- 1 Diário do Governo, Ia série, n.° 133, 1931, p. 1080.
1Trinta anos após retornar da sua primeira experiência de pesquisa doutoral em Lisboa, em 1985, Sanjay Subrahmanyam (2015, 286-292) lamentava a “desordem” que então reinava no Arquivo Histórico Ultramarino. Criado em 9 de junho de 1931 pelo decreto-lei 19.868, o Arquivo Histórico Colonial (AHC), que em 1951 passaria a designar-se Arquivo Histórico Ultramarino, foi concebido para “guardar, inventariar e catalogar os documentos que interessem ao estudo e conhecimento da história política, administrativa, missionária, militar, económica e financeira da colonização portuguesa”.1 Esta ambição institucional e cultural era totalmente política, inscrevendo-se no ímpeto colonizador que se afirmara desde o fim da monarquia até à república e que se mantinha após o golpe militar de 1926. Com o Estado Novo, é forçoso constatar uma refundação do império colonial que toma a forma de uma centralização, colocando todo o aparelho estatal ao serviço da ambição imperial (Alexandre 2017, 22; Vargaftig 2016, 1).
2A criação do AHC também pode ser contextualizada por um crescente, mas conturbado, interesse das autoridades estatais pelos arquivos e bibliotecas. Desde o final do século XIX, afirma-se em Portugal o paradigma patrimonial (Ribeiro 2008a) e, a partir de 1910, sob o impulso do novo regime republicano, uma política ambiciosa é iniciada. Um Arquivo Histórico Militar foi mesmo criado em 1911, prefigurando o do Ministério das Colónias. No entanto, os arquivos ministeriais não conheceram uma evolução uniforme (Ribeiro 1998, 687). O golpe de estado militar de 28 de maio de 1926 resultou em cortes orçamentais para os arquivos e bibliotecas (Ribeiro 2008b, 226-229). O recomeço da formação dos arquivistas portugueses pelo estado assumiu a forma do decreto 19.952, de 27 de junho de 1931, que profissionalizava ainda mais o Curso Superior de Bibliotecário e Arquivista criado em 1887 (Ribeiro 2006, 55-57; Vivas 2012, 27). O diploma também reorganizava a Inspeção das Bibliotecas e Arquivos, fundada em 1887, que passou a beneficiar de prerrogativas ampliadas entre controlo administrativo e técnico sobre numerosos estabelecimentos do país (Ribeiro 2008a, 121-127).
3A nível internacional, a criação do AHC insere-se num contexto imperial europeu bastante heterogéneo. No Reino Unido, o Public Record Office administrava os arquivos governamentais desde 1838, incluindo os do Colonial Office, criado em 1854. Só em 1903, um comité do Colonial Office se debruçou sobre a seleção e destruição dos documentos do ministério (Banton 2015, 104). Em 1943, o governo britânico decidiu dividir a sua produção arquivística em duas partes: de um lado os arquivos consultáveis, do outro aqueles que não deveriam cair nas mãos das forças do Eixo (Hiribarren 2023). Em França, o primeiro serviço de arquivos criado no Ministério das Colónias data de 1920 (Dion 2017, 304). Nos Países Baixos, se os arquivos da Vereenigde Oost-Indische Compagnie estavam acessíveis desde 1856, os arquivos do Ministério das Colónias (1814-1959) só foram transferidos ao longo das décadas de 1960 e 1970 para os Arquivos Nacionais. Na Bélgica, aquando da doação do Congo ao estado belga pelo rei Leopoldo II, o soberano optou por queimar os seus arquivos, e os arquivos do Congo e do Ruanda-Urundi só ficaram acessíveis a partir de 1997-1998 (Hiribarren 2017). Na Alemanha, a perda das colónias em 1919 ocasionou a transferência dos arquivos dos Camarões, entretanto destruídos em abril de 1945 nos últimos combates da Segunda Guerra Mundial. O fundo do Gabinete Imperial das Colónias permaneceria nas mãos dos arquivos da RDA até ao final da Guerra Fria (Hänger e Herrmann 2019, 232-234).
- 2 Mais tarde denominada Instituto de Estudos Ultramarinos (1954), depois Instituto Superior de Ciênci (...)
4No cruzamento entre uma ambição imperial e uma reorganização da administração dos arquivos, a criação do AHC indica o quão problemático era para o estado português a “fábrica dos arquivos coloniais” (Houllemare 2014): dispersão da documentação, diversidade dos fundos, condições de conservação desiguais, manejo dos documentos produzidos pela administração colonial da época. Trabalhar sobre o AHC/AHU é, assim, propor uma “história pelos arquivos” (Potin 2022, 331-335) da dominação imperial e colonial portuguesa durante o Estado Novo, a fim de apreender os mecanismos arquivísticos do “estado imperial metropolitano” (Cahen 2016, 131). Trata-se, precisamente, de estudar a instituição oficial de uma relação administrativa com o tempo histórico da dominação imperial portuguesa, desde a conservação da documentação que remonta ao século XV até ao arquivamento do império contemporâneo no AHC/AHU. Nem todo o conjunto da documentação colonial portuguesa se encontra entre as paredes do palácio da Ega, em Lisboa, sede do AHC/AHU. Durante o Estado Novo – e mesmo antes e ainda hoje –, outras instituições conservavam ou conservam documentos produzidos no âmbito da dominação imperial e colonial portuguesa: a Biblioteca Pública de Évora (criada em 1805); a Sociedade de Geografia de Lisboa (1875); a Escola Superior Colonial (1906);2 o Museu de Etnologia do Ultramar (1965), depois Museu Nacional de Etnologia; e o Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT). Os arquivos pessoais e privados também desempenham um papel na conservação de documentos produzidos em situações coloniais (Vicente 2014, 13-14).
