- 1 Ver e.g. Matos (1988, 33-34; 2021, 230), Torgal et al. (1998, 321), Carvalho (2004, 215-220) e Lour (...)
1Uma das questões que a crítica sergiana tem visitado com mais assiduidade é a da qualidade “ensaística” da produção intelectual do escritor indiano-português. As interpretações a este respeito são múltiplas; contudo, a maior parte das críticas têm valorizado a escolha discursiva de António Sérgio na sua dimensão epistemológica – como “atitude mental” caracterizada pelas suas qualidades “problematizantes”, “críticas”, “dialógicas” e “não sistemáticas”.1 No entanto, seria arriscado ignorar que autores como David Mourão-Ferreira (1984, 27-30), Sérgio Campos Matos (1988, 32 e 37) e Jacinto Baptista (1992, 14) fizeram algumas valorações, ainda que isoladas, dos elementos estéticos do ensaísmo sergiano. Os críticos têm definido esta escrita como uma “literatura” ou “prosa de ideias” que se destaca pela capacidade “pedagógica” de ligar a razão a qualidades imaginativas, lúdicas, inventivas e criativas. Matos (1988, 32; 2004, 206) tem mesmo insistido no uso sergiano de estratégias discursivas típicas do género do ensaio, tais como a imanência do “eu”, a utilização de “verbos e advérbios que exprimem a dúvida”, ou a ênfase no presente.
- 2 Nos seus ensaios históricos prévios, tais como Considerações histórico-pedagógicas (1916), A conqui (...)
2A meu ver, estas abordagens não se aprofundaram na dimensão formal da escrita de Sérgio. Algumas acabam mesmo por consolidar a ideia de que o ensaio foi simplesmente o meio de expressão quase transparente de uma “atitude” ou “estilo” mental racionalista, crítico, dialógico, holístico, antidogmático e criativo, mas não uma escolha genérica que mereceria ser sujeita a uma análise cuidadosa. Este artigo se debruça sobre a estética do ensaísmo histórico de Sérgio, centrando-se especificamente na Introdução geográfico-sociológica à história de Portugal, texto originalmente publicado em 1941 (doravante citado pela edição consultada, Sérgio 1982). O meu principal argumento em relação a este texto – escolhido aqui para análise pela originalidade da sua forma – é que os elementos discursivos a partir dos quais foi construído coincidem com algumas características de estilo que foram emblemáticas do fenómeno cultural do século XX a que se chamou “modernismo”.2
3Centrando-se na esfera da escrita, Hayden White (1999, 66-67) concebe o modernismo como um movimento que, a partir do final do século XIX e durante as primeiras décadas do século XX, face à “crise social das experiências narráveis” e “à crise semiótica dos paradigmas narrativos”, minou o princípio fundamental dos realismos literário e historiográfico oitocentistas: a tríade personagem-evento-enredo. Escritores como E. Pound, T. S. Eliot, J. Joyce, M. Proust, V. Woolf ou J. P. Sartre, entre outros, superando o tabu realista da separação entre facto e ficção, e diluindo a relação linguística tradicional de significante e significado, “desrealizaram” o evento e, assim, a noção tradicional de enredo como continuum linear racional. Desta maneira, criaram formas narrativas “paródicas” nas quais a personagem – a sua psique e não tanto os seus atos – se tornou o centro de um enredo, ou “quase-enredo”, composto de eventos fragmentários em que “nada acontece” (White 1999, 66-67).
4A literatura portuguesa, como é bem sabido, participou ativamente neste movimento estético, em primeiro lugar através da pena dos autores de Orpheu. Os exemplos mais relevantes no campo da prosa narrativa, que podem ser entendidos como expressões de uma nova consciência da complexa estrutura da temporalidade humana e das forças e relações socio-históricas até esse momento impercetíveis, são A confissão de Lúcio, de Mário de Sá-Carneiro (1914); Nome de guerra, de Almada Negreiros (2001); e o Livro do desassossego (póstumo, 1982), de Fernando Pessoa (Sena 1984, 189-198; Guimarães 2004, 115-122). Este último, na voz do “semi-heterónimo” Bernardo Soares, no famoso trecho 12 do Livro expressou talvez como nenhum outro o núcleo desta estética disruptiva: “Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer” (Pessoa 2009, 50).
5Segundo teóricos como Hans Kellner (1989, 182-187), no campo da historiografia o equivalente mais consistente e poderoso da literatura modernista foi talvez La Méditerranée et le monde méditerranéen a l'époque de Philippe II, de Braudel (1979). Este trabalho aparentemente “não narrativo”, mas antes “anatómico”, que examina as estruturas geográficas e socioeconómicas da personagem “Mediterrâneo”, representa para Kellner (1989) o ataque mais explícito e profundo à tradição do realismo historiográfico do século XIX – ou seja, ao modelo Rankeano-historicista focado em eventos ou ações políticas racionais e intencionais de indivíduos com nome próprio. No entanto, o texto de Braudel não foi o único caso do que se poderia chamar de historiografia modernista (Assis 2023, 23-37). Outro exemplo, pouco conhecido, mas igualmente lúcido e intrigante, uma vez que parece ecoar algumas das particularidades estilísticas dos movimentos literários desenvolvidos em Portugal na primeira metade do século XX, é a Introdução de Sérgio. No que se segue, examino as estratégias discursivas que fazem dela uma obra modernista. Em primeiro lugar, analiso a voz autoral prevalente nessa obra, caracterizada pelo seu ponto de vista perspetivista. Em segundo lugar, discuto as componentes da estrutura narrativa da Introdução: o seu protagonista fragmentado – a sociedade portuguesa –, a representação paratática da sua experiência geo-histórica e o seu enredo sincrónico. No final, recupero todos estes elementos para argumentar que se trata de um conjunto de estratégias narrativas que poderiam ser relacionadas com a cultura modernista então vigente em Portugal.
