Francisco Chacón Jiménez (ed), Changing Social Environments in Spain: Families, New Solidarities and Hierarchical Breakdown (16th-20th Centuries). Berlin: Peter Lang, 2023, 300 pp. ISBN 9783631865781
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1Francisco Chacón Jiménez é um nome consagrado da historiografia ibero-americana. Fundador do Seminário Familia y Élite de Poder, no âmbito do Departamento de Historia Moderna, Contemporánea y de América da Universidade de Murcia (1982-1983), promoveu inicialmente, com o apoio dos seus colaboradores mais próximos, importante reflexão sobre as famílias das nobrezas, a sua composição e hierarquias e as respectivas estratégias de reprodução social e política no período moderno, materializada em ampla bibliografia em nome individual ou sob a forma de obras colectivas. Progressivamente, os quadros espacial e cronológico ampliaram-se, promovendo a comparação e o debate. Por um lado, contemplaram-se os casos de Portugal e dos mundos ultramarinos das monarquias ibéricas; por outro, a partir de uma cronologia que privilegiava os séculos XVI a XVIII, o olhar historiográfico passou a incluir também os séculos XIX e XX, procurando assim analisar as mudanças, continuidades e adaptações que os grupos familiares experienciaram tendo como pano de fundo as transformações que marcaram o período c. 1750-c. 1900, a crise do Antigo Regime e o trânsito para a modernidade.
2A obra em referência é uma consequência da trajectória acima esboçada, que o próprio editor expõe sumariamente na Introdução (9-75). A edição deste livro em língua inglesa pretende reforçar o lugar da historiografia espanhola no mapa internacional, dando a conhecer a produção de um grupo de historiadores que contribuiu para renovar e aprofundar os estudos relacionados com as elites nobiliárquicas ibéricas num exercício combinado de demografia histórica, história social e história da família. As referências em nota aos vários projectos desenvolvidos e a bibliografia que acompanha cada capítulo permitem aos leitores apreender a dimensão do empreendimento. Na Introdução, Francisco Chacón Jiménez apresenta os projectos que, entre 2006 e 2021, contribuíram para o aprofundamento da reflexão em torno da adaptação das elites às mudanças políticas e sociais, a nova legislação e a hierarquias que contrastavam com o modelo patriarcal do Antigo Regime. O editor refere os autores e a historiografia sobre o tema; discute os quadros teórico e metodológico, nomeadamente a relação entre demografia histórica e história da família (28-29), a questão da articulação entre estratégias familiares e individuais (29-30), a importância das reformas bourbónicas (31-33) ou o problema da classificação das elites oitocentistas (36-47); e aponta interpretações para a emergência de um novo contrato social e de novas hierarquias (59-63), concluindo com o colapso das hierarquias tradicionais, o triunfo do individualismo e o “dismantling of the Christian republic” (63-64), não apenas em Espanha, mas também em outras regiões da Europa do Sul. A este respeito, considera que coube a Karl Marx e Friedrich Engels, no Manifesto do Partido Comunista, assinalar o fim das antigas hierarquias sociais (64-65). É então a partir desta proposta que arrancam os cinco estudos que completam o volume, da autoria de historiadores que participaram nos vários projectos elencados na Introdução.
- 1 Este é um tópico que merece a atenção de outros projectos. Cf. Raúl Molina Recio e Carlos Mejías Ga (...)
