidade política que proporcionou “uma certa modernização do aparelho administrativo do Estado liberal” (Almeida 2007, 53). Nesse contexto, os passaportes retornaram à pauta. Em 1855, Sá da Bandeira apresentou um novo projeto para abolir o documento, apoiando “os cidadãos que precisam transitar de um para outro lugar”.8 O projeto entrou em discussão a 2 de maio de 1855, mas encontrou opositores, para os quais os passaportes eram fundamentais para identificar malfeitores que atentassem contra a propriedade.9 Foi este o argumento utilizado pelo marquês de Ficalho, que sugeriu adiar o debate para quando as forças policiais estivessem mais bem organizadas. A seu ver, por não existir uma polícia rural, “os ladrões saem dos caminhos e as propriedades não são respeitadas”. A sugestão foi apoiada pelo conde de Sobral, que alegou que o passaporte permitia às autoridades identificar suspeitos. O procedimento foi esclarecido pelo Sr. Ferrão, segundo o qual as pessoas suspeitas desprovidas de passaporte eram remetidas ao Ministério Público “para se averiguar se porventura são presos fugidos das cadeias, se são réus condenados a degredo [...], se são indiciados em crimes, se estão pronunciados por esses, se são desertores, etc.”. Para Ferrão, em nome “do interesse da sociedade” e da “segurança geral”, todos deveriam limitar sua liberdade.
16Defenderam o projeto os pares visconde de Fonte da Arcada, barão de Porto de Mós e visconde de Balsemão. O primeiro alegou que a frequente falta de impressos para passaportes nas administrações dos concelhos dificultava o deslocamento de comerciantes. O barão de Porto de Mós observou os inconvenientes da exigência a quem não podia pagar pelo documento. O visconde de Balsemão lembrou que descrições como “estatura ordinária, cor natural, cabelos castanhos ou pretos, olhos pardos” não impediam a evasão de criminosos. O debate dava-se, portanto, em torno de dois princípios liberais: a liberdade de circulação de pessoas e de mercadorias e a defesa da propriedade, sendo o primeiro defendido por parlamentares mais alinhados ao Partido Histórico. Tentando contemporizar, o ministro do Reino defendeu a livre circulação, mas considerou que “a segurança e a estabilidade pública” se impunham sobre os inconvenientes do documento. Os pares do reino concordaram em adiar o debate até que o governo adotasse meios de segurança que dispensassem o passaporte.
- 10 Projeto de lei nº 9-RR (22-11-1858). AHP, seção VI, caixa 159, maço 14-C, capa 2.
- 11 Rodrigo de Menezes solicitou quatro vezes que a comissão apresentasse um parecer ao seu projeto. DC (...)
- 12 Proposta de lei nº 47 (22-05-1860). AHP, seção VI, caixa 159, maço 14-C, capa 2.
17Em 1858, o deputado Rodrigo de Menezes propôs abolir os passaportes de interior,10 alegando a incompatibilidade entre o documento e a velocidade que se tentava imprimir nas comunicações internas com investimentos em estradas e caminhos de ferro.11 Na segunda metade da década de 1850, as ferrovias conheceram uma primeira fase de expansão e crescimento em Portugal, objetivo considerado à época como “um dos grandes eixos da política de modernização económica do país” (Silveira et al. 2011, 14). Os progressos materiais, associados às linhas férreas, eram considerados por Fontes Pereira de Melo como necessários para superar o atraso português (Justino 2016, 13). Certamente por isso, em 1860, ocupando a pasta do Reino, Fontes Pereira de Melo apresentou um projeto de lei em cujo preâmbulo lê-se que o passaporte de interior consistia num “embaraço às facilidades de transporte”.12 O ministro demonstrou a ineficácia do documento, afirmando que entre 1857 e 1859 apenas 265 indivíduos foram detidos sem passaporte em Lisboa, dos quais nem um criminoso. Contudo, os passaportes geravam emolumentos aos funcionários da administração pública, que a seu ver mereciam indenização, pois os emolumentos compensavam a baixa remuneração das funções administrativas.
- 13 DCD, nº 12, p. 154 (19-01-1861).
- 14 DCD, nº 12, p. 154 (19-01-1861).
- 15 DCD, nº 115, pp. 1952-1953 (24-07-1861).
18Este último aspecto gerou embaraços à Comissão de Administração Pública, que não sabia como indenizar as autoridades locais.13 Sem encontrar solução para o imbróglio e convencido da validade policial do documento, o marquês de Loulé, sucessor de Fontes na pasta do Reino, tampouco levou o assunto adiante. Em janeiro de 1861, Rodrigo de Menezes perguntou ao marquês se o governo tencionava extinguir os passaportes. O ministro respondeu que proporia a abolição do documento quando se fortalecessem as forças policiais.14 Em julho do mesmo ano, o deputado Chamiço cobrou a reforma das guardas municipais de Lisboa e do Porto, que possibilitaria abolir os passaportes. Novamente, o ministro prometeu que assim que os trabalhos sobre a matéria estivessem prontos, os apresentaria à câmara.15 Com efeito, o desiderato fontista de modernizar o país, interligando as diversas regiões pelas vias férreas e facilitando os deslocamentos, esbarrava nas limitações dos “meios materiais e humanos de administração” (Almeida 2007, 56) que impediam a remuneração adequada dos funcionários e a organização de forças de segurança capazes de abranger todo o território nacional e penetrar a sociedade portuguesa.