5Desde a década de 1990, o ato de arquivar tem vindo a ser desnaturalizado, quer pelos próprios arquivistas, quer pelos historiadores desejosos de esclarecerem as operações através das quais se constitui o conhecimento histórico (Poncet 2019). Em Portugal, as reflexões de Maria de Lurdes Rosa (2017, 547) inserem-se neste esforço de formulação de uma arquivística que historiciza as instituições responsáveis pela preservação dos documentos do passado. A tese fundamental de Fernanda Ribeiro (1998) forneceu um esboço para uma história dos arquivos. O trabalho de Ana Canas Delgado Martins (2007a) permitiu considerar a relação entre governo e gestão de arquivos quando a corte se mudou para o Rio de Janeiro durante a Guerra Peninsular. Mais recentemente, a questão do estatuto da documentação colonial tem sido objeto de importantes trabalhos: os documentos são considerados a par das coleções de objetos nas suas circulações transimperiais (Roque 2013); os arquivos coloniais são considerados à luz da relação entre história e etnografia (Roque e Traube 2019); as fotografias são constituídas como um objeto por inteiro na história colonial e imperial portuguesa (Vicente e Ramos 2023).
6Familiar às historiadoras e historiadores do império português, o AHC/AHU tem sido objeto de alguns trabalhos nos últimos vinte anos. O valor patrimonial dos seus fundos foi assim estudado (Abrantes e Martinheira 2002). As políticas arquivísticas implementadas no seu seio também foram objeto de reflexão (Casanova e Martins 2010). Além disso, foi concebido como um lugar de memória do Portugal imperial, inserido no espaço da antiga capital do império (Vicente 2021). Finalmente, a questão político-administrativa do acesso aos arquivos, corolário da questão memorial, foi levantada (Martins 2007b). No entanto, um estudo detalhado dedicado a esta instituição ainda está por ser escrito. Trata-se de recolocar o AHC/AHU na economia geral do estado metropolitano, bem como do império colonial, com base nos trabalhos que, desde o final dos anos 1990, se têm interessado pela questão da administração estatal (Subtil 1996). Uma tese recente examinou os circuitos da correspondência colonial portuguesa no seio da Direção-Geral do Ultramar durante o século XIX (Henrique 2019). A administração portuguesa conheceu um fortalecimento significativo desde a segunda metade do século XIX (Almeida 2007), levando a que papéis e instrumentos burocráticos se multiplicassem nos serviços do estado (Almeida 2008). Sob o Estado Novo, o número de funcionários triplicou, com a afirmação da administração no funcionamento do regime (Pereira 2014, 107-108, 131). À medida que o uso da escrita para administrar Portugal e o seu império se intensificava, as necessidades de arquivamento aumentavam. Garantindo a sua conservação, os agentes do AHC/AHU participavam na patrimonialização, num país que ainda contava com 40% de analfabetos em 1940 (Gomes e Machado 2021).
7Este artigo é um primeiro passo no estudo a longo prazo do arquivo em questão. Em que medida a criação e posterior desenvolvimento do AHC/AHU, longe de resolver os problemas arquivísticos do Ministério das Colónias, levou os atores da época a enfrentarem a questão dos arquivos coloniais? Depois de salientar a dimensão conflitual da criação do AHC na primeira secção, a segunda secção contextualizará a sua criação à escala do império. A terceira secção mostrará como a questão do valor dos arquivos se colocou entre a microfilmagem e as exposições. Na quarta secção, veremos como a gestão dos arquivos oscilava entre a falta de espaço e a questão do acesso aos documentos. Para este estudo, recorremos aos arquivos do arquivo, nomeadamente ao próprio arquivo do Arquivo Histórico Ultramarino. Esse último é a “caixa negra” da instituição e a sua documentação permite conhecer o quotidiano do AHC/AHU. O arquivo do gabinete do ministro também se encontra no AHU e pode ser consultado para enquadrar o arquivo no contexto do ministério e do império. Foram ainda consultados os arquivos da Inspeção das Bibliotecas e Arquivos Públicos (ISBA) e a documentação relativa ao AHC/AHU no Arquivo Oliveira Salazar, ambos no ANTT.
- 3 Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa (AHU), Arquivo do Arquivo Histórico Ultramarino (AAHU), AS/Pt (...)
- 4 Diário do Governo, Iª série, n.° 133, 1931, p. 1080.
8A criação oficial do AHC, em 1931, completa um processo iniciado cinco anos antes. Já em 1926, o bibliotecário-arquivista do Ministério das Colónias, António José Pires Avelanoso (1861-1938), sugeria que os arquivos do ministério fossem todos reunidos no palácio da Ega (Junqueira), então dependência do Hospital Colonial (Iria 1950, 41-42). Considerado o fundador da nova instituição, ele recebeu o título de diretor honorário do AHC. A transferência dos arquivos começou no verão de 1931. O processo foi supervisionado pelo seu sucessor, Manuel Múrias (1900-1960), que dirigiu o AHC de 1931 a 1946.3 Ao contrário de Pires Avelanoso, Múrias não era arquivista nem bibliotecário, mas professor na Escola do Magistério Primário de Lisboa. Manuel Múrias baseou-se no artigo terceiro do decreto fundador que especificava o conteúdo do novo AHC: documentos manuscritos de natureza histórico-colonial em posse do Ministério das Colónias, documentos estatais equivalentes conservados nos arquivos dos governos coloniais, documentos cartográficos e iconográficos relativos ao império, documentos com mais de dez anos produzidos pelo Ministério das Colónias e documentos oferecidos por particulares.4
9A criação do AHC insere-se numa longa história de gestão dos fundos documentais relativos às colónias. Os arquivos do Conselho Ultramarino, cuja criação remonta a 1643, foram transferidos em 1833 para a Secretaria de Estado dos Negócios da Marinha e Ultramar. Esta última, devido à falta de espaço, transferiu a documentação para a Biblioteca Nacional de Lisboa (BNL) a partir de 1889, onde passou a constituir a Secção Ultramarina, em 1901. Em 1911, o novo Ministério das Colónias herda a documentação da Secretaria de Estado, sem recuperar, no entanto, os papéis do Conselho Ultramarino. O projeto de Arquivo Histórico, embora nascido após o golpe de estado militar de 1926, insere-se numa certa continuidade ideológica com o período republicano, já que as elites em Portugal, desde a monarquia constitucional até ao Estado Novo, eram marcadas por um “nacionalismo imperial” (Castelo 2010, 29). A documentação colonial torna-se matéria de tensões a partir de 1931, quando começa a sua reunião pelo novo centro de arquivos. Embora o AHC dependesse do Ministério das Colónias, outras grandes instituições documentais, também detentoras de arquivos coloniais, estavam subordinadas ao Ministério da Instrução Pública. Criado em 1913 no âmbito de um regime republicano que dava grande importância às questões pedagógicas, este último era responsável pelos arquivos e bibliotecas através da ISBA. A história dos fundos, bem como a das tutelas ministeriais ajuda a explicar as tensões associadas às transferências de documentos. Foi o caso quando Manuel Múrias quis recuperar os papéis do Conselho Ultramarino que estavam na BNL.
