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Culturas e formas de politização

Festa da Pátria: Nun’Álvares Pereira, herói e santo

Fête de la Patrie: Nun’Álvares Pereira, héros et saint
Feast of the Motherland: Nun’Álvares Pereira, hero and saint
Annarita Gori
Tradução de Oscar Mascarenhas
p. 139-159

Resumos

A autora aborda o mito complexo surgido à volta de Nuno Álvares Pereira, que toma saliência após a I Guerra Mundial, a santificação de Joana d’Arc e o receio de jacobinismo causado pela I República em Portugal. Esta personagem foi entendida simultaneamente como um patriota e um santo, uma duplicidade causou acordo, discórdia e alteração nas políticas desenvolvidas em relação à comemoração desta personagem. Álvares Pereira surge como uma personagem mitificada que representa os ideais de patriotismo, messianismo e misticismo, em nome do qual se institui um feriado cívico que apresentou igualmente modificações ao longo da sua existência.

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Texto integral

1. Introdução

1A 26 de Abril de 2009, na Praça de São Pedro, em Roma, o papa Bento XVI santificou quatro novos beatos: entre estes contava-se Nun’Álvares Pereira. A cerimónia religiosa constituiu um acontecimento importante para a sociedade portuguesa, não só para o mundo católico, como também para a opinião pública e para a classe política que se viu na obrigação de voltar a gerir a memória pública desta complexa personagem.

2Nun’Álvares Pereira não foi só um homem da Igreja, mas também um herói nacional, um dos promotores da independência portuguesa em relação aos castelhanos no século XIV. Embora o editorial do Correio da Manhã, no dia seguinte ao da proclamação no Vaticano, se intitulasse «Honra de ser português», a dúplice leitura da memória do Santo Condestável e a ambivalência da personagem provocaram logo o reacendimento do confronto entre religiosidade e laicidade e um debate aceso nos jornais e no parlamento.

  • 1 Partido Popular (CDS-PP), Voto de Congratulação pelo anúncio da canonização de D. Nuno Álvares Pere (...)
  • 2 A congratulação da Assembleia da República no seguimento da canonização de Nun’Álvares Pereira foi (...)

3Nos dias seguintes à proclamação da Santa Sé da canonização de Nun’Álvares Pereira, o grupo parlamentar do Partido Popular propôs um voto de congratulação à aprovação do parlamento1. A proposta suscitou, nos partidos de esquerda2, a necessidade de se demarcarem com as suas posições, em particular sobre a relação entre Estado e laicidade, um tema muito sensível na república pós-salazarista.

  • 3 Diário da Assembleia da República, I Série, número 54, pp. 55-56.

4Assim, enquanto o Partido Socialista, numa nota do grupo parlamentar, explicou que o voto favorável se dirigia à canonização de um herói da independência nacional e que de modo algum punha em discussão o princípio da separação entre Igreja e Estado, o Bloco de Esquerda, pela voz do historiador Fernando Rosas, explicou a oposição ao voto: «O PP quer colocar a Assembleia da República, órgão de soberania de um Estado laico e constitucionalmente vinculado ao princípio da separação do Estado e das igrejas, a congratular-se com um acto puramente interno de uma igreja particular: a canonização de um santo da Igreja Católica. Esta bancada (…) entende que a Assembleia da República não pode, em caso algum, sem grave violação do princípio da separação, pronunciar-se sobre tamanha transcendência.»3

  • 4 Fizeram parte da comissão para a canonização de Nun’Álvares Pereira o Presidente da República, Aníb (...)
  • 5 «PR: Vice-postulador da Canonização de Nuno Álvares Pereira respeita críticas ateístas apesar de as (...)
  • 6 Secundino Cunha, «Estado ignorou Santo» Correio da Manhã, 26 de Abril de 2009.

5A controvérsia parlamentar encontrou um amplo eco tanto nos sectores portugueses de matriz católica e conservadora, como nos ambientes radicais. Se, à esquerda, com efeito, a Associação Ateísta Portuguesa manifestou fortes críticas à participação de representantes do Estado na Comissão para a Causa dos Santos4, acusando-os de terem traído «numa burla pueril a tradição do Estado laico»5, o mundo religioso acusou o Estado de frieza perante a celebração. Numa notícia no Correio da Manhã intitulada «Estado ignorou Santo», o cardeal-patriarca de Lisboa, D. José Policarpo, lamentou a pouca relevância que o Estado deu à comemoração, sublinhando como as relações entre a esfera política e a religiosa se mantêm ainda tensas no que diz respeito à gestão da memória de uma personagem como Nun’Álvares Pereira, que pertence às duas esferas6.

  • 7 João Mattos e Silva, «Falta de sentido patriótico e de dignidade do Estado», Diário Digital, 14 de (...)

6Opiniões mais radicais chegaram do monárquico João Mattos e Silva, director da Real Associação de Lisboa, que, num artigo de 14 de Abril, verberou o Estado por uma carência patriótica, afirmando que «em nome de uma falsa liberdade religiosa e de complexos revolucionários centenários e mais recentes, tenta-se que os católicos não façam muito barulho em volta de D. Nuno Álvares Pereira, joga-se o jogo do empurra para saber quem representará o Estado nas cerimónias no Vaticano e assobia-se para o lado. Não é uma questão de Estado; é uma questão de falta de sentido patriótico e de dignidade do Estado Português.»7

7É provável que a proximidade entre as comemorações do 25 de Abril e do 1.º de Maio – tradicionalmente duas festas laicas – e a santificação de uma personagem que incarna valores católicos patrióticos, transformada em ídolo moderno do salazarismo, possa ter criado problemas na gestão da memória por parte de um Estado laico que, no entanto, não pode furtar-se a homenagear os seus heróis nacionais.

8A complexidade do processo de mitificação de Nun’Álvares Pereira reside pois neste facto de ser simultaneamente «patriota e santo», uma contradição encarada no século XX de modos diversos e originais, que deram lugar a confrontos de opiniões e a modificações na política respeitante à celebração da sua figura.

2. Contexto cultural e político

9O culto civil de Nun’Álvares Pereira iniciou-se durante a Grande Guerra e tomou definitivamente corpo nos anos 20; contudo, as suas raízes residiam no clima cultural e político nacionalista que se desenvolveu em Portugal entre as últimas duas décadas do século XIX e as primeiras três do século XX. A identidade nacionalista, na verdade, toma forma ao longo de um arco de tempo muito vasto, compreendendo importantes turning points que condicionaram o desenvolvimento e definiram os mitos fundadores.

  • 8 Catroga, Fernando, Carvalho, P. Archer de, Sociedade e Cultura Portuguesa II, Universidade Aberta, (...)
  • 9 Teixeira, Nuno Severiano, «Política externa e política interna no Portugal de 1890: o Ultimatum Ing (...)
  • 10 Cfr. Catroga, Fernando, História da História de Portugal, Séculos XIX-XX (em colaboração com Luís R (...)

10O acontecimento histórico que deu origem à aceleração do processo de formação do nacionalismo português e ao repensar da mitologia nacional foi o Ultimato inglês de 1890. Isso, como escreve Fernando Catroga, «transformou-se num facto cultural, de longa temporalidade e alcance mais do que num facto político, que inegavelmente também foi […]. Ele permitiu o despertar de uma consciência colonial e a sua conexão com sentimentos nacionalistas, realidade que se prolongará pela primeira metade do século XX»8. O Ultimato inglês, vivido como uma ofensa directa por parte de outra nação, teve um eco fortíssimo em todo o país9: serviu para fortalecer diversas formas de nacionalismo português, tanto do modelo monárquico como do republicano; permitiu uma mudança das elites culturais e políticas; comportou um revigoramento das formas míticas na base da ideia da «alma do povo português». Em particular, a «corrida» para a África dos anos subsequentes e a humilhação na comparação com as outras potências imperialistas europeias – in primis a Inglaterra – favoreceram a valorização da ideia de Império e do ciclo dos Descobrimentos portugueses do século XVI que, inserindo-se na esteira aberta pelas festas camonianas10, se manifestaram com grandiosas celebrações centenárias dedicadas aos grandes descobridores da era áurea portuguesa: em 1894, o V Centenário do nascimento do Infante Dom Henrique, em 1897-98, o IV Centenário do descobrimento do caminho marítimo para a Índia, em 1900 o IV Centenário do descobrimento do Brasil, em 1915 o V Centenário da tomada de Ceuta e o IV Centenário da morte de Afonso de Albuquerque.

11Estas celebrações são a expressão mais eloquente dos mitos de refundação na base das liturgias cívicas portuguesas. Caracterizam-se pela ambígua relação temporal uma vez que, se por um lado mostram, através do confronto com os momentos gloriosos do passado, a decadência e a dissolução do presente, ao mesmo tempo usam este último como advertência e impulso para poder regressar a uma idade de ouro passada que, no entanto, tem como espaço de actuação um futuro indefinido.