- 16 Projeto de lei nº 34-T. Diário de Lisboa (doravante DL), nº 92, p. 10 (25-04-1862).
- 17 O debate ocorrido na Câmara dos Deputados em 09-06-1862 encontra-se no DL, nº 132, pp. 16-17 (12-06 (...)
19Em abril de 1862, o ministro do Reino, Anselmo José Braamcamp, apresentou o projeto nº 34-T, para extinguir os passaportes para deslocamentos internos.16 A proposta não previa indenizações às autoridades locais, pois, para o ministro, interesses individuais não se sobrepunham a medidas de utilidade pública. No preâmbulo, Braamcamp defendeu que a celeridade da viação tornava retrógrada a manutenção dos passaportes e afirmou serem desnecessárias medidas suplementares porque as estatísticas demonstravam que os passaportes não prestavam “auxílio à segurança pública e à boa polícia”. A experiência comprovava que os suspeitos iludiam essa “obsoleta ordenança policial”, que precisava ser revista. Iniciado o debate na Câmara dos Deputados, Pinto de Araújo defendeu fortalecer as polícias antes da abolição dos passaportes.17 O argumento foi rebatido por Ayres de Gouveia, que perguntou se os colegas levavam o documento para se deslocarem de suas terras ao parlamento e arrematou: “Se nós mesmos, os legisladores, não cumprimos a lei por que motivo ter e venerar uma lei que não se cumpre?”. Braamcamp argumentou que a medida apenas sancionava um fato: os passaportes estavam desacreditados e se contrapunham aos investimentos nos transportes. Quanto à necessidade de organizar as polícias, o ministro prometeu estudar a ampliação das forças policiais, o que garantiu a aprovação do projeto na Câmara dos Deputados.
- 18 O debate ocorrido na Câmara dos Pares do Reino em 30-06-1862 encontra-se no DL, nº 162, pp. 7-9 (22 (...)
- 19 Sessão de 12-01-1863. DL, nº 13, p. 4 (17-01-1863).
- 20 DL, nº 13, p. 4 (17-01-1863).
20Em 30 de junho de 1862, o projeto entrou em discussão na Câmara dos Pares do Reino, quando opositores lograram adiar o debate.18 Em 1863, a Comissão da Administração Pública apresentou um parecer favorável à proposta por considerar conveniente seguir o “exemplo dos países de civilização mais adiantada” que extinguiam o documento.19 Em ambas as legislaturas, os oradores reconheceram que os passaportes restringiam a circulação e contrariavam os investimentos em ferrovias. Porém, para alguns, este era o preço do combate a contraventores. A defesa mais apaixonada do projeto coube ao Sr. Ferrão (que mudou de opinião entre 1855 e 1862), para quem o documento, sendo uma “licença para andar” e não apenas um certificado de identidade pessoal, contrariava o artigo 145º da Carta de 1826.20 Ferrão lembrou que o artigo garantia a liberdade para realizar qualquer gênero de trabalho, indústria ou comércio, mas era atrapalhado pela obrigatoriedade dos passaportes, pois “se um homem entender que deve partir imediatamente” não o pode fazer. Na Câmara dos Pares, o ex-governador civil de Lisboa, Moraes de Carvalho, responsável por um estudo sobre passaportes, demonstrou as poucas apreensões de criminosos devido ao documento. Perante essa explanação, e em face do comprometimento de Braamcamp com a ampliação das forças policiais, o projeto foi aprovado. Finalmente, a lei de 31 de janeiro de 1863 aboliu os passaportes de interior.
- 21 DL, nº 13, p. 4 (17-01-1863).
21Em janeiro de 1863, outro tema foi levantado: a emigração e os passaportes de exterior. Sebastião José de Carvalho afirmou que o fim dos passaportes de interior facilitaria o transporte para as ilhas adjacentes, de onde os cidadãos embarcariam clandestinamente para as Américas. O argumento foi rebatido pelo Sr. Ferrão, para quem a exigência do documento para emigrar era injusta, por se tratar de “uma repressão direta ou indireta da emigração” que contrariava o direito consagrado na Carta, e inconveniente, porque “os factos estão provando que a província que em Portugal maior contingente tem dado à emigração tem aumentado em população e riqueza”.21 Recuperava-se uma antiga discussão: a (in)constitucionalidade dos obstáculos à emigração. Em resposta, Braamcamp, simpático à extinção de passaportes de exterior, afirmou que o documento não visava obstruir a emigração, mas assegurar os contingentes militares e proteger os emigrantes contra abusos sofridos no país de destino.
22Os argumentos de Braamcamp para legitimar os passaportes de exterior retomavam discussões anteriores sobre a importância do documento para a distribuição igualitária do serviço militar e sobre os perigos de uma emigração conhecida desde a década de 1830 como uma nova forma de “escravatura branca”. Finda a guerra civil, a elite política portuguesa notou a existência de um fluxo emigratório composto majoritariamente por ilhéus despossuídos que, impossibilitados de pagar a passagem, embarcavam nos navios com a condição de não desembarcarem até que encontrassem quem assumisse a dívida da viagem, a ser paga pelo trabalho do emigrante (Alencastro 1988; Alves 1994; Galvanese 2021). O trabalho assim contratado de portugueses no Brasil e nas colônias inglesas era parte da circulação global de trabalhadores despossuídos, acentuada com a crise do escravismo colonial. Perante as crescentes pressões pelo fim do tráfico e da escravização de africanos, avolumou-se o deslocamento de trabalhadores “livres” da Europa, África e Ásia para regiões do globo onde a produção de mercadorias se expandia (Allen 2014).
