1Após um tour por vários estados de acolhimento em África, em 1963, Sadruddin Aga Khan, o alto-comissário adjunto para os refugiados, reportava:
- 1 International Federation of Red Cross Archives, Genebra (doravante, IFRCA), caixa 19737, Oral Repor (...)
Vi muitos refugiados que se queixavam e tentavam compreender por que não lhes era dada uma oportunidade de saírem do que era na verdade uma economia de subsistência, de simplesmente plantarem sementes e recolherem as colheitas, e de novo plantarem o que conseguiam poupar, permanecendo infindavelmente nesta situação.1
2A constatação de Aga Khan reflectia uma viragem na política do Alto-Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR) para o continente. Se até então o ACNUR tinha investido em políticas de assistência emergencial, em contextos problemáticos, como no caso dos refugiados argelinos em Marrocos e na Tunísia, no início da década de 1960, aquando do surgimento das primeiras crises humanitárias na África subsaariana, o ACNUR enveredou por uma estratégia de investimento em projectos limitados de realojamento e produção agrícola, já relacionados com preocupações de subsistência a longo prazo (Crisp 2001 e 2006; Loescher 2001; Gatrell 2013). A partir de meados da década, o esforço da organização que tinha sob a sua alçada a protecção dos refugiados foi pautado por um crescente investimento na sua integração a longo prazo, associando-se a projectos de desenvolvimento em escalas variadas nos estados de acolhimento africanos.
3O novo ethos desenvolvimentista da assistência humanitária tinha um duplo objectivo. Por um lado, assegurar a integração dos refugiados em estados recentemente independentes, desprovidos de estruturas capacitadas para providenciar uma integração concertada e minimamente eficaz. Por outro, garantir a sobrevivência da própria organização dentro de um quadro de expansão que se afastava a passos largos do seu escopo original – a protecção a refugiados da Segunda Guerra Mundial, primordialmente em geografias europeias –, o que, contrariamente à avultada movimentação de fundos para a resolução das crises humanitárias na Europa, colocava sérias dificuldades financeiras para a assistência a um crescente número de refugiados em África. Se os refugiados se encontravam na periferia dos interesses internacionais no continente africano, a actuação do ACNUR, através de parcerias com organizações regionais e locais e, ainda, com agências das Nações Unidas voltadas para o desenvolvimento, parecia ser a resposta adequada para melhorar as condições de vida destes grupos vulneráveis. Esta alteração estratégica começou por ser vista sobretudo como positiva por permitir a expansão do escopo de acção do ACNUR e a consequente “universalização” do estatuto dos refugiados (Loescher 2001; Betts, Loescher e Milner 2008). Outros estudos revelaram também significativas transformações nas formas como a organização operava em contextos africanos – passando de um modelo fundamentalmente focado na protecção para um modelo assistencialista, tanto emergencial como investindo em projectos de desenvolvimento (Crisp 2001 e 2006; Gatrell 2013; Milner 2009; Guardião 2023b) – e, ainda, no seu próprio “olhar” face aos destinatários da acção humanitária (Glasman 2017).
4O presente artigo procura explorar esta viragem, tendo como objecto de estudo o primeiro caso em que o ACNUR actuou, em parceria com outras organizações humanitárias, na assistência a refugiados na África subsaariana: a crise humanitária de refugiados angolanos no Congo-Léopoldville durante a guerra de descolonização. O caso dos refugiados angolanos no Congo mostra-se relevante por várias razões. Primeiro, permite uma análise que atravessa as cronologias do desenvolvimento no colonialismo tardio, amiúde marcado por dinâmicas e modalidades repressivas (Jerónimo e Pinto 2015; Jerónimo 2017), do império português em Angola e do ímpeto desenvolvimentista internacional, simbolizado pelas Décadas do Desenvolvimento das Nações Unidas (anos 1960 e 1970). Incluindo os modelos de assistência adoptados pelo ACNUR no Congo nestes processos, a abordagem procura interligar o local ao internacional a partir de uma análise assente em escalas variadas, respondendo à necessidade de integrar especificidades locais e dinâmicas globais. Nos primeiros anos do conflito, tanto o ACNUR como as autoridades coloniais recorreram a modelos desenvolvimentistas acoplados de modalidades de transferência e realojamento de populações dentro do espectro dos, assim denominados, “desenvolvimento rural” e “desenvolvimento comunitário”. Como o artigo demonstra, as semelhanças das estratégias de actores políticos e humanitários neste contexto são evidentes, não obstante as diferenças nos seus intentos e as transformações das estratégias humanitárias ao longo do período estudado.
- 2 Para uma abordagem geral sobre os movimentos de refugiados oriundos de Angola, Guiné-Bissau e Moçam (...)
- 3 Sobre a liberdade de movimentação enquanto forma de resistência, ver Guardião (2023a).
- 4 “Desenvolvimento rural” e “desenvolvimento comunitário” apresentavam-se como doutrinas de desenvolv (...)
5A partir das especificidades da guerra de descolonização de Angola e do contexto de instabilidade em território congolês, associada à sua recente independência, este caso possibilita, em segundo lugar, uma observação da agência dos refugiados angolanos e também a problematização da sua condição no estado de acolhimento vis a vis aquela no território angolano. Contribui, desta forma, para a recente historiografia que se tem debruçado sobre estes grupos, acrescentando uma perspectiva mais lata a problematizações focadas na (in)capacidade de actuação do ACNUR face à crise humanitária dos refugiados angolanos no Congo (Rich 2021), temporalmente circunscritas (Guardião 2021) ou menos detalhadas na análise das intersecções entre o humanitarismo e o desenvolvimentismo (Guardião 2023b).2 Se em Angola, os refugiados eram sujeitos desprovidos de direitos e submetidos a medidas contrárias ao respeito pelos direitos humanos, no Congo, consciencializados e impulsionados pela actuação dos movimentos de libertação, adoptaram formas diversas de resistência à diminuição dos seus direitos, como, por exemplo, a liberdade de movimentação, associadas a estratégias desenvolvimentistas precárias.3 O estudo deste caso procura, assim, problematizar o desenvolvimentismo em contexto de crise humanitária, analisando os variados impactos dos projectos de “desenvolvimento rural” e de “desenvolvimento comunitário”.4 A adaptação das organizações humanitárias, nomeadamente o ACNUR, ao longo deste processo, marcado pela longevidade do conflito, revela crescentes níveis de eficiência e de integração, não obstante os obstáculos existentes.