- 5 AHU, AAHU, AS/Pt. 1296, Incorporação de documentos – n.° 70, Carta de Manuel Múrias ao inspetor das (...)
- 6 AHU, AAHU, AS/Pt. 1296, Incorporação, Carta de Júlio Dantas ao diretor-geral do Ensino Superior e d (...)
10Foram entregues ao AHC entre 7 de setembro e 17 de dezembro de 1931.5 Pouco depois da publicação do decreto-lei que criou o AHC, o inspetor das Bibliotecas Eruditas e Arquivos manifestou sérias reservas quanto à transferência destes documentos.6 Na primeira metade do século XX, a Inspeção tornou-se a instituição central para a gestão dos arquivos em Portugal (Merêncio 2022, 82), sendo dirigida por Júlio Dantas de 1912 a 1946. A primeira crítica do inspetor-geral dizia respeito ao estatuto da documentação agrupada no Arquivo da Marinha e Ultramar: longe de estar sob a custódia temporária da BNL, Júlio Dantas recordava que ela fora integrada como secção plena desta instituição por decreto de 24 de dezembro de 1901. A segunda crítica dizia respeito à transferência, sem compensação para a BNL, do pessoal responsável pela secção para o novo AHC. O que o inspetor-geral criticava aqui era a recusa do Ministério das Colónias em assumir todas as despesas associadas à criação de uma instituição que não dependia do Ministério da Instrução Pública.
- 7 Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Lisboa, Inspeção-Geral das Bibliotecas e Arquivos (ISBA (...)
- 8 ANTT, ISBA, cx. 257, processo n.° 14, Carta do diretor da BNL ao inspetor-geral (19 de janeiro de (...)
11Em janeiro de 1933, a transferência da coleção da BNL para o AHC assume contornos muito mais conflituosos. Manuel Múrias escreve ao inspetor das Bibliotecas e Arquivos chamando a atenção para a ausência de 12 cartas originais e inéditas do Cardeal-Rei, D. Henrique, rei de Portugal entre 1578 e 1580, explicando esta perda pela decisão do diretor da BNL de retirar as cartas das caixas em que se encontravam.7 Pede que se faça uma pesquisa na BNL para encontrar essas cartas e exonera a sua instituição de qualquer irregularidade na gestão da transferência de documentos de 1931. A resposta do diretor da BNL foi uma defesa e uma ilustração da sua instituição.8 Em primeiro lugar, sublinhava o trabalho efetuado desde o final do século XIX para organizar o acervo do Arquivo de Marinha e Ultramar. Em segundo lugar, justificava a sua decisão de não desistir das caixas com aqueles documentos com base no princípio da separação de despesas entre ministérios, recordando os argumentos de Júlio Dantas. A perda de 12 cartas seiscentistas foi, assim, uma oportunidade para os intervenientes tomarem posição sobre questões arquivísticas e administrativas.
- 9 AHU, AAHU, AS/Pt. 1296, Incorporação, Transferência definitiva do Arquivo Nacional da Torre do Tom (...)
- 10 AHU, AAHU, AS/Pt. 938, Processo individual de Joaquim Alberto Iria Júnior – vol. 1 (1946-1953).
12Essa criação sob tensão prolongar-se-ia quando várias instituições patrimoniais reivindicaram a integração nos seus fundos de determinados conjuntos documentais. Alberto Iria (1909-1992) dava grande importância à documentação considerada histórica, aquela que remontava à época moderna. Mais do que atender a regras estabelecidas previamente, os documentos considerados excecionais eram objeto de relatórios concorrentes e cambiantes. É o caso daqueles trocados por Alberto Iria com o ANTT.9 Alberto Iria foi nomeado diretor do AHC em 1946,10 em substituição de Manuel Múrias, chamado a ocupar o cargo de inspetor do Ensino Colonial no Ministério das Colónias, permanecendo à frente do AHC/AHU até 1975. Antigo estudante do Curso de Bibliotecário-Arquivista, tendo passado pelo Arquivo Histórico do Ministério das Finanças e pela Biblioteca da Ajuda, ocupava o cargo de bibliotecário-arquivista da Assembleia Nacional quando foi nomeado diretor do AHC. Desde a sua posse e até ao início dos anos 1970, mostra-se muito ativo, lançando grandes campanhas de catalogação e inventário, uma reorganização das salas de conservação e uma modificação das regras internas de funcionamento.
13Em janeiro de 1947, Alberto Iria quis incorporar um Livro dos Regimentos do Conselho Ultramarino (1642-1726) no fundo do Conselho Ultramarino do AHC, que já dispunha do Livro 2.° de Regimentos (1727-1766), pelo que se tratava de aplicar as normas arquivísticas que desaconselham a dispersão de fundos documentais. A documentação do Conselho Ultramarino, recuperada através de grande luta da BNL em 1931, constitui a primeira – e talvez a mais prestigiada pela antiguidade do seu conteúdo – das duas secções do AHC. Para Alberto Iria tratava-se, portanto, de garantir que o seu arquivo tivesse o monopólio dos papéis do Conselho Ultramarino. Seis meses depois, o Livro seria oficialmente entregue ao diretor do AHC pelo diretor do ANTT, António Baião. Em 1960, Alberto Iria quis novamente incorporar um documento pertencente ao ANTT, o Livro 1.° de Decretos (1663 a 1702), para juntá-lo ao Livro 2.° de Decretos (1702 a 1737), presente no fundo do Conselho Ultramarino do AHU. O novo diretor do ANTT, João Martins da Silva Marques, recusou, argumentando que era impossível provar a procedência original do manuscrito, e aproveitando para solicitar ao AHU milhares de documentos agrupados sob o nome de Papéis do Reino, os quais tinham equivalente no ANTT. Em reação, Alberto Iria denunciou a falta de conhecimento arquivístico do colega. Além do princípio da unidade dos fundos, lembrava-lhe que os Papéis do Reino não constituíam uma simples coleção mas sim uma série própria do AHU. Como parte integrante dos papéis da Secção Ultramarina da BNL, não pertenciam ao Ministério do Reino mas sim ao antigo Ministério dos Negócios da Marinha e Ultramar e tratavam de questões relativas à metrópole.