6Logo nas primeiras páginas da Introdução é evidente que o ponto de vista a partir do qual o texto é apresentado assenta num contraste com o da historiografia dominante em Portugal na primeira metade do século XX. Esta última tinha pelo menos três facetas que Sérgio define como “dogmáticas” devido à sua tendência para abordar o conhecimento histórico como uma questão de verdades objetivas e absolutas. Por um lado, o “eruditismo puro” – a historiografia universitária preocupada com o estabelecimento de “factos” históricos baseados em provas documentais. Por outro lado, o “delírio nacionalista” – a historiografia alinhada com o regime político do Estado Novo. E, finalmente, o “fideísmo ingénuo” – a historiografia, seja de cariz positivista, espiritualista ou materialista, que pressupunha a existência de “factores” ou princípios gerais elevados ao nível de determinantes do processo histórico-social (Sérgio 1982, 5-7, 14-18). Em contraste com estas modalidades historiográficas, Sérgio propõe uma história “hipotética” cujos fundamentos teóricos desenvolve nas “Divagações proemiais” que antecedem a Introdução. Aí explicita uma ideia do conhecimento que dá o mote a todo o livro e que parece ter um certo paralelismo com a poética “sensacionista” de Fernando Pessoa. Entre os longos argumentos através dos quais Sérgio define a sua epistemologia, cito um que se situa nas páginas centrais das “Divagações”:
O pensamento (a admitir tal suspeita) não seria estruturação de quaisquer “dados” prévios, não teria unicamente uma função expressiva, mas seria algo construtivo e activo; algo indecomponível em que se cria o objectivo pelo ordume das malhas das relações-conceitos, produto do acto mental do juízo. Todo observar seria de facto um operar. O espírito (por outras palavras) seria criador já nos seus feitos mínimos, já no que chamamos “dado” – unicamente “dado”, exclusivamente “dado”, inteiramente “dado” [– e o rasgo característico do entendimento humano não seria pois a faina de ir extraindo o abstracto de um objecto sensível anteriormente dado, mas o de ir concretizando cada vez mais o concreto pela integração progressiva das relações ideais]. A natureza e a actividade pensante apareceriam correlativas de ponta a ponta, e entre si pressupostas e inseparáveis; dos resultados do labor científico nunca seria possível eliminar o espírito; e portanto aquilo a que se chama “facto” seria sempre no âmago uma construção mental, uma estruturação do intelecto; percepcionar o facto seria traçar o facto; percepcionar a cousa seria construir a cousa […] o mundo sensível do espaço e do tempo não teria realmente existência absoluta, e reduzir-se-ia a um sistema de figurações projectadas, resultantes das necessidades fundamentais do intelecto. (Sérgio 1982, 15)
- 3 Ver e.g. Matos (1988, 33), Brito (2004, 251-261), Mesquita (2004, 327-341), Príncipe (2004), Vilhen (...)
7Os princípios que aparecem neste excerto e que resumem a teoria do conhecimento que o autor delineou em muitos outros pontos da sua vasta obra ensaística foram já estudados por numerosos especialistas. Todos eles coincidiram em defini-lo como um racionalista associado ao idealismo neo-kantiano do início do século XX e representado por figuras como Hermann Cohen, Paul Natorp, Wilhelm Wildeband, Heinrich Rickert, Ernst Cassirer e Max Weber.3 Como se pode ver nas linhas acima citadas, Sérgio – muito no espírito de Kant – concebe o conhecimento científico não como a expressão de uma estrutura de “factos” dados pelo sensível, mas como o produto de um juízo mental ativo, isto é, da integração dos dados numa estrutura ou sistema de relações/conceptualizações ideais a que chama uma “teoria” ou “hipótese” (Vilhena 2012, 123). Divirjo, no entanto, das interpretações sobre a epistemologia sergiana numa questão nodal: julgo que o ensaísta não conferiu à razão qualquer primazia sobre a sensação, mas que as considerou duas faculdades da consciência complementares e ligadas pela “percepção”.
8No mesmo parágrafo, o ensaísta diz claramente: a “faina” do entendimento não consiste em “ir extraindo o abstrato de um objeto sensível anteriormente dado”. Para a mente não existem tais factos “dados”; ela não tem acesso jamais à realidade nua e crua – à “coisa em si”. Portanto, há sempre factos “percebidos”, interpretados. “A natureza e a actividade pensante” são para Sérgio “correlativas de ponta a ponta, e entre si pressupostas e inseparáveis”. Por isso, salienta, o que a consciência faz é “ir concretizando cada vez mais o concreto pela integração progressiva das relações ideais” – por outras palavras, traçar, estruturar, construir ou concretizar uma realidade sensível que é sempre percecionada pela mente como já traçada, estruturada, construída, concretizada. Em síntese, segundo Sérgio, todo o objeto físico pressupõe uma inteligência ou subjetividade criadora de estruturas ideais, de sistemas de perguntas e respostas – hipóteses e teorias. O mundo em que vivemos é já uma hipótese e não há “nada na experiência que não seja uma hipótese” (Sérgio 1982, 15-16).
9Esta noção da natureza “perspectivista” e “hipotética” do conhecimento é fulcral, pois revela-se assustadoramente paralela aos princípios teóricos da estética “sensacionista” pessoana. Num texto intitulado “Principios do [Sensacionismo]” (ca. 1916), Pessoa (1966, 168) resume os postulados da sua tese em três pontos centrais: 1) todo objeto é uma sensação nossa; 2) toda arte é a conversão duma sensação em objeto; 3) portanto, toda a arte é a conversão duma sensação numa outra sensação. Andrés Ordoñez (1991, 63) observou que tais princípios exibem a forte marca neo-kantiana que o pensamento de Pessoa tinha na altura. Isto torna-se ainda mais evidente se compararmos estes três pontos, ou melhor, se os complementarmos com as afirmações feitas pelo poeta num outro texto contemporâneo “Sentir é criar. Agir é só destruir” (ca. 1915):
O universo objectivo é uma alucinação simultânea dos sensórios, uma média abstracta entre ilusões […] Ver uma coisa e imaginar uma coisa visível são fenómenos idênticos. Apenas os diferencia a colocação espacial da imagem visualizada. O mundo exterior é uma alucinação em comum, uma criação-média das imaginações somadas. A única realidade verdadeira é a sensação. (Pessoa 1993, 147)
10Tal como no caso do Sérgio das “Divagações proemiais”, para o Pessoa “sensacionista” de 1915-1916 parece não existir uma “realidade objectiva” acessível ao intelecto humano que não seja o próprio “conceito” ou “versão” da realidade que surge na mente através da “sensação” – “não há realidade, mas apenas sensações artificialmente coordenadas” (Pessoa 1966, 190). Segundo vários dos seus escritos doutrinários sobre arte e literatura, o teórico do Orpheu entendia a “sensação” como um processo inteiramente subjetivo em que o “temperamento individual” elabora, organiza, interpreta o “caos abstrato”, os “dados sensíveis” da realidade (Ordoñez 1991, 63). Ora, esta série de interpretações subjetivas eram para ele precisamente a matéria-prima da arte, cuja tarefa era “objectivá-las”, convertê-las noutras interpretações subjetivas, em novos “conceitos de realidade” ou “sensações”. A arte, em síntese, era assim um jogo irónico de interpretações de sensações cujo alvo consistia em “aumentar a autoconsciência do homem” mostrando-lhe as múltiplas, subjetivas e limitadas maneiras como ele percebe ou “sente” o “caos abstracto” da realidade (Pessoa 1966, 183-184; Ordoñez 1991, 64-65; Guimarães 2004, 53-54, 77-78).
11O conhecimento dos princípios da estética sensacionista dá pistas sobre as raízes da tendência de Fernando Pessoa para se exprimir “permanentemente a quatro vozes” (Reis e Lourenço 2015, 77). Perante as limitações da própria sensação para apreender a “totalidade poliédrica” do mundo em que se encontra imersa, o exercício de “abstração extrema” fornecido pela “despersonalização” ou “fragmentação” irónica do sujeito, que consiste em pensar e sentir como o “Outro” e na sua projeção em diversos planos, permite ao artista elaborar múltiplas “versões” ou “perspectivas” da realidade (Ordoñez 1991, 81, 100; Guimarães 2004, 80-82; Lourenço 2013, 33). Nas palavras do próprio Pessoa (1966, 93), os seus heterónimos Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Bernardo Soares seriam “inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas”.