23No Brasil, a pressão britânica pelo fim do tráfico forçou a formação de companhias privadas de colonização que contavam com engajadores espalhados pela Europa (Pérez-Meléndez 2016). A sobrelotação dos navios, a forma como imigrantes eram transacionados nos portos e o fato de europeus trabalharem ao lado de escravizados ou em substituição a esses até que quitassem as dívidas da viagem indignaram os agentes políticos portugueses, que adotaram o termo “escravatura branca” para se referir a esse fluxo emigratório (Alves 1994; Galvanese 2021). Longe de uma retórica utilizada para legitimar medidas restritivas do direito a emigrar (Maia 2002; Pereira 2015), a associação ao tráfico expressava indignação e promovia consenso, como no caso do “tráfico das brancas” que ocupou a comunidade internacional entre o fim do XIX e início do XX (Chaumont e Wibrin 2007). A expressão “escravatura branca” disseminou-se por vários países no Oitocentos, quando proprietários de terras buscavam coagir indivíduos livres ao trabalho disciplinado das plantações. Na disputa em torno da definição de formas legítimas de coerção, o uso dos termos “escravidão assalariada” e “escravatura branca” evidenciava estratégias incompatíveis com a liberdade (Stanley 1998) – e motivou a proibição da emigração para o Brasil pela Prússia, em 1857 (Holanda 1941). Como mostrou Steinfeld (2001, 31), nos EUA pós-escravista a coerção não pecuniária, como a prisão, foi considerada ilegítima por contrariar a livre escolha e ser associada à escravidão, o que inviabilizou um fluxo volumoso de imigrantes contratados para o país.
- 22 O projeto redigido por Sá da Bandeira em novembro de 1836, sua justificativa e demais documentos en (...)
24Em Portugal, a “escravatura branca” foi mais denunciada que a negra (Marques 1999, 429), muito embora os portugueses no Brasil desfrutassem da vantagem de serem brancos em uma sociedade racista (Carvalho 1988). Transportados em navios sobrelotados e presos a contratos que deviam ser cumpridos sob pena de prisão, os imigrantes eram comparados a escravizados africanos, fato que ameaçava as hierarquias raciais engendradas pelo colonialismo. Eram essas semelhanças que Sá da Bandeira pretendia evitar com um projeto de lei que visava obviar o “tráfico da escravatura branca” e zelar pela liberdade dos portugueses.22 O projeto reforçava a obrigatoriedade do passaporte para quem saísse do reino, determinava que o documento só seria concedido aos isentos do serviço militar e estipulava condições para o transporte de emigrantes. Na justificativa da proposta, lê-se que Sá da Bandeira buscava garantir o recrutamento militar num momento marcado por sangrentas disputas políticas. Contudo, as justificativas mais reveladoras das motivações do projeto relacionam-se à honra da nação. Além de “prevenir os incautos e enganados emigrados”, o projeto seria “importante ao decoro nacional” e à garantia de que “o bom nome português não fosse desacatado em terras estranhas”, onde cidadãos portugueses eram “tratados como escravos”. A proposta protegia Sá da Bandeira das acusações de se preocupar mais com a escravidão dos africanos do que com a liberdade dos portugueses (Galvanese 2021, 179). Encaminhado ao parlamento, o projeto não foi discutido.
- 23 Ato regulando o transporte de passageiros em navios mercantes. Reino Unido (12-08-1842). Disponível (...)
25Após a assinatura do tratado luso-britânico contra o tráfico de escravizados (1842), o projeto de Sá da Bandeira foi adaptado pelo ministro da Marinha e Ultramar e publicado como portaria a 19 de agosto de 1842. A portaria buscava garantir melhores condições de transporte, na esteira do que fizera a Inglaterra, que estabelecera critérios a serem observados pelos capitães de navios que conduzissem passageiros.23 O diploma indignou os comerciantes do Porto, que evidenciaram a importância da emigração secular de minhotos que enriqueciam trabalhando nas casas de comércio do Brasil (Alves 1991). A ruptura da associação entre emigrante e “escravo branco” inviabilizou a aprovação do projeto de Sá da Bandeira em 1843, quando discutido pelos pares do reino. A oposição ao projeto, considerado inconstitucional, e as notícias sobre as condições de transporte e trabalho encontradas por emigrantes compuseram um campo de experiência que marcou as discussões posteriores sobre emigração e passaportes.
- 24 Rodrigo da Fonseca Magalhães, ministro do Reino. Ofício ao ministro dos Negócios Estrangeiros (02-0 (...)
- 25 Ofício do cônsul no Pará ao ministro dos Negócios Estrangeiros (22-05-1855). Arquivo Nacional da To (...)