6Alicerçando-se em arquivos nacionais e internacionais – International Federation of the Red Cross Archives (Genebra), United Nations High Commissioner for Refugees Archives (Genebra), United Nations Digital Library, Archives Diplomatiques Belges (Bruxelas), Arquivo Histórico Diplomático e Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ambos em Lisboa) –, este artigo contribui para a exploração de novas geografias e cronologias dos movimentos populacionais em África, colocando a questão da descolonização como central para alterações nos modelos de actuação humanitária internacional. Concorre ainda para uma historiografia que procura contextualizar as crises de refugiados em África através das multifacetadas perspectivas dos actores envolvidos, incluindo as dos refugiados, respondendo ao repto de contornar tendências (humanitárias e académicas) de despolitização e amalgamação destes grupos (Malkki 1995 e 1996; Panayi e Virdee 2011; Gatrell 2013 e 2017). O artigo está dividido em duas secções. Na primeira, analisam-se as limitações e as formas de actuação do ACNUR na resposta à crise humanitária dos refugiados angolanos através dos programas de assistência de “desenvolvimento rural” projectados e conseguidos, contextualizando-as nas dinâmicas de descolonização, e do caso em particular, e nos desafios que as mesmas alavancaram. A segunda, explora as formas e os modelos de adaptação do Alto-Comissariado às modalidades desenvolvimentistas das décadas de 1960 e 1970, olhando simultaneamente para dinâmicas internacionais e contextos locais de assistência aos refugiados, bem como para a circulação de saberes entre o “colonial” e o “internacional”.
7Instituído em 1950 pela Organização das Nações Unidas (ONU), visando responder às populações deslocadas da Segunda Guerra Mundial, sobretudo na Europa, nas décadas subsequentes o ACNUR operou com um mandato limitado em várias vertentes: legal, temporal, espacial, financeira e operacional. Na vertente legal porque, apesar de ter estatutos próprios, o mandato do ACNUR foi regido em complementaridade com a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados (CRER 1951) – que determina o comprometimento dos estados no sentido de garantir aos refugiados um conjunto de direitos – bem como com resoluções da Assembleia Geral e do Conselho Económico e Social da ONU. Esta dualidade determinou ainda limitações temporais e espaciais na sua actuação instituídas pela CRER e adoptadas pela maioria dos estados signatários (refugiados reconhecidos até 1951, apenas em território europeu). Temporalmente, estava ainda condicionado pelo facto de o seu mandato ter sido temporário até 2003, devendo a continuação da organização ser periodicamente aprovada pela Assembleia Geral. No plano das limitações financeiras, apesar de ter conseguido estender o seu escopo de acção no final dos anos 1950, esta expansão logrou-se através de um mecanismo ad hoc – “bons ofícios” – que, à época, não lhe permitia utilizar o seu Fundo de Emergência. Logo, dependia substancialmente de donativos para a sua actuação. O conjunto destas questões limitava ainda a operabilidade do ACNUR, órgão responsável primordialmente pela protecção internacional dos refugiados, cuja actividade de assistência, focada no repatriamento voluntário ou na integração a longo prazo, era substancialmente diminuta em situações de emergência. Desta forma, o ACNUR dependia da cooperação com organizações que operavam no terreno na resposta a contextos de emergência.
- 5 Sobre a intervenção da ONU no Congo e as estratégias internacionais e imperiais, os trabalhos de Al (...)
8A extensão do mandato do ACNUR, através dos seus bons ofícios, esteve indelevelmente associada aos contextos de descolonização violenta. O mecanismo efectivou-se, pela primeira vez, na resposta às crises de refugiados em Marrocos e na Tunísia (1957-62) decorrentes da guerra de descolonização argelina (Loescher 2001; Tarradellas 2018; Guardião 2023b). Ainda nesse período, o espoletar da guerra de independência de Angola levou à segunda actuação da organização fora da Europa, a primeira na região subsaariana. Na sequência das rebeliões em vários distritos do Norte de Angola, no primeiro trimestre de 1961, e da resposta musculada das autoridades portuguesas a partir de Março, milhares de angolanos, na sua maioria Bakongo, atravessaram a fronteira para o Congo-Léopoldville em busca de refúgio. Acolhidos num primeiro momento por comunidades limítrofes à fronteira, o crescente influxo de refugiados – de 6 mil em Abril para 127 mil em Julho – rapidamente se acrescentou às dificuldades de gestão das autoridades de Léopoldville. Marcado por conflitos violentos desde a declaração da independência em meados de 1960, o Congo, estagnado economicamente, dependia da assistência internacional para responder a múltiplas crises humanitárias no seu território. A tentativa de secessão do Catanga, objecto de intervenções controversas por parte de forças da ONU que se estenderiam até 1964,5 dificultou, desde logo, a assistência humanitária aos refugiados angolanos no Baixo-Congo.
- 6 Para informação mais detalhada sobre os diversos posicionamentos nestes debates, ver Guardião (2021 (...)
- 7 United Nations High Commissioner for Refugees Archives (doravante, UNHCRA), Angolan Refugees – Gene (...)