12A meu ver, é possível encontrar na Introdução geográfico-sociológica de Sérgio uma atitude análoga à célebre heteronímia ou “drama em gente” de Fernando Pessoa. Refiro-me especificamente ao ponto de vista “perspectivista” que permeia a totalidade do texto, não se tratando de uma posição meramente teórica. Este perspetivismo teria pelo menos duas principais manifestações discursivas: por um lado, a posição irónica ou cética que o sujeito da enunciação assume em relação a qualquer teoria histórica, mesmo no que diz respeito à própria; por outro lado, a patente dispersão ou fragmentação da sua voz autoral nas vozes de múltiplos outros intérpretes da história de Portugal. Estas duas formas de expressão discursiva são, em última análise, correlativas. Segue-se uma análise pormenorizada de cada uma delas e das suas implicações.
13Em primeiro lugar, a posição irónica. Em conformidade com a sua abordagem da qualidade hipotética ou teorética de todo o conhecimento, Sérgio concebe o pensamento histórico como um campo onde nunca são propostos e disputados “factos puros” – a mente nunca tem acesso a eles – mas teorias sobre sucessos históricos. Por isso, a questão fundamental do conhecimento histórico é a validade de uma teoria, e esta não pode ser reduzida a uma questão de provas testemunhais e de factos “estabelecidos”. Pelo contrário, o que deve ser avaliado é a coerência e a inteligibilidade do encadeamento de ideias. Uma teoria histórica como, por exemplo, a de que a conquista de Ceuta foi o efeito do “interesse económico de certas classes sociais” – e que contrasta com aquela outra que concebe o fenómeno em termos de “excesso de pujança da nação portuguesa” –, diz ele:
é comparável a uma renda de bilros toda ela tecida pela nossa mente, e para a qual a sensação deu alguns alfinetes, e nada mais que alfinetes. Salvo melhor juízo, o problema é o de saber qual das várias “teorias” nos ministra mais clara compreensão dos casos. (Sérgio 1982, 16-18)
14Desta conceção do conhecimento histórico como “combate de teorias” decorre o reconhecimento irónico do carácter inacabado, esquemático, subjetivo e problemático de qualquer “interpretação da nossa história”. Desde as primeiras páginas da Introdução, Sérgio (1982, 1-5, 37) afirma-o explicitamente nas definições que dá quanto à tonalidade do texto: “ensaio histórico social”, “mancha”, “esquema”, “investigação de uma rota”, “perspectiva”, “sugestão”. E se é possível duvidar de que a enunciação teórica é posta em prática, tal receio desvanece-se quando se observam as múltiplas vezes em que, ao longo dos capítulos do texto, o escritor “intervém”, corta o artifício da representação mimética de uma descrição geográfica ou de um processo socio-histórico para exprimir ao leitor o carácter hipotético da sua interpretação do fenómeno, sempre em contraste com outras interpretações. Um bom exemplo desta operação é o corte que faz na descrição do litoral adjacente à foz do Douro e da situação socioeconómica da população do Norte de Portugal, para voltar a partilhar o seu argumento “hipotético”, a sua teoria sobre a história portuguesa como empreendimento burguês (Sérgio 1982, 143).
15Como já foi referido, há uma segunda manifestação do perspetivismo de Sérgio que o liga ainda mais à cultura modernista portuguesa: o ponto de vista múltiplo. É preciso esclarecer que Sérgio não foi um criador de heterónimos como Pessoa; contudo, no discurso do ensaísta há também o fenómeno da “fragmentação” ou “pulverização” do autor em múltiplos pontos de vista (Guimarães 2004, 95, 118). Este fenómeno discursivo toma forma logo na primeira página da Introdução. Aí, Sérgio diz: este “ensaio” trata-se de uma “interpretação da história pátria”, que procura iniciar o leitor na “natureza histórica dos problemas fundamentais da nossa gente”, mostrando-lhe, em primeiro lugar, “em que é que eles consistem”, “como se apresentam nas diferentes épocas”. Mas o que se segue dá a chave para entender a “oscilação” de perspetivas que enforma o texto: a tomada de consciência dos problemas da pátria passa por uma iniciação em “o que deles pensaram no decorrer dos tempos os melhores espíritos de Portugal (pois cremos que na história de um dado povo se inclui a do pensamento dos seus homens de escol acerca da sociedade de que fazem parte)” (Sérgio 1982, 1). Tendo em conta esta afirmação, não é de estranhar que a Introdução seja um livro feito com “factos”, “materiais” e “pensamentos” retirados de outros escritores – historiadores, geógrafos, literatos, antigos e modernos. Talvez a melhor imagem deste modo de proceder tenha sido criada pelo próprio autor: do livro “apenas me pertence o que chamarei ‘forma’, o pensamento da obra, o seu plano crítico, o fio que liga as alheias pérolas e que serve a ensartá-las como num colar” (Sérgio 1982, 4).
16Mais uma vez, estas afirmações não se ficam por meros enunciados teóricos. A Introdução é construída a partir de excertos retirados de documentos, poemas, estudos geográficos, outras histórias dos quais Sérgio atua como uma espécie de coordenador de perspetivas. E aqui não faltam exemplos. Neste caso, por razões sintéticas, refiro-me apenas ao tratamento discursivo que ele dá ao problema da relação socioeconómica da classe proprietária rural com a classe operária (Cf. Sérgio 1982, 197-200). Num único e longo parágrafo com a invulgar extensão de quatro páginas, Sérgio oferece ao leitor um quadro “panorâmico” da situação histórica das populações rurais no Portugal moderno. Na construção deste quadro, o autor aparentemente não traz nada de novo ao assunto, uma vez que a maior parte da sua argumentação se baseia no trabalho de outros escritores e não numa operação indutiva fundamentada na revisão de fontes inéditas. No entanto, quer nos seus elementos formais, quer no seu conteúdo, a natureza da abordagem manifesta originalidade.
17Como sabemos pelas “Divagações proemiais”, o autor estava menos interessado em representar o sucesso histórico – e.g. a subordinação económica do proletariado rural ao proprietário absentista – do que na sua interpretação por múltiplas vozes ao longo dos séculos. O valor do trecho reside precisamente aí, em ser uma composição que inclui não só a perspetiva de Sérgio, mas a de muitos outros escritores: desde a de Duarte da Gama (século XV) e dos oitocentistas Almeida Garrett, José Agostinho de Macedo, Herculano e Oliveira Martins, até à de contemporâneos como o Comissariado do Desemprego e ele próprio, António Sérgio. Em suma, o que é evidente neste parágrafo e em muitos outros lugares da Introdução é a dissolução intencional do historiador como sujeito monopolista e omnisciente da enunciação sobre a realidade do passado – a fragmentação do ponto de vista historiográfico num conjunto de pontos de vista que têm coincidências e divergências hermenêuticas em relação a um mesmo fenómeno, seja ele a reflorestação, a pobreza minhota, a importância dos mares, a grande propriedade ou o proletariado agrícola (Sérgio 1982, 48, 51-52, 58, 65-67, 84-85, 91, 131-132, 155-157, 172, 177, 197-199).
