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A emigração irregular para França: repressão, tolerância e colaboração, 1957-1974

Irregular Migration to France: Repression, Tolerance, and Collaboration, 1957-1974
Pedro David Gomes e João Baía
p. 169-189

Resumos

Este artigo visa compreender a operacionalidade das redes de auxílio à emigração irregular para França entre 1957 e 1974. Focando-se na natureza das relações estabelecidas pelos agentes da rede (passadores, angariadores, etc.) com diversos agentes do estado e com representantes do poder político e judiciário atuando ao nível regional/municipal, o estudo debruça-se sobre os contextos onde estas irregularidades mais se produziam. Partindo das posições antagónicas do governo sobre a questão migratória e da análise às formas de gestão e execução das políticas de migração por parte daqueles agentes do estado, identificam-se e reflete-se sobre os fatores que influíram na (in)eficácia das redes. Privilegiou-se o uso de fontes orais, trianguladas com documentação arquivística nacional, distrital e municipal. Argumenta-se que a “gestão diferenciada da ilegalidade” dentro destes organismos estatais (ou entre eles) produziu duplicidades e discricionariedades que sabotaram a eficácia das medidas reguladoras da emigração, espelhando a ambiguidade do estado sobre a matéria.

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Notas do autor

Esta pesquisa foi realizada no âmbito do projeto “Além do fracasso e do maquiavelismo: a emigração irregular portuguesa para França, 1957-1974” – referência PTDC/HIS-HIS/103810/, financiado pela FCT, do qual os autores foram bolseiros de investigação. Os autores agradecem à equipa do projeto e ao Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas), onde o mesmo se desenvolveu. Também agradecem aos revisores anónimos da Ler História pelos pareceres.

Texto integral

  • 1 Victor Pereira baseia esta estimativa nos dados das entradas de portugueses em França, recolhidos p (...)
  • 2 Em outubro de 1964, o jornal Portugal Democrático (nº 87, p. 5), editado no Brasil (ligado à oposiç (...)

1O final da década de 1950 assinala o início de um êxodo sem precedentes de cidadãos portugueses para a Europa, em especial com destino a França. Dada a dimensão extraordinária das saídas irregulares e a manipulação estatística feita então pela ditadura portuguesa, não se conhecem números rigorosos. Mas dos cerca de 900 mil emigrantes estabelecidos em França entre 1957 e 1974, estima-se que à volta de 550 mil chegaram de maneira irregular (Pereira 2010),1 sem passaporte de emigração, muitas vezes só possível com a ajuda deauxiliadores. Nome este que designa os elementos das redes clandestinas que intervinham na tentativa de fazer sair do país os emigrantes: angariadores, engajadores, depositários e passadores, termos pelos quais são mais conhecidos. Eram retratados, por alguns emigrantes, como heróis de grande resistência física e mental (Silva 2009), e acusados, nos jornais, de serem exploradores ou “traficantes”.2

  • 3 O argumento deste artigo seria integrado no livro A Ditadura de Salazar e a Emigração (Pereira 2014 (...)
  • 4 Dados novos recolhidos no âmbito do projeto “Além do fracasso e do maquiavelismo: a emigração irreg (...)

2O que poderíamos chamar de historiografia do auxílio à emigração clandestina durante o Estado Novo pode considerar-se ainda marginal (Candeias et al. 2014). Não obstante, um conjunto de trabalhos, com os quais este artigo pretende dialogar, tem contribuído para o conhecimento sobre as redes de emigração irregular para França neste período. Destacam-se, genericamente, os trabalhos de Victor Pereira (2005, 2009, 2010, 2014) sobre redes de emigração irregular e governamentalidades migratórias do estado português e francês, de Marta Silva (2009, 2011, 2012, 2018, 2022) sobre redes de emigração irregular, sobretudo na Beira Alta, de Pedro Gomes (2016) sobre a relação entre passadores e os emigrantes, de Yvette Santos (2014, 2022) sobre a Junta de Emigração e as políticas migratórias e de João Baía (2016, 2017) sobre diferentes práticas transfronteiriças. Mais particularmente, propomos recuperar um dos artigos de Victor Pereira (2009) como linha de partida para novas interpelações sobre a ineficiência, fragilização e duplicidade do Estado Novo.3 O objetivo desta revisitação é o de repensar estas dimensões à luz de novos aportes bibliográficos e principalmente de novos dados empíricos, boa parte dos quais analisados à luz da história oral.4