26Na década de 1850, quando as vinhas da região Norte foram atingidas pelo oídio, agentes de emigração aproveitaram para angariar trabalhadores para o Brasil após o fim definitivo do tráfico de escravizados. Nesse contexto, o transporte de emigrantes em embarcações sobrelotadas ocupava as páginas dos jornais e a atividade parlamentar (Cordeiro 2011). Em 1853 e 1854, o patacho “Arrogante” e o palhabote “Incógnito” indignaram a opinião pública ao atracarem em Pernambuco e Vigo, respectivamente, com um número de emigrantes muito superior ao que embarcara regularmente em São Miguel e Viana do Castelo.24 Foi, contudo, a tragédia ocorrida a bordo da escuna “Defensor” que mobilizou o ministro do Reino a elaborar um projeto de lei contra a emigração clandestina. Na viagem do Porto rumo ao Pará, 35 passageiros morreram.25
- 26 Projeto de lei, 09-07-1855. ANTT, MR, 3ª direção, 1ª repartição, maço 3277.
- 27 DCD, nº 147, pp. 894-895 (11-07-1855).
27Em uma nota na lateral do projeto de lei redigido por Rodrigo da Fonseca Magalhães, em 9 de julho de 1855, percebe-se que a proposta foi motivada pela tragédia a bordo da “Defensor”. O ministro enfatizou “as desordens e violências cruéis que envergonham a humanidade” cometidas por capitães impunes pela “falta de legislação penal contra abusos cometidos no embarque e transporte clandestino de passageiros e colonos”.26 A proposta sublinhava que o alvo não eram os emigrantes, mas os capitães dos navios, que arriscavam a vida de portugueses. O projeto visava reforçar a malha estatal e punir quem não cumprisse com a lei – e não tolher o fluxo emigratório. A ênfase na clandestinidade e na atuação dos capitães foi crucial para que a proposta fosse considerada constitucional e discutida na Câmara dos Deputados. No debate, Silvestre Ribeiro referiu “a questão importantíssima dos contratos” que tornavam os portugueses “escravos em terras estranhas”.27 Por isso, sugeriu que os contratos de locação de serviços indicassem a pessoa a quem os trabalhos seriam prestados e trouxessem cláusula expressa de não poderem ser cedidos a terceiros. A sugestão foi acatada como forma de evitar que agentes de emigração transacionassem com portugueses como se fazia com escravizados e garantir a liberdade dos indivíduos. Aprovado, o projeto originou a carta de lei de 20 de julho de 1855, que reforçou a obrigatoriedade do passaporte e instituiu medidas contra facilitadores da emigração clandestina e capitães de navios inescrupulosos. Aprofundou-se a distinção entre emigração legal e clandestina e diferenciou-se a emigração livre da contratada, que deveria ser regulamentada para garantir aos emigrantes os direitos civis dos cidadãos portugueses.
28A distinção entre livres e contratados ia ao encontro do liberalismo da Carta de 1826 que, “partilhou com o constitucionalismo europeu de Oitocentos, a ideia de que nem todos os indivíduos eram capazes de exercer os direitos políticos” (Silva 2009, 154). Apenas alguns eram cidadãos ativos, capazes de formar “uma vontade livre e autónoma”, enquanto a maioria era composta por cidadãos passivos, “dependentes, sem autonomia suficiente para exercer o direito de voto”. Inicialmente, podiam participar da comunidade política os homens economicamente independentes, critério depois ampliado para autorizar a participação de alfabetizados. A autonomia e racionalidade eram “comprovados pelo acesso à propriedade e pelo grau de alfabetização”, mas também “pelo lugar hierárquico ocupado na hierarquia dos géneros” (Silva 2009, 155). Assim, homens desprovidos de posses, analfabetos e mulheres eram tidos como “indivíduos inacabados”, dependentes da tutela estatal. Os emigrantes capazes de pagar a passagem eram considerados autônomos e livres, já as mulheres e os que dependiam de contratos com engajadores para emigrar precisavam ser tutelados de modo a não perderem a liberdade no país de destino. A exigência de passaporte a todos viabilizava a regulamentação dos contratos e garantia a tutela dos contratados.
- 28 Projeto nº 102. DCD, nº 7, p. 7 (11-01-1855). O debate e as citações que se seguem encontram-se no (...)
29A posse do documento obtido em conformidade com as leis distinguia também os emigrantes legais dos clandestinos. Tal distinção visava garantir a igual distribuição do serviço militar entre os cidadãos e pode compreender-se melhor à luz do debate sobre as isenções ao recrutamento, iniciado em janeiro de 1855. Para alguns deputados, as isenções contrariavam a igualdade perante a lei. Para que a obrigação militar fosse igualmente distribuída, a emigração precisava ser cerceada – o que contrariava a livre circulação consagrada na carta. Para equilibrar os princípios de igualdade e liberdade, o projeto de lei do recrutamento propunha que a concessão de passaporte de exterior a mancebos de 19 a 22 anos fosse condicionada à apresentação de substituto ou a pagamento de fiança de 150$000 réis.28 Martens Ferrão ponderou que a elevada fiança restringiria a emigração, aspecto reforçado por Carlos Bento, para quem o valor cobrado dificultaria a situação dos emigrantes no Brasil, pois seria antecipado pelos contratantes e cobrado com juros dos trabalhadores endividados. Os argumentos foram insuficientes. A maioria concordou com Silvestre Ribeiro, para quem a proposta garantia a justiça distributiva e impedia a evasão à defesa da liberdade e independência da pátria. Aprovada, a lei de 27 de julho de 1855 estabeleceu que o passaporte de exterior só seria passado a mancebos de 18 a 21 anos mediante fiança – intervalo alterado para rapazes de 14 a 21 anos pela lei de 4 de junho de 1859. Na prática, a exigência criava obstáculos à emigração, mas não resultou de uma “vontade de contenção” do fluxo emigratório (Pereira 2002, 100). A desigualdade resultante da fiança não parecia contrariar o princípio de igualdade em “tempos de ascensão burguesa” (Alves 1994, 162).