18Tanto quanto se sabe, Sérgio escreveu a Introdução com a ideia de que constituiria o tomo I da sua História de Portugal. De acordo com o “Plano” que se encontrou nos seus papéis, esta obra seria composta por outros oito tomos que obedeceriam não só a uma sequência cronológica, mas também narrativa: contariam a história de Portugal, desde o período formativo da sua sociedade na antiguidade lusitana e greco-latina até à atualidade (Sérgio 1982, 271). No entanto, do livro projetado apenas restam o seu famoso “Plano” e o primeiro tomo, que, embora originalmente intitulado “I – Introdução geográfica”, foi posteriormente publicado sob o título autónomo que conhecemos. Contudo, a Introdução é independente não só na questão trivial do título, mas sobretudo na sua composição. Acontece que, ao contrário do que é sugerido pelo “Plano”, o índice da Introdução não manifesta qualquer marca de diegese no sentido tradicional do termo. Os seus capítulos ostentam títulos como “II – O ambiente geográfico e as regiões naturais-sociais” ou “VI – A população”, que não revelam uma temporalidade específica nem a execução de uma ação por um determinado sujeito. Precisamente por estas características discursivas, poder-se-ia dizer que é um trabalho que partilha com obras contemporâneas da narrativa modernista portuguesa a sua tendência para a dissolução dos conceitos de personagem, da ação e do enredo inerentes ao realismo mimético (Mourão-Ferreira 1985, 92-97; Guimarães 2004, 95; Sousa 2021, 75-81).
19Afigura-se válido começar a análise da estrutura narrativa da Introdução com uma pergunta muito simples: há uma personagem principal nesta história? No primeiro capítulo, intitulado “A ‘Occidental praia’ do continente europeu”, a meio de uma discussão sobre a possibilidade de considerar a geografia como fator fundamental para a independência de Portugal, Sérgio lança uma afirmação que parece definir tal personagem e até designar a forma discursiva sob a qual vai expor o seu desenvolvimento: “Não será a história da nação portuguesa a biografia de uma grei que não acreditou em limites, e que contou nos anais da civilização humana precisamente pelo facto de que não acreditou em limites?” (Sérgio 1982, 30). Ora, a acreditar-se que Portugal é a personagem principal do texto, ter-se-á de concordar que ele não é biografado da forma como a historiografia nacionalista o teria feito, ou seja, sob a ideia organicista de que possuía um carácter unitário e homogéneo essencial (céltico ou moçárabe) que tinha evoluído ao longo das épocas (Torgal et al. 1998, 249, 254; Matos 2004, 207). Pelo contrário, na Introdução esta personagem é revelada desde o início como fragmentada e suspensa na ambiguidade temporal. Talvez por causa desta indeterminação, as mais de 200 páginas do livro são dedicadas à caracterização da personagem, à construção e à descrição da sua experiência. Esta operação é efetuada por Sérgio recorrendo a estratégias narrativas modernistas tais como a vista panorâmica, o estilo paratático e a montagem.
20Portugal, sugere-se logo nas primeiras páginas do texto, não tem uma unidade “natural” pois tem uma composição territorial extremamente diversificada – “Do lado de Portugal, como atrás dissemos, o solo abaixa-se gradualmente, da fronteira ao mar […] por isso que variam de maneira acentuada as condições geológicas, geográficas, climáticas do nosso país português” (Sérgio 1982, 47). E como o modo de ser da população de um país é dado pela “relacionação espacial” que ela estabelece com o meio geofísico (Sérgio 1982, 32), portanto pode-se dizer que Portugal é uma acumulação dissemelhante de sociedades – pelo menos duas, a do Norte e a do Sul – que, em função do espaço que habitam, se têm dedi-
cado bem à pequena produção agrícola, à transumância, ao cultivo da grande propriedade, à pesca, à salinação, ao comércio e ao transporte marítimo:
A todo esse território que ficou descrito podemos nós dividi-lo em duas grandes zonas, como dissemos atrás: a zona ao norte do Rio Tejo e a zona ao sul deste mesmo rio – distintas pelo clima, pela vegetação, pelas culturas, pelo génio e costumes dos que lá residem. (Sérgio 1982, 124-125)
21Sendo, portanto, a heterogeneidade “posicional” ou “relacional” que distingue as diversas populações portuguesas, o que Sérgio empreende no seu texto é um inquérito que tenta resolver uma questão que, na opinião de alguns teóricos da história, é vital para esta forma de consciência: a procura de um centro moral/político que torne possível a unidade da ação e, portanto, da narração (Ricoeur 1983, 382, 395; White 1987, 11-21). Assim, o que está em causa na Introdução é a identificação de uma personagem a quem se possa mesmo atribuir o nome “Portugal” e que, por isso, possa ser concebida como o sujeito de uma história, de um conjunto de experiências factuais narráveis: “E propomos a hipótese de que a condição geográfica na criação e expansão da nação portuguesa como corpo político independente foi o significado topográfico dos nossos portos para a actividade marítima-comercial europeia [...]” (Sérgio 1982, 32). A fim de demonstrar esta hipótese, Sérgio constrói uma “visão panorâmica” das terras, costas, águas e povos do país. Para o efeito, nos capítulos “II – O ambiente geográfico e as regiões naturais-sociais” e “III – A faixa litoral e o comércio marítimo, a pesca, a salinação”, ele empreende uma operação figurativa que é invulgarmente semelhante à que, no capítulo LV de Nome de guerra, de Almada Negreiros (2001), o protagonista Antunes imagina ao estar à janela da sua “água-furtada” com os olhos postos no Tejo:
Poder-se-ia ver Portugal inteiro de uma só olhadela, como no mapa, em aeroplano? – Palmela e Almada, de cá, Sintra e Santarém, Mouros. Afonso Henriques. Os Cruzados. E desde então até hoje. Até aqui a esta água-furtada. Até mim. Tanta gente e tantos séculos encarreirados por aqui: as quinas, Avis, caravelas, o pelicano, a esfera armilar, Filipes, azul e branco, encarnado e verde, e continua. Nada para mim. Portugal. (Negreiros 2001, 140-141)
22É certo que a abordagem de Sérgio será muito mais desenvolvida do que a de Antunes-Almada, mas o objetivo de apreender a diversidade espacial e temporal de Portugal “num lance de olhos” é análoga (Sérgio 1982, 154). Assumindo uma perspetiva “voo de pássaro”, Sérgio traça um recorrido por Portugal continental que segue um eixo norte-sul, do Minho até ao extremo sul do litoral algarvio – “Submetida ao leitor esta visão de conjunto, percorramos o País numa vistoria rápida, e na atitude do aprendiz de historiador-sociólogo, não propriamente na do aprendiz de geógrafo” (Sérgio 1982, 61). Este ponto de vista globalizante, que parece atingir imediatamente a unidade caracterológica desejada, é posto em causa porque de imediato a totalidade preliminar “Portugal” retoma-se em termos analíticos e divide-se em partes chamadas “regiões naturais-sociais” – “Podemos considerar, para o nosso escopo, as seguintes regiões naturais-sociais. Para norte do Tejo: Alem-Douro Litoral, ou Cismontano (Minho) […] Depois, cortados pelo curso inferior do Tejo, o Centro Litoral (Estremadura) e o Ribatejo […]” (Sérgio 1982, 61). A partir deste ponto, o que temos é uma descrição das especificidades de cada região, tanto das suas características geofísicas como das atividades económicas que as suas populações desenvolveram ao longo dos séculos (Sérgio 1982, 61-125, 127-184):