14Se Manuel Múrias e Alberto Iria não hesitavam em apoiar-se nas normas arquivísticas da época para justificar as transferências documentais, as arbitragens eram feitas entre as tutelas. O Ministério das Colónias/Ultramar representava os interesses do AHC/AHU, enquanto o Ministério da Educação Nacional e a sua ISBA consideravam os interesses dos outros centros de arquivos. Contudo, o conflito não era permanente, como ficou demonstrado pelo Livro dos Regimentos recuperado em 1947. Pode-se adicionar a transferência da documentação da Secretaria de Estado da Marinha, conservada pelo AHC e depois transferida para o Arquivo Geral da Marinha, criado em 1960 (Ribeiro 1998, 675). A conflitualidade explica-se pela preocupação manifestada várias vezes pelo AHC/AHU de completar os seus fundos, baseada na ambição fundadora de se impor como o centro incontornável para quem queria estudar a presença portuguesa além-mar. A organização original dos fundos da época moderna – 1.a Secção – não foi então respeitada, em favor de critérios geográficos e cronológicos (Ribeiro 1998, 237-238). Esta geografia imperial que ordenava a classificação dos papéis constituía um desafio.
15A criação do AHC testemunha uma dupla preocupação de conservação da documentação mais antiga e, simultaneamente, de reunião de todos os papéis do império colonial que procediam dos serviços oficiais. A articulação da problemática da distância não era nova: em 1808-1820, a monarquia portuguesa já se confrontava com este desafio, entre Lisboa e a corte no Brasil (Martins 2007a, 315-323). Para os diretores do AHC/AHU, as colónias eram ao mesmo tempo territórios onde se conservavam arquivos muito antigos, mas também espaços de onde provinham papéis administrativos mais recentes. O AHC nasceu num momento arquivístico significativo para o império português: o Arquivo Geral e Histórico da Índia Portuguesa é fundado em Goa, no Estado da Índia, em 1930; o Arquivo Histórico de Moçambique é fundado em Lourenço Marques, em 1934; o Museu de Angola é encarregado, a partir de 1938, de conservar a documentação da colónia. Estas criações não foram coordenadas a partir da metrópole. Elas resultaram de iniciativas locais nas quais a direção do AHC não participou. A história deste momento de fundação – ou mesmo de refundação, conforme os casos – ainda está por escrever. Pode-se notar que a antiguidade do acervo e o valor dos documentos conservados constituem questões importantes para as autoridades, governadores das colónias e diretores dos arquivos. Em 1929, o governador de Macau, João Pereira de Magalhães, pretendia, por exemplo, valorizar os documentos mais antigos da colónia publicando-os num boletim específico (Magalhães 1929, 6). Panduronga Pissurlencar, diretor do Arquivo Histórico do Estado da Índia entre 1930 e 1961, não deixava de destacar no seu guia de arquivos que o nome original da sua instituição, Torre do Tombo do Estado da Índia, datava de 1595 (Pissurlencar 1955).
- 11 AHU, AAHU, AS/Pt. 1303, Incorporação de documentos – n.° 76, Arquivo Histórico Colonial (19 de maio (...)
16A posição do AHC neste contexto imperial não ficou definitivamente resolvida com o decreto fundador de junho de 1931. Nem as relações entre essas instituições, nem a homogeneização das práticas e normas arquivísticas, nem o destino dos documentos mais antigos foram ali especificados. Assim, em 1933, Manuel Múrias enviou duas “informações” ao ministro das Colónias, que ficaram sem resposta.11 Em ambos os casos, o diretor do AHC sugeria uma reorganização da gestão dos arquivos coloniais a nível do império. A primeira “informação”, intitulada “Recolha e resguardo dos documentos coloniais”, tratava das condições de conservação dos arquivos nas colónias portuguesas. A colónia angolana era explicitamente mencionada. Manuel Múrias sugeria que fossem organizados centros de arquivos em cada colónia destinados a “concentrar os papéis da administração”, acrescentando que essas novas instituições deveriam depender do AHC, considerado o “arquivo central” do império colonial português. Nesse contexto, o AHC poderia enviar inspetores encarregados de controlarem o bom estado de conservação dos arquivos em cada uma das colónias. Finalmente, ele exprimia o desejo de que todos os papéis anteriores a 1913 fossem entregues ao AHC. Esta proposta, fortemente centralizadora e vertical, colocava os arquivistas metropolitanos como garantes da boa conservação da documentação colonial.
17A segunda “informação”, intitulada “O Arquivo Histórico Colonial e a administração colonial”, tratava mais particularmente das relações do AHC com os governos coloniais. Manuel Múrias lamentava que a existência do AHC nas colónias portuguesas não era conhecida, explicando esta situação pela falta de precisão do decreto-lei de junho de 1931. O diretor reafirmava a necessidade de fazer do AHC o “arquivo central da história da colonização portuguesa”, ou seja, torná-lo mais do que o simples centro de arquivos do Ministério das Colónias. Reforçava a sua argumentação ao indicar que ainda existia junto do secretariado do ministério a secção de “Biblioteca e Arquivo”, responsável mais especificamente pelos papéis ministeriais. O AHC deveria ser o “Arquivo Geral da história do Império Português” que permitiria escrever a história da empresa colonial portuguesa ao longo dos séculos. Para isso, Manuel Múrias queria definir “as relações deste arquivo com as administrações coloniais”, reclamando que cada colónia fizesse uma dotação ao AHC para que este pudesse cumprir as suas missões, e lembrando que a contribuição financeira das colónias já era praticada nos outros domínios da gestão do império. Além de uma proposta detalhada de reorganização das relações entre o AHC e os governos coloniais, estamos aqui perante uma tentativa de aumentar o orçamento de funcionamento da jovem instituição.
- 12 ANTT, Arquivo Oliveira Salazar, Correspondência Oficial, Ultramar, Assuntos Coloniais (1928/1943), (...)