- 29 Projeto de regulamento (06-08-1855). AHD, correspondência recebida do MR, caixa 854.
30O recrutamento e a tutela de emigrantes contratados foram os argumentos apresentados por Braamcamp para manter os passaportes de exterior em 1863. A igualdade no lugar dos privilégios e a liberdade contra a escravização no Brasil eram os princípios liberais a serem preservados pelo passaporte, fundamental à defesa e à honra de Portugal. Ameaçada pelas saídas clandestinas, a garantia desses princípios dependia do aperfeiçoamento do monopólio estatal dos meios legítimos de emigração. Para isso, Braamcamp publicou o decreto de 7 de abril de 1863, que regulamentou a lei de 31 de janeiro desse mesmo ano. O diploma solucionou a inexistência do regulamento da lei de 20 de julho de 1855, cujo texto, redigido por Rodrigo Magalhães,29 não foi publicado – possivelmente, porque o então ministro dos Negócios Estrangeiros entendia dever realizar-se, antes, uma convenção com o governo brasileiro (Galvanese 2021).
31O decreto de 7 de abril de 1863 regulamentou as penalidades impostas a quem tentasse deixar o reino sem passaporte ou com passaporte de terceiro e aos capitães que desrespeitassem os dispositivos legais, além de estipular o limite de passageiros autorizados a bordo e as condições higiênicas dos navios. Pelo diploma, o passaporte seria concedido mediante provas de que o impetrante: sendo maior de 25 anos, estava em dia com o serviço militar e livre de crimes; tinha autorização dos pais ou tutores, se fosse menor de 21 anos, e do marido, no caso de mulheres casadas; pagou a finança prevista pela lei do recrutamento, se tivesse entre 14 e 21 anos. Pela alínea 6ª do artigo 10º, o regulamento distinguia emigrantes contratados, obrigados a apresentar os contratos de trabalho, dos livres, que deveriam apresentar o recibo de pagamento de passagem. Pela ausência da definição do termo “emigrante” no decreto, qualquer indivíduo poderia alegar ser viajante, ficando dispensado de apresentar contrato ou passagem. Ainda pelo artigo 10º, o passaporte poderia ser concedido a viajantes que apresentassem abonador idôneo da identidade do impetrante.
- 30 Ofício do cônsul no Rio de Janeiro ao MNE, 15-10-1863. ANTT, MR, DGAC, 2ª repartição, maço 3014.
- 31 Ofício do governador civil de Angra do Heroísmo ao MR, 27-04-1863. ANTT, MR, DGAC, 2ª repartição, m (...)
- 32 Ofício do presidente da câmara de Cinfães ao governador civil de Viseu, 17-05-1893. ANTT, MR, DGAPC (...)
- 33 As dificuldades em fiscalizar o litoral do continente e das ilhas foi reconhecida em diversos momen (...)
32A tentativa de aprofundar o monopólio estatal dos meios legítimos de circulação internacional deixou inúmeras brechas. Para escapar ao exame dos contratos, muitos contratantes passaram a adiantar o valor das passagens para que o indivíduo deixasse o país como se fosse livre.30 Quem não contava com esse adiantamento, recorria a credores, dificultando a vida da família que ficava no país.31 Outra estratégia era o recurso a falsos abonadores de identidade que alegavam conhecer o impetrante de passaporte e confirmavam que o indivíduo era maior de 25 anos e que não pretendia emigrar.32 A falcatrua evidencia as limitações do aparato burocrático do Portugal oitocentista que, desprovido de um sistema eficiente de registro civil, seguia dependendo das redes interpessoais para identificar os cidadãos. Às brechas legais somavam-se a vulnerabilidade técnica do passaporte, que trazia vagas descrições dos indivíduos, e do próprio estado português oitocentista, incapaz de controlar todo o litoral continental e insular do país.33 A também frágil fiscalização da raia seca permitiu o crescimento, nas últimas décadas do XIX, da emigração portuguesa pelo porto de Vigo. O fato de o governo espanhol ter abolido os passaportes para viagens internacionais pelo decreto de 17 de dezembro de 1862 facilitou a estratégia. A clandestinidade não decorria, portanto, da falta de vontade do estado em executar as leis, mas da fragilidade de um estado nacional que não constituía um leviatã “distante, supra-individual, esmagador e forte” (Catroga 2013, 21).
- 34 Ofício do governador civil de Coimbra ao MR, 23-12-1890. ANTT, MR, DGAPC, 3ª repartição, maço 2862.
- 35 Ofício do governador civil de Angra do Heroísmo ao MR, 17-11-1888. ANTT, MR, DGAPC, 3ª repartição, (...)