  • 11 Barreira, Cecília, «Três nótulas sobre o integralismo lusitano (evolução, descontinuidade, ideologi (...)

12Como bem sintetizou Cecília Barreira, «há uma irresistível atribuição de vida às sombras e mitos do passado, há uma vontade de perpetuar uma ordenação terrena, misteriosamente subsumida entre um passado longínquo e um futuro evasivo, as quais lhe conferem (a este imaginário) o sentimento de uma desmemorização, de um tempo isolado, cristalizado, de um sonho sem antes nem depois»11.

  • 12 Cardoso, Miguel Esteves, «Misticismo e ideologia no contexto cultural português: a saudade, o sebas (...)

13As mitologias e as celebrações de matriz patriótica que se desdobraram em Portugal no período entre o final do século XIX e início do século XX tornam-se muito importantes para a investigação histórica, uma vez que representam o esforço empreendido pela classe dirigente para conciliar os dois pontos daquilo que Miguel Esteves Cardoso definiu como «culturadição portuguesa»: a saudade e o sebastianismo12.

  • 13 Cardoso, «Misticismo…», p. 1399.

14O primeiro dos dois elementos, a saudade, é entendido neste contexto como «um modo de ver (dirigido a pessoas, a lugares ou a própria história), caracterizado por uma concepção descontínua do tempo. O que se valoriza então é o passado à custa do presente e, de certo modo perverso, mas coerente, o presente à custa do futuro»13, como uma nostalgia por um passado mítico, farol para uma renovação do próprio passado no presente e no futuro. O tempo épico na base da saudade não é somente o da era dos Descobrimentos, mas é escolhido em função da importância e da força que tem para o resgate da Nação Portuguesa; por isso, ao lado de personagens ligadas à expansão marítima de Portugal como Vasco da Gama ou Afonso de Albuquerque, encontramos ainda os protagonistas das batalhas pela conquista, independência e restauração portuguesas, entre os quais o herói da batalha de Ourique, D. Afonso Henriques e o Santo Condestável Nun’Álvares Pereira, o líder da campanha de Aljubarrota.

15A comemoração dos «Grandes Homens» e dos «Grandes Acontecimentos» está estreitamente ligada também ao outro pólo, o sebastianismo, entendido sobretudo como forma de messianismo político, de missão divina de redenção. A saudade, portanto, mitigada pelo impulso do messianismo, perde a sua conotação de resignação desinteressada do presente e transforma-se num meio para chegar ao fim proposto do sebastianismo: o nascimento de um novo império português.

  • 14 Cfr. Miranda, R. Barreto, No jubileu do centenário. Portugal na Índia: Epopêa do Oriente (1498-1898 (...)
  • 15 Leal, E. Castro, «A Cruzada Nacional. D. Nuno Álvares Pereira e as origens do Estado Novo (1918-193 (...)

16Nos primeiros anos do século passado, assiste-se assim a uma evolução cultural através da qual, sob o impulso do nacionalismo crescente, saudade e sebastianismo se conciliam na ideia de Cruzada Nacional, entendida como «reconquista» e proselitismo religioso, bem como missão civil atribuída ao povo português pela Providência. O termo Cruzada, efectivamente, tendo a sua origem no campo católico, de matriz fortemente intransigente14, não é todavia um património só deste sector, mas encontra-se até no âmbito republicano conservador e maçónico, graças ao «processo de secularização da sociedade e do Estado que operou dinâmicas de transferência de sacralidade de uma religiosidade cívica de culto à Nação, por vezes concorrente com a religiosidade divina e a religiosidade popular, o que explica em parte a leitura secular de Cruzada como serviço nacional (Cruzada nacional) e não só como serviço de Deus»15. O sentimento de Cruzada será além disso fomentado por dois importantes acontecimentos históricos: o advento da República em Portugal e a Grande Guerra.

  • 16 Cfr. a afirmação de António José de Almeida, futuro presidente português, acerca dos símbolos: «Há (...)

17A instauração do regime republicano levou a uma reconsideração integral da relação entre o indivíduo e o Estado e, sobretudo, a nível simbólico e comemorativo, a uma nova ideia da integração das massas e da sua educação cívica e patriótica. Os republicanos, chegados ao poder, estavam, na verdade, cientes da importância das liturgias e dos símbolos16: a 13 de Outubro de 1910, com a promulgação de um decreto-lei, eliminaram algumas festas religiosas, laicizaram outras – 1.º de Janeiro, dia da fraternidade universal e 25 de Dezembro, dia da família – e instituíram novas – 31 de Janeiro, dia dedicado aos precursores da República, 5 de Outubro, festa dos heróis da República, 1.º de Dezembro, dia da restauração da independência de Portugal.

  • 17 Catroga, Fernando, O Republicanismo em Portugal, da formação ao 5 de Outubro de 1910, Editorial Not (...)

18As novas festividades, às quais se juntariam em 1920 a Festa da Pátria e em 1925 o Dia da Raça, de Portugal e de Camões, foram acompanhadas por grandiosas cerimónias e liturgias públicas que conseguiram fazer convergir milhares de pessoas em Lisboa, com um imponente esforço por parte da classe de governo que tinha percebido que «o espaço público, ainda que ocupado de uma maneira delimitada e ordeira, constituía um excelente palco para a participação (comícios) e emissão de mensagens políticas. Para isso, foi necessário secularizá-lo, e restrições às procissões, à inserção de símbolos religiosos nos edifícios públicos, ao uso de hábitos talares na via pública, bem como o controlo político-administrativo da utilização dos sinos não tiveram outro objectivo. As praças e as ruas deviam ser espaços disponíveis para a simbólica e para o espectáculo político»17.

19Em todo o caso, a aprovação e a vasta participação popular não corresponderam a um total consenso em relação às iniciativas de governo em torno do tema das comemorações civis e de muitas partes; mesmo nas próprias fileiras republicanas, houve críticas e discordâncias sobre aquilo que foi definido como «Jacobinismo Republicano». Os sentimentos nacionalistas, com a sua carga de messianismo político, reactivaram-se perante uma situação de forte instabilidade política e de extremo laicismo, tanto no interior dos partidos tradicionais como através de uma série de grupos de pressão cultural e política que viriam a revelar-se muito importantes para a ascensão ao poder do salazarismo, como a Renascença Portuguesa, Integralismo Lusitano de António Sardinha, Seara Nova e a Cruzada Nacional Nun’Álvares Pereira.

20Com a Grande Guerra, o conflito ideológico, como noutras partes da Europa, endurece sob a pressão do confronto entre intervencionistas e não intervencionistas, das manifestações populares contra a carestia e, em Portugal, sobretudo por causa da instabilidade da política republicana. O contexto bélico, que proporciona uma revalorização de temas já presentes no imaginário político e simbólico, como a imagem de um «Estado forte» gerido por militares, ou do renascimento de um Portugal mais interveniente no plano internacional, trouxe uma maior complexidade na esfera mítica, quer aduzindo novos materiais e novos cultos, quer gerando sincretismos e interpenetrações com a mitologia precedente. Assim, se bem que se tenham acrescentado novos mitos ao panteão nacional, como o Soldado Desconhecido, o tenente-coronel Francisco Pedro Curado e o capitão-tenente (a título póstumo) José de Carvalho Araújo, estes foram sempre conjugados com os velhos mitos nacionalistas que, nestes anos, retomaram um particular vigor e adquiriram cores fortemente religiosas, até pelo crescente misticismo devido às aparições de Nossa Senhora de Fátima em 1917. A partir do período bélico, novas figuras mitificáveis foram inseridas num contexto tradicional e geralmente católico, começando pela sepultura do Soldado Desconhecido, em 1921, mais uma vez no Mosteiro da Batalha, que se encontra entre Fátima e o campo de batalha de Aljubarrota. A escolha geográfica do monumento, encerrado num triângulo fortemente simbólico, visa sublinhar os liames entre o sacrifício dos mortos da Grande Guerra, o dos mortos pela independência da pátria e a aparição mariana ao povo português.

21Por quanto se disse, não espanta pois que, durante a Grande Guerra, e sobretudo nos anos seguintes, um certo republicanismo conservador e diversos outros sectores conservadores procurassem concentrar as atenções em Nun’Álvares Pereira, uma personagem histórica que podia facilmente incarnar as ideias de patriotismo, heroicidade, messianismo e até misticismo.

3. Nun’Álvares Pereira: herói e santo

22A figura de Nun’Álvares Pereira permaneceu por muitos anos num limbo simbólico, esmagada por outras personagens à volta das quais se criaram mitos, como o Infante D. Henrique, o Marquês de Pombal ou Camões. O mito do santo guerreiro não estava de todo esquecido mas também não era alvo de um culto específico e, sobretudo, reconhecido oficialmente a nível religioso e político.

  • 18 Leal, E. Castro, Nun’Álvares na Memória da Nação, separata da revista Gil Vicente, n.º 3, 4.ª Série (...)