18As duas “informações” de Manuel Múrias parecem ter ficado sem resposta. No entanto, em 1937, uma proposta de lei do gabinete do ministro das Colónias previa reformar a gestão dos arquivos à escala do império.12 Considerando os documentos como património da nação portuguesa, o ministro Francisco José Vieira Machado via nestes arquivos um “poderoso elemento de nacionalização” porque reforçavam os laços entre a metrópole e os portugueses nascidos nas colónias. A questão central que este projeto de lei visava enfrentar era a do acesso prático dos investigadores às fontes que permitiam escrever a história da expansão portuguesa no mundo. Encontra-se a mesma argumentação de Manuel Múrias formulada quatro anos antes. O ministro pretendia estabelecer um quadro no qual o AHC se tornaria o “arquivo central da história da colonização”. Ele toma nota da criação de centros de arquivos nas colónias, mas ainda assim ordena a criação de cinco arquivos históricos, incluindo um em Goa e outro em Moçambique. No entanto, como foi referido acima, estes dois centros de arquivos já existiam no momento em que o gabinete do ministro trabalhava neste projeto de lei.
19Esta estranha ignorância das realidades institucionais pode ser interpretada como uma tentativa de centralizar e verticalizar a gestão dos arquivos em benefício do Ministério das Colónias. O projeto previa assim a criação, no seio do ministério, de uma Inspeção-Geral dos Arquivos e Bibliotecas Coloniais, distinta daquela existente desde 1887. O inspetor-geral seria colocado acima dos diretores de arquivos e dos conservadores para poder coordenar e inspecionar os diferentes serviços. O pessoal dos arquivos seria agrupado num “quadro comum dos serviços de arquivística do Império”, visando criar um quadro específico e comum aos arquivistas do império colonial. A circulação destes dentro das estruturas imperiais permitiria uma melhor uniformização das práticas. A fotocópia era pensada, por sua vez, como o meio mais adequado para completar os fundos dos diferentes arquivos históricos. O projeto previa que a Inspeção-Geral fosse da responsabilidade do governo central – à semelhança do AHC, os centros de arquivos das colónias dependeriam do orçamento das colónias em questão, o que já era o caso na época. Este projeto de lei nunca viu a luz do dia. No entanto, a ambição de uma gestão unificada dos arquivos coloniais permaneceu uma preocupação importante nas décadas seguintes, sendo mais uma questão de iniciativas pessoais.
- 13 AHU, AAHU, AS/Pt. 938, Processo individual de Joaquim Alberto Iria Júnior – vol. 1, Parecer (9 de j (...)
- 14 AHU, AAHU, AS/Pt. 938, Processo individual de Joaquim Alberto Iria Júnior – vol. 5, Carta de Albert (...)
- 15 AHU, AAHU, AS/Pt. 938, Processo individual de Joaquim Alberto Iria Júnior – vol. 5, Carta da Junta (...)
- 16 AHU, AAHU, AS/Pt. 938, Processo individual de Joaquim Alberto Iria Júnior – vol. 6, Carta de Albert (...)
20Por exemplo, Alberto Iria via no primeiro – e único – volume do Boletim do Arquivo Histórico Colonial, publicado em 1950, uma oportunidade para a elaboração de um guia coletivo comum aos diferentes centros de arquivos do império colonial.13 O diretor do AHU também se deslocou às colónias, viajando para Angola em maio de 1965 a fim de realizar uma missão de prospeção nos depósitos de arquivos do Sul da colónia.14 A viagem foi solicitada e financiada pelo Instituto de Investigação de Angola. Além disso, ocorreu num contexto de desorganização relacionada com os inícios da guerra em Angola. Enquanto o Arquivo Histórico, dependente do Museu de Angola, estava instalado nas muralhas da fortaleza de S. Miguel, os fundos documentais foram transferidos em 48 horas para outro edifício a fim de deixar espaço para as forças armadas.15 No final da sua visita, Alberto Iria deveria entregar um relatório para reorganizar os arquivos angolanos, solicitado pelo Instituto de Investigação de Angola, contudo este relatório aparentemente nunca foi redigido.16 A fraqueza dos recursos económicos, as dinâmicas próprias dos diferentes centros de arquivos e a ausência de um forte apoio do Ministério das Colónias para uma solução podem explicar as dificuldades encontradas na implementação de uma política arquivística comum ao império. Se a dispersão dos arquivos constituía para alguns um problema, era precisamente porque esta documentação era um poderoso vetor de memória, como veremos de seguida.
- 17 AHU, Gabinete do Ministro (GM), AMU02048.02-S02-0199/1, Documentação sobre o Arquivo Histórico da Í (...)
- 18 AHU, GM, AMU02048.02-S02-0199/1, Documentação, Carta de António Silva Rego ao ministro das Colónias (...)
- 19 AHU, GM, AMU02048.02-S02-0199/1, Documentação, Carta de António Silva Rego ao ministro das Colónias (...)
- 20 AHU, GM, AMU02048.02-S02-0199/1, Documentação, Carta de António Silva Rego ao ministro das Colónias (...)
- 21 ANTT, Arquivo Oliveira Salazar, UL-28, cx. 787, pt. 3, Arquivo Histórico da Índia – microfilmagem.
21A microfilmagem foi rapidamente encarada como uma forma de encurtar distâncias e de afirmar o valor memorial dos papéis do império. Em 1951, o historiador e professor da Escola Superior Colonial, padre António da Silva Rego (1905-1986), foi encarregado pelo ministro das Colónias de microfilmar os arquivos existentes em Goa.17 No plano de trabalho que apresentou ao ministro, Silva Rego planeava microfilmar um milhão de documentos divididos entre o Arquivo Histórico da Índia Portuguesa e a Biblioteca Nacional Vasco da Gama, com a ajuda do fotógrafo do AHC, Jacinto de Oliveira Dias.18 Interessou-se particularmente pela coleção Livros das Monções, dos quais haviam sido trazidos para Lisboa 62 volumes em 1777, mas ainda restavam 240 volumes em Goa.19 Ao chegar a Goa, Silva Rego mudou de ideias: a ideia já não era microfilmá-los, mas sim levá-los fisicamente para Lisboa. Embora as conversações com o diretor do arquivo, Panduronga Pissurlencar, tenham confirmado a decisão de António da Silva Rego, a transferência destes volumes revelou-se mais complicada do que o previsto. No final, o governador-geral ofereceu-se para enviar algumas caixas a título de empréstimo.20 O agrupamento dos documentos mais antigos na metrópole, tentação expressa em várias ocasiões desde o início dos anos 1930, foi o resultado de negociações estreitas que se inseriam num contexto mais vasto de transferência de objetos das colónias para a metrópole (Roque 2013, 455-456). Na realidade, o que estava em jogo era o controlo de bens simbólicos que são tanto mais importantes quanto contribuem para o prestígio daqueles, os arquivistas, que são os seus guardiões cuidadosos. A importância da microfilmagem dos documentos pode ser avaliada pela presença deste assunto na correspondência oficial de Salazar.21
- 22 AHU, GM, AMU02107/03-S02-0301, Documentação sobre o Arquivo Histórico da Índia (1952-1958).