33Na Regeneração predominou o entendimento de que o estado deveria assegurar as condições de transporte e trabalho dos emigrantes, garantir o cumprimento dos deveres militares e perseguir os facilitadores das saídas clandestinas. Tal doutrina impediu a aprovação de medidas mais contundentes pelo risco de se restringir a emigração livre e legal. Nem mesmo a crise finissecular e o questionamento do liberalismo a alteraram substancialmente. Na década de 1890, a crise financeira que impactou a Europa evidenciou os limites da economia portuguesa, cuja situação agravou-se pela desvalorização cambial brasileira, que desencorajou o envio de remessas pelos emigrantes (Ramos 2001, 129-133). Em meio à crise, avolumaram-se as reivindicações da elite agrária contra a emigração e em defesa dos baixos salários.34 Concebendo as saídas clandestinas como efeito colateral do aumento da fiança estabelecida pela lei do recrutamento de 1887 (Monteiro 2007), os proprietários rurais pressionaram pela diminuição da taxa.35 A redução instituída pelo decreto de 29 de outubro de 1891 foi insuficiente para estancar o fluxo motivado pela pobreza.
34No Ministério do Reino, João Franco respondeu aos clamores contrários à emigração com o decreto de 10 de janeiro de 1895. Mirando as saídas clandestinas pela Galícia, o governo reduziu as taxas dos passaportes terrestres, facilitando a concessão do documento para travessia da raia seca. Com isso, Franco esperava ampliar o monopólio estatal sobre o trânsito na fronteira espanhola e reprimir a clandestinidade. No parlamento, o decreto foi modificado e instituíram-se penas severas aos facilitadores da emigração clandestina. Os mancebos flagrados na tentativa de emigrar clandestinamente seriam obrigados a assentar praça, proposta que visava preencher as fileiras do exército e proteger os domínios portugueses em África. Os parlamentares extinguiram a autorização concedida às administrações de concelhos para que emitissem passaportes.
35Pela lei de 23 de abril de 1896, então aprovada, o documento voltava a ser obtido apenas nos governos civis de naturalidade ou de residência do solicitante. A determinação, válida ao longo do XIX, evitava concentrar os emolumentos de passaportes nas mãos dos funcionários dos governos civis do Porto e Lisboa e visava facilitar a identificação dos impetrantes. O frágil estado seguia preso às redes locais de interconhecimento e aos interesses de funcionários mal remunerados. A emissão do documento nas administrações, que facilitaria a identificação dos indivíduos, foi considerada prejudicial pela excessiva proximidade entre funcionários e solicitantes – sintoma do receio da descentralização do poder (Catroga 2013). A lei de 1896 não apenas restituiu a autoridade dos governos civis, mas determinou que menores de 30 anos residentes no continente solicitassem o documento no distrito de naturalidade, com o claro propósito de conter a emigração. Mesmo em um contexto de crise do liberalismo, essa foi a única medida que mirou a emigração legal.
- 36 Ofício do comissário da PEREC ao MR, 21-10-1898. ANTT, MR, DGAPC, 2ª repartição, maço 2352.
36O decreto de 3 de julho de 1896 regulamentou a lei e incumbiu os governos civis de regulamentarem as agências de emigração e passaporte. Um passo a mais era dado no sentido de monopolizar os meios legítimos de emigração, que não foi absoluto, visto que esses intermediários não foram proibidos de atuar. Esses agentes seriam fiscalizados pela Polícia Especial de Repressão da Emigração Clandestina (doravante, PEREC), criada pelo decreto e responsável por perseguir clandestinos. Com orçamento e pessoal limitados, o comissário da Polícia, Mascarenhas Gaivão, reportou inúmeras vezes as dificuldades à plena execução de suas funções.36 Em suma, João Franco reafirmou as funções do passaporte e aprofundou a repressão à clandestinidade sem ultrapassar os limites liberais fincados em 1843, que barravam medidas contra emigrantes livres e documentados.
- 37 O debate e as citações que se seguem encontram-se no DCD, nº 44 (14-03-1896).
- 38 DCPR, nº 28 (07-04-1896).
37Vozes contrárias ao fortalecimento do monopólio estatal dos meios legítimos de emigração se levantaram – mas foram vencidas. Na Câmara dos Deputados, a impossibilidade de conter a clandestinidade foi sublinhada por Manuel Fratel, apoiado por Mello e Souza.37 Na Câmara dos Pares, o conde de Tomar propôs extinguir o passaporte, alegando que a obrigatoriedade do documento assemelhava Portugal à Rússia, único país que ainda exigia passaportes.38 Como em 1863, a defesa do documento apoiou-se na necessidade de assegurar o recrutamento e impedir a “escravatura branca”. Na Câmara dos Deputados, Franco argumentou que o decréscimo anual do número de recrutas inviabilizava a extinção do documento. Teixeira de Vasconcelos afirmou que as medidas em discussão não visavam pôr fim à emigração, mas “punir com penas severíssimas aqueles que promovem a escravatura branca”. O argumento evidenciava o receio de que portugueses substituíssem os antigos escravizados no Brasil pós-abolição. Se extinguir os passaportes não era possível, restava reprimir a clandestinidade.
- 39 Carta do presidente da ACL ao MR, 17-08-1904. ANTT, MR, DGAPC, 3ª repartição, maço 5408.