23A exigência de celebrações específicas em relação a Nun’Álvares Pereira foi colocada no período que vai da deflagração da Grande Guerra ao advento do salazarismo, anos nos quais «continuaram a evidenciar-se várias representações – herói militar, santo católico, místico predestinado –, mas do que não há dúvida é que se assistiu à sua consagração como um dos símbolos fortes da memória e do imaginário da nação, verificando-se um ampla adesão às ritualizações cívicas praticadas»18.

24Neste período, com efeito, ocorrem duas ordens de factos culturais e históricos que contribuem para a assunção de Nun’Álvares Pereira no panteão da religião civil portuguesa. Entre os factores culturais, foi de importância decisiva a ameaça trazida pelo jacobinismo republicano na procura de figuras patrióticas de tipo conservador, que tivessem raízes no povo e transmitissem a ideia de devoção à pátria. As políticas de gestão da memória da elite republicana no governo, que tinha abolido as principais festividades religiosas e havia enfatizado personagens do panteão laico como o Marquês de Pombal, suscitaram fortes críticas e impulsionaram grande parte da elite mais moderada a procurar em Nun’Álvares Pereira um exemplo de virtude e um baluarte em comparação com os novos costumes. Em muitos textos da época, a figura do Santo Condestável foi evocada como modelo de integridade e de representação dos valores tradicionais da sociedade portuguesa, postos em discussão pela nova gestão da res publica em funções no governo instaurado com o 5 de Outubro de 1910.

  • 19 Cordeiro, P.e Valério Aleixo, Vida do beato Nuno Alvarez Pereira (Santo Condestável), Edição da Liv (...)
  • 20 Deusdado, Domingos Ferreira, Nun’Álvares, símbolo das três virtudes: Fé, Esperança e Caridade, Impr (...)

25Na biografia do Santo Condestável, escrita pelo P.e Valério Aleixo Cordeiro, pode ler-se, com efeito, que «com um exemplar tão formoso deante dos olhos, animar-se-ha certamente a actual Juventude a ressuscitar em si as virtudes e energias dessa outra Juventude a que pertenceu Nuno Alvares, e, como ella, reconstruir Portugal, salvá-lo da decadência profunda a que o vão levando os erros tremendos do nosso liberalismo, destruidor da genuína tradição portuguesa»19. O mesmo sentimento se colhe também num texto de poucos anos depois, onde o nacionalista monárquico Domingos Ferreira Deusdado acrescenta: «Olham para a estrada gloriosa do passado e veem-na cheia de guerreiros illustres [...] A crise de 1385 era superior à actual e, todavia, nós vencemos. [...] Hoje, é apenas a imoralidade cá de dentro; e o inimigo do interior, que se torna mister combater.20»

  • 21 No texto de Ferreira Deusdado pode ler-se que «homenagear os nossos grandes homens do passado é rec (...)

26O mito de Nun’Álvares Pereira como salvador dos excessos laicos do governo foi acompanhado, desde a primeira década de 1900, pelo do salvador da pátria em perigo. Perante a instabilidade política, a crise identitária e simbólica devido ao jacobinismo e a complexa situação internacional, a figura do Santo Condestável aparece para largos sectores da opinião pública como um novo messias, ou melhor, um novo D. Sebastião, característica que será muito importante na passagem da república ao salazarismo. A evocação de Nun’Álvares Pereira e o seu exemplo de patriotismo e devoção serviam, na óptica da utopia regressiva, para contribuir para a restauração da grandeza portuguesa e para pôr fim à corrupção e degeneração presentes21.

27O sucesso da operação de mitificação de Nun’Álvares Pereira no final da I República portuguesa ficou também a dever-se à particular conjunção histórica do período. A deflagração da Grande Guerra e a incerteza sobre a intervenção da nação portuguesa no conflito provocaram um aceso debate e os responsáveis pela entrada na guerra agitaram imediatamente o mito da reconquista lançando contra os oponentes os recuperados símbolos patrióticos da batalha de Aljubarrota e de Nun’Álvares Pereira.

  • 22 Souza, J. Fernando de, Joanna d’Arc e Nun’Álvares, Tipographia Cesar Piloto, Lisboa, 1916, p. 14. P (...)

28Se a Grande Guerra contribuiu para alimentar o mito patriótico de Nun’Álvares Pereira, outros dois factores históricos levaram a incrementar o seu mito religioso. O primeiro deles está ligado às ocorrências da canonização de Joana d’Arc. Em 1909, na verdade, a pucelle francesa foi feita beata e a notícia suscitou grande clamor nos ambientes católicos portugueses. Logo nos anos subsequentes realizaram-se conferências e publicaram-se artigos e livros sobre as afinidades entre a beata francesa e o Santo Condestável: em ambos se valorizava a união da fé com o patriotismo, o heroísmo com o sacrifício. Na conferência intitulada «Joanna d’Arc e Nun’Álvares Pereira», realizada na Liga Naval Portuguesa, J. Fernando de Souza conclui o discurso com a seguinte comparação: «Floresceu nas suas almas a mesma herança christã fervorosa e simples, manifestando-se pela piedade plena de confiança sem limites no auxilio divino, pela caridade para com Deus e os Homens. Inflamou-os o mesmo ardor patriótico, que era alimentado por igual pujança da seiva christã e lealdade cavalheiresca nas suas almas de crentes.»22

29As manifestações, os discursos e os livros saídos neste período provocaram uma viva discussão, contribuindo para a aceleração do processo de beatificação em curso já desde meados do século XV. A Congregação dos Ritos, a 15 de Janeiro de 1918, reconhece o culto que foi oficializado com a encíclica Clementissimus Deus, do papa Bento XV. A beatificação e o fim da guerra, com toda a sua carga patriótica, a santificação de Joana d’Arc em 1918 e a sua elevação. Foi mesmo a padroeira de França, trouxeram um interesse simbólico por Nun’Álvares Pereira proveniente de mais sectores.

30A divulgação de um forte imaginário identitário que representasse tanto a heroicidade como a santidade fez com que se tornasse um catalisador de diversas tendências e fê-lo de modo a que se desenvolvessem, primeiro paralelamente e depois em simbiose, os diversos cultos ligados à sua personagem. Durante todos os anos 20 e até à plena afirmação do regime salazarista, a figura de Nun’Álvares Pereira esteve no centro de múltiplos textos que trouxeram consistência a um culto que sintetizou a dimensão civil com a militar.

31Em particular, o comandante de Aljubarrota ficou ladeado e por vezes esmagado pela figura do frade carmelita, soldando a relação entre «Fé e Pátria», «Herói e Monge», «Virilidade e Virgindade».

  • 23 Abranches, P.e Francisco d’, O Santo Condestável, Coimbra Editora, Coimbra, 1924, pp. 195-196.

32É sobretudo a oposição entre herói e santo que permite compreender como a cisão entre Nun’Álvares Pereira e Frei Nuno de Santa Maria tinha gerado não só diversos tipos de culto como também originais simbioses entre patriotismo e religiosidade, como se pode ler no texto do P.e Francisco d’Abranches: «Patriotismo e Fé! É o amor da Pátria e o amor de Deus, que entusiasma e inspira o nosso coração de patriota e a nossa alma de crente. Patriotismo e Fé! São os nossos heroes e os nossos Santos, levantando, n’um esforço indissolúvel de santa aspiração, o nome querido da Pátria bem-amada e orando pela sua independência e prosperidade»23; tais simbioses prolongar-se-ão ao longo de toda uma década e serão amplificadas pelo Estado Novo, que, pelo menos nos primeiros anos de poder, desfrutou da semelhança entre o messias de rosto virgíneo de Aljubarrota e o novo Chefe de Portugal.

33A figura de Nun’Álvares Pereira acaba pois por gerar uma multiplicidade de cultos à sua memória que, se por um lado tiveram características completamente diferentes, tornaram-se, por outro, complementares daquilo que Ernesto de Castro Leal define como «messianismo condestabrino», ou seja, a união verificável numa mesma personagem histórica da tradição providencialista católica, promotora da figura do Santo, e a laico-republicana, patrocinadora da heroicidade política, militar e patriótica.

  • 24 Sant’Anna, Frei Joseph Pereira de, Chronica dos Carmelitas, Lisboa, 1745; Cordeiro, P.e Valério Ale (...)
  • 25 Na biografia do Santo Condestável escrita pelo P.e Valério Aleixo Cordeiro pode ler-se, por exemplo (...)

34O culto religioso de Nun’Álvares Pereira não se iniciou, porém, com o primeiro pós-guerra, porque já no século XVIII há notícias acerca de um culto popular e espontâneo24 tributado ao Santo Condestável. Numa crónica da época, com efeito, podem ler-se referências a missas em honra de Nun’Álvares Pereira na Igreja do Carmo e a procissões realizadas por habitantes de Lisboa, a princípio tacitamente permitidas pelas autoridades eclesiásticas e em seguida aprovadas e claramente encorajadas. O culto popular, que diminuiu mas não desapareceu após o terramoto de 1755, tinha por base o binómio fé e pátria25.

