M. Sarita Mota, M. Verónica Secreto e Cristiano L. Christillino (org), A Terra e Seus Historiadores. Lições de História Agrária na América Latina. Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2023, 535 pp. ISBN 9788580546101
Texto integral
1Superado o sentimento de otimismo antropocêntrico e a crença no crescimento ilimitado, vivemos num tempo em que, cada vez mais, os temas dos impactos da intervenção humana e dos modelos de exploração dos recursos agrícolas nos ecossistemas são prementes. É igualmente conveniente ter em consideração as paisagens, os espaços e os lugares como construções socioculturais e discutir a importância e o lugar do género e de outras categorias coletivas nesta grelha analítica. Assim, contributos advindos das ciências sociais, em geral, e da história agrária, em particular, são importantes elementos auxiliadores para uma perceção global destas questões. O livro em análise, sob a coordenação de Maria Sarita Mota, María Verónica Secreto e Cristiano Luís Christillino, enquadra-se neste espírito e o título não deixa surpresas quanto ao seu conteúdo. Trata-se exatamente daquilo que anuncia: mostra quem são alguns dos historiadores da terra na América Latina e que, através das suas investigações, fornecem pistas que podem constituir verdadeiras lições.
2Resultando da confluência dos resultados de dois projetos de investigação dos editores responsáveis – “Terra, Poder e Territorialidades na América Portuguesa, Séculos XVI-XX” e “Desigualdades Globais nas Américas: História Agrária Comparada, 1850-1930” – e nascido da colaboração entre vários autores, de diferentes gerações e países, este livro conta com uma arquitetura interna que se projeta em cinco blocos distintos: 1. História Regional e Práticas Proprietárias; 2. Terra, Trabalho e Economia; 3. Fronteiras, Agricultura e Colonização; 4. Terra, Trabalho e Política; e, por fim, 5. História Agrária e Digital: Novas Perspectivas Metodológicas. Em termos de distribuição geográfica, o volume agrega contribuições que se reportam aos contextos da Argentina (Noemí Girbal-Blacha, María Inés Moraes, Juan Luis Martirén), do Brasil (Manoela Pedroza, Carlos de Almeida Prado Bacellar, Angelo Alves Carrara, Elione Guimarães, Francisco Gleison da Costa Monteiro e Cristiano Luís Christillino), do Chile (Cláudio Robles-Ortiz), de Cuba (Gillian McGillivray), do México (Alejandro Tortolero Villaseñor) e do Paraguai (Ramón Fogel). Outros textos em que não se observa um escopo territorial específico servem para discutir conceitos e debater correntes historiográficas (Erivaldo Fagundes Neves) ou modelos metodológicos (Mario Samper-Kutschbach).
3As virtudes da obra são diversas. Desde logo, deve destacar-se a capacidade que este conjunto de estudos tem em demonstrar o passado, o presente, mas igualmente o porvir das agendas de investigação em história agrária. Ao longo dos seus quinze capítulos é demonstrado o peso dos processos agrários nas formações socioeconómicas, na evolução tecnológica e possibilidades de modernização e na reprodução das desigualdades entre países e estratos sociais nas Américas. A redação é baseada numa pesquisa aprofundada de documentos, não só os disponíveis nos tradicionais locais de consulta (arquivos locais, regionais e nacionais) como também em arquivos de empresas e arquivos pessoais, além dos usos da cartografia e da fotografia que são outra componente importante. Vejamos, então, as principais linhas do conteúdo desta monografia coletiva. A introdução redigida pelos editores (pp. 21-48) revela-nos, em traços gerais, a evolução que esta área disciplinar sofreu desde os anos 1970 nesta região do globo. Temas como as formas de propriedade (hacienda, latifúndios, estancias e plantações) e as influências advindas da historiografia marxista e de nomes como Alexander Chayanov e Witold Kula, ou da Escola dos Annales e de figuras como Ernest Labrousse, Pierre Vilar e Georges Duby, acabaram por enformar as múltiplas análises sobre a terra na América Latina. A permeabilidade dos estudos de história agrária aos debates societais e políticos colocou-os na senda dos contributos para o questionamento, nos nossos dias, da perenidade das desigualdades, da degradação dos recursos naturais e da compreensão e discussão dos legados do colonialismo.