9A partir de Abril, Felix Schnyder, o alto-comissário das Nações Unidas para os refugiados, iniciou um conjunto de diligências por forma a inteirar-se da situação dos angolanos. Comunicações sucessivas com o seu representante na ONUC, John Kelly, e com a Liga das Sociedades da Cruz Vermelha (LSCV), que operavam no terreno, revelaram que, num primeiro momento, a situação dos refugiados era estável devido ao apoio das populações locais. Porém, o fluxo exponencial de refugiados, aliado a dificuldades de comunicação e logística, levou a uma saturação dos recursos locais e à necessidade de assistência externa. Nesse hiato, a questão angolana foi amplamente debatida em vários órgãos da ONU, nos quais a situação dos refugiados foi utilizada por grupos anticoloniais em tentativas de reforçar o argumento do direito à autodeterminação dos povos e de que o conflito constituía uma ameaça à paz e à segurança internacionais.6 Acossados pela possibilidade de politização da crise humanitária, tanto o alto-comissário como os dirigentes da LSCV associavam estas tentativas à possibilidade de colocar em questão a acção humanitária que, segundo os princípios de acção do Movimento Internacional da Cruz Vermelha e do ACNUR, se deveria pautar pela imparcialidade e por um carácter apolítico.7
- 8 UNHCRA, Angolan Refugees – General, vol. 1, fundo 11, série 1, caixa 250, J.D.R. Kelly, Report on (...)
- 9 Para uma análise detalhada dos condicionamentos da operação de assistência de emergência, ver Guar (...)
10No relatório entregue ao ACNUR sobre a situação no terreno, Kelly indicava que os refugiados, na sua maioria mulheres e crianças, não participavam directamente do conflito. Haviam fugido de Angola devido às “severas medidas de pacificação por parte das autoridades portuguesas e das represálias ainda menos contidas dos colonos portugueses armados”, e temiam a “violência devido à sua raça, opinião política [ou] aspirações”.8 Figuravam, por isso, dentro da definição de refugiado abrangida em instrumentos internacionais como a CRER ou o Estatuto do Alto-Comissariado. Não obstante, as autoridades congolesas, apesar de atrasarem de início a assistência do ACNUR pela insistência em debater a questão dos refugiados no Primeiro Comité da ONU, tinham já garantido asilo aos angolanos, o que, em teoria, excluía a necessidade de protecção internacional. Deste modo, e pelo facto de a ONUC e a LSCV estarem a prestar assistência de emergência – a operação teve início em Junho de 1961 e término em Janeiro de 1962 –, o ACNUR dedicou, a partir de Novembro de 1961, a sua acção a projectos de “desenvolvimento rural” com o objectivo de garantir a integração e auto-subsistência dos refugiados a curto prazo.9
- 10 Para além destes dois projectos, o ACNUR esteve ainda envolvido na fixação de refugiados angolanos (...)
- 11 A deslocação dos refugiados para áreas longe da fronteira, para protecção dos mesmos face à possibi (...)
11Os primeiros projectos aos quais o ACNUR esteve associado foram implementados em parceria com organizações voluntárias locais já em 1962: um com a Agência de Assistência Protestante no Congo (AAPC), outro com a Cáritas Congo.10 Eram ambos dedicados ao “desenvolvimento rural”, através do fornecimento de utensílios de cultivo e sementes. Porém, enquanto o primeiro pressupunha uma actuação em comunidades onde os refugiados se tinham voluntariamente alojado, pretendendo colmatar fracas colheitas, o segundo previa a deslocação de milhares de refugiados alojados nas áreas urbanas de Matadi e Songololo para o interior, em Seke-Banza, em zonas férteis e afastadas da fronteira onde a Frente Nacional de Libertação de Angola (FNLA) exercia maior influência. O propósito da deslocação, se lógico na óptica de protecção dos refugiados face à possível ocorrência de violência, de cooptação para a luta armada ou de acomodação dos interesses das populações locais,11 fustigadas pela carência de recursos agravada pela sobrepopulação em áreas urbanas devido aos fluxos de população, descurava os interesses e os receios dos angolanos associados às especificidades de um conflito de descolonização.
- 12 Para o debate sobre o reformismo colonial e as práticas das autoridades locais em Angola, ver, entr (...)
12Em testemunhos recolhidos por organismos da ONU, como o Comité Especial para os Territórios Sob Administração Portuguesa (CETSAP-ONU), bem como por representantes de estados africanos que, na Assembleia Geral e no Conselho de Segurança, denunciavam as más práticas da administração colonial, os refugiados indicavam que, para além de fugirem à violência associada ao conflito, as deslocações forçadas, dentro de Angola e para São Tomé e Príncipe, amiúde associadas a práticas análogas à escravatura e ao tráfico humano, constavam também como causas de fuga (Guardião 2023b, 291-292). A permanência destas práticas, apesar do designado ímpeto reformista colonial dos finais da década de 1950 e início da década de 1960,12 ficava demonstrada nos testemunhos de refugiados já em meados de 1962, aquando de novos influxos para o Congo.
- 13 Sobre estes e outros projectos com a mesma nomenclatura e a adaptação de repertórios internacionais (...)
- 14 United Nations Digital Library (doravante, UNDL), Report of the Special Committee on Territories un (...)
13Entre 170 mil e 200 mil à época, os refugiados obstavam igualmente ao repatriamento. Procuravam evitar uma “nova era” prometida em Angola, designação coincidente com aquela preconizada pelo general Hermes Araújo de Oliveira (1962) em A Batalha da Incerteza que, na sua generalidade, aconselhava um conjunto de medidas para responder ao conflito através de modelos de engenharia social. Tratava-se de uma ode à conquista dos “corações e mentes” das populações dentro de um contexto de guerra subversiva, imersa em manifestações de carácter racial e correctivas dos comportamentos das populações, e crítica dos grandes projectos desenvolvimentistas. A tese de Hermes de Oliveira previa, para a conquista das populações, a implementação de modelos de desenvolvimento circunscritos – a designada “acção social” – que respondessem às suas “necessidades”. A aplicação de modelos deste género, logo em 1961, que adoptavam a designação de “desenvolvimento comunitário” à época em voga em debates internacionais e inter-imperiais e aplicada por organismos internacionais, revelava, no entanto, o recurso à coerção aquando da “apresentação” das populações às autoridades e a abusos vários, bem como à persistência do trabalho não remunerado neste tipo de projectos.13 Relatadas ao CETSAP-ONU, estas experiências constituíram a base para a conclusão do organismo das Nações Unidas de que, mesmo após o ímpeto reformista da viragem da década, permanecia em Angola uma hierarquização sociocultural baseada em estratos “civilizacionais” e que recorria a múltiplos abusos para o controlo das populações contrários à Declaração Universal dos Direitos Humanos.14
- 15 IFRCA, caixa 19737, Comité Executivo do Programa do Alto-Comissário, “Report on New Refugee Situati (...)