  • 26 Abranches, P.e F., op. cit., p. XXXVII

35Tal contaminação foi mantida mesmo com a oficialização do culto por parte da Igreja católica em 1918. Com efeito, na missa e nas cerimónias previstas para 6 de Novembro, dia da celebração oficial da festa religiosa, encontram-se muitas referências à aproximação entre o motivo religioso e o motivo patriótico. Na oração por S. Nuno de Santa Maria, aprovada em 1918 pelos bispos da diocese de Lisboa, lê-se: «Senhor, [...] fazei que, admirando as virtudes excelsas, que em grau heróico, resplandeceram no vosso Servo Nuno Álvares, possamos à sua imitação, aliar ao amor da Pátria, que nos foi berço, a caridade ardente e o desprezo das glórias e bens terrenos, de que nos legou tão sublimes exemplos. Por Jesus Christo Nosso Senhor. Amen.»26

36Dois anos depois, ao culto religioso juntar-se-ia o civil, que ainda mais ilustra a interpenetração e fusão entre a esfera temporal e a sacral.

4. A Festa da Pátria

37A necessidade de revalorizar Nun’Álvares Pereira e de lhe atribuir maior peso no quadro da política de gestão da memória era um sentimento difundido em diversos ambientes culturais e políticos portugueses.

  • 27 O texto de Forjaz foi escrito em resposta ao opúsculo de Dantas, Júlio, Outros Tempos, Livraria Clá (...)
  • 28 Forjaz, Augusto, Nun’Alvarez e o Sr. Dantas. Tonsura d’um «Cardeal Diabo», Livraria Férin, Lisboa, (...)

38De muitos lados, com efeito, se reclamava um reconhecimento da figura do Santo Condestável que se exprimisse num «feriado nacional» ou no levantamento de uma estátua. Já em 1914, no opúsculo escrito por Augusto Forjaz27, além da evidente semelhança cristológica, pode ler-se a exigência da restauração de um culto que não seja apenas religioso, mas também cívico: «Foi o primeiro golpe, quando melhor teria sido abandoná-lo entre ruínas contemporâneas, ao contacto das pedras que por suas próprias mãos acarretara, naquelle pedaço triturado do seu espólio, mas ainda sob a carícia dos astros no espaço livre. [...] Abençoados sejam, portanto, nesta boa terra em que nasci, quantos possam tornar-se julgadores severos de tal pleito de honra, onde, como a túnica de Christo, a memória de Nun’Álvares foi inesperadamente jogada ao desprezo.»28

  • 29 A partir de 1934, será apoiado pela associação católica Ala do Santo Condestável.

39A par dos apelos e dos artigos publicados por homens de cultura, religiosos e políticos a favor da valorização de Nun’Álvares Pereira, verificou-se o incessante trabalho de promoção levado a cabo pela Cruzada Nacional D. Nun’Álvares Pereira29. Este organização político-cultural, surgida em 1918 e dissolvida em 1938, dedicou a vintena de anos da sua existência na sociedade portuguesa a propagandear, através do exemplo do Santo Condestável, um modelo de sociedade que, se inicialmente podia identificar-se com um republicanismo monárquico, em seguida passou a coincidir com o propagandeado pelo salazarismo.

  • 30 Cfr. Leal, Nação e Nacionalismos…, p. 329 e seguintes.
  • 31 Cruzada Nacional D. Nun’Álvares Pereira, Razões determinantes desta Cruzada seguidas do programa sí (...)

40A Cruzada nasce em 1918 como um «espaço de sociabilidade»30 de várias figuras de relevo da área político-social definível como «nacionalismo republicano conservador». Os ideais da associação, resumíveis aos mitos políticos do ressurgimento nacional e da unidade moral da nação, foram veiculados pela importante função simbólica de Nun’Álvares Pereira tanto no plano político-militar, como no ético-religioso. No manifesto de formação da associação pode, com efeito, ler-se: «Esta Cruzada tendo por patrono a figura brilhantíssima, que com a sua espada marcou nos campos de Aljubarrota, a longos e indeléveis traços, a nossa independência e vida nacional, em seu nome, e numa evocação do mais intenso patriotismo chama todos os portugueses verdadeiros, sinceros e patriotas, a reunirem-se [...] sem distinção de cores políticas ou credos religiosos, propondo-se estabelecer numa lealíssima plataforma nacional a união de todos os portugueses, a fim de fazer ressurgir Portugal próspero, culto, livre e forte, com o grande prestígio que lhe assegura a sua gloriosa história.»31 O recurso ao Santo Condestável, entendido como farol e exemplo no grave momento de crise política e espiritual, permitiu que a Cruzada conseguisse manter ligados os dois aspectos mitificados da personagem graças a um culto simbiótico que viria a ser modificado com o decurso do tempo.

41De resto, a força da Cruzada era conseguida através da sua capilar presença no território e nas instituições e da abnegação dos seus membros, bem como pela relevância institucional destes últimos, entre os quais se contavam os nomes mais importantes do cenário português da primeira república e do primeiro salazarismo, como Anselmo Braamcamp Freire, Freire de Andrade, Augusto Forjaz, Nobre de Melo, Gomes da Costa. Além destes, com a excepção de Bernardino Machado, todos os presidentes da República exerceram a direcção honorária da associação durante o seu mandato.

42Foi mesmo sob a presidência de António José de Almeida que o Senado aprovou a lei que institui a Festa da Pátria. Efectivamente, na sessão de 6 de Agosto de 1920, passou por unanimidade o projecto de lei do senador Dias de Andrade, que promovia o feriado cívico por Nun’Álvares Pereira. A festa, denominada Festa da Pátria, deveria ser realizada anualmente a 14 de Agosto, aniversário da batalha de Aljubarrota.

  • 32 Diário do Senado, Sessão n.º 118, 6 de Agosto de 1920.

43A lei foi aprovada com espírito conciliatório; a sensação que se tem ao ler o debate no Senado é a da procura de um terreno comum onde se pudesse integrar o espírito do patriotismo, a elevação moral da personagem e a sua componente religiosa. O próprio António Granjo, presidente do Ministério e representante dos republicanos, proferiu esta afirmação: «Não há na nossa História vulto maior, porque em nenhum coração jamais se acendeu tão fortemente a paixão patriótica. A sua fé patriótica era igual à sua fé religiosa. Ele foi um herói e um santo, e da bôca dum republicano, que não tem profissão nenhuma religiosa não fica mal dizer que admira em tantos vultos que pertenceram à Igreja, dotes de santidade […]. O culto de D. Nun’Álvares Pereira não está apenas dentro das igrejas, está dentro de todos os corações dos portugueses. É um culto nacional, que tem de ser prestado por todos os peitos portugueses.»32

44A Festa da Pátria não teve, todavia, um decurso igual durante os anos do seu desenvolvimento; a celebração de Nun’Álvares Pereira, na verdade, foi realizada «oficialmente» apenas nos anos de 1920 a 1929 e seria repetida ainda uma vez em 1931, por ocasião do V Centenário da morte do Santo Condestável. Além disso, ela sofreu, após os primeiros anos, modificações respeitantes ao programa e lugar de realização e nem sempre o dia da festa teve a mesma importância, tanto que, em alguns anos, foi mesmo suspensa.

45Já em 1920, por causa da falhada ratificação no Senado do projecto de lei já aprovado na Câmara, 14 de Agosto não pôde ser considerado feriado nacional e as celebrações não puderam realizar-se oficialmente, embora o governo concedesse uma derrogação e, conquanto num tom menor, a festa tivesse ocorrido. É lícito pensar que esta concessão governamental deve ser entendida como uma aberta demonstração de interesse por parte do Estado. Em particular, o Presidente António José de Almeida participou tanto na função religiosa como na parada militar da tarde, a comprovar a importância da jornada comemorativa.

46No ano seguinte, a cerimónia adquiriu o estatuto de festa nacional e foi provavelmente a mais completa e assistida da era republicana, com a participação da totalidade do governo, da Igreja e das instituições militares. Se bem que, na verdade, se realizassem comemorações de diversas origens, isso não gerou conflito entre elas nem houve uma parte que reclamasse maior relevância sobre outra, todas assumiram igual importância, apresentando-se como diversas facetas de um mesmo culto.

47Também com a conivência do calendário, a festa repartiu-se em três dias: 13, 14 e 15 de Agosto, nos quais se sucederam celebrações promovidas por três diferentes actores sociais e que incluiu o disparo de salvas por parte da Marinha e dos canhões posicionados no Castelo; o desfile militar ao qual assistiram os mais altos cargos do Estado; a distribuição de esmolas aos pobres diante da Igreja do Carmo; a missa solene com Te Deum celebrada pelo bispo de Beja; a sessão extraordinária na Sociedade de Geografia entre cujos oradores estiveram o Presidente da República, António José de Almeida e o presidente do Ministério, António Granjo. Em todos os jornais da época as celebrações tiveram um grande eco; os mais importantes cabeçalhos deram notícia na primeira página e muitos publicaram imagens de Nun’Álvares Pereira com a armadura.