3O capítulo de José Pablo Blanco Carrasco (77-95) busca identificar no período moderno as raízes do “individualismo primitivo”,1 como o designa, que surgiu no contexto de sociedades rurais e hierárquicas, que, todavia, não impediram que as aspirações individuais se fossem afirmando, desde logo a partir dos espaços domésticos. Nesse sentido, o autor explana o que considera terem sido os espaços e as condições que potenciaram as primeiras manifestações desse individualismo e de uma promoção social: a riqueza pessoal e, aqui, explora o problema das diferentes ocupações nos mundos urbano e rural, referindo-se à valorização dos ofícios mecânicos na região Norte de Espanha, à contribuição da proto-industrialização, com destaque para a Catalunha, na introdução de novos padrões laborais e às assimetrias entre sexos; a educação, que possibilitou o acesso de jovens de ambos os sexos a outras ocupações e carreiras, contribuindo para a emergência de críticas aos valores tradicionais, sobretudo a partir do século XVIII; e, por fim, a posição de um indivíduo no seu respectivo ciclo de vida, atendendo, por exemplo, a que os jovens teriam menos autonomia. Exemplos retirados de histórias de vida e estatísticas apoiam os argumentos do autor, mas teria sido igualmente interessante contemplar outras fontes, como diários e memórias, em busca da emergência das identidades individuais.
4Francisco García González e Jesús Manuel González Beltrán (97-138), a partir do conceito de “trajectória social”, e articulando os ciclos vitais com a história familiar, exploram os resultados obtidos para regiões da Espanha central e meridional nos séculos XVIII e XIX. A abordagem pretende-se relacional, não isolando os membros de uma família do seu grupo familiar, numa dimensão diacrónica que avalia o impacto dos processos de mudança (101). Os autores criticam o uso mecânico e redutor do conceito de “estratégia”, valorizando justamente a ideia de trajectória e de movimento. Os dados apresentados e as tipologias expostas (107-123) consideram o estudo das casas e dos seus membros, mas também o respectivo recheio; a associação entre trajectórias genealógicas e familiares, com atenção aos indivíduos de ambos os sexos que permaneceram solteiros ou às jovens viúvas que não voltaram a casar; as trajectórias patrimoniais; o estudo de grupos populacionais e de famílias ligados aos mundos artesanal e comercial, enriquecendo a nossa perspectiva quanto aos processos de mobilidade social, ascendente e descendente, e ao papel das mulheres e dos jovens; as migrações, livres e forçadas, ultrapassando leituras unidireccionais e sempre tendo em consideração os contextos familiares; e as trajectórias associadas à educação e formação, fosse para seguir uma carreira eclesiástica, militar ou de mero aprendiz. Confirmando as trajectórias familiares como trajectórias sociais, mostram a interpenetração entre redes de parentela, de vizinhança e de solidariedade e ilustram de forma clara como o individual e o colectivo se mesclam no tempo.
5Máximo García Fernández e Juan Manuel Bartolomé Bartolomé (139-175), por seu lado, focam-se nos hábitos de consumo e na preocupação com a aparência enquanto factores de diferenciação social no arco cronológico 1500-1850, tendo como foco a região de Castela (Valladolid, León, Burgos, Salamanca), embora não ignorem o mundo português. Em linha com os objectivos do volume – a família estava no centro da estrutura social (141) –, buscam identificar os indícios de um nascente individualismo. Elencam para tal um conjunto de conceitos-chave, destacam os temas nucleares do inquérito, e apresentam um modelo analítico dos padrões familiares em León (148-163). Os dados são relativos ao património e padrões de vida de famílias de distintos corpos sociais, assinalando-se a heterogeneidade da propriedade camponesa; à transmissão intergeracional da riqueza, com exemplos de famílias de mercadores, de uma “burguesia administrativa” e das “profissões liberais”, estas últimas privilegiando uma distribuição mais igualitária dos bens (158-160), em contraste com famílias camponesas, que escolhiam estratégias de ultrapassagem dessas práticas; e a atenção das nobrezas aos filhos segundos. Após uma breve exposição sobre o vestuário e a moda, os autores concluem que uma análise das dinâmicas familiares através do prisma da cultura material e imaterial, do consumo e da ostentação pública de uma imagem, contribui para revelar os conflitos civilizacionais que marcaram a transição para a modernidade e o nascimento do individualismo.