14Se o modelo de desenvolvimentismo repressivo do colonialismo tardio português não era novo (Jerónimo 2017), a resistência ao mesmo teve reverberações não só no território angolano, mas também no outro lado da fronteira. Enquanto o projecto com a AAPC foi implementado sem obstáculos de relevo, aquele em parceria com a Cáritas Congo falhou devido à resistência dos refugiados à sua deslocação para uma região desconhecida, onde trabalhariam sem remuneração até produzirem o suficiente para a introdução dos produtos agrícolas no mercado local. As actividades laborais voluntárias previam ainda o desmatamento e a construção de infra-estruturas habitacionais e comunitárias. Para além da recusa do trabalho voluntário, a deslocação determinou o insucesso do projecto. Os refugiados revindicavam poder escolher o local onde se fixariam, de preferência perto da fronteira, onde a comunicação com aqueles que permaneciam em Angola era facilitada, bem como o retorno após a independência. Em Julho de 1963, somente 66 refugiados tinham ingressado no projecto, inicialmente pensado para 5500 pessoas.15 As similitudes entre os moldes do projecto da Cáritas e aqueles inerentes ao paradigma colonial – deslocamento forçado e trabalho voluntário –, aliadas a expectativas nos primeiros dois anos do conflito, alimentadas pela FNLA, de que a independência estava próxima – questão sine qua non para o repatriamento voluntário –, contribuíam para estes primeiros modelos de resistência à integração a longo prazo no Congo (Guardião 2023b, 2021).
- 16 Ver, por exemplo, IFRCA, caixa 19737, Comité Executivo do Programa do Alto-Comissário, “The Problem (...)
- 17 IFRCA, caixa 19737, Oral Report of the Deputy High Commissioner Prince Sadruddin Aga Khan (7 de Out (...)
15Tanto na correspondência entre agentes humanitários como em relatórios oficiais ficava patente a frustração face à resistência dos refugiados ao trabalho bem como à adesão a projectos de realojamento.16 Em meados de 1963, aquando da avaliação da situação dos refugiados angolanos e dos projectos iniciados, o ACNUR declarou a sua desvinculação a este tipo de assistência, argumentando, por um lado, que a maioria dos refugiados apresentava níveis de integração “satisfatórios” e que os problemas remanescentes – de integração, desenvolvimento social e ordem pública – recaíam sobre as autoridades do estado de acolhimento. Por outro lado, admitia-se a ineficácia e a inexperiência do ACNUR e demais organizações humanitárias na resposta às situações específicas dos refugiados na África sub-saariana, factor que tinha contribuído para o fraco engajamento em “certos projectos”.17
- 18 Com origens anteriores, mas debatido e conferido de significado internacional na ONU a partir de 19 (...)
16Os primeiros modelos de assistência humanitária no Congo, nos quais os refugiados angolanos constituíram experiência primária mas que envolveram também outros grupos, revelaram uma alteração na estratégia de assistência com foco no “desenvolvimento rural”, que respondia simultaneamente aos condicionamentos do ACNUR e às condições no terreno associadas às fragilidades do estado congolês. No entanto, as designadas especificidades da região, neste contexto associadas às características do violento processo de descolonização e de modalidades desenvolvimentistas do colonialismo tardio português, proporcionaram debates sobre a necessidade de (re)adaptações no espectro da assistência humanitária dentro do paradigma desenvolvimentista. A partir de 1963, o ACNUR associar-se-ia a novos projectos focados no “desenvolvimento comunitário” – modelo em crescente debate nas esferas internacionais, no qual um dos fundamentos basilares passava pela ideia de que os projectos a implementar deveriam passar pela iniciativa das populações e ser desenvolvidos em cooperação com as mesmas; almejava-se ainda, quando possível, a integração de várias esferas nestes projectos, desde a produção à saúde, educação, nutrição, etc.18 Como veremos na secção seguinte, a aposta nestes projectos de “desenvolvimento comunitário”, consubstanciados através de modelos integrados de desenvolvimento, diferenciava-se substancialmente daqueles implementados em Angola, nos quais imperavam modelos de engenharia social que recorriam à coerção, à vigilância e à acção psicossocial (Cruz 2022).
- 19 UNHCRA, doc. 2178, Assistance to Algerian Refugees in Morocco and Tunisia, vol. 4, fundo 11, série (...)
- 20 Sobre as várias dinâmicas de assistência aos refugiados argelinos durante a guerra de descolonizaçã (...)
17A par da assistência aos refugiados angolanos, em 1963 o ACNUR terminava o seu envolvimento na crise de refugiados argelinos. Após o repatriamento de cerca de 200 mil refugiados e o consequente processo de reintegração na Argélia, o balanço orçamental da operação humanitária liderada pelo Alto-Comissariado e pela LSCV somava mais de 91 milhões de dólares norte americanos (USD).19 As avultadas despesas desta operação de emergência, na qual os refugiados se encontravam em situação de permanente dependência de assistência externa, concorreram para uma diminuição do engajamento da comunidade internacional em operações de assistência humanitária nos anos seguintes.20 A multiplicação de conflitos em África e a persistência de problemas de integração em território europeu, ainda decorrentes da Segunda Guerra Mundial, são outros factores a ter em conta para a diminuição das contribuições durante a década de 1960.
18Com a independência da maioria dos estados africanos até esse ano, o investimento externo centrou-se no desenvolvimento dos mesmos. A primeira Década das Nações Unidas para o Desenvolvimento (a de 1960) foi alavancada, em parte, por dinâmicas associadas à descolonização transversais nos debates emergentes em vários fóruns internacionais e regionais nos quais reivindicações pelo direito ao desenvolvimento surgiam lado a lado com o direito à autodeterminação. Concomitante à multiplicação de crises humanitárias no Sul Global, o fraco engajamento internacional colocava em questão a sobrevivência do ACNUR, cuja legitimação através de mandatos ad hoc e, em razão disso, a sua constante dependência de donativos se repetia com maior frequência. A alteração da estratégia do ACNUR para a assistência através do investimento em projectos de desenvolvimento correlaciona-se com estas dinâmicas contrárias de expansão do seu escopo de actuação e de escassez de recursos. Por forma a sobreviver e se afirmar como organização humanitária de âmbito global, o ACNUR afinou estratégias operacionais e de cooperação durante o decénio.