22Tendo regressado com 50 000 páginas microfilmadas, António da Silva Rego sugeriu que estas não fossem confiadas ao AHC, mas sim à Junta das Missões Geográficas e de Investigações do Ultramar. Criada em 1936, esta instituição era responsável pelo desenvolvimento da atividade científica nas colónias portuguesas. A coleção reunida por Silva Rego constituiu a base da Filmoteca Ultramarina Portuguesa (FUP).22 Fundada a 28 de janeiro de 1952 pelo ministro do Ultramar, Sarmento Rodrigues, a FUP foi incumbida de recolher microfilmes de “todos os documentos importantes – tais como certos manuscritos, livros raros, mapas, etc. – respeitantes à acção dos portugueses no mundo” (Rego 1954, 3). Ainda que o AHU recebesse uma cópia de todos os microfilmes produzidos, a FUP foi concebida como um novo centro de arquivo (Rego 1954, 5). Dirigida por Silva Rego, passou a fazer parte da Escola Superior Colonial em 1953. Esta independência em relação ao AHU explica-se pela personalidade de Silva Rego que visava promover a grandeza desse passado colonial. A ligação entre o AHU e a FUP manteve-se através do Centro de Estudos Históricos Ultramarinos (1955), cuja comissão executiva integrava Silva Rego e Alberto Iria. Utilizando alguns dos colaboradores do AHU, o centro tinha como missão a aquisição de documentos diversos que permitissem escrever a história do ultramar português (Rego 1958, 381). O diferendo entre a União Indiana e Portugal no Tribunal Internacional de Haia (1955-1960) sobre Dadra e Nagar Aveli foi uma oportunidade para o centro aplicar a sua expertise documental numa memória em que as fontes alimentavam os argumentos imperialistas do Estado Novo (Bègue 2007, 998-1021).
- 23 AHU, AAHU, AS/Pt. 1373, Ordem de serviço n.° 241 (18 de outubro de 1954).
- 24 AHU, AAHU, AS/Pt. 1375, Ordem de serviço n.° 579 (30 de dezembro de 1959).
- 25 AHU, AAHU, AS/Pt. 1375, Ordem de serviço n.° 617 (17 de março de 1960).
23Sob o impulso do seu diretor, o AHC/AHU assume a questão da reprodução da documentação colonial. Em 1950, o serviço responsável pelas fotocópias e dactilografia passa a designar-se “de fotografia e fotocópia” (Iria 1950, 68). Em 1954, o fotógrafo da instituição, Jacinto de Oliveira Dias, foi encarregado de microfilmar diariamente os documentos em mau estado,23 mas, a avaliar por uma ordem de serviço de 1959, o trabalho não decorria ao ritmo pretendido pelo diretor.24 O objetivo era criar uma Filmoteca do AHU cujos microfilmes correspondessem aos documentos do próprio arquivo, a doações de outras instituições e a microfilmagens realizadas pelo AHU noutros centros. Os documentos do AHU eram microfilmados em duas cópias: uma para consulta do público investigador e outra para ser guardada em caso de destruição do documento original. O receio de que um incêndio ou qualquer outra catástrofe pudesse destruir o fundo documental do AHU era regularmente manifestado pelo diretor. A preocupação com a preservação das fontes refletia-se também na criação de uma Fototeca Ultramarina Portuguesa.25 Fotografias isoladas ou agrupadas em álbuns tiveram de ser reunidas em novos álbuns e guardadas em armários numerados dedicados especificamente a cada território. Para além das colónias portuguesas da época, a Fototeca Ultramarina incluiria também fotografias da antiga possessão brasileira, como que para abarcar melhor o longo período de domínio colonial português. Este interesse atesta a importância da “cultura visual” na experiência imperial e colonial (Vicente 2014, 12).
- 26 AHU, AAHU, AS/Pt. 1376, Ordem de serviço n.° 874 (28 de junho de 1962)
- 27 AHU, AAHU, AS/Pt. 1377, Ordem de serviço n.° 1052 (21 de outubro de 1964).
- 28 AHU, AAHU, AS/Pt. 1377, Ordem de serviço n.° 1141 (4 de novembro de 1966).
- 29 AHU, AAHU, AS/Pt. 1378, Ordem de serviço n.° 1309 (7 de abril de 1969).
24Alberto Iria utilizou as cópias de documentos de arquivo para manter ligações com atores académicos e institucionais do Brasil e a doação de microfilmes passou a fazer parte de uma diplomacia cultural muito ativa durante a década de 1960. Esta diplomacia centrou-se em dois tipos principais de instituições. Por um lado, as universidades, quer através dos muitos investigadores brasileiros que passaram pelo AHU durante as suas visitas a Portugal nas décadas de 1950 e 1960, quer através da doação de microfilmes, por exemplo, à Universidade do Rio Grande do Sul (Porto Alegre)26 e à Faculdade de Teologia da Universidade de Rudge Ramos (São Paulo).27 Por outro lado, também os museus beneficiaram destes presentes documentais, tendo o AHU microfilmado documentos relativos ao Forte de São Marcelo (Bahia) para o Museu do Atlântico Sul, em Salvador,28 doação que resultou numa exposição apresentando a documentação portuguesa in situ. O Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro também adquiriu microfilmes.29 Diga-se que estas trocas de documentos com o Brasil se inscreviam, já desde a década de 1940, na ideologia pan-lusitanista promovida pelo Estado Novo salazarista (Serrano 2012, 206-207). As remessas de microfilmes do AHU contribuíam para uma recordação do passado colonial português no Brasil.