4Feito este balanço historiográfico, já na Parte I (47-114), os autores remetem-nos para a explicação das condições históricas em que a estruturação das formas de gestão da propriedade rústica condicionaram a própria evolução social. A baliza temporal estende-se desde o contexto colonial até à estruturação dos estados-nação americanos no pós-independência. Conceitos como brecha camponesa e campesinato são aqui explorados, em diferentes aceções. Denota-se como na intersecção entre economia, sociedade e política surgiu a aplicação de modelos de produção e comercialização que, em derradeira análise, expuseram as marcadas diferenças e assimetrias regionais. Dessa exploração são claras as sobrevivências, no Brasil e na Argentina, de métodos com raízes no período da presença europeia e a continuidade de certas mentalidades e estratégias económicas, mas que, em alguns casos, foram sendo reconvertidas perante a emergência de um modelo agroexportador que inseriu mercadorias como o algodão em cadeias produtivas globais.
5A Parte II (115-202) trata de como a distribuição da propriedade se articula com a expansão de outros sectores económicos como a exploração diamantífera e aurífera. Como eixo transversal aos três capítulos, todos eles centrados no Brasil, surgem as sesmarias, instituto jurídico criado durante a colonização que impunha a obrigatoriedade do aproveitamento do solo e que foi a base de diferentes conflitos. São observados, por este prisma, os casos de São Paulo, do Distrito Diamantino e de Santo António do Juiz de Fora, estes dois últimos localizados em Minas Gerais. Da leitura crítica destes territórios e dos seus particularismos torna-se claro como um movimento de rush mineiro constituiu a base para a recomposição social dos agentes envolvidos na posse e usos da terra que, evidentemente, consiste apenas numa parte de um processo mais alargado de transformação.
6Os artigos de que se ocupa a Parte III (203-317) procuram responder ao desafio do estudo da fronteira e das modalidades de ocupação humana e atividade agrícola, com enfoque no sistema da grande propriedade extensiva chilena (hacienda) e nas mutações sofridas durante a vigência do Império brasileiro, de que a Lei das Terras de 1850 foi um momento de viragem. De uma forma geral, aqui se percebe, por um lado, como a produção legislativa enformou práticas fundiárias, e, por outro, como foi feita a articulação entre a política, com objetivos mais alargados, e a inserção das economias chilena e brasileira nos mercados internacionais e no desenvolvimento do capitalismo agrário. Um aspeto evidenciado é como se instituíram relações de poder entre os proprietários e os camponeses. Dentro desta parte do volume, um capítulo de reflexão sobre o lugar da história agrária feita no Brasil, assinado por Erivaldo Fagundes Neves, acentua como as movimentações ideológico-políticas podem contribuir para o desenvolvimento desta disciplina.
7A Parte IV (319-428), centrada numa tríade de terra, trabalho e política, desenvolve temas como a constituição do campesinato paraguaio, as mudanças nos níveis de vida e nos salários rurais no Rio da Prata entre os séculos XVIII e XX, o impacto do regadio e sistemas hidráulicos no Noroeste do México e uma comparação entre as dinâmicas da economia açucareira no Brasil e em Cuba na emergência de fenómenos de populismo agrário. Ante esta leitura sobressai o que poderia ser designado como o espectro da exterioridade, em que a ingerência de forças estrangeiras, de distintas índoles, determinou um conjunto de comportamentos políticos, económicos e sociais nos campos latino-americanos. Vejamos como esta questão se encontra presente: na região rio-platense, os salários rurais foram influenciados pela mercantilização das relações laborais e pelos fluxos migratórios; os projetos hidráulicos mexicanos foram alvo da atenção e intervenção de engenheiros norte-americanos, e a expansão da cultura do açúcar no Brasil e em Cuba foi promovida por investidores estrangeiros, alguns dos quais também oriundos dos EUA. Nesta medida, os ensaios aqui apresentados podem ser olhados como contributos para um debate de maior amplitude sobre como se produz a periferização e sobre o lugar destacado que a agricultura tem nesse processo. Podemos certificar que uma linha de pensamento comum a três dos quatros textos deste bloco é a importância do associativismo agrícola na junção de esforços de produtores e na participação política das populações locais.