19A experiência adquirida na resposta à crise humanitária dos refugiados angolanos no Congo nos primeiros anos, pautada pela situação de emergência e pelos primeiros investimentos em projectos de integração, e os seus diversos resultados, teve impacto na alteração da política de assistência da organização. Os relatórios anteriormente referidos indicavam essa necessidade de mudança. Na resposta a “novas crises” de refugiados, tanto no Sul Global de forma generalizada como na África em particular, havia que considerar a situação dos refugiados dentro do quadro alargado dos problemas sociais e económicos que afectavam a região. Nesse ano, após uma tour por África, na qual visitou refugiados angolanos no Congo, como referimos no início deste texto, Sadruddin Aga Kahn reforçava esta ideia. De acordo com a apreciação do alto-comissário adjunto para os refugiados (futuro alto-comissário, 1966-1977):
- 21 Referindo-se a “desenvolvimentos comunitários”, Aga Khan poderia, neste contexto, estar a invocar o (...)
- 22 IFRCA, caixa 19737, Oral Report of the Deputy High Commissioner Prince Sadruddin Aga Khan (7 de Out (...)
[a]o mesmo tempo que se dá assistência, garante terras, sementes e ferramentas, tem de se dar aos refugiados algum tipo de incentivo adicional, quero dizer escolas, dispensários, projectos de auto-ajuda, os desenvolvimentos comunitários [...].21 Penso que isto é absolutamente essencial também para criar o ambiente de confiança do qual os refugiados precisam, para não pensarem em retornar a casa, esquecerem o [...] país de origem, que de outra forma permanece permanentemente nas suas mentes, enquanto bloqueio psicológico à fixação efectiva.22
20Uma fixação não só “efectiva” mas, também, eficiente dos refugiados articulava diferentes preocupações. Por um lado, atentava nos problemas de desenvolvimento e na incipiente robustez dos estados de acolhimento, o que aumentava a dependência externa; e, por outro, considerava o impacto da instabilidade propiciada por conflitos de descolonização e pelas crises pós-coloniais, que se multiplicavam e estendiam indeterminadamente, na experiência de refúgio das populações. A eficácia da acção humanitária começava, deste modo, a ser pensada e adaptada por forma a reforçar a capacidade de integração dos estados de acolhimento, bem como aquela do ACNUR para se tornar num actor global. Nesta secção debruçar-nos-emos sobre dois projectos nos quais o ACNUR participou, em parcerias e situações distintas, permitindo assim uma análise da forma abrangente como a integração dos refugiados através não só do desenvolvimento localizado (Crisp 2001), mas também do “desenvolvimento comunitário”, foi pensada e colocada em prática a partir da segunda metade da década de 1960.
- 23 A AAPC era maioritariamente financiada pelos Estados Unidos, nomeadamente através do American Commi (...)
- 24 Sobre a cooperação da AACP com a FNLA, as ligações de David Grenfell a Holden Roberto e as medidas (...)
21As primeiras iniciativas neste sentido materializaram-se no financiamento para o alargamento de um dispensário em Kibentele, destinado a albergar estudantes refugiados deslocados, e para a construção de um centro de formação profissional em Thysville, fundado em 1964, ambos administrados pela Agência de Assistência Protestante no Congo (AAPC). Dirigida pelo reverendo David Grenfell, figura maior do esforço missionário no Congo e com ligações anteriores a Angola, a AAPC foi, no caso dos refugiados angolanos, a organização voluntária local com maiores níveis de eficácia no respeitante à sua integração. Parte deste sucesso deveu-se à capacidade da organização de cooperar com o ACNUR, mas também com a FNLA.23 Apesar de controversa no respeitante aos meios utilizados para a gestão dos refugiados, a colaboração com a FNLA foi mutuamente profícua.24
- 25 De 1966 a 1969, o ACNUR injectou 60 mil USD no CEDECO. Foi também através do Alto-Comissariado que (...)
- 26 UNHCRA, doc. 128, Angolan Refugees in Zaire, vol. 2, fundo 11, caixa 42, Jacques Cuenod para Huyser (...)
22Em 1966, a AAPC, em parceria com o ACNUR, fundou o Centro de Desenvolvimento Comunitário no Congo (CEDECO), em Kimpese, que reunia ainda contribuições do governo sueco e da organização não-governamental britânica Oxfam num esforço de integração de projectos anteriores.25 O projecto abrangia o centro de formação profissional de Thysville, destinado à formação de refugiados e da população local em vários ofícios como carpintaria, alfaiataria, mecânica automóvel e instalação e reparação eléctrica, bem como a secção de saúde pública do Instituto Médico Evangélico de Kimpese com os objectivos de oferecer treinamento e de inculcar métodos práticos para melhorar a saúde e a nutrição nas aldeias da região. O CEDECO unia aquelas áreas ao sector agrícola num complexo de 430 hectares, oferecendo cursos práticos e teóricos de agricultura e criação de animais de pequeno porte, servindo ainda como centro de produção de sementes para melhoria dos solos e produção de árvores de fruto. Os cursos aí providenciados destinavam-se a formar “líderes comunitários” e “agentes de extensão agrícola”.26 Ao deixarem o centro, após a formação, refugiados e locais eram encorajados a formar comissões nas aldeias para onde regressavam, por forma a estenderem aos seus concidadãos os conhecimentos e as competências adquiridas.