  • 33 «Nun’Álvares», A Capital, 15 de Agosto de 1921, p. 1.

48A primeira Festa da Pátria oficial exprimiu em pleno o carácter de celebração do patriotismo, porque o que é recordado não é tanto o Santo Condestável mas o patriota que, com a ajuda da fé, conseguiu libertar o país. N’A Capital lê-se, de facto, que «a Festa da Pátria nem é uma festa monárquica, nem republicana, nem religiosa, mas pura e exclusivamente nacional»33.

  • 34 Cfr. Leal, Nação e Nacionalismos…, pp. 79-80.
  • 35 «O Santo Condestabre, Ou a farça militarista de ontem», A Batalha, 15 de Agosto de 1921, p. 1.

49A solenidade e a intensidade das celebrações e a forte participação do governo provocaram também reacções contrárias nos sectores mais radicais do republicanismo e da Maçonaria. A União Liberal, representante destas tendências, em resposta à autorização dada pelo ministro da Instrução Pública à celebração da missa no Carmo, promoveu uma Semana Anti-Clerical de 9 a 14 de Agosto que consistiu em comícios sobre a laicidade do Estado e numa grande conferência pública realizada significativamente a 14 de Agosto34. Também o jornal A Batalha, principal órgão da imprensa operária portuguesa, descreveu a Festa da Pátria como uma farsa militarista e perguntou retoricamente aos seus leitores se «esta militarite aguda está assim atingindo o máximo da sua expansão e da sua estupidez. Pois merece, por ventura, comemorar-se um desaguisado de sete séculos, ir recordar um momento agressivo, una carnificina do passado? Para quê? É evocando continuamente a morte que se nobilita a vida? É alimentando ódio, cultivando-o com alucinada inconsciência e com selvagem perversidade que se contribui para a fraternidade humana?»35

50Nos anos subsequentes, porém, a festa já não conseguiu ser um momento de agregação entre os actores sociais e políticos e mudou na forma e no modo de ser: provavelmente, muito se deve à mudança na elite de governo e ao termo do mandato presidencial de António José de Almeida, que fortemente tinha querido a festa.

51Em 1922, o 14 de Agosto já não foi reconhecido como dia de festa oficial e em 1923 foi apenas celebrada uma missa no Carmo com a presença do bispo de Beja e dos representantes da Cruzada.

  • 36 «Uma Grande Data», O Século, 14 de Agosto de 1922, p. 1.
  • 37 «A festa do patriotismo», Novidades, 15 de Agosto de 1925, p. 1.

52Nas edições seguintes foram retomadas algumas das cerimónias de 1921, sobretudo a missa solene e o Te Deum e, só em 1925, o desfile militar, mas de muitos lados se criticou a escassa presença de povo e, sobretudo, a ausência dos Estado. Já em 1922, O Século escrevia que «a situação em que o paiz se encontra não permite que o dia de hoje seja celebrado com a pompa requerida. De resto, o aniversário da batalha de Aljubarrota, batalha famosa que deu a glória a Nun’Álvares e consolidou a independência nacional, não teve ainda a comemoração precisa e justa, apesar dos esforços de bons patriotas»36 e poucos anos mais tarde o jornal católico Novidades escrevia que «parece que o dia 14 de Agosto devia ser feriado, e que as estações oficiais deviam ordenar todas as manifestações festivas próprias desses dias. Esperávamos, pois, que o Governo não deixasse de dar as instruções necessárias para que o dia de ontem fosse, realmente de festa nacional. Infelizmente, constatamos que não procedem assim»37.

53O que transparece é que a Festa da Pátria estava lentamente a transformar-se numa comemoração organizada e gerida quase inteiramente pela Cruzada D. Nun’Álvares Pereira e em parte pelo movimento católico Ala do Condestável, surgido em 1924, como mais uma prova da deslocação para os ambientes católicos da memorialística ligada à personagem.

54Entre 1924 e 1925, a Festa da Pátria sofreu mutações muito profundas que, se bem que não tivessem sido imediatamente visíveis, trouxeram nos anos subsequentes uma reformulação total do carácter do feriado cívico.

  • 38 «A Festa da Pátria», O Século, 13 de Agosto de 1924, p. 1.
  • 39 «A Batalha da Independência», O Século, 14 de Agosto de 1924, p. 1.
  • 40 «A “Ala do Santo Condestável”», Novidades, 14 de Agosto de 1924.

55O exemplo que melhor testemunha a mutação do clima ideológico respeitante à gestão pública da memória do Santo Condestável é a sua relação com o tema da Raça Portuguesa. Nestes anos de transição ideológica da festa, em muitos lados se definia Nun’Álvares Pereira como o melhor representante da Raça. A 13 de Agosto de 1924, O Século escreve, ao lado da denominação «Festa da Pátria», a de «Festa da Raça»38 e, a 14, num artigo sobre a batalha da independência, lê-se que «evocar Aljubarrota é possuir a sua raça [que] tem, através da nossa historia, o milagre palpável de construir uma nacionalidade, agregando sangues, (…) na terra dos campos de batalha (…) até ao equilíbrio eterno que nada destrói»39; palavras análogas podem ler-se no Novidades de 14 de Agosto: «É o dia de Aljubarrota. É o dia de Nun’Álvares. [...] Nun’Álvares é a melhor encarnação da nossa raça forte e crente que comunga, ajoelha e reza, para num momento varrer, de cima do torrão pátrio, o estrangeiro invasor e continuar a sua histórica vocação de dilatar a fé e o império»40.

  • 41 Cfr., entre outros, Braga, Teófilo, Epopeias da Raça Moçárabe, Porto, Imprensa Portuguesa, 1871; Br (...)

56O conceito da Raça em Portugal lançava as suas raízes em anos muito anteriores, entre 1800 e 190041 e compreendia não tanto uma noção genética quanto antropológica e cultural, que considerava a Raça Lusa portadora de características particulares e superiores como a de permitir aos lusíadas serem um povo destinado a um grande futuro.

57Tal conceito, no interior das comemorações cívicas, já tinha sido agitado em Junho de 1924 quando se festejava o V Centenário do nascimento de Camões e, nesta perspectiva, os apoiantes de Nun’Álvares Pereira, em particular os católicos do Novidades, tinham proposto a aproximação entre o Santo Condestável e o conceito de Raça, envolvendo uma semelhança que, através da história da personagem, sublinhasse a preponderância da Raça Lusitana na comparação com a castelhana. As autoridades, todavia, que já tinham celebrado este aspecto da cultura portuguesa no aniversário camoniano, a 10 de Junho de 1924, não aceitaram reavaliar o 14 de Agosto, dando-lhe esta conotação e preferiram instituir um novo feriado cívico que seria transformado, de 10 de Junho de 1925 em diante, em Dia de Portugal, um feriado cívico que, embora não oficialmente, ficou conhecido como o Dia da Raça.

58Uma prova posterior da escassa vontade governamental na gestão da memória de Nun’Álvares Pereira foi a construção do monumento ao Santo Condestável e denominação da praça no jardim de Santos. O lançamento da primeira pedra inseriu-se no magro programa de festejos de 1925. Não obstante a presença do Presidente da República, Manuel Teixeira Gomes, e os discursos patrióticos das autoridades, a cerimónia foi um fim em si mesma, porque o projecto de monumento a Nun’Álvares Pereira ficou e ainda continua, na sua fase embrionária. As polémicas acerca da sistematização periférica do monumento, a crise política institucional e o escasso interesse que a partir de então suscitava a figura de Nun’Álvares Pereira fizeram que o monumento e a denominação da praça acabassem por não se concretizar.

  • 42 «Aljubarrota», Novidades, 15 de Agosto de 1926, p. 2.

59As críticas ao governo repetiram-se ainda em 1926, uma vez que, não tendo ainda sido revogada a lei sobre o Feriado Cívico, que seria oficialmente eliminado em 1929, o 14 de Agosto daquele ano não foi reservado para Dia de Gala. As comemorações passaram a ser exclusivamente promovidas pelas associações Ala do Condestável e Cruzada Nacional D. Nun’Álvares Pereira, as quais lamentaram fortemente a indiferença do governo no que respeitava à gestão da memória do Santo Condestável, tanto que Leopoldo Saraiva, em nome da Cruzada, na sessão solene na Câmara Municipal, chegou a dizer: «Vergonha nossa atestar a incúria dos que nos governam. Procuremos também fazer com que o de 14 Agosto seja uma festa nacional, colocando a Nação inteira aos pés do Condestável, glorificando-o e agradecendo-lhe»42.

60A celebração da Festa da Pátria permaneceu numa espécie de limbo representativo até à edição de 1926, que representou um separar de águas na gestão da memória pública de Nun’Álvares Pereira por vários motivos: em primeiro lugar, o factor religioso foi muito mais preponderante do que nos outros anos, não só pela missa nas ruínas do Carmo ou pelo Te Deum, até então constantes nos festejos, mas pelo conteúdo dos discursos, pelo estilo dos artigos, pela valorização dos aspectos da vida monástica do Santo Condestável.