Foram importantes as pescarias do Tejo, chegando a permitir a exportação para Castela. André de Resende, o autor das Antiguidades da Lusitânia (1593), fala da abundância de ostras e sáveis que se pescavam nas águas deste rio. A oliveira é muitíssimo antiga nas comarcas vizinhas do vale do Tejo. Apiano (historiador grego do século II), referindo-se a Viriato, conta que acampou nas proximidades do rio, num monte coberto por oliveiras, e Plínio fala (primeiro século) da doçura das azeitonas lusitanas. Em tempo de D. João I (1385-1433) foram promulgadas providências para a boa conservação e qualidade do azeite, e reconhece-se no reinado de D. João III (1521-57) a necessidade de fomentar a produção azeiteira, determinando-se libertá-la de quaesquer impostos, para benefício do seu comércio […] Escreve Nunes de Leão (1528-1608) que «a grande quantidade que deste fruto [azeitona] há em Portugal não podem negar as terras dos Estados de Frandres, de Alemanha e de muitas partes dos reinos de Castela-a-Velha, Leão, Galiza, e a Índia Oriental, Brasil e ilhas dos Estados de Portugal, que se sustentam do azeite que dele se faz, que se tira para fora da Espanha» […] Hoje, é principalmente na Estremadura, nos férteis campos do Ribatejo em torno de Santarém e da Golegã, no Alentejo e em parte das Beiras, sobretudo no distrito de Castelo Branco, que se nota a existência de maiores olivais, e que a indústria da extracção tem maior importância / Pode dar-se o nome de Alentejo (é a terra da grande propriedade) à zona situada para o sul do Tejo […]. (Sérgio 1982, 108-109)
23Várias coisas podem ser ditas sobre a forma como estas descrições são construídas. Em primeiro lugar, um dos seus elementos mais marcantes é o seu estilo paratático. Como explica Sousa (2021, 82) no caso do romance modernista, a parataxe consiste na preferência pela justaposição e coordenação de frases e imagens em detrimento da sua subordinação a um sentido diegético marcado pela lógica progressiva, causal ou mesmo teleológica das ações ou dos pensamentos. Por exemplo, o Livro do desassossego é na sua totalidade uma acumulação paratática de fragmentos discursivos justapostos em que “o ajudante de guarda-livros”, o semi-heterónimo Bernardo Soares, regista as suas impressões dispersas sobre a sua experiência no mundo, particularmente na cidade de Lisboa (Pessoa 2009, 15-16). Por outro lado, em Nome de guerra encontramos abundantes acumulações de imagens, ideias, descrições, enumerações, reflexões justapostas ao nível sintático e sem qualquer relação de causa-efeito – e.g., no capítulo XXXVI os fragmentos de cartas enviadas pela mãe de Antunes com frases por vezes incompletas, sem ligação aparente entre os extratos (Negreiros 2001, 96-97, 115; Sousa 2021, 70-71).
24Um estilo semelhante de construção paratática pode também ser detetado na passagem citada da Introdução. Falando das pescarias na margem sul do Tejo, nomeadamente nas baixas do Sorraia, Sérgio passa – sem apontar nexo de causalidade ou qualquer outra forma de continuidade – para a cultura da oliveira na região do Centro Litoral. O que vemos, então, no texto é a justaposição de um conjunto de impressões ou descrições fragmentárias, desconexas sobre a produção de azeitonas e de azeite retiradas de trabalhos de natureza variada e escritos por pessoas de diferentes épocas ao longo do tempo – Apiano, Plínio, Nicolau de Oliveira, Nunes de Leão. No final, dá-se conta da situação atual da cultura da oliveira na região; em seguida, o parágrafo termina de forma abrupta e passa a falar da geofísica e da situação socioeconómica do Alentejo (Sérgio 1982, 109).
25Outra característica de sintaxe paratática que talvez não seja totalmente visível no excerto é a justaposição ou mesmo a intersecção de temporalidades. Nos parágrafos citados, observa-se que, embora não haja uma relação causal entre os ditos de Plínio sobre a “doçura das azeitonas lusitanas”, o elogio de Nicolau de Oliveira ao abundante azeite ribatejano e o testemunho sergiano sobre a fartura de oliveiras em Castelo Branco, os enunciados aparecem dispostos numa estrutura cronológica – um teve lugar no século I, outro no século XVII e ainda no século XX. No entanto, o mais comum na Introdução não é a sequencialidade, mas a justaposição temporal do passado e do presente. A manifestação mais visível dessa fragmentariedade narrativa é o uso muito frequente por Sérgio das estratégias discursivas da prolepse e da analepse:
Aveiro, no século XV, foi dos portos mais prósperos da nossa costa, e por ele se exportavam nesse mesmo século os vinhos e os azeites de Coimbra. Hoje tem actividades bastante variadas: pesca longínqua, do alto mar e do rio, assim como a indústria de produção de sal. Ao que parece, foram os de Aveiro e os de Viana os iniciadores da pesca do bacalhau na zona dos bancos da Terra Nova; e no tempo de D. Manuel (1459-1521) era este porto de toda a costa que mais naus enviava àquela zona. (Sérgio 1982, 144)
26Ao longo do texto, Sérgio vai e volta do passado para o presente e vice-versa (Sérgio 1982, 52, 55, 59, 144). Os tempos são justapostos, e até sobrepostos, dando a impressão ora de permanência – o que não é o mesmo que continuidade –, ora de atemporalidade – “Toda essa costa do nosso país, que num lance de olhos se acabou de correr para lhe marcar os portos e a respectiva história, foi sempre teatro de pescaria intensa […]” (Sérgio 1982, 154). O resultado é que o leitor parece antes estar a contemplar um quadro de “regiões naturais-sociais” com um passado e um presente fragmentados, mas permanentemente localizados no mesmo plano espacial. Esta imagem do “quadro” é fundamental para compreender a natureza modernista da Introdução. O que o leitor encontra ao percorrer os capítulos do livro é uma espécie de mosaico ou montagem textual bidimensional. O texto fala de todos os temas que estão relacionados com o espaço geofísico e a produção socioeconómica de cada uma das regiões de Portugal – clima, orografia, hidrografia, paisagem, economia, organização social, população (Sérgio 1982, 63-64); e refere-se à situação ou condição de cada um destes elementos quer no passado antigo e medieval, quer na modernidade – sem que necessariamente se siga esta ordem cronológica, mas sim que todos estes tempos estejam presentes no mesmo eixo ou plano.
27Mas a qualidade de “montagem” do texto não se limita aos temas e tempos diversos e fragmentários que aborda, estando para além disso relacionada com as estratégias heurísticas e arquitetónicas empregadas na sua construção. Acontece que Sérgio é uma espécie de bricoleur que justapõe e sobrepõe materiais retirados de outros discursos (Donahue 1993, 192) cujo objetivo não foi o de fazer uma análise ou uma avaliação aprofundada de um qualquer fenómeno desta ou daquela região portuguesa, mas que usa precisamente para atingir este fim. Obras historiográficas antigas e recentes, textos filosóficos, versos de poemas, descrições literárias, mapas, quadros estatísticos – como no caso do Livro do desassossego – tudo isto é extraído pelo autor do seu contexto original para integrar uma nova estrutura em que a descrição geográfica aparece justaposta à análise sociológica e económica, ao relato histórico e até à prospetiva e ao projeto de reorganização social (Sérgio 1982, 49, 75-76; Pessoa 2009, 15-16).