3Este autor defende que o volume da emigração clandestina (espelhando a ineficácia das políticas que a combatiam) não era somente resultado da ineficiência das polícias, mas que “foi em parte tolerada pelo estado” (Pereira 2009, 24), o qual se pode caraterizar, nesta questão, como marcado pela duplicidade. Mas até que ponto a tolerância do estado se pode explicar pela sua permissividade ou mesmo permeabilidade à ação das redes de auxílio irregular, particularmente ao nível local? Victor Pereira reconhece uma “certa autonomia” do fenómeno face ao real poder do estado em controlar-lhe o fluxo – “o que a ditadura fez foi atenuar os diferentes riscos políticos suscitados por esse movimento” (Pereira 2009, 24) –, desconstrói visões elitistas, ora paternalistas, ora romantizadas do emigrante, deslocando-o do lugar de vítima, dotando-o de subjetividade e agência. Todavia, os trabalhos citados (Pereira 2009, 2014) foram empiricamente sustentados em documentação estatal. Aliás, a maioria dos estudos sobre este tema olha para a forma como o estado via os emigrantes e auxiliadores, e menos como estes consideravam o estado e a sua própria mobilidade/atividade. Os trabalhos de Marta Silva (2009, 2011, 2012), focados sobretudo no concelho de Penedono e, mais recentemente, nos distritos da Beira Alta (2018, 2022), são a maior exceção, demonstrando justamente a importância da história oral para dar a entender a experiência subjetiva da intermediação clandestina e o seu impacto sociopolítico. Todavia, para além da delimitação geográfica, o trabalho mais recente e de maior envergadura (Silva 2022) centra-se sobretudo na figura do “facilitador”.

4O presente artigo visa, portanto, ajudar à compreensão da natureza da atuação do Estado Novo a partir da relação do poder regional/local com os sujeitos e redes migratórios. Para este fim, ampliou-se o escopo analítico, quer no plano geográfico, quer ao nível dos intervenientes mais diretos na travessia irregular, a começar pelos “passadores”. Aqui, algumas pesquisas sobre práticas sociais e de contrabando em zonas fronteiriças permitiram aprofundar as dinâmicas da dualidade e da discricionariedade das autoridades situadas nas margens do estado. Efetivamente, dos campos da antropologia e da história têm surgido inegáveis contribuições sobre a ambiguidade das práticas de vigilância fronteiriça e das linhas ténues que delimitavam os papéis sociais dos moradores em aldeias fronteiriças (Godinho 2007; Rovisco 2008; Simões 2009). Considera-se ainda o diálogo possível de encetar com outros estudos sobre migrações irregulares contemporâneas.

5O ciclo migratório intraeuropeu continua em movimento. São também ténues as linhas que dividem as diferentes fases destes ciclos migratórios, que ganham por isso em serem analisados como processo, tendo em conta um tempo longo. Em cada uma das fases de cada ciclo migratório, eventos passados podem ser rememorados de formas distintas. Acontecimentos do presente podem desbloquear memórias que permaneceram apagadas ou silenciadas durante décadas. Auscultar “as vozes” destes migrantes, sobre o passado e o presente vivido nestes territórios rurais – hoje ameaçados pelo isolamento, pelo desinvestimento em serviços públicos, pelo perigo dos incêndios... –, é útil do ponto de vista histórico e epistemológico, mas também na hora de definir políticas públicas para estes territórios. Outrossim, conhecer as dificuldades sentidas pelos emigrantes nas primeiras fases deste longo processo exorta a romper com os silêncios sobre este passado que ainda persistem no seio das famílias e da sociedade portuguesa; e, além disso, permite estabelecer pontes de comparação com travessias e mobilidades passadas e atuais, de migrantes do Sul (europeu ou global) em direção à Europa e a outros destinos (cf. Zhang 2007; Esposito et al. 2020; Antunes e Blažytė 2021).