25A valorização memorial dos documentos conservados no palácio da Ega também passava pelas exposições documentais organizadas pelo AHU. Elas constituíam tanto a promoção da documentação da instituição quanto um instrumento destinado a alimentar um relato imperial português glorioso. O AHU participava dessas “tecnologias institucionais” que contribuíam para a constituição de uma memória coletiva oficial em torno do império (Peralta 2017, 21). Esse foi o caso, em 1937, da exposição dedicada aos 50 anos da criação da cidade de Lourenço Marques (Múrias 1937) ou ainda da celebração da obra portuguesa no Brasil (Iria 1968). Se as sucessivas exposições eram pensadas como comemorações do passado colonial português, Alberto Iria também as apresenta como fazendo parte de um movimento mais geral que levava os arquivos públicos a apresentarem os documentos para além do círculo dos eruditos. Para ele, tratava-se de abrir o património documental ao grande público; por exemplo, em 1960, no âmbito da Exposição Cartográfica e Iconográfica que comemorava o V Centenário da morte do Infante D. Henrique (Iria 1960, 5-8). Finalmente, a organização de exposições permitia alimentar o vínculo entre a metrópole e os territórios colonizados. Em 1969 e 1972, as exposições que celebraram respetivamente a presença de Camões na Ilha de Moçambique (Iria 1969) e a publicação de Os Lusíadas (Iria 1972) apresentaram cópias de documentos do AHU em Moçambique, no primeiro caso, mas também, no segundo, em Angola, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Guiné.
- 30 AHU, AAHU, AS/Pt. 1310, Suspensão temporária de incorporação de documentos – n.° 83, Carta de Alber (...)
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26As décadas de 1930 a 1950 são marcadas por um intenso trabalho de inventário, catalogação, classificação e arrumação. No entanto, a partir do início dos anos 1960, os arquivistas do AHU rapidamente se deparam com a falta de espaço. Esta situação não era nova, remontando pelo menos ao meio da década de 1910 (Ribeiro 2008a, 57-60). Ao mesmo tempo, as administrações e os arquivistas de outros países, como o Reino Unido ou a Alemanha, também enfrentavam este problema de inflação na produção documental (Ribeiro 1998, 33-34). Em agosto de 1961, Alberto Iria solicita ao Ministério do Ultramar a suspensão temporária do envio de documentos.30 Embora reconhecesse a obrigação imposta ao AHU de integrar os papéis com mais de dez anos (decreto-lei 41.169, de 29 de junho de 1957), o diretor insistia na falta de espaço disponível no palácio da Ega e no prazo demasiado curto fixado pela lei. Alberto Iria completaria o seu pedido com uma nova carta, enviada um mês depois,31 onde sublinhava que o seu serviço conseguira ganhar espaço, mas insistia no risco de má conservação dos documentos integrados a partir de 1961: na falta de armários e prateleiras, as caixas de arquivos seriam guardadas diretamente no chão, no rés do chão, expostas aos ratos. Sobretudo, ele alertava o ministério para o facto de que colocar mais documentos no primeiro andar daquele palácio aristocrático arriscaria desestabilizar a estrutura do edifício. Aproveitava, então, para recordar a necessidade de construir o anexo reclamado junto do ministro desde 1954.
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- 33 AHU, AAHU, AS/Pt. 1310, Suspensão, Carta de Alberto Iria à Direção-Geral do Ensino (6 de março de 1 (...)
27A mudança dos serviços do Ministério do Ultramar para o novo edifício na Avenida da Ilha da Madeira (Restelo) explica, em grande parte, o afluxo de documentos. O Cartório Ultramarino, que dependia da Secretaria-Geral do ministério, era responsável por enviar a documentação administrativa ao AHU. Alberto Iria reformula então a missão da sua instituição e opera uma série de distinções pertinentes à arquivística.32 Para o diretor do AHU, o prazo de dez anos era incompatível com a missão principal de um arquivo histórico. Ele sugeria seguir o exemplo de França e aumentar o prazo de transferência para os 50 anos. Reivindicava ainda a criação de uma comissão permanente encarregada de decidir sobre o destino dos arquivos dos diferentes serviços e organismos do Ministério do Ultramar e, enquanto se aguardava uma solução duradoura, propunha que os arquivos vivos fossem conservados num edifício situado nas proximidades do ministério e do AHU: suscetíveis de serem utilizados pelos funcionários, tratava-se de facilitar o acesso a eles. Mas seria preciso esperar até 1965 para que duas salas pertencentes à Agência-Geral do Ultramar fossem finalmente disponibilizadas ao AHU para armazenar esses arquivos vivos.33
- 34 AHU, AAHU, AS/Pt. 1310, Suspensão, Carta de Alberto Iria ao inspetor superior das Bibliotecas e Arq (...)
- 35 AHU, AAHU, AS/Pt. 1310, Suspensão, Circular n.° 328, Ministério das Finanças (15 de Dezembro de 193 (...)
- 36 AHU, AAHU, AS/Pt. 1310, Suspensão, Carta de Alberto Iria ao presidente do Centro de Estudos Históri (...)
28Alberto Iria inicia, então, uma investigação junto da ISBA para conhecer as normas de conservação adotadas pelos centros de arquivos dependentes deste organismo.34 O que estava em jogo era o valor patrimonial atribuído à documentação produzida pelo estado em face da inflação documental. No caso, a circular n.° 328 de 15 de dezembro de 1939, produzida pela Repartição do Património do Ministério das Finanças, estipulava que nenhum serviço do estado podia destruir ou vender a documentação por si produzida, sob o risco de prejudicar o “património histórico da nação”.35 Por um despacho de 25 de outubro de 1965, o ministro do Ultramar criou uma comissão “encarregada da eliminação de documentos existentes nos vários serviços deste ministério”, seguindo um plano concebido por Alberto Iria.36 O diretor do AHU era membro dessa comissão que devia trabalhar em cooperação com os diferentes serviços do ministério para preparar antecipadamente a seleção dos documentos a integrar nos fundos do AHU. No entanto, há que salientar a ausência de uma política de avaliação documental que permitisse selecionar o que conservar por ter valor histórico e o que eliminar por não lhe ser reconhecido esse valor.