6José María Imízcoz Beunza (177-261) aborda a renovação da classe política e a formação do grupo dirigente sob os Bourbons – linhagens de hidalgos bascos e navarros –, as instituições que permitiram a consolidação de uma elite política reformista, as experiências e sociabilidades partilhadas – no governo, em academias militares ou literárias ou nas sociedades económicas (224) – e os comportamentos endogâmicos que configuraram o grupo e se espalharam pelo império. O argumento do autor é que o reformismo bourbónico constituiu um momento de desenvolvimento mais radical do que até então sucedera, ainda que com resultados algo limitados e regionalmente assimétricos. Foram, porém, as iniciativas desta elite reformista e ilustrada que conduziram Espanha de uma monarquia jurisdicional ao estado liberal e legislador. O autor mostra como ascenderam muitos fidalgos da Cantábria e a importância do apoio militar e financeiro a Filipe V (195-201), afirmando que os homens ao serviço do rei foram “their lineages’ locomotives to success” (200). As relações de parentesco, as redes de patrocínio e as instituições do reformismo bourbónico serviram como “fermento” para a formação de uma classe política que partilhava a mesma educação, experiências e ideologia, conforme atestam os dados apresentados para os seminários régios (215-218). Em termos de conclusão, destaca-se a ideia de que a crise do Antigo Regime não foi uma “revolução burguesa” e que não é operatória a clivagem nobreza/burguesia. A chave explicativa deve ser procurada numa análise das trajectórias, interacções e redes dos actores e nas suas experiências partilhadas.
7A encerrar, Francisco Chacón Jiménez, Juan Hernández Franco e Antonio Irigoyen López (263-300) apresentam, com base em ampla bibliografia, uma interpretação das mudanças, graduais e não bruscas, que a instituição familiar conheceu em Espanha de meados do século XVIII ao início do século XX, um período de profundas transformações. A velha ordem matrimonial, reino da patria potestas, começou a abrir fissuras no século XVIII, antes mesmo da Pragmática de 23 de Março de 1776, e os autores discutem diversos exemplos, de Espanha e das Américas, que o mostram. As trajectórias familiares e a importância da homogamia são exploradas com os casos de casas aristocráticas e do capitalista Manuel Heredia e sua descendência, embora a endogamia não fosse uma prática generalizada (279-288). Ao longo de Oitocentos, novas concepções de casamento surgiram e pais e filhos começaram a contemplar outras modalidades de relacionamento. As redes de parentela não desapareceram, mas o parentesco adaptou-se a novas dinâmicas e condições sociais, a relações mais horizontais e à componente do individualismo, que a legislação potenciou (288-291). Novos valores, novos comportamentos e, como apontam os autores, a passagem de uma aliança entre duas famílias para uma união entre duas pessoas, assinalam a lenta, mas real, ruptura do sistema familiar herdado do Antigo Regime.
8Em jeito de conclusão, diremos que este livro mantém a coerência com a restante obra do coordenador e dos autores. Não apenas carreia informação, mas fornece sínteses interpretativas sobre um período decisivo de mudança a partir da família enquanto célula-base da sociedade. Pese embora uma grande valorização da modernidade e do individualismo, é inegável que a obra em referência constitui um excelente “estado da arte” deste território historiográfico.
Notas
1 Este é um tópico que merece a atenção de outros projectos. Cf. Raúl Molina Recio e Carlos Mejías Gallardo, “Familia y modelos de reproducción social de la nobleza española en los siglos XV-XIX: el surgimiento del individualismo”, Ler História, 82 (2023): 49-73.
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Referência eletrónica
José Damião Rodrigues, «Francisco Chacón Jiménez (ed), Changing Social Environments in Spain: Families, New Solidarities and Hierarchical Breakdown (16th-20th Centuries). Berlin: Peter Lang, 2023, 300 pp. ISBN 9783631865781», Ler História [Online], 84 | 2024, posto online no dia 19 março 2023, consultado no dia 16 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/13127; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.13127
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