38O ataque mais contundente aos passaportes veio no início do século XX. As efemérides dos quatrocentos anos do “descobrimento” do Brasil e do centenário da transferência da corte para o Rio de Janeiro proporcionaram discursos favoráveis à intensificação das relações mercantis luso-brasileiras (Müller 2011, 153). Paralelamente, intensificavam-se as exportações de produtos portugueses para as colônias (Pereira 1983, 276). Para facilitar as atividades mercantis, as associações de comerciantes uniram-se contra os passaportes de exterior. Em agosto de 1904, o presidente da Associação Comercial de Lisboa (doravante, ACL) encaminhou ao ministro Hintze Ribeiro reclamações relativas à obrigatoriedade de passaporte para as colônias.39 Ribeiro considerou justas as queixas, mas deixou o cargo sem tomar providências. Novas representações chegaram ao Ministério do Reino que, em 14 de julho de 1904, nomeou uma comissão para estudar o assunto. A comissão foi presidida por Joaquim Ferreira do Amaral, par do reino e presidente da Sociedade de Geografia de Lisboa, e composta por representantes das associações comerciais do Porto e de Lisboa, do Ministério da Guerra, da Repartição das Alfândegas, da Direção Geral do Ultramar e da PEREC. Ela deveria conciliar o interesse pelo fim dos passaportes às necessidades do recrutamento militar, da fazenda e de responsabilização de criminosos. A presença do comissário da PEREC evidencia que a emigração deveria ser considerada.
- 40 DCPR, nº 44, p. 439 (20-03-1907).
- 41 Ata da segunda sessão. Comissão nomeada para estudar a questão dos passaportes (25-07-1905). ANTT, (...)
39Os trabalhos iniciaram-se em 22 de julho de 1905. Os representantes das associações comerciais de Lisboa e Porto, Ernesto Schröeter e Pedro Araújo, posicionaram-se pela abolição dos passaportes. Schröeter defendeu um imposto sobre as passagens, para compensar a fazenda pública. Araújo discordou e abandonou a comissão por se negar a colaborar “em quaisquer trabalhos tendentes a criar receita compensadora” que sobrecarregasse os emigrantes.40 Pelas atas das reuniões da comissão, percebe-se que a maioria concordava com a extinção do documento. Mascarenhas Gaivão foi a voz dissonante: ao opor-se aos passaportes, reconhecia a ineficácia da polícia que chefiava. Foi consensual, porém, que “em matéria de emigração, a intervenção do Estado deve exercer-se não reprimindo nem provocando a saída dos emigrantes, mas assumindo funções tutelares, fiscalizando os contratos de emigração e o funcionamento das agências e, sobretudo, elucidando e esclarecendo os emigrantes”.41
- 42 Relatório dos trabalhos da comissão nomeada para estudar a questão dos passaportes. ANTT, MR, DGAPC (...)
- 43 DCPR, nº 44, p. 432 (20-03-1907). Em ANTT, MR, DGAPC, 3ª repartição, maço 5409 encontram-se represe (...)
- 44 Parecer enviado pelo comissário da PEREC ao MR, 16-08-1905. ANTT, MR, DGAPC, 3ª repartição, maço 54 (...)
40A necessidade de tutelar os “desprovidos de ilustração” seguia inquestionada. Por isso, a comissão propôs que um bilhete de identidade, mais barato que o passaporte, fosse obrigatório para que menores de idade e analfabetos deixassem o país, assegurando o consentimento dos pais, no caso dos primeiros, e a tutela estatal para os segundos. O projeto de lei redigido pela comissão garantia a livre circulação, estabelecia que menores de 35 anos deveriam comprovar estarem em dia com o serviço militar para viajar e definia a fiança a ser paga pelos mancebos de 14 a 21, além de instituir a obrigatoriedade do bilhete de identidade para o trânsito de menores e analfabetos. Ficava prevista, ainda, a cobrança progressiva de impostos sobre as passagens para indenizar a fazenda pública.42 A proposta foi considerada revolucionária pelo diretor geral do Ministério do Reino e aterrorizou os funcionários dos governos civis, resistentes à perda dos emolumentos.43 Em parecer individual, Mascarenhas Gaivão se opôs à proposta e lembrou a importância de serem fortalecidos os laços dos emigrantes com a nação, visto estarem sujeitos aos “trabalhos agrícolas e braçais sob um clima mortífero”.44
- 45 DCD, nº 10, pp. 24-27 (13-10-1906).
- 46 Relatório dos trabalhos da comissão nomeada para estudar a questão dos passaportes. ANTT, MR, DGAPC (...)
41Os trabalhos da comissão foram recuperados em 1907, após a volta de João Franco ao governo apoiado pelos comerciantes (1906). Tentando equilibrar os interesses mercantis e as preocupações expressas por Gaivão, Franco apresentou um novo projeto de lei45 que, baseado na lei italiana nº 23, de 31 de janeiro de 1901, distinguia emigrantes de viajantes, mantendo a exigência do passaporte aos primeiros e extinguindo-a para os últimos (Pereira 2011, 45). Seriam emigrantes os indivíduos que viajassem na terceira classe do navio (ou similar), definição que impedia o emigrante de declarar-se viajante para escapar à lei. Pelo projeto, os passaportes seriam obtidos nos governos civis dos distritos de naturalidade, residência ou embarque do impetrante. O valor dos passaportes passaria de 10$828 réis46 para 7$000 réis, dos quais 6$000 seriam retidos pela fazenda e 1$000 pelos funcionários dos governos civis. Com a proposta, Franco acatava a reivindicação dos comerciantes sem descurar da tutela dos emigrantes.