23Para além de financiar parcialmente o projecto, o ACNUR funcionou também enquanto plataforma para o engajamento de outras agências das Nações Unidas. A partir de 1969, o CEDECO foi envolvido num projecto tripartido da Organização para a Alimentação e Agricultura (FAO), do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (PNUD) e da Organização Mundial de Saúde (OMS) que procurava responder à excessiva saturação dos solos na região devido a problemas de “sobrepopulação”, para os quais os mais de 400 mil refugiados angolanos contribuíam. Em vários aspectos, o CEDECO era um projecto que reflectia a visão expressa por Sadruddin Aga Khan em 1963. Através dele, os refugiados puderam aperfeiçoar aptidões agrícolas e artesanais que lhes permitiam vender os seus produtos em cooperativas locais nas aldeias e escapar à mera subsistência. A promoção de saberes vários e o modelo de transferência de conhecimento permitiam ainda o desenvolvimento das comunidades da região.
- 27 UNHCRA, doc. 10, Refugees from Angola in Zaire, vol. 1, fundo 11, série 1, caixa 42, J. Woodward pa (...)
- 28 UNHCRA, doc. 2178, Assistance to Algerian Refugees in Morocco and Tunisia, vol. 4, fundo 11, série (...)
24O CEDECO tornou-se, igualmente, um projecto-modelo para o tipo de assistência integrada promovida pelo ACNUR, uma vez que permitiu ao Alto-Comissariado alargar o seu escopo de actuação, mantendo a sua liquidez financeira. Esta alteração de política não é um factor de somenos, especialmente se atentarmos ao facto de que nos anos de 1965 e 1966 o ACNUR tinha apresentado um défice orçamental de 500 mil USD e de cerca de 1 milhão USD, respectivamente.27 Comparando a média de orçamento anual prevista para a assistência aos refugiados angolanos no Congo (50 mil USD/ano) entre 1964 e 1972 com o financiamento total do ACNUR nos seis anos de assistência aos refugiados argelinos em Marrocos e na Tunísia (27 milhões USD),28 verifica-se que o investimento em projectos de “desenvolvimento comunitário” localizados permitia
uma maior margem de manobra à organização para actuar em vários territórios.
- 29 Resultante de um processo de cooperação extenso, foi ainda nesse ano aprovado o Protocolo Relativo (...)
25No entanto, os fundamentos para a alteração da política do ACNUR não se esgotam na sua capacidade financeira. A partir de 1966, o ACNUR enveredou por uma série de iniciativas que procuravam responder aos problemas específicos dos refugiados em África. Em 1967, em cooperação com a Organização de Unidade Africana, o Alto-Comissariado e a Comissão Económica para a África patrocinaram, em Addis Abeba, a realização da Conferência Internacional sobre os Aspectos Jurídicos, Económicos e Sociais dos Problemas dos Refugiados Africanos, promovendo debates sobre os principais aspectos da protecção internacional e da assistência material.29 Uma das principais questões discutidas girou em torno do papel dos refugiados no desenvolvimento económico e social dos estados de acolhimento e a sua utilização enquanto recurso humano e laboral. Este requisito era exigido por grande parte dos estados de acolhimento para garantirem asilo a crescentes fluxos de refugiados.
26O desenvolvimento da cooperação entre o ACNUR e outras agências das Nações Unidas foi reconhecido pela aprovação da resolução 2294 da Assembleia Geral, que incumbia o Alto-Comissariado de participar nas reuniões do Conselho Consultivo Inter-Agências do PNUD, participação que foi igualmente alargada a reuniões de outras agências especializadas e aos trabalhos preparatórias da Década do Desenvolvimento das Nações Unidas, nomeadamente através do seu envolvimento em projectos de “desenvolvimento rural”. Ao construir novas parcerias e integrar os ideários desenvolvimentistas da época, o ACNUR, sob a liderança de Aga Khan, traçou o caminho para sobreviver economicamente e ampliar a sua influência. Como Glasman (2017) refere, este foi também um caminho que alterou a perspectiva do ACNUR sobre os refugiados, uma vez que os transformou, em variadas circunstâncias, em valor laboral, amiúde repercutindo situações análogas a dinâmicas características do colonialismo tardio.
27No caso dos refugiados angolanos no Congo, o CEDECO foi efectivamente um exemplo ímpar pelo enquadramento de uma perspectiva socioeconómica alargada, com o objectivo de capacitar os refugiados de instrumentos vários – formação profissional, educação para a saúde pública e educação em geral – que possibilitassem, ainda, a optimização da sua futura reintegração no estado de origem após a independência. Ainda que contribuindo indelevelmente para a integração dos refugiados, o CEDECO não deixou de ser um projecto de alcance circunscrito. Se a crescente conformação com a longa duração da guerra de descolonização contribuiu para uma maior integração dos angolanos no Congo a partir de meados da década de 1960, muitos refugiados persistiram na sua resistência a projectos de movimentação forçada ou a formas de controlo diversas, optando antes por se instalarem espontaneamente ou em razão de opções ponderadas, voluntárias.
28Apesar de os refugiados angolanos maioritariamente estarem integrados de forma satisfatória – segundo o ACNUR, a integração dos refugiados era avaliada neste grau desde 1965, mostrando-se, no entanto, a necessidade contínua de assistência humanitária para a integração em meio rural através da providência de ferramentas agrícolas e sementes –, fluxos ocasionais alargados espoletavam situações emergenciais. O segundo projecto aqui analisado prende-se com a resposta a um destes casos. Em 1972, assistiu-se a uma série de novos fluxos para áreas distintas do território congolês, com grande incidência nas regiões de Matadi e Songololo, áreas de destino preferenciais de muitos dos refugiados desde o início do conflito e que, dez anos antes, tinham levado aos projectos (falhados) de realojamento. A proporção de refugiados nas duas cidades (25 mil em Matadi, num total de 125 mil habitantes, e 200 mil em Songololo, num total de 300 mil habitantes) reactivou a ideia de deslocar alguns milhares de angolanos para o interior.
- 30 Para além de actuar nas três antigas colónias belgas, a AIDRU perspectivava ainda cooperar com outr (...)