  • 43 «Batalha de Aljubarrota», Novidades, 14 de Agosto de 1926, p. 1.
  • 44 «Aniversário de Aljubarrota», Diário de Notícias, 14 de Agosto de 1926, p. 1.

61Num artigo de Zuzarte de Mendonça, publicado no Novidades, lê-se: «[Ele] esforçado, de fé viva e alma pura, escolhido por Deus para uma alta, uma sagrada missão, sabendo fazer-se ouvir e fazer-se obedecer levando todo um povo à vitoria esplêndida... Não o esqueçamos! E roguemos-lhe [...] que não desampare de nós seu amoroso olhar e nos alcance do senhor Deus dos Exércitos a Fé que salva, a Esperança que reanima, a Caridade que nos torna irmãos e nos faz bons...»43; e, no Diário de Notícias, no artigo de fundo para a comemoração da batalha de Aljubarrota, Nun’Álvares Pereira é descrito com comparações cristológicas, como um mártir, um messias vindo para salvar Portugal: «Padroeiro Santo da Pátria, a ele nos devemos apegar hoje nós todos, para ele devemos nós todos erguer hoje as mãos e os olhos, na fé e na esperança de que o sagrado exemplo da sua vida, da sua paixão e da sua morte, nos iluminem nos ensinem, nesta hora turva de presságios o que nos resta ainda a salvar – a sua liberdade e a sua honra.44»

  • 45 Cfr. «O primeiro acampamento do Corpo Nacional de Scouts», Novidades, 16 de Agosto de 1926, p. 1. N (...)

62Além disso, a maior atenção do mundo católico nas celebrações de 1926 foi também devida à participação do Corpo Nacional de Escutas, os quais, segundo a direcção do grupo, deveriam aprender com o exemplo de Nun’Álvares Pereira a lição de heroísmo e do combate a que seriam chamados, já não contra um inimigo externo e invasor mas contra as doutrinas ímpias e subversivas que assediavam o espírito da juventude e da fé.45

  • 46 A prevalência da componente militar nas celebrações de 1926 é testemunhada no artigo d’O Século de (...)
  • 47 «Aljubarrota», Novidades, 15 de Agosto de 1926, p. 2.

63O outro factor de alteração nas celebrações ficou directamente ligado às mudanças políticas ocorridas em Portugal no mesmo ano e que levaram os militares ao poder. O envolvimento do exército no Estado repercutiu-se também nas celebrações da Festa da Pátria que em 1926 envolviam uma parada militar particularmente aparatosa e a passagem de aviões no céu de Lisboa46. Além disso, na já citada sessão comemorativa na Câmara Municipal, presidida pelo general Luís Domingues e pelo coronel Vicente Ferreira em representação do chefe de Estado, Oscar Carmona, Zuzarte de Mendonça, em nome da Cruzada, afirmou: «Onde pulsa um coração que sabe vibrar, é que reside a esperança dos bons portugueses que não querem ver amortalhada a Pátria, ainda bem que o exército quis dar-nos o seu apoio. É o exército a reconhecer a justiça da homenagem prestada ao maior dos seus soldados do passado (apoiados prolongados).47»

64Provavelmente, porém, a parte das comemorações que mais evidenciou a mudança e que prenunciou a imponência das manifestações de 1928, foi a bênção da imagem de Nun’Álvares Pereira no Mosteiro da Batalha, lugar caro aos católicos, mas que acolhe também o túmulo do Soldado Desconhecido, consolidando assim um triângulo fortemente simbólico, Aljubarrota-Batalha-Fátima.

  • 48 Idem, ibidem.

65A melhor descrição desta modificação pode ler-se no Novidades de 25 de Agosto de 1928: «Em frente de um Bispo as tropas passavam em respeitosa continência e o povo que enchia, por completo o Largo do Carmo electrizado pela impressionante cerimónia, descobria-se, respeitosamente, com o peito a arfar, julgava-se em dias de glória e de Fé, daqueles dias gloriosos para o Nosso Portugal, que os houve tantos...»48

  • 49 A de 1928 foi a última Festa da Pátria oficialmente reconhecida. Todavia, a festa foi celebrada em (...)

66A definitiva consagração de Nun’Álvares Pereira como herói capaz de unir fé, pátria e militarismo ocorreu por ocasião da última Festa da Pátria, em 192849 e durante os festejos evocativos do V Centenário da morte do Santo Condestável. O programa das celebrações de 1928 foi mudado em relação aos anos anteriores de modo a sancionar a nível comemorativo e sobretudo territorial as novas características da festa. Em particular, a direcção geral da Cruzada, em colaboração com as autoridades eclesiásticas e governamentais, promoveu, no âmbito das celebrações da Festa da Pátria de 1928, uma Peregrinação Religiosa a Fátima, seguida de uma Romagem Patriótica entre os dias 12 e 14 de Agosto, que associava definitivamente Nun’Álvares Pereira e Nossa Senhora de Fátima.

  • 50 «O culto de Nun’Álvares e o da Senhora de Fátima!», Diário de Lisboa, 15 de Agosto de 1928, p. 5.

67A opinião pública reagiu de modos diversos à apresentação tão evidente desta ligação; se, na verdade, toda a imprensa católica monárquica e moderada aplaudiu a iniciativa promovida pela Cruzada, o Diário de Lisboa de 15 de Agosto manifestava dúvidas sobre a operação e escrevia que «certamente pela coincidência de a 13 se a celebrar ali todos os meses o culto e a romaria da Virgem Aparecida, pois que, quanto a nós, só um pouco forçadamente se pode ligar um acontecimento a outro. Apenas algumas tradições, mantidas integralmente, podem justificar a justaposição dos dois cultos, a que não é estranha a força da fé dos que estremecendo a Pátria dela não alheiam nunca a ideia da religião»50.

  • 51 Na crónica do evento feita pel’O Século colhe-se esta conexão, sobretudo durante a subida ao santuá (...)

68As manifestações que se seguiram nos três dias de Agosto foram muito intensas e emotivamente envolventes, sobretudo a procissão das velas que, a partir da Cova da Iria decorreu no santuário de Nossa Senhora de Fátima na noite de 13 para 14 de Agosto. É sobretudo nesta celebração que se estabelecem a ligação muito forte entre a religião e pátria51; a procissão das velas, com efeito, era encabeçada pelos responsáveis da Cruzada que, graças a um tabernáculo, transportaram a estátua do Santo Condestável até ao santuário, efectuando, portanto, uma aproximação física dos dois ícones que sancionou definitivamente, mesmo a nível visual, a comunhão de propósitos das duas personagens.

69Por fim, no termo da procissão, teve início a vigília de veneração, cuja primeira hora de oração foi dedicada a Nun’Álvares Pereira e à salvação da pátria portuguesa, unindo, num liame de fé e patriotismo, a veneração mariana com a da Nação.

  • 52 «Chama da Pátria», Novidades, 14 de Agosto de 1928, p. 2.
  • 53 «As solenidades comemorativas da batalha de Aljubarrota em Lisboa, no Porto, no Mosteiro da Batalha (...)

70A ligação entre a fé e a pátria foi confirmada também no dia seguinte ao da procissão, na missa solene celebrada no Mosteiro da Batalha, durante a qual o bispo de Beja, declarou na homilia que «Deus e Pátria – dizem-nos todo este monumento glorioso onde vimos viver uma hora histórica, uma hora nacional, este lugar onde se assentou o monumento definitivo da nossa independência. […] Deus e Pátria – diremos nós pedindo a Deus que eleve a Pátria às glórias dum passado de que nenhum povo pode orgulhar-se […]. Deus e Pátria – diz-nos gloriosamente S. Nuno cujo espectro adeja sobre as nossas cabeças, dominando com a voz electrizante da Vitória»52. Provavelmente, é na passagem em que o bispo afirma que «é necessário acabar com a laicização que se quis dar ao culto pelo soldado desconhecido e substitui-lo pelo culto religioso!»53 que melhor ilustra a nova relação entre fé e pátria, entre religião católica e da gestão da memória.

71Com 1928, portanto, inicia-se o percurso da incorporação na hagiografia cívica de Nun’Álvares Pereira capaz de ser integrada no Estado Novo que se iria instituir pouco depois. Realizou-se assim um completo revolvimento na gestão da memória da personagem que, em apenas nove anos, se transformava em símbolo e um mito para uma parte da sociedade que representava valores muito diferentes em relação aos republicanos e laicos de 1920.

72Nun’Álvares Pereira foi sendo cada vez mais invocado como precursor do novo regime, numa operação cultural que eliminava à força a herança originária da festividade onde concorriam e integravam várias celebrações e fazia, pelo contrário, prevalecer a motivação religiosa e militar, coisa que bem se harmonizava com o novo curso da história.

  • 54 Birne, António de Carvalho, «14 de Agosto», A Voz, 13 de Agosto de 1928, p. 1.