- 37 AHU, AAHU, AS/Pt. 1372, Ordem de serviço n.° 46 (27 de janeiro de 1947).
- 38 AHU, AAHU, AS/Pt. 1372, Ordem de serviço n.° 183 (19 de agosto de 1950); AHU, AAHU, AS/Pt. 1375, Or (...)
- 39 AHU, AAHU, AS/Pt. 1372, Ordem de serviço n.° 127 (24 de fevereiro de 1948).
- 40 AHU, MU, GM, AMU03529.04, Documentação sobre Damão, Dadrá e Nagar Aveli, Carta de Silva Rego ao min (...)
29O acesso aos documentos de arquivo constituía, juntamente com a seleção dos documentos e a sua boa conservação, um terceiro desafio para o Arquivo Histórico. Em janeiro de 1947, Alberto Iria formulava instruções visando melhorar o funcionamento da sala de leitura, garantindo ao mesmo tempo a segurança dos documentos.37 Os funcionários deveriam, em particular, ter cuidado para que os leitores não deixassem qualquer marca escrita nos papéis consultados. A valorização do AHC – a qualidade da sua documentação e dos serviços prestados – constitui um desafio de prestígio para o novo diretor. As “ordens de serviço” eram frequentemente o local de transcrição de cartas de leitores dirigidas a Iria ou de excertos de obras destacando a boa receção recebida e o grande interesse da documentação. Este foi o caso, em 1950, da carta do diretor dos Arquivos Centrais Africanos da Rodésia do Sul, Eric Axelson, ou ainda, em 1957, das páginas do historiador brasileiro Clado Ribeiro de Lessa.38 Se os leitores de destaque sublinhavam a riqueza da documentação, o acesso aos documentos não deixava de ser controlado. Em 1948, uma nota ministerial convidava o diretor do AHC a não dar acesso aos documentos datados de menos de cinquenta anos, em particular os processos individuais dos funcionários.39 Além disso, algumas conjunturas políticas podiam restringir o acesso aos arquivos. Foi o caso em 1956, no contexto do conflito de Nagar Aveli, quando o presidente do Centro de Estudos, António da Silva Rego, solicitou ao ministro do Ultramar que o acesso à documentação relativa à Índia Portuguesa fosse controlado.40
30Este percurso – não exaustivo – através da história do AHU permite mostrar o modo como a criação desta instituição em 1931 contribuiu para problematizar a gestão dos arquivos coloniais em Portugal. Os atores da ditadura militar e do Estado Novo não inventaram o princípio do arquivamento dos documentos coloniais, mas elevaram-no a um problema administrativo, memorial e patrimonial. O AHU foi investido simbolicamente como o lugar institucional da memória do império. O palácio da Ega era apresentado como um lugar onde a história da colonização portuguesa – considerada na época como uma história da expansão – podia ser escrita. Este interesse renovado pela massa de papéis, ao mesmo tempo que assentava na preocupação de organizar quase quatro séculos de produção documental, apoiava-se também na dinâmica imperial portuguesa dos anos 1920 e 1930. Apesar de tentativas de fazer do AHC/AHU a instituição arquivística central, nenhuma uniformização se impôs a essa escala imperial. Os projetos de microfilmagem permitiram, no entanto, realizar cópias de originais conservados nas colónias. Os investigadores – portugueses e estrangeiros – eram o primeiro alvo, de modo a poderem dispor, a partir de Lisboa, dos elementos necessários para a realização de trabalhos dedicados aos primeiros séculos do império português. Se o acesso aos documentos era reservado, as exposições documentais tentavam atrair um público mais amplo, ao mesmo tempo que produziam uma justificação documental do imperialismo português.
31A criação do AHC, fruto de uma vontade de valorização da documentação imperial, insere-se numa história metropolitana do interesse das autoridades pelos arquivos, que remonta pelo menos ao último terço do século XIX. O AHU foi tomando gradualmente o seu lugar no panorama arquivístico da metrópole: as diferentes tensões entre a BNL e o ANTT são exemplos destes conflitos fronteiriços entre instituições responsáveis pela preservação do património documental da nação. Projetado por Pires Avelanoso no final da década de 1920, este novo centro de arquivos foi objeto de interpretações antagónicas entre, por um lado, os serviços centrais do Ministério das Colónias e, por outro, os arquivistas do AHC/AHU. Para os primeiros, o AHC/AHU deveria aliviar os gabinetes ministeriais do excesso de arquivos que se foram acumulando ao longo dos anos. Para os segundos, o AHC/AHU não podia ser um mero prestador de serviços aos gabinetes do ministério a que pertencia. A configuração do palácio da Ega e a falta de espaço foram argumentos fundamentais nas queixas apresentadas pela direção do arquivo ainda na década de 1960. Em janeiro de 1974, o AHU era integrado na novel Junta de Investigações Científicas do Ultramar, uma mudança que reposicionava o arquivo no âmbito das iniciativas que visavam produzir conhecimentos sobre o império.
32Porém, pouco depois, ocorre em Portugal uma profunda mudança de regime com a revolução de abril de 1974 que iria afetar drasticamente tanto o enquadramento institucional do AHU como a sua missão. O arquivo ver-se-ia então confrontado quer com a desestabilização e a reorganização do aparelho de estado (com sucessivas mudanças de tutela), quer com a necessidade de incorporar novas massas documentais, quer sobretudo com o novo quadro político nacional e internacional, marcado pela independência das antigas colónias portuguesas e pelo próprio questionamento do passado imperial do país. O lugar do AHU face à história desse passado, da qual era parte simultaneamente ativa e passiva, interrompe-se e reconfigura-se. Mas esta história do arquivo no pós-1974 é matéria que requer um desenvolvimento alargado que já não cabe no âmbito deste artigo. Por agora, e para concluir, diga-se apenas que o AHU, que sobreviveu a todas as mudanças dos últimos 50 anos e continua a ser uma referência para os investigadores da história colonial de Portugal e das suas antigas colónias, constitui igualmente o lugar de uma memória institucional e um legado do imperialismo do Estado Novo.