8O último bloco temático, a Parte V, corresponde exclusivamente ao trabalho de Mario Samper-Kutschbach (429-526). Trata-se de uma minuciosa descrição metodológica em torno da introdução e utilidade das humanidades digitais para a elaboração de trabalhos em história agrária. Partindo da cafeicultura, é efetuado um mapeamento geo-histórico desta cultura na América do Sul e no Caribe (Brasil, Colômbia e Costa Rica). A circunscrição a estas regiões não retira a pertinência historiográfica desta pesquisa, uma vez que possui a capacidade de constituir um exemplo, em diferentes níveis, de uma matriz para a realização de novos estudos baseados na intersecção de fontes manuscritas e impressas, a sua digitalização e a associação a ferramentas como os SIG (Sistemas de Informação Geográfica). Vale a pena sublinhar o importante conjunto de anexos deste capítulo com a listagem de bases de dados online, sítios web e demais recursos digitais sobre café, algo que pode ser seguido para investigar outros produtos agrícolas.
9Como qualquer outra, também esta obra tem aspetos sujeitos a reparos, o que não põe em causa o que já foi dito acerca do seu interesse e qualidade. A principal crítica que lhe apontamos é a de um grande predomínio dos casos de estudo brasileiros (seis em quinze capítulos). É certo que, num empreendimento editorial desta natureza, com uma ambição transnacional, convocar observações e conferir representatividade a todos os países latino-americanos, além de uma complexa tarefa de seleção, seria certamente de difícil exequibilidade. Contudo, talvez pudesse haver lugar na sua organização final para uma mais equilibrada distribuição, incluindo países como a Colômbia ou a Venezuela. Por outro lado, uma temática a que poderia ter sido dedicado um capítulo exclusivo (ou talvez um conjunto de capítulos) seria a reforma agrária, assunto que durante anos moveu políticos e académicos sul-americanos. Destaque-se, todavia, que é um tema que surge mencionado em alguns trabalhos, mas uma circunscrição delimitada dentro da estrutura interna poderia ter sido uma hipótese.
10Para concluir, pode dizer-se que, em linha com os objetivos do volume e fazendo a ponte com o próprio subtítulo, as lições de história agrária aqui publicadas mostram como o conhecimento científico sobre o mundo rural latino-americano registou avanços consideráveis nos últimos 50 anos. A compreensão das dinâmicas da agricultura seguiu escolas e correntes, incorporou novas metodologias e núcleos documentais, espoletou perceções contrastantes do passado e procurou responder ao desafio da interdisciplinaridade. Este é um livro que não cai num exercício rememorativo e acentua a vitalidade de uma disciplina cujos debates e perspetivas metodológicas se apresentam como verdadeiramente promissores. Pensamos que tenha ficado clara a sua importância e qualidade e, feitas estas críticas, não pode restar senão a recomendação de uma obra cuidada, bem pesquisada, muito esclarecedora e que abre pistas para investigações futuras.
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Leonardo Aboim Pires, «M. Sarita Mota, M. Verónica Secreto e Cristiano L. Christillino (org), A Terra e Seus Historiadores. Lições de História Agrária na América Latina. Belo Horizonte: Fino Traço Editora, 2023, 535 pp. ISBN 9788580546101», Ler História [Online], 84 | 2024, posto online no dia 12 junho 2024, consultado no dia 13 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/13525; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/11ur6
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