73A esse propósito, torna-se interessante ler o artigo de António de Carvalho Birne, presidente do Núcleo Regional do Norte da Associação Geral das Juventudes Monárquicas Conservadoras que, no jornal conservador A Voz, estabelece um confronto entre os verdadeiros intérpretes do mito do Santo Condestável, ou seja, as forças militares no poder desde o 28 de Maio e aqueles que, pelo contrário, não tinham assimilado a essência, isto é, os republicanos chegados ao poder em 1910: «O 5 de Outubro parecia ter acabado de vez com as tradições de bravura, de santidade do povo português e sepultado a nação no caos da indisciplina e da anarquia, mas lá veio o 28 de Maio demonstrar mais uma vez que quem veste a farda do exército português tem que fatalmente criar dentro dela uma natureza especial que não difira da das gentes de Aljubarrota, de Montes Claros, de Bussaco. Milagre ainda e bem visível do Condestável encarnado noutro herói de clara fama, salvando Portugal mais uma vez e desta, de uma morte ignominiosa […]. Assim o entendem aqueles para quem a História Pátria não começou o 5 de Outubro, mas na época recuada da Idade Média.»54

  • 55 Cfr. Associação dos Arqueólogos Portugueses, Catálogo da exposição biblio-iconográfica comemorativa (...)

74A última etapa para a completa transformação da Festa da Pátria cumpre-se em 1931, por ocasião das celebrações do V Centenário da morte de Nun’Álvares Pereira, que se desenrolaram num período compreendido entre 14 de Agosto – com celebrações semelhantes às dos anos anteriores em Lisboa, Fátima, Aljubarrota e outras cidades – e o 1.º de Novembro, dia do aniversário da morte, celebrado sobretudo na capital. Como complemento dos festejos foi inaugurada no museu da Igreja do Carmo, a 13 de Dezembro, uma exposição biblio-iconográfica promovida pela Associação de Arqueólogos Portugueses, onde foram expostas imagens, gravuras raras, colecções de selos55.

  • 56 A exaltação do lado religioso de Nun’Álvares Pereira foi favorecida também pela concomitância, em 1 (...)

75A distinção entre as comemorações de 14 de Agosto e do 1.º de Novembro foi, todavia, apenas temporal e não ideológica, uma vez que entre ambas as datas se verificou uma total interpenetração dos aspectos religiosos, políticos e militares. Assim, se em Agosto as celebrações patrióticas foram acompanhadas da peregrinação ao Santuário de Nossa Senhora de Fátima, nas funções outonais dos altares foi evocado tanto o valor do Santo, como o do guerreiro56. O Estado Novo iria poder assim encontrar a perfeita incarnação daquele Estado religioso católico e corporativista que estava a construir em Portugal e do qual propagandeava a alegada perfeição. Nesse sentido, as comemorações do Santo Condestável de 1931 surgem como ainda mais importantes porque voltavam a propor, à distância de séculos, a superioridade do povo lusitano na comparação com os vizinhos castelhanos que, exactamente naquele ano, estavam a atravessar um período de «falta de ordem» por causa das vicissitudes republicanas.

  • 57 «Comemorações do Centenário do Santo Condestável», Novidades, 15 de Agosto de 1931.

76O centenário condestabrino representou, pois, um importante investimento simbólico consumado pelo regime para integrar num único universo simbólico o Estado, a Igreja e os militares, ligando-os através de uma forte «aliança de Cruz e Espada». A figura de Nun’Álvares Pereira «que soube numa mão erguer a Espada, símbolo do seu amor à Pátria e na outra a Cruz, símbolo da sua Fé»57, incarnava em pleno os ideais da ditadura; o tom das suas comemorações, que viam como protagonistas – não em esferas independentes mas convergentes – a Igreja e o Estado seria retomado nos anos seguintes para outras personagens históricas, abrindo um novo tipo de celebrações centenárias muito diferentes das dos finais do século XIX.

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Notas

1 Partido Popular (CDS-PP), Voto de Congratulação pelo anúncio da canonização de D. Nuno Álvares Pereira, Diário da Assembleia da República, I Série, número 54, pp. 54-55.

2 A congratulação da Assembleia da República no seguimento da canonização de Nun’Álvares Pereira foi aprovada com os votos favoráveis do PS, PSD, CDS-PP e com os votos contra do Bloco de Esquerda e dos Verdes. O PCP absteve-se, tal como uma deputada do PS e uma deputada independente.

3 Diário da Assembleia da República, I Série, número 54, pp. 55-56.

4 Fizeram parte da comissão para a canonização de Nun’Álvares Pereira o Presidente da República, Aníbal Cavaco Silva, o presidente da Assembleia da República, Jaime Gama, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado e o ministro da Defesa, Nuno Severiano Teixeira.

5 «PR: Vice-postulador da Canonização de Nuno Álvares Pereira respeita críticas ateístas apesar de as “estranhar”», Diário de Notícias, 14 de Abril de 2009.

6 Secundino Cunha, «Estado ignorou Santo» Correio da Manhã, 26 de Abril de 2009.

7 João Mattos e Silva, «Falta de sentido patriótico e de dignidade do Estado», Diário Digital, 14 de Abril de 2009.

8 Catroga, Fernando, Carvalho, P. Archer de, Sociedade e Cultura Portuguesa II, Universidade Aberta, 1996, p. 251.

9 Teixeira, Nuno Severiano, «Política externa e política interna no Portugal de 1890: o Ultimatum Inglês», Análise Social, n.º 98, 1987, pp. 687-719

10 Cfr. Catroga, Fernando, História da História de Portugal, Séculos XIX-XX (em colaboração com Luís Reis Torgal e José Amado Mendes, Lisboa, Círculo de Leitores, 1996; Andrade, M. Oliveira, História e Memória: A Restauração de 1640, do Liberalismo às Comemorações Centenárias de 1940, Minerva, Coimbra, 2001; João, Maria Isabel da Conceição, Memória e Império, Comemorações em Portugal (1880-1960), Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2001.

11 Barreira, Cecília, «Três nótulas sobre o integralismo lusitano (evolução, descontinuidade, ideologia nas páginas da Nação Portuguesa, 1914-1926)», Análise Social, n.º 72-73-74, 1982, p. 1421.

12 Cardoso, Miguel Esteves, «Misticismo e ideologia no contexto cultural português: a saudade, o sebastianismo e o integralismo lusitano», Análise Social, n.º 72-73-74, 1982, p. 1399.

13 Cardoso, «Misticismo…», p. 1399.

14 Cfr. Miranda, R. Barreto, No jubileu do centenário. Portugal na Índia: Epopêa do Oriente (1498-1898), Nova Goa, Imprensa Nacional, 1898, onde, na página 14 se pode ler que a imagem dos descobridores do século XV é a de «uma milícia de Jesus, levando numa mão a espada e na outra a cruz».

15 Leal, E. Castro, «A Cruzada Nacional. D. Nuno Álvares Pereira e as origens do Estado Novo (1918-1938)», Análise Social, n.º 148, 1998, pp. 842-843.

16 Cfr. a afirmação de António José de Almeida, futuro presidente português, acerca dos símbolos: «Há muito sabiam que os símbolos não valem tanto pelo que em si representam, mas pela força que traduzem, pelo poder, pelo valor, pela soma de respeito que significam, por parte do povo» in Almeida, António José de, «O valor dos symbolos», Alma Nacional, 1.ª Série, n.º 5, 10 de Março de 1910, p. 77.

17 Catroga, Fernando, O Republicanismo em Portugal, da formação ao 5 de Outubro de 1910, Editorial Notícias, Lisboa, 2000 [1.ª edição 1991], p. 274.

18 Leal, E. Castro, Nun’Álvares na Memória da Nação, separata da revista Gil Vicente, n.º 3, 4.ª Série, Janeiro/Dezembro de 2002, p. 41.

19 Cordeiro, P.e Valério Aleixo, Vida do beato Nuno Alvarez Pereira (Santo Condestável), Edição da Livraria Catholica, Lisboa, 1921, p. 15.

20 Deusdado, Domingos Ferreira, Nun’Álvares, símbolo das três virtudes: Fé, Esperança e Caridade, Imprensa Artística, Lisboa, 1929, p. 10.

21 No texto de Ferreira Deusdado pode ler-se que «homenagear os nossos grandes homens do passado é reconstruir a Pátria: é pagar uma divida de gratidão àqueles que fizeram Portugal. Levantar as frias lousas do Pantéon da Historia, exumar os gigantes que lá dormem, e faze-los perpassar ante os olhos das multidões esquecidas, é reaportuguesar Portugal.» Deusdado, Nun’Álvares, símbolo das três virtudes…, p. 3.