6Apesar dos trabalhos já referidos em relação ao contexto português e de outros trabalhos sobre diferentes contextos geográficos (Lejeune e Martini 2015), a história das fronteiras internas da Europa tem estado esquecida ou, se não, seletivamente lembrada no presente (Horsti 2019). Os migrantes do tempo presente, à procura de melhores condições de vida, não diferem dos portugueses que fugiram “a salto”: endividam-se para poder pagar às redes migratórias irregulares (Içduygu e Toktas 2002), sujeitando-se a viagens penosas, com parte dos percursos realizados a pé, por caminhos sinuosos, cheios de obstáculos (Holmes 2019), atravessando rios e mares de forma altamente precária, muitas vezes sem saberem nadar, e transportados em veículos sobrelotados arriscando serem detidos pelas polícias, serem feridos, mortos ou repatriados para serem julgados e, eventualmente, presos nos países de origem ou de trânsito.

7A perspetiva multifacetada aqui adotada bem como à história oral conferem também várias possibilidades. Recuperar memórias diferentemente situadas (dentro e fora da malha administrativa estatal) permite aceder às estruturas informais de poder e furar a cortina de fumo das versões oficiais das elites dirigentes; permite ainda adversar o enviesamento e manipulação inerente à documentação produzida pelo Estado Novo; acima de tudo, identificar de forma mais sistemática os fatores que influenciaram a eficácia das redes. As raras monografias “que dão conta do fosso existente entre as normas promulgadas pelo governo e as práticas dos funcionários que se encontram ‘aos guichés’ no poder local” (Pereira 2014, 21) cingem-se, na maioria das vezes, a um recorte geográfico infradistrital ou inframunicipal. Este trabalho agrega um esforço inovador pois encerra, na sua observação, a quase totalidade dos distritos onde esta emigração foi mais significativa.

  • 5 Para preservar a confidencialidade, os nomes dos entrevistados aqui publicados são fictícios.
  • 6 Usando a conceptualização de Enzo Traverso (2012, 71-87), as memórias fracas – memórias subalter (...)

8Trata-se, portanto, de uma amostra de 164 entrevistas semiestruturadas a vários intervenientes no fenómeno migratório, realizada nos distritos de Coimbra, Leiria, Lisboa, Santarém, Porto, Guarda, Viseu, Castelo Branco, Vila Real e Bragança.5 A variabilidade regional e o tipo de atividade desempenhado guiaram a seleção da amostra composta por antigos emigrantes, auxiliadores, funcionários públicos intermédios (do governo civil às juntas de freguesia), agentes policiais e advogados, precisamente as categorias “socioprofissionais” que mais participaram na feitura deste texto. A história oral apresenta inúmeras vantagens (Descamps 2005), entre as quais a de preencher lacunas das fontes escritas e a de resgatar memórias subalternas. Estas, apesar de serem construções “sociais” (Connerton 1993), estão normalmente olvidadas dos registos escritos.6 No entanto, tratando-se em muitos casos de práticas ilícitas e de pessoas que desempenharam papéis políticos durante a ditadura, foi necessário tomar precauções face à propensão dos entrevistados para reproduzirem ou se conformarem com versões socialmente bem aceites ou mesmo de desculpabilização ou expiação do passado. Procurou-se destrinçar os tempos históricos que enformavam o discurso dos entrevistados, de modo a evitar confundir factos com a interpretação dos mesmos. Dentro de uma perspetiva relacional, procurou-se abranger vários pontos de vista, colhendo luz de tantos ângulos quanto possível. Esta investigação beneficiou, assim, do cruzamento de fontes orais com fontes relacionadas com os poderes executivo, legislativo e judiciário, algumas das quais até hoje pouco mobilizadas, guardadas em arquivos nacionais, distritais e municipais.