29Por forma a avançar com o empreendimento, o ACNUR optou por uma parceria com a Organização Internacional para o Desenvolvimento Rural (OIDR) enquanto executora do projecto. Recentemente criada (1969), a OIDR resultava de uma iniciativa belga para internacionalizar as actividades da Associação Internacional de Desenvolvimento Rural Ultramarino (AIDRU) que, apesar de conter o termo internacional na sua nomenclatura, consistia, na verdade, numa associação sem fins lucrativos subsidiária do estado belga que tinha como objectivo a extensão das actividades do Fundo de Bem-Estar Indígena (FBEI) no Congo, Ruanda e Burundi após a extinção do mesmo em Bruxelas.30 Desde a continuação de projectos iniciados pelo FBEI nas antigas colónias à transferência de dirigentes e especialistas para a AIDRU e, posteriormente, para a OIDR, a continuidade da política belga para o desenvolvimento rural na região é bem patente.
- 31 UNHCRA, doc. 1 e 2, Organisation Internationale pour le Développement Rural – Congo, fundo 11, séri (...)
30A criação da OIDR procurava responder a duas questões fundamentais para a actuação belga na área do “desenvolvimento rural”. Por um lado, a criação de uma organização verdadeiramente internacional – esta era composta, para além da AIDRU, de organizações alemãs, britânicas e francesas – alargaria os meios de acção, particularmente no respeitante ao recrutamento de especialistas qualificados. Por outro lado, levantaria menos objecções por conta da sua nacionalidade.31 Este último aspecto era crucial não só no referente ao financiamento por parte de diversas agências, mas também para não interferir com o contencioso belgo-congolês que havia já colocado sérios obstáculos à actuação da AIDRU no Congo. Desde a sua raiz, a OIDR procurava uma articulação essencial com as agências especializadas das Nações Unidas por forma a garantir o prolongamento das actividades de interesse belga no “desenvolvimento rural” na região.
- 32 UNHCRA, doc. 177, Refugees from Angola in Zaire, vol. 1, fundo 11, série 1, caixa 42, Otto Hagenbuc (...)
31Com autorização do governo congolês, o projecto de estudo (da população refugiada e da viabilidade do projecto) e realojamento dos refugiados foi iniciado em Fevereiro-Março de 1972. As negociações entre o ACNUR e a OIDR previam o financiamento do mesmo por parte do Alto-Comissariado e a execução por parte de especialistas belgas. O estudo e a direcção do projecto ficaram a cargo de Henrick Cornellis, especialista da AIDRU e antigo governador do Congo-Belga, com experiência na região e noutros projectos anteriormente alavancados pelas duas organizações no território.32 A fase de emergência consistiu na distribuição de alimentos, medicamentos, cobertores, utensílios de cozinha e ferramentas agrícolas, bem como no planeamento do transporte dos recém-chegados e na remodelação de infra-estruturas básicas (escola e dispensário) em Seke-Banza, o mesmo destino escolhido em 1962 para o projecto Cáritas Congo-ACNUR. Porém, enquanto na altura os refugiados tinham sido assistidos no local, Cornellis optava agora por uma estratégia diferente. Com conhecimento de que os refugiados angolanos preferiam fixar-se espontaneamente, como referimos acima, Cornellis optou por criar pontos de atracção a norte de Matadi, onde os refugiados receberiam assistência e acabariam por se radicar.
- 33 UNHCRA, doc. 181, Refugees from Angola in Zaire, vol. 1, fundo 11, série 1, caixa 42, Sede Genebra (...)
32Segundo a avaliação do ACNUR, a medida foi um sucesso.33 Concluída a primeira fase no final de Abril, seguiu-se uma série de projectos de “desenvolvimento rural” com o envolvimento do PNUD e de outros especialistas das Nações Unidas em áreas como agricultura, educação, saúde, emprego urbano e sociologia rural. A partir do projecto de realojamento, começou igualmente a ser pensado um programa de desenvolvimento de longa duração de toda a província, que beneficiaria tanto os refugiados como a população local. A sua concretização, até ao final do conflito de descolonização em Angola, foi, no entanto, dificultada. As dificuldades de execução ficaram a dever-se tanto à incapacidade de coordenação entre as várias agências das Nações Unidas como a incidentes na região e a demoras por parte do governo congolês na aprovação de missões. Não obstante, o ACNUR continuou a facilitar a concretização de projectos específicos nas áreas de “desenvolvimento rural”, educação e saúde, procurando novos interlocutores que facilitassem o engajamento dos refugiados. Referimo-nos ao desenvolvimento de parcerias com movimentos de libertação, igualmente parte de uma política mais abrangente na esfera das Nações Unidas de condenação efectiva do colonialismo e de reconhecimento destes movimentos como legítimos representantes dos interesses dos povos ainda sob administração portuguesa. Esforços neste sentido foram iniciados tanto com a FNLA como com o Movimento Popular para a Libertação de Angola (MPLA). Porém, diferendos no seio deste último acabaram por incapacitar negociações efectivas. Consequentemente, a FNLA tornou-se o interlocutor político angolano mais fiável para a realização de políticas de assistência. Para tal, contribuiu também a eficiência logística do movimento no terreno e o apoio de grande parte da população refugiada (Guardião 2023b, 267).
33Abordando e analisando estes projectos, que incidiram sobre o caso concreto dos refugiados angolanos, a viragem do ACNUR para políticas de desenvolvimento pode ser considerada um sucesso. Através de novas e multifacetadas parcerias, o ACNUR conseguiu estabelecer-se como actor global atendendo, simultaneamente, à melhoria das condições de vida dos refugiados e às necessidades das comunidades locais e dos estados de acolhimento. Não obstante, importa notar que os refugiados continuaram a ser engajados em trabalho não remunerado ou sujeitos a medidas de controlo e, em certos casos, a abusos por parte de agentes locais, políticos e humanitários (Guardião 2024). Apesar das conquistas do Alto-Comissariado também no respeitante à protecção dos refugiados, pela “universalização” de jure do reconhecimento da condição e dos direitos dos refugiados com a aprovação do Protocolo Relativo ao Estatuto dos Refugiados (1967), bem como a atenção às especificidades das situações dos refugiados na África, através da aprovação da Convenção da Organização de Unidade Africana que Rege os Aspectos Específicos dos Problemas dos Refugiados em África (1969), a viragem humanitarista do ACNUR para o desenvolvimento comprometeu a protecção dos refugiados africanos e, consequentemente, o seu reconhecimento como sujeitos internacionais de direito.