28É então a Introdução um quadro puramente síncrono? Não há narração nas suas páginas, pelo menos no sentido tradicional mimético-realista em que o enredo se estrutura a partir da continuidade das ações singulares e intencionais da personagem ordenadas causal e teleologicamente. No texto não aparecem grandes indivíduos que realizem ações políticas movidas por um qualquer propósito último. Há só um actante com nome próprio, “Portugal”, mas trata-se de um sujeito difuso, coletivo – uma “quase-personagem”? diria Ricoeur (1983, 395) –, constituído por sujeitos anónimos, as sociedades das suas “regiões naturais-sociais” cujos feitos são sempre impessoais (Assis 2023, 7, 32). Para além disso, o que encontramos no livro, mais do que ações, são experiências: às práticas quotidianas regulares das populações portuguesas que perduram ou permanecem quase idênticas ao longo dos séculos – o cultivo, a produção de tecidos, a pesca, a salinização, o absentismo burguês, a exploração dos trabalhadores agrícolas; sucessos que simplesmente acontecem sem qualquer relação causal entre si (Sérgio 1982, 133-136, 141, 195, 197, 204). Um bom exemplo disto é a abordagem às atividades produtivas da Beira Central: sem estabelecer qualquer nexo causal ou temporal entre elas, Sérgio trata, por um lado, da realização de lanifícios pela população da Covilhã e, por outro lado, da migração temporária da população de Castro Laboreiro para as colheitas no Alentejo (Sérgio 1982, 94-97). Neste caso, como em muitos outros abordados no livro, o que se refere são eventos cujo sentido impessoal e não intencional é intensificado até pelo uso do pronome impessoal “se” – o que implica que as coisas acontecem sem qualquer intenção por parte de algum sujeito envolvido:
Hoje [na região Centro Litoral] topa-se aí uma população em crise, assoberbada pelos tributos, e sobretudo pelas taxas corporativas. Entretanto, está-se generalizando a cultura do trigo, a das árvores de fruto, a dos legumes, e vão-se introduzindo por entre as cepas algumas culturas intercaladas (feijão, grão-de-bico, batatas). (Sérgio 1982, 103)
29Só num parágrafo do último capítulo, “VI – A População”, Sérgio dá sinais de montar um brevíssimo enredo tradicional: o percurso da pequena-burguesia comercial marítima cosmopolita que, se diz, por um ato de vontade, deu origem a Portugal, mas que depois se extraviou, descurou a terra e caiu no capitalismo parasitário (Sérgio 1982, 208). A verdade, porém, é que este microrrelato é mais um elemento da montagem. Embora esteja nas páginas finais da Introdução, não é, de modo algum, a conclusão do texto. Não se trata de uma recapitulação nem de uma síntese dos conteúdos anteriores. Pelo contrário, o relato aparece ali como fragmento, no meio de uma discussão sobre como remediar o estado de degradação em que se encontra o povo português. Em suma, se o que se conta neste livro é uma “biografia de Portugal”, como no caso das “Confissões” de Bernardo Soares, trata-se de uma “biografia sem factos”, de um discurso em que o sujeito da enunciação parece ter apenas registado as suas “impressões sem nexo, nem desejo de nexo” (Pessoa 2009, 50).
30A narrativa modernista, defende Jameson (1984), emana de duas crises que ocorreram no início do século XX. Em primeiro lugar, a extinção das categorias tradicionais da experiência social provocada pela consolidação da economia capitalista – o questionamento da relevância do acontecimento único e imprevisível, compreendido tradicionalmente com base em conceitos como a providência ou o destino, que conduz à consideração do acontecimento individual como irrelevante para os ciclos e padrões históricos. Em segundo lugar, a crise do signo e da narrativa mimético-realista – o ceticismo quanto à relação “natural”, referencial entre o signo e a coisa, a narrativa e o mundo histórico-social, levando à sustentação da autonomia do texto em relação à realidade (Jameson 1984, 211-216). A sensibilidade modernista, como já se viu nos casos de Pessoa, Almada e Sérgio, exprime estas crises através da criação de discursos que 1) adotam uma posição perspetivista; 2) escapam à progressão causal ou teleológica; 3) tendem para o paratático; 4) não deixam de lembrar ao leitor a qualidade ficcional ou hipotética das personagens e dos padrões; e 5) negam mesmo a possibilidade de uma ação intencional e significativa e, portanto, de um enredo tradicional (Sousa 2021, 70-71, 125-137). No entanto, para além do que se poderia imaginar, o modernismo não abandonou a narração. Os seus produtos não são discursos que se “desfazem em fragmentos”; pelo contrário, ele criou um novo conceito de unidade narrativa (Jameson 1984, 217-221).
31Este conceito pode ser explicado em termos daquilo que Louis O. Mink (1987) entende como a “compreensão configurativa” associada a formas culturais como a literatura, a crítica literária e, sobretudo, a historiografia. Trata-se da “visão sinóptica” de uma série de objetos – por exemplo, o imaginário de um poema, as sensações, as ideias e as ações de uma personagem de um romance, os acontecimentos de uma guerra – como elementos de um único complexo de relações. Consiste em pensar em conjunto, sobrepondo “num único ato de pensamento”, as relações complexas entre partes que só podem ser experimentadas sequencialmente (Mink 1987, 52-59). É precisamente a esta operação que a narrativa modernista apela. Ao contrário da narrativa mimética, em que o todo significativo que emerge das partes é imanente ao discurso, tal como construído e desenvolvido pelo próprio narrador, a modernista deixa ao leitor a tarefa transcendental e irónica de realizar ele próprio a operação “sinóptica” de juntar as “peças” do “quebra-cabeças” numa composição unitária ideal. Assim, por exemplo, nos casos de A confissão de Lúcio (1914) e de Nome de guerra (2001), e ainda mais explicitamente no caso do Livro do desassossego (2009) – construído apenas pelos críticos e não pelo próprio Pessoa –, é o espectador que, através do ato de leitura e releitura, começa a tomar consciência do que Joseph Frank (1991, 10-20, 34, 63-64) chama de “referência reflexiva”: a perceção de que as imagens fixas, justapostas, desconexas e bidimensionais dos pensamentos e acontecimentos das personagens dos romances poderiam configurar uma estrutura unitária, ideal ou transcendente, constituída por partes que se sobrepõem e se refletem mutuamente (Guimarães 2004, 109-111; Sousa 2021, 75-93, 120-121, 168-169, 180-183).