- 47 O projeto final, o debate e as citações que se seguem encontram-se no DCD, nº 26, pp. 8-12 (19-02-1 (...)
42O projeto foi apresentado ao parlamento como uma medida para facilitar os deslocamentos e transformar o porto de Lisboa em uma estação de passagem entre a Europa e as Américas. Paiva Couceiro (relator do parecer da Comissão de Administração Pública)47 reforçou que a manutenção dos passaportes para emigrantes não almejava travar a emigração legal e livre, facilitada pela redução do valor do documento. A estratégia foi em vão e os republicanos aproveitaram a ocasião para criticar o governo, atacando a manutenção das taxas cobradas apenas dos emigrantes. Os opositores questionaram a isenção das companhias de navegação que, pela proposta do governo, pagariam um imposto anual. Afonso Costa afirmou que o projeto cavava um “abismo profundo” entre ricos e pobres. Jayme de Sousa repreendeu o governo por não apresentar uma proposta de lei específica sobre a emigração e questionou a definição de emigrante. Em suma, a oposição não criticou o fim dos passaportes para viajantes, mas as proposições relativas à emigração, sem questionar as prerrogativas estatais de tutelar o emigrante.
43Paiva Couceiro esclareceu que a taxação das companhias de navegação contrariava o objetivo de ampliar a frequência de embarcações nos portos portugueses. O preço dos passaportes foi defendido pelo relator, que sublinhou a redução em 30% do valor até então cobrado. Franco acalmou a oposição com a promessa de apresentar, em breve, uma proposta específica sobre a emigração. Finalmente, o projeto foi aprovado e a exigência de passaportes para viajantes foi derrubada, mas mantida para emigrantes. Pela lei de 25 de abril de 1907, a concessão de passaportes voltou a ser incumbência dos governos civis dos distritos de residência dos impetrantes – provavelmente devido à pressão dos governadores que temiam a perda dos emolumentos. A prometida proposta sobre emigração se perdeu em meio às convulsões políticas que conduziram ao regicídio em 1908.
44O artigo retoma um debate travado na década de 1980 em torno da exigência de passaportes para emigrantes pelos governos da monarquia constitucional portuguesa. Observando que, até 1863, o documento também era exigido para deslocamentos internos, o trabalho ampliou a discussão e procurou compreender a função dos passaportes (tanto de interior quanto de exterior) no Oitocentos. Estabeleceu-se um diálogo com uma historiografia dedicada ao estudo dos processos de identificação dos indivíduos, fundamentais ao avanço do poder infraestrutural dos estados modernos. Ao inserir o debate no âmbito mais amplo dos estudos sobre o monopólio estatal dos meios legítimos de circulação, o artigo evidencia que a exigência do documento em Portugal após a revolução liberal de 1820 não foi uma anomalia. Na Europa, os passaportes foram ressignificados após a queda do Antigo Regime, sendo cruciais à manutenção dos laços que ligavam os indivíduos à nação quando os deslocamentos se aceleraram. Em meados do século, contudo, o avanço das ferrovias e a facilidade de falsificação do passaporte fizeram com que o documento caísse em desuso. Em Portugal, a abolição dos passaportes de interior encontrou resistências. A fragilidade das forças policiais, a necessidade de proteger a propriedade e o próprio liberalismo (ameaçado pelas guerrilhas miguelistas) inviabilizavam a extinção do documento. A má remuneração dos funcionários também dificultou a consagração da livre circulação. Foi preciso esperar pela Regeneração e pelo avanço dos investimentos em vias férreas para que o livre trânsito de pessoas e de mercadorias se efetivasse no país.
45A abolição dos passaportes para deslocamentos externos esbarrava em outras questões. Inserida na circulação internacional de trabalhadores, a emigração portuguesa ganhou novas características na década de 1830. Associada à “escravatura branca”, a emigração contratada era entendida como uma ameaça à liberdade dos portugueses. A obrigatoriedade do passaporte permitia aos agentes estatais regulamentarem os contratos, sem impedir o embarque daqueles que emigravam de forma autônoma. O documento também evitava que os mancebos se ausentassem do país sem cumprir com seus deveres. O passaporte deveria, portanto, assegurar princípios liberais como a igualdade perante a lei e a liberdade no destino, sem coartar a livre circulação. A tensão entre a agência de indivíduos ansiosos por emigrar, a manutenção do passaporte como garantia de princípios liberais e a fragilidade do estado português resultou em uma clandestinidade persistente. Na virada do século, a necessidade de facilitar o comércio externo impôs-se e os passaportes de exterior foram abolidos para os viajantes. Contudo, manteve-se inalterado o consenso sobre a necessidade de tutelar os emigrantes e evitar a evasão de mancebos. Alinhado à interpretação de Leite (1987), este texto demonstrou que a exigência do passaporte não contrariava princípios liberais, mas visava proteger esses mesmos princípios. Os agentes políticos portugueses, atentos ao que se passava no restante da Europa e no destino dos emigrantes, buscaram equilibrar a liberdade de circulação com a liberdade individual sem descurar da igualdade perante a lei.