34O caso dos refugiados angolanos no Congo possibilita uma análise transversal das transformações das políticas humanitárias ao longo da década de 1960, permitindo-nos observar as interligações e os cruzamentos entre a evolução de políticas internacionais associadas aos direitos humanos e ao humanitarismo, a actividade dos agentes humanitários no terreno, e a confluência e adaptação de modelos desenvolvimentistas, coloniais e internacionais. A inclusão da questão dos refugiados em debates nos vários órgãos das Nações Unidas aquando da discussão da guerra de descolonização angolana, e a contínua pressão para a condenação efectiva do colonialismo português em África, esteve, desde o início da resposta do ACNUR, associada à necessidade de alargamento do escopo de actuação da organização. A multiplicação de situações de conflito no continente consubstanciou esta necessidade, bem como uma constante adaptação às especificidades de intervenções humanitárias em contextos nos quais os estados de acolhimento careciam de infra-estruturas, estabilidade política ou socioeconómica para responder a situações de emergência humanitária (Loecher 2001; Gatrell 2013).
35A resposta a estas carências passou pela alteração do modelo que privilegiava a protecção do indivíduo, promovendo, pelo contrário, um modelo desenvolvimentista que garantisse, primeiro, a sobrevivência e, depois, a capacitação socioeconómica de grupos alargados de refugiados. Este caso permite ainda compreender que as alterações nas estratégias de integração dos refugiados em modelos de “desenvolvimento rural” para modelos de “desenvolvimento comunitário” de tipo integrado remontam já à década de 1960, complexificando abordagens mais generalistas que associam estas alterações a dinâmicas posteriores (Crisp 2001). O acompanhamento na ONU da situação em Angola e noutras colónias portuguesas ao longo da década, proporcionou ainda modificações relativas aos interlocutores políticos aliadas ao direito à autodeterminação dos povos e à consagração dos movimentos de libertação como legítimos representantes dos povos sob jugo colonial português. Consequentemente, estes desenvolvimentos permitiram novas modalidades de cooperação com os movimentos de libertação em benefício dos refugiados tanto de organismos associados às Nações Unidas como ao Movimento Internacional da Cruz Vermelha (Guardião 2023b; Desgrandchamps e Guardião 2024).
36Este caso revela ainda o modo como a experiência no terreno, através da confrontação com modelos de protesto vários, moldou a forma como as políticas de desenvolvimento foram pensadas e postas em prática. A resistência dos refugiados angolanos ao repatriamento e a modelos de deslocação, realojamento e “desenvolvimento rural” análogos àqueles praticados em Angola, ainda que com propósitos díspares, foi fundamental para a concepção de políticas humanitárias ajustadas às especificidades de uma situação de descolonização violenta e de desenvolvimento repressivo, tanto no caso português (Jerónimo e Pinto 2015; Jerónimo 2017) como em outros (Klose 2013; Johnson 2016). O recurso de instâncias internacionais no seio das Nações Unidas aos testemunhos de refugiados no Congo, fomentado, por um lado, pela recusa das autoridades portuguesas em garantir acesso ao território ou informação sobre a situação nas colónias (Santos 2017) e, por outro, por usos anteriores destas fontes enquanto prova de abusos vários por actores anticoloniais, contribuiu para a desmistificação do designado “reformismo português” (Jerónimo e Monteiro 2024). Os testemunhos e modalidades de protesto dos refugiados colocaram a descoberto a continuidade de modalidades repressivas de desenvolvimento no colonialismo tardio português – também designado como “desenvolvimento comunitário” – e de exclusão da larga maioria da população de direitos fundamentais, não obstante as tentativas de adaptação metropolitana às pressões internacionais no sentido de reformular modelos de garantia de direitos às populações autóctones (Jerónimo e Monteiro 2020). Consubstanciaram ainda alterações nas estratégias humanitárias dentro do ethos desenvolvimentista internacional (Unger 2018) com vista à prossecução de projectos de integração diferenciados, ainda que pontuais.
37Não obstante, estas alterações não significaram um reconhecimento de uma agência politizada, pelo que formas de fixação espontânea eram unicamente tidas como justificação para a adaptação de políticas humanitárias desenvolvimentistas. Como reforça Malkki (1995), “o discurso desenvolvimentista sobre os refugiados”, para o qual a academia tem contribuído, facilita a “contínua despolitização de movimentos de refugiados”, na medida em que secundarizando “processos políticos e históricos que geraram um determinado grupo de refugiados, e que vão muito além do país de asilo ou campo de refugiados, os projectos de desenvolvimento tendem a ver o mundo inteiro num campo de refugiados”. Apesar da capacidade de adaptação por parte do ACNUR, o modelo de assistência emergencial e desenvolvimentista encetado nas situações de descolonização violenta transformou os refugiados em “corpos que sofrem”, no primeiro caso, ou em “valor laboral”, no segundo (Glasman 2017).
38Finalmente, a adaptação do ACNUR a novas geografias, patente no caso dos refugiados angolanos, demonstra a crescente articulação negocial e operacional entre múltiplos actores nas operações de assistência humanitária capacitada pela viragem humanitarista para o desenvolvimento. Os modelos de actuação do ACNUR consubstanciam a confluência e circulação de saberes, interesses, actores e instituições envolvidos em projectos humanitários de cariz desenvolvimentista transversais a contextos coloniais e pós-coloniais. Os projectos CEDECO e de fixação dos refugiados em 1972 são disso exemplo. Importa, no entanto, reforçar que estes projectos, se bem-sucedidos, não atestam a realidade da maioria dos refugiados angolanos no Congo (ou noutras geografias), nem que os seus propósitos tenham sido cumpridos. Contudo, reflectem uma alteração de paradigma relevante para compreendermos melhor as formas como as modalidades de assistência, humanitária e desenvolvimentista foram pensadas e postas em prática de forma conjunta e concertada.