32Na Introdução de Sérgio a operação de “compreensão configurativa” está mesmo nas mãos do leitor. Quando se chega ao último capítulo – “VI – A População” – e se depara com os parágrafos que contêm o microrrelato sobre o papel da burguesia comercial-marítima na história de Portugal, e um pouco mais à frente com a crítica do autor à historiografia nostálgica do seu tempo, não é clara a ligação destas partes no que respeita ao percurso analítico e descritivo das “regiões naturais-sociais” do país que constitui o conjunto do livro. Cabe ao leitor juntar os fragmentos, sobrepô-los e compreender a unidade narrativa do texto – a “totalidade orgânica e malhas de uma rede de relações internas” que constitui a “biografia” sergiana de Portugal (Sérgio 1982, 130). A Introdução surge, então, ao leitor como um “quebra-cabeças” que constitui um todo ideal, sendo as “peças” dele os traços analíticos de Sérgio sobre a pobreza socioeconómica de cada uma das regiões portuguesas como consequência quer das características geofísicas do próprio território, quer da incapacidade das sociedades para adaptarem esse ambiente aos seus propósitos. E só assim se torna clara a hipótese em que o livro se baseia e que já conhecemos: que a independência e a histórica vocação marítima de Portugal não são produtos do “excesso de vigor” da “monarquia agrária”, mas resultaram da vontade de uma burguesia de carácter europeu que procurou extrair do mar (pesca, salinação, comércio e transporte) aquela riqueza que o meio natural do ocidente peninsular lhe negou (Sérgio 1982, 32).
33Mas porque é que Sérgio escolhe esta forma tão pouco ortodoxa de desenvolver a sua hipótese sobre a história de Portugal? Vou tentar aqui a resposta que me parece mais plausível. Recorde-se que a Introdução surge em plena comemoração do “Duplo Centenário da Fundação e da Restauração da Nacionalidade” (1940), evento em que, através de exposições, livros e revistas, o jovem Estado Novo posicionou a sua conceção “ortodoxa” da história nacional: “Às almas dilaceradas pela dúvida e o negacionismo do século – afirmava Salazar a 26 de maio de 1936 – procuramos restituir o conforto das grandes certezas. Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Pátria e a sua história” (Salazar 1935-1967, 130; Torgal et al. 1998, 273-279, 300-306). Contrariamente a historiadores como João Ameal, Rodrigues Cavalheiro, António Beirão ou Alfredo Pimenta, Sérgio rejeita as “grandes certezas” históricas das direitas governantes – a ficção do progresso inequívoco do carácter português através dos grandes sacrifícios heroicos dos “Ouriques”, “Aljubarrotas”, “Descobrimentos” e “Restaurações” (Rosas 2022, 140-142, 160-162) – e, à maneira de Nietzsche, reconhece nelas um conjunto de “prejuízos”: “demasiado histórico tem já sido o povo e o seu modo de vida na actualidade não está muito acima do da Idade Média” (Sérgio 1982, 211). Como resposta a este “excesso” de história, como fuga ao “Espectrismo”, à “adoração do passado” pela história nostálgica que conduz à estagnação da “Grei” no presente, ele propõe antes uma história “não-histórica” (Sérgio 1982, 21, 212).
34A proposta de Sérgio partilha o espírito modernista de rejeição da história no seu sentido historicista tradicional, ou seja, a noção de que a intelecção de qualquer fenómeno, seja ele factual ou imaginativo, mas sempre considerado único e irrepetível, passa pelo reconhecimento das suas relações empíricas com outros fenómenos e pela sua inscrição num tecido temporal contínuo, causal e/ou teleológico organizado por etapas – a chamada “profundidade histórica” manifestada na estrutura narrativa das obras historiográficas e dos romances realistas (Frank 1991, 63-64). Este historicismo foi abandonado no início do século XX, sobretudo pelos poetas e romancistas modernistas que começaram a aperceber-se, por um lado, da ficcionalidade da estruturação progressista do percurso histórico humano e, por outro lado, da sua incapacidade para apreender uma realidade fragmentária e caótica.
35Em contrapartida, inspirados no neoplatonismo e no neokantianismo, alguns desses escritores assumiram modelos narrativos “a-históricos” que era suposto terem um sentido “intemporal” e “universal” (Sousa 2021, 70-71, 130-137, 173). Exemplos disto podem ser encontrados em obras como Ulisses, de James Joyce – que recorre ao mito, nomeadamente à Odisseia (Jameson 1984, 217-221) – ou Nome de guerra, de Almada Negreiros (2001) – cuja estrutura reflete um padrão geométrico de lógica ternária (Sousa 2021, 168-169). Nesses textos, a demarcação da história historicizante e a adoção de formatos como o mito ou a “pintura metafísica” (Mourão-Ferreira 1985, 100-101) esbatem a linha divisória não só entre o “real” e o “ficcional”, mas também entre o passado e o presente (White 2014, 57). Tudo é agora colocado sob a égide do “possível” e já não como uma “certeza”, e além disso é apresentado num formato bidimensional onde os fenómenos do passado e do presente aparecem justapostos e/ou sobrepostos, afirmando assim a sua contemporaneidade.
36À luz destas considerações, proponho que a Introdução teria também recorrido a um modelo narrativo “não-historicizante” para apresentar o seu conceito de história portuguesa. Há alguns indícios que o poderiam sustentar, a começar pela indicação algo vaga que, no último parágrafo do seu texto, Sérgio faz sobre o “interesse” em escrever a história do “povo português”, que devia idealmente responder a um impulso “racionalista” de “unidade unificadora” ligado a uma “sede de infinidade […] à fé na obediência a uma missão suprema, à mística contemplação de uma Beleza eterna” (Sérgio 1982, 213). Uma outra pista seria dada pelo título hiperbólico do primeiro capítulo do livro: “A ‘Ocidental praia’ do continente europeu”. Considero que esta referência paródica a Os Lusíadas fornece a chave tanto do modelo narrativo que Sérgio utiliza para estruturar o livro como do sentido “a-histórico”, presentista ou mesmo futurista que pretende dar-lhe.
37O tipo de estrutura verbal ou género em torno do qual este livro parece estar organizado é aquele que Mijail Bajtín (2012) e Northrop Frye (1971) definem como “sátira menipeia”. Segundo estes críticos, é uma forma discursiva que teve origem na Antiguidade Clássica – sendo o verso a sua forma discursiva original – e da qual existem alguns indícios de ter sido praticada na sua forma prosaica por poetas gregos como Menippeus (s. III a.C.) e Luciano (c. 125-180), bem como por poetas latinos como Varrão (116 a.C.-27 a.C.), Petrónio (c. 27 a.C.-66 a.C.) e Apuleio (c. 125-170). A sátira menipeia teve, no entanto, uma vida que transcendeu os seus desenvolvimentos antigos. Os seus cultivadores modernos incluem Rabelais, Burton, Swift, Voltaire, Sterne, Peacock, Flaubert e Dostoievsky. Já no século XX, é também de salientar que foi um dos géneros preferidos da prosa modernista. Encontramo-la, por exemplo, nas obras de Joyce, Beckett e Pessoa, entre outros.
38Uma das principais características da sátira menipeia é o facto de estar livre de qualquer exigência de verosimilhança externa, daí a sua tendência para se concentrar menos nas ações das personagens do que nas atitudes mentais, nas ideias abstratas e nas teorias. Nesse sentido, ela tende a caracterizar as suas personagens sob a forma de porta-vozes das ideias que representam – geralmente ideias sobre as “questões últimas” da vida. Por outro lado, as situações, os enredos ou mythoi deste género podem ser fantásticos ou morais, ou mesmo uma combinação de ambos. Normalmente, o enredo assume a forma de uma “aventura excecional” que consiste numa descida do “protagonista-ideia” aos mais baixos domínios da natureza humana (erros, sonhos noturnos, visões, loucuras, contradições), através da qual a ideia filosófica subjacente é posta à prova. Muitas vezes, para além da representação dos infernos e bordéis, o enredo inclui a introdução de um elemento utópico.