22 Souza, J. Fernando de, Joanna d’Arc e Nun’Álvares, Tipographia Cesar Piloto, Lisboa, 1916, p. 14. Poucos meses depois, Apollinio A. Marques, num discurso proferido no liceu Mouzinho da Silveira, que tinha como tema a relação entre Joana d’Arc e o Santo Condestável, lançou uma forte crítica pela falta de um culto oficial de Nun’Álvares e sublinhava que «assim, o culto respeitoso votado pelos povos agradecidos aos seus heroes nacionaes, conseguiu que a memoria de Joanna d’Arc, a Salvadora da França, cuja gloria immortal foi reivindicada, seja hoje parte integrante da Inteligência e do Sentimento francez. Estas duas almas gémeas, o Condestável e a Pucelle, consagradas pela mesma extraordinária missão, e impellidas ambas pelo mesmo sopro da divindade e da fé, ao resgate das suas pátrias estremecidas, são a maior glorificação do sacrifício e generosidade, de heroísmo e de abnegação, que a Humanidade sempre agradecerá comovida». Marques, Apollinio A., Nun’Álvares, Tip. De Thiago – H. Morgado, Portalegre p. 16.

23 Abranches, P.e Francisco d’, O Santo Condestável, Coimbra Editora, Coimbra, 1924, pp. 195-196.

24 Sant’Anna, Frei Joseph Pereira de, Chronica dos Carmelitas, Lisboa, 1745; Cordeiro, P.e Valério Aleixo, Vida do beato Nuno Alvarez Pereira (Santo Condestável), Edição da Livraria Catholica, Lisboa, 1921.

25 Na biografia do Santo Condestável escrita pelo P.e Valério Aleixo Cordeiro pode ler-se, por exemplo, que durante uma procissão realizada na Oitava da Páscoa por mulheres de Lisboa, se cantava o seguinte salmo: «O grande Condestabre/ Nunalves Pereira/ Defendeo Portugale/ Com sua bandeira/ E com seu pendone./ Na Aljubarrota/ Levou a vanguarda, / Com braçal, e cota/ Os Castelhãos mata,/ E toma o pendone./ Com sua chegannça/ Filhou Baldahouce/ Sem usar davença/ Entrou sua torre,/ E poz seu pendone./ Dentro no Valverde/ Vence os Castelhãos/ Matou bons e maos/ Só co’ a sua hoste,/ E seo esquadrone.» Cordeiro, P.e V. A., op. cit., p. XXXVII.

26 Abranches, P.e F., op. cit., p. XXXVII

27 O texto de Forjaz foi escrito em resposta ao opúsculo de Dantas, Júlio, Outros Tempos, Livraria Clássica Editora, Lisboa, 1909, onde o autor tentava desacreditar a santidade e virtuosidade de Nun’Álvares Pereira.

28 Forjaz, Augusto, Nun’Alvarez e o Sr. Dantas. Tonsura d’um «Cardeal Diabo», Livraria Férin, Lisboa, 1914, pp. 8-10. Do mesmo modo, no já citado discurso de Apollinio Marques encontra-se a exigência de uma restauração do culto que não seja apenas religioso mas também cívico: «Este culto, importa restaurá-lo, se não descreram do futuro da nacionalidade», in Marques, Nun’Álvares…, p. 5.

29 A partir de 1934, será apoiado pela associação católica Ala do Santo Condestável.

30 Cfr. Leal, Nação e Nacionalismos…, p. 329 e seguintes.

31 Cruzada Nacional D. Nun’Álvares Pereira, Razões determinantes desta Cruzada seguidas do programa síntese e das bases estruturais, citada in Leal, Nação e Nacionalismos…, p. 442.

32 Diário do Senado, Sessão n.º 118, 6 de Agosto de 1920.

33 «Nun’Álvares», A Capital, 15 de Agosto de 1921, p. 1.

34 Cfr. Leal, Nação e Nacionalismos…, pp. 79-80.

35 «O Santo Condestabre, Ou a farça militarista de ontem», A Batalha, 15 de Agosto de 1921, p. 1.

36 «Uma Grande Data», O Século, 14 de Agosto de 1922, p. 1.

37 «A festa do patriotismo», Novidades, 15 de Agosto de 1925, p. 1.

38 «A Festa da Pátria», O Século, 13 de Agosto de 1924, p. 1.

39 «A Batalha da Independência», O Século, 14 de Agosto de 1924, p. 1.

40 «A “Ala do Santo Condestável”», Novidades, 14 de Agosto de 1924.

41 Cfr., entre outros, Braga, Teófilo, Epopeias da Raça Moçárabe, Porto, Imprensa Portuguesa, 1871; Braga, Teófilo, O Povo Português nos Seus Costumes, Crenças e Tradições. I, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1885; Braga, Teófilo, A Pátria Portuguesa: o Território e a Raça, Porto, Livraria Chardron, 1895; Correia, A. A. Mendes, Raça e Nacionalidade, Porto, Renascença Portuguesa, 1919; Martins, Joaquim P. Oliveira, História da Civilização Ibérica, Lisboa, Europa, 1879; Martins, Joaquim P. Oliveira, As Raças Humanas e a Civilização Primitiva, t. I, 1881; Romero, S., A Pátria Portuguesa: o Território e a Raça, Lisboa, Livraria Clássica, 1906; Sardinha, António, O Valor da Raça, Lisboa, Almeida, Miranda & Sousa, Editores, 1915; Sardinha, António, «O território e a raça», in A Questão Ibérica, Lisboa, Tipografia do Anuário Comercial, 1916; Teles, Basílio, Do Ultimatum ao 31 de Janeiro, Lisboa, Portugália, 1906.

42 «Aljubarrota», Novidades, 15 de Agosto de 1926, p. 2.

43 «Batalha de Aljubarrota», Novidades, 14 de Agosto de 1926, p. 1.

44 «Aniversário de Aljubarrota», Diário de Notícias, 14 de Agosto de 1926, p. 1.

45 Cfr. «O primeiro acampamento do Corpo Nacional de Scouts», Novidades, 16 de Agosto de 1926, p. 1. Nun’Álvares Pereira foi declarado nesse ano o patrono do Corpo Nacional de Escutas.

46 A prevalência da componente militar nas celebrações de 1926 é testemunhada no artigo d’O Século de 16 de Agosto de 1926 intitulado «A batalha de Aljubarrota», onde se lê: «Como não podia deixar de ser, as cerimonias foram apenas militares, tendo-se o publico limitado a assistir a elas interessadamente. A nota popular consistiu apenas no embandeiramento de alguns edifícios da Baixa, particulares, e dos edifícios públicos.»

47 «Aljubarrota», Novidades, 15 de Agosto de 1926, p. 2.

48 Idem, ibidem.

49 A de 1928 foi a última Festa da Pátria oficialmente reconhecida. Todavia, a festa foi celebrada em tom menor e sem que fosse um dia festivo a nível nacional, até 1938, ano da dissolução da Cruzada.

50 «O culto de Nun’Álvares e o da Senhora de Fátima!», Diário de Lisboa, 15 de Agosto de 1928, p. 5.

51 Na crónica do evento feita pel’O Século colhe-se esta conexão, sobretudo durante a subida ao santuário: «O cortejo partiu da ermida, marchando à frente a direcção da Cruzada Nuno Álvares, com o respectivo estandarte, o qual, alternadamente, foi conduzido pelos vários membros da direcção. O cortejo, que media mais de um quilometro, deu a tradicional volta ao recinto da Cova da Iria, assinalando-se a sua passagem por milhares de luzes tremeluzentes, que vão descrevendo uma grande serpente luminosa, no escuro da noite. A procissão estacionou no alpendre grande, onde se aglomerava uma multidão compacta», in «Batalha de Aljubarrota» O Século, 14 de Agosto de 1928, p. 1.

52 «Chama da Pátria», Novidades, 14 de Agosto de 1928, p. 2.

53 «As solenidades comemorativas da batalha de Aljubarrota em Lisboa, no Porto, no Mosteiro da Batalha e nos campos onde se desenrolou o combate», A Voz, 15 de Agosto de 1928, p. 1.

54 Birne, António de Carvalho, «14 de Agosto», A Voz, 13 de Agosto de 1928, p. 1.

55 Cfr. Associação dos Arqueólogos Portugueses, Catálogo da exposição biblio-iconográfica comemorativa do 5.° centenário da morte de Nun’Álvares Pereira, Editoria da Associação dos Arqueólogos Portugueses, Lisboa, 1932.

56 A exaltação do lado religioso de Nun’Álvares Pereira foi favorecida também pela concomitância, em 1931, com o Centenário Antoniano. Cfr. «As solenidades de ontem», Diário de Notícias, 15 de Agosto de 1931, p. 8.

57 «Comemorações do Centenário do Santo Condestável», Novidades, 15 de Agosto de 1931.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Annarita Gori, «Festa da Pátria: Nun’Álvares Pereira, herói e santo»Ler História, 59 | 2010, 139-159.

Referência eletrónica

Annarita Gori, «Festa da Pátria: Nun’Álvares Pereira, herói e santo»Ler História [Online], 59 | 2010, posto online no dia 26 janeiro 2016, consultado no dia 14 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/1355; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.1355

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