9Este artigo, além da introdução e da conclusão, divide-se em três secções. A primeira discorre sobre a duplicidade e (in)eficácia da política migratória vista de uma perspetiva crítica da ação governativa central, a qual balanceava entre o zelo e a tolerância face às irregularidades, entre o rol de regulamentações e a pouca vontade de as cumprir à letra. De facto, as tensões resultantes de uma “gestão diferenciada da ilegalidade” (Fischer e Spire 2009) – observada desde o governo central até à administração local – interferiram no processo político-administrativo incumbente da aplicação das medidas reguladoras da emigração, as quais se revelaram, em muitas situações, revestidas de duplicidade e discricionariedades que se problematizam nas secções seguintes. Prosseguindo esta linha de inquérito, a segunda secção examina decisões e procedimentos dentro de diferentes esferas do poder local, enquadrando os contextos socioeconómicos dos emigrantes, passadores e outros agentes. Na sequência, com base nos registos acerca da interação das redes de auxílio à emigração irregular com as instâncias punitivas e de vigilância mais próximas da fronteira (tribunais, polícias, GNR, PIDE e, principalmente, a Guarda Fiscal), reflete-se sobre essa gestão da ilegalidade e sobre o poder discricionário que constrangia os emigrantes a “darem o salto”, endividando-os e evitando a partida do núcleo familiar.

1. A política de emigração e o movimento de emigração irregular

10A migração maciça de portugueses para França que ocorreu entre 1957 e 1974 baliza também o embate que se foi desenvolvendo, ao nível da cúpula governativa, entre duas visões distintas sobre a política de emigração. A primeira delas ‒ o “referencial conservador”, na terminologia de Victor Pereira ‒ representava a posição mais afeta às elites rurais e ao patronato da pequena indústria, adversas à perda de mão de obra barata e não qualificada, e que defendia a manutenção e o reforço das medidas restritivas à emigração. Esta perspetiva, predominante até grosso modo à saída de cena de Oliveira Salazar, contava também com o apoio dos que suspeitavam que a emigração representava um risco de importação de ideias subversivas adversas à política ultramarina. A segunda posição ‒ o “referencial modernizador” ‒ agregava, resumidamente, a corrente de pensamento que, no espírito da adesão à Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA), encarava a emigração como um importante incentivo para a modernização das estruturas económicas, nomeadamente dos setores agrícola e industrial (Pereira 2009, 1-11, 18-20, 31-32).

  • 7 Arquivo Histórico Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros (doravante, AHDMNE), pasta Ex (...)
  • 8 Pelo menos até 1967, ano da suspensão dos recrutamentos anónimos e nominativos (Pereira 2009, 64). (...)

11Ainda longe de saber as proporções que a emigração nacional atingiria nos anos vindouros, mas já alarmado com o que então se passava, em 1959 o governo português ordenou ao seu embaixador em Paris que intercedesse junto do governo francês “no sentido de as respetivas autoridades não legalizarem a situação dos trabalhadores portugueses chegados clandestinamente ao seu território”.7 O chefe de governo português e o presidente da Junta de Emigração, António Manuel Baptista (afeto à ala conservadora), mostraram-se sempre relutantes em firmar acordos bilaterais de regulação do recrutamento de mão de obra.8 Mas Salazar terá vislumbrado vantagens em manter boas relações com França, cujo governo lhe vendia material de guerra e se abstinha de condenar a política belicista que Portugal mantinha nas colónias (Silva 1995). Oficializou-se então um acordo, a 31 de dezembro de 1963, que autorizava a emigração apenas a quem fosse selecionado em processos de contratação limitados, superintendidos e centralizados pela Junta de Emigração, que receberia os contratos de trabalho encaminhados pelo governo francês, através do Office national d’immigration, e que averiguaria, normalmente com a colaboração das câmaras municipais, da existência de mão de obra excedentária disponível. Um acordo nunca inteiramente respeitado por nenhuma das partes (Silva 2011, 33; Pereira 2014, 211-239). De um lado, continuou-se a dificultar o processo de concessão de autorização de saída e, do outro, continuou-se a regularizar os emigrantes clandestinos chegados a território francês.

  • 9  Circular nº 2/62-S, Lisboa, 29.3.1962.

12Já em 1962, o coronel António Baptista era lacónico ao instigar as câmaras municipais a perseguirem “sem a menor contemplação” os “falsos recrutadores”.9 O acordo veio imputar maiores responsabilidades às redes clandestinas pelo aumento da emigração irregular. Sucessivos ministros do Interior reiteraram às suas polícias que intensificassem a ação sobre estas redes e que colaborassem no seu desmantelamento. A magnitude crescente do movimento clandestino apontava, porém, para a ineficácia das medidas proclamadas. De facto, colidindo com aquelas ordens, o Ministério das Finanças negou, por várias vezes, os recursos necessários ao Ministério do Interior para uma repressão mais eficaz (Pereira 2005, 111). A própria Junta de Emigração continuou a colocar vários entraves que aumentavam muito a morosidade dos processos. Esta política dúbia suscitava questões que, necessariamente, remetiam para o desfasamento entre o direito à emigração previsto na lei e a possibilidade de concretizar por via legal.

  • 10 Estes eram temporariamente detidos em prisões espanholas, ocorrendo frequentemente a transferência (...)

13Somado o despontar da guerra em Angola em 1961 ao grande aumento das saídas irregulares de cidadãos nacionais, as penas respeitantes a este tipo de delito foram sendo agravadas. A partir de abril de 1961, vigorou uma sanção máxima de até dois anos de prisão (e multa correspondente) a quem tentasse e organizasse a emigração clandestina. Equiparando a responsabilidade de emigrantes à dos engajadores e passadores, os mesmos atos passaram a ser equivalentes ao crime de furto. A PIDE, encarregada dos serviços de emigração e de vigilância das fronteiras, estava incumbida de receber das autoridades espanholas os emigrantes e passadores portugueses que fossem detidos em Espanha.10 Também aqui, os dados indiciam que a prática se distanciou da letra da lei. A colaboração ibérica entre as duas polícias entrou em declínio à medida que as autoridades espanholas constatavam que muitos dos indivíduos entregues à PIDE não eram encarcerados, e voltavam a entrar em Espanha pouco tempo depois.

  • 11 A todos os que auxiliassem indivíduos a sair do país ou que interferissem na obtenção de passaporte (...)

14O trabalho e o custo inerente a um problema não prioritário e, de certa forma, “alheio” às autoridades espanholas mostravam-se pouco compensadores. Em 1965, as autoridades espanholas abrandam ainda mais a repressão aos clandestinos portugueses, em conformidade com o que fora solicitado pelo governo de De Gaulle e, por intermédio de um acordo entre as autoridades locais, passaram a reconduzir os “clandestinos” portugueses detidos na região basca até Hendaia (Pereira 2005, 114). A polícia espanhola passou então a atuar com a mesma passividade que assacava à PIDE e, em última instância, aos tribunais portugueses. Quando, em 1966, as autoridades espanholas passaram a emitir salvos-condutos aos portugueses indocumentados que entrassem no seu território (permitindo, temporariamente, a circulação livre dentro de território espanhol), o governo português reagiu promulgando o Decreto-Lei nº 46939, de 5 de abril, que aumentava substancialmente a punição por auxílio à emigração irregular.11 Apesar de a nova lei ter causado algum impacto na organização e funcionamento das redes de auxílio, a atividade clandestina continuou. Tal como continuou a subida do número de saídas irregulares. Este conjunto de dados corrobora novamente a ideia de incapacidade do estado em fazer cumprir o que ditava (cf. Pereira 2005, 104-107).

15Confrontado com estas duplicidades, o governo português suspendeu unilateralmente o acordo em maio de 1967, tendo como efeito o aumento das restrições: inviabilização dos recrutamentos não-nominais e a limitação dos recrutamentos nominativos a segmentos populacionais “pouco atraídos pela emigração” (Pereira 2014, 238). Já com Marcelo Caetano, o acordo foi retomado, oficialmente, a 29 de julho de 1971, prevendo novas disposições normativas, como é exemplo o contingente ideal máximo de 65 mil recrutamentos anuais. Passado um ano desde a sua aprovação, apenas 3295 trabalhadores emigraram no quadro deste acordo (Pereira 2014, 247). Era a prova acabada do falhanço dos dois países em controlar os fluxos migratórios pela via diplomática. Mas até que ponto a aparente ineficácia do estado era intrínseca à relação de força das linhas de pensamento antagónicas e quanto não foi ela um espelho de respostas ad hoc à eficácia das redes clandestinas?

  • 12 O regedor era o representante local, ao nível da freguesia, da polícia e da administração central.
  • 13 No caso dos contratos nominativos. De acordo com o conteúdo das “Instruções às Câmaras”, também “só (...)

16Cerceados por obstáculos concretos que lhes negavam o direito à emigração, muitos trabalhadores ignoravam ou desdenhavam os trâmites legais para uma emigração regular e optavam por sair “a salto”. Era uma escolha clara e simples face à pesada burocracia que teriam de cumprir cumulativamente, nomeadamente o vasto rol de requisitos exigidos para concessão de passaportes: diploma de terceira classe completa (pelo menos para os homens entre os 14 e os 35 anos); comprovativo de situação militar regularizada; certificado de idoneidade política passado pelos regedores;12 ter no país de destino parentes até ao terceiro grau13 (para contrato de trabalho ou carta de chamada), etc. Requerimentos que acarretavam custos, meses de espera e um alto grau de incerteza devido aos constrangimentos frequentemente impeditivos deste tipo de processos. A dinâmica da emigração irregular poderá ser melhor elucidada relacionando o poder das decisões governamentais com as estratégias, nem sempre conflituantes, que interligavam emigrantes, auxiliadores e agentes do estado local incumbidos da execução da lei.

2. Outras aparentes anomalias na gestão local dos fluxos migratórios irregulares

  • 14 Dependendo da região, as indústrias mineira, dos lanifícios e vidreira eram os maiores empregadores

17O contexto social de origem dos emigrantes situava-se, maioritariamente, em territórios rurais. Eram assalariados agrícolas ou de uma pequena indústria pertencente a um patronato que, além de uma política de baixos salários (Leeds 1983),14 partilhava regra geral a visão salazarista de um país colonialista regido por valores conservadores. A desigualdade social era facilmente percecionada pelo estilo de vida dos patrões e pelo regresso de alguns emigrantes. A partida de amigos ou familiares para o estrangeiro (e o seu regresso nas férias de agosto) foi sedimentando no imaginário coletivo rotas e lugares de escape a uma vida que sentiam como condenada a uma frágil condição social. As condicionantes socioeconómicas e político-militares do país contribuíram para um certo consentimento social da emigração irregular, ao mesmo tempo que a redimensionavam politicamente.

  • 15 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, arquivo da PIDE/DGS (doravante ANTT/PIDE/DGS), Informação de Sa (...)

18A emigração irregular era vista com tolerância em alguns setores da sociedade civil, designadamente por indivíduos afetos aos círculos do poder institucional local. No Portugal rural da década de 1960 era comum a proximidade ao anseio de partir “para uma vida melhor”. As redes de emigração irregular dispunham de um modus operandi flexível, de uma distribuição de poder relativamente horizontal e fragmentada, e faziam uso de afinidades sociais e de parentesco (Gomes 2016) que se estendiam desde párocos a elementos da Guarda Fiscal. Afinidades que alcançavam as instituições estatais, como reporta um relatório da PIDE de Santarém queixando-se de que “já aparecem a desejar ir para França soldados da GNR, os quais apenas esperam oportunidade para seguirem, desertando da corporação”.15 A análise da relação dual que caracterizou a atitude do estado neste quesito deve, por isso, ser empreendida à luz de três esferas do poder público: (i) a cadeia hierárquica do poder político compreendida pelos governos civis, encarregados do controlo sobre a emissão de passaportes turísticos e pelos órgãos a si subordinados: as câmaras municipais, cujos presidentes eram, normalmente, figuras da confiança política/pessoal do governador civil, e as juntas de freguesia; (ii) o poder judiciário; (iii) as forças de segurança.

  • 16 Aproximamo-nos do conceito de redes relacionais formulada por Fernando Ruivo (2000, 256), segundo o (...)

19Os dados sugerem que a manobra de ação político-administrativa dos agentes do estado, mesmo dependendo da posição e do estatuto socioprofissional, acolhia um importante e muitas vezes decisivo (micro)poder. Isto é, o poder de influenciar, em benefício próprio ou de terceiros, fosse por interesses privatísticos ou “regionalistas/localistas”, a forma como se desenrolava a emigração irregular. As diretrizes superiores e os decretos administrativos estavam sujeitos à agência diferenciada dos funcionários responsáveis pela sua execução. Procurando responder a interesses ou lógicas de poder paralelos, ou por mera leniência, alguns deles contribuíram decisivamente para a erosão das políticas oficiais, facilitando a emigração irregular. A título de exemplo, a preferência pela prevenção em vez da repressão, ou vice-versa, remete-nos para a “gestão diferenciada da ilegalidade” dentro de um organismo estatal. Este conceito, da autoria de Nicolas Fischer e Alexis Spire, permite-nos entender melhor esse “modo de dominação assegurado pelos agentes do estado, em particular quando estes são confrontados com práticas ilícitas que não visam os bens ou as pessoas, mas transgressões de leis ou regulamentos” (Fischer e Spire 2009, 11). A gestão diferenciada das ilegalidades por parte da administração estatal foi caracterizada por duas importantes dimensões: a ativação de relações de confiança política informais e privilegiadas16 e a atribuição de um (variável e deliberado) poder discricionário.

  • 17 Citação constante de ofícios do governador civil Alexandre Arménio Maia dirigidos ao presidente de (...)

20Não eram apenas atos arbitrários. Tratava-se de interpretações da lei que dependiam de vários fatores em jogo: a natureza da infração e do infrator; o grau de autonomia e a graduação do agente; e os seus interesses privados, políticos, ideológicos. Por exemplo, o poder atribuído aos agentes administrativos nos processos de obtenção de passaporte suscitava aos requerentes incertezas sobre a uniformidade das políticas, sobre os seus direitos e as condições de deferimento. Mesmo “estando superiormente determinado que se [usasse] de todas as cautelas na passagem deste género de passaportes [ordinários] para se evitarem possíveis casos de emigração clandestina”,17 o então presidente de uma das câmaras municipais do distrito de Viseu confessava-nos o como e o porquê de preferir contornar as ordens, reaplicando-as com outros intuitos:

  • 18 Nome fictício.
  • 19 Dr. Cristóvão, presidente de câmara desde os inícios dos anos 1960 até 1974. Foi também deputado. E (...)

As ordens do governo civil eram não apoiar os pedidos de passaporte. Mas eu sempre os apoiei […] Fui interpelado! Algumas vezes até o governador civil me falou pessoalmente “‒ Oh sôtor! Quando eu digo que o passaporte é turístico, é mesmo! ‒ O que eu digo é: não se preocupe. Não se preocupe porque eu acho que estou a fazer bem. Estou a fazer muito bem ao povo de Invdspoi18.” E ele lá transigia comigo ‒ era meu amigo ‒ e lá assinava os passaportes. […] E eu informava-os sempre porque sabia que efetivamente a emigração neste concelho era muita e era muito benéfica para o concelho. De tal maneira benéfica que chegaram a estar aqui instaladas as agências de seis bancos. Porque os emigrantes mandavam muitas economias para o país.19

  • 20 AMM, Circular confidencial nº 14/57-S, Lisboa, 16.4.1957.

21Atos de desobediência às leis de gestão da emigração sucediam-se noutros organismos do poder local. Logo em 1957, a Junta de Emigração apelava às câmaras municipais e juntas de freguesia para redobrarem a atenção sobre a verdadeira residência dos requerentes aquando do tratamento dos pedidos de passaporte.20 A circular não obstou a que vários indivíduos obtivessem, por esse expediente, passaportes de turismo para uma viagem da qual não regressaram. Também um comissário da PSP da Guarda informava um inspetor adjunto da PIDE de que vários habitantes do Soito, no Sabugal, estavam a mudar-se para a zona de Almada, na região da Grande Lisboa:

  • 21 ANTT/PIDE-DGS, SC, CI(I), Proc. 218 - Secretariado Nacional da Emigração, pasta 1, 468, NT: 1177. O (...)

Ali, é um sacerdote que é professor de um colégio, que de conivência com alguém da Junta de Freguesia, passa aos interessados os atestados residência, os quais depois são entregues a esse sacerdote, que maneja todo o demais, no governo civil de Setúbal.21

  • 22 ANTT/PIDE-DGS, SC, PC, 1758/64, NT: 5694. Também a delegação da PIDE do Porto informava o seu diret (...)

22As redes podiam cobrir quase todo o país. Ainda a sul do rio Tejo, na freguesia da Baixa da Banheira, os registos do arquivo da PIDE-DGS informam que um dos passadores mais ativos à época terá utilizado esta via administrativa para efeitos de concessão de passaporte a favor de pretensos emigrantes.22 Estes exemplos ilustram a mobilização de saberes práticos e do capital relacional entre intermediários e agentes administrativos no sentido de se apropriarem do poder para transgredirem a lei. Deste quadro geral, identifica-se uma série de traços comportamentais associados às práticas profissionais de agentes do estado que contribuíram para a impotência da política emigratória oficial: tolerância, permissividade, laxismo, usos e abusos diferenciados do poder outorgado e (veremos adiante) corrupção.

23Estas práticas fizeram-se presentes também na esfera judiciária. As penas aplicadas pelos tribunais de comarca ficavam, em regra, longe da aplicação máxima da moldura penal. Primeiro, porque, excetuando situações de flagrante delito, afigurava-se complexa a constituição de prova irrefutável de que os acusados estariam a sair (ou auxiliar a sair) do país. Em segundo lugar, porque no dia do julgamento muitos dos réus já estavam em França ou em “parte incerta”, depois de paga a caução para aguardar julgamento em liberdade. Em terceiro lugar, porque as estratégias de defesa usadas em julgamento terão ajudado a este desfecho. As alegações de desconhecimento (e.g., do destino final ou do motivo do empréstimo) e, tal como relatado por Marta Silva (2011, 102), as alegações de bom comportamento moral e a invocação de condição social modesta bastavam, frequentemente, para que certas infrações fossem toleradas e as penas atenuadas. Leia-se, por exemplo, a condenação por acórdão num processo da comarca de Tondela em que o réu, acusado de ter praticado

  • 23 Arquivo Judicial da Comarca de Tondela, 1967, Maço 16, nº 3, 1ª Secção, nº 163/67, Autos de Crimes (...)

atos de aliciamento e auxílio […] agiu com imperfeito conhecimento do mal do crime e ao desenvolver a atividade descrita agiu em vista a arranjar melhoria de vida para poder sustentar o seu agregado familiar [...] tem a seu favor uma soma de factos a atenuar a sua responsabilidade criminal e […] não obteve utilidade daquela sua atividade.23

  • 24 Michael Mann distingue duas formas de poder do estado: poder discricional (ou despótico) e poder in (...)

24Estas situações retratavam duas faces da mesma realidade: práticas anómalas em instituições delegadas para a resolução do “problema” da emigração irregular e uma ténue capacidade de penetração infraestrutural do estado (Mann 1984, 185-213) incapaz de evitar que as redes clandestinas obtivessem benefícios diretos através da sua estrutura administrativa.24 Nesta questão desempenharam um papel decisivo autoridades policiais, aduaneiras, religiosas e político-administrativas ‒ com o predomínio de funcionários públicos intermédios, em especial presidentes de junta de freguesia e regedores. A duplicidade nas práticas institucionais era, porém, mais evidente em comarcas, municípios e corporações de regiões de fronteira com Espanha, onde a configuração sociocultural e as práticas sociais lhes conferiam um presumível protagonismo.

3. Configurações (da gestão) da ilegalidade e do poder discricionário na fronteira

  • 25 Embora seja um tópico a estudar com mais atenção, o registo oral de muitos passadores que frequente (...)

25A emigração irregular promoveu uma nova vertente de um velho negócio. Em muitos casos, os “passadores” que atravessavam as fronteiras com os emigrantes eram ou tinham sido contrabandistas. O passador transitava da circulação clandestina de bens e mercadorias para a de pessoas. Se essa transposição não foi abrupta nem linear em termos da