39Outro aspeto importante a salientar é o recurso constante do poeta, por um lado, à “fantasia experimental” de observar a natureza humana de pontos de vista inusitados – por exemplo, das alturas –, e, por outro, à “observação humorística” e à “caricatura” dos temas, ideias e até de uma personagem clássica da menipeia: o erudito ou philosophus gloriosus. Em ambos os casos, trata-se de um ponto de vista distanciado. A sátira menipeia é a encarnação de uma perceção “carnavalesca” ou “paródica” de um mundo considerado cheio de oxímoros e contrastes acentuados. Daqui resulta a sua preferência por um estilo rapsódico de escrita, o uso da prosa e do verso, as transições abruptas e inesperadas, a apresentação de coisas distantes e desarticuladas e a intercalação de géneros diversos como a epístola, a oratória, o simpósio, o conto ou o romance.
40A sátira menipeia caracteriza-se também pela sua contemporaneidade, constituindo uma espécie de crítica aos factos e conhecimentos filosóficos, religiosos, históricos, ideológicos e quotidianos do seu tempo. A sua expressão mais tangível é a “saturação” ou “farrago enciclopédico”, exemplificado nos grandes catálogos de peixes e métodos de adivinhação referidos por Rabelais ou na constituição enciclopédica de Bouvard e Pécuchet, de Flaubert (1928). Outra manifestação satírica desta erudição exaustiva é o trabalho chamado “anatomia”. O exemplo clássico é a Anatomia da Melancolia, de Burton (1621). Neste texto, a sociedade humana é estudada em termos do padrão intelectual fornecido pelo conceito de melancolia, através de um simpósio de livros que substitui o diálogo. Diz-se que na Anatomia encontramos “o mais completo relato da vida humana” cujas famosas “digressões” satíricas e eruditas – sobre o ar, sobre as viagens maravilhosas, sobre os espíritos, sobre as misérias dos eruditos – são um destilado das “formas menipeias” (Frye 1971, 309-312; Kellner 1989, 163-179; Bajtín 2012, 226-236).
41Tanto no seu conteúdo como na sua forma, a Introdução manifesta os elementos que a crítica atribuiu a uma sátira menipeia. Para começar, é um texto que não pretende referir-se a uma realidade exterior ao próprio mundo dos discursos. Como se mostrou, Sérgio pensa a sua obra como uma “interpretação” do modo como os grandes problemas de Portugal foram “interpretados” historicamente por outros. O que ele ensaia é, pois, um simpósio de interpretações. Este ponto oferece pistas para um segundo elemento: o enredo do livro é a “aventura de uma ideia” no “submundo” das interpretações da história de Portugal e das misérias socioeconómicas portuguesas. Ao longo de todo o texto, o que está em causa é a validade da hipótese defendida por Sérgio através da análise da situação geofísica e socioeconómica particular de cada uma das regiões do país. E a hipótese é, em si própria, irónica: a existência livre de Portugal nasce da experiência da miséria geofísica e da má gestão da terra, situação que impulsiona os interesses económicos da burguesia do ocidente peninsular que tem de se tornar marítima para a ultrapassar.
42No entanto, não deixa de ser paradoxal o facto de ser esta vocação marítima, que permitiu a sobrevivência de Portugal, que Sérgio aponta como estando na origem da miséria moderna do país e que tem de ser modificada para que se realize a “utopia”, quer dizer, a “era da abundância” através do “fomento agrícola” (Sérgio 1982, 205). Esta hipótese não passa, afinal, de uma paródia ou caricatura da meta-narrativa da história portuguesa como feito heroico ultramarino, fundada em Os Lusíadas e atualizada durante séculos pelos eruditos ou philosophus gloriosus portugueses. Mas, para além disto, há que ter em conta as estratégias menipeanas de estruturação formal deste argumento: recurso ao perspetivismo, à visão aérea, ao estilo rapsódico ou paratático, às transições abruptas e à mistura de géneros – verso poético, citações historiográficas, digressões filosóficas, análises sociológicas e económicas, mapas, tabelas, planos e previsões políticas, etc. Todos estes elementos conferem ao texto uma tonalidade enciclopédica e crítica da situação do Portugal contemporâneo.
43Para concluir, a fim de aprofundar as implicações éticas da estrutura satírica, “não-histórica” da Introdução, talvez seja útil voltar ao título irónico e ao parágrafo inicial do seu primeiro capítulo: “Visto por um critério de geografia humana, ocorre-nos que Portugal se poderá definir como a ‘ocidental praia’ da Península Ibérica; digamos, até, que como a ‘ocidental praia’ de toda a Europa [...]” (Sérgio 1982, 23). Utilizando a operação da “referência reflexiva” proposta por J. Frank (1991, 10-20, 34, 63-64), reconhece-se que a modificação hiperbólica do célebre verso que abre Os Lusíadas leva o leitor a tomar consciência de dois pontos relativos ao livro todo. Primeiro, que nas suas páginas se representa uma utopia traída, mas ainda possível: aquilo que Portugal poderia vir a ser, uma “cunha europeia e burguesa introduzida na massa das populações ibéricas” (Sérgio 1982, 32). Segundo, que há uma solução prática para alcançar essa utopia: o despertar do “povo português” do seu “sono histórico”; a renúncia paródica à história historicizante, “nostálgica”, dos eruditos salazaristas, obcecada pelo passado – pela epopeia camoniana –, alimentada por inconsistências lógicas e paralisada pelo impulso documental. Não apenas na frase citada do primeiro capítulo do livro, mas através de toda a sua estrutura narrativa “não dogmática”, “a-histórica” e satírica, Sérgio pretende criar o que chama de uma história “de hoje”, preocupada em transformar o “viver presente”. Esta história, como é o caso das sátiras menipeias e das narrações escritas sob o ponto de vista da consciência irónica, exprime a crise contemporânea da tradição, o confronto de factos e de escolas de pensamento, a desagregação e a degradação da vida social e política. É por isso que, mais do que no passado, tem em vista o presente e o futuro (Bajtín 2012, 236).
44Contudo, reconhece-se que na altura Sérgio não esteve sozinho neste esforço contra a tradição e a favor da utopia. Alguns anos antes, Almada, por exemplo, inspirado pelo “Manifesto futurista” de Marinetti (1909), lançou o seu próprio “Ultimatum futurista” (1917), no qual apelava ao abandono das formas artísticas do passado e à emergência utópica de uma “arte total” e de um “homem completo”. A proposta da Introdução parece inserir-se no programa ético-estético renovador do modernismo português (Guimarães 2004, 60). Nesse sentido, dada a sua sensibilidade para a forma, este texto representaria um apelo à escrita de uma “história estetizante”, uma história que abandona o logos à procura do mythos? Não é bem assim. A ideia, o conceito, está na base dele. É mais uma obra historiográfica que reconhece a unidade logos-mythos; quer dizer, o substrato plausível e configurativo implícito na argumentação de uma tese histórica – “O pensamento (a admitir tal suspeita) não seria estruturação de quaisquer ‘dados’ prévios, não teria unicamente uma função expressiva, mas seria algo construtivo e activo” (Sérgio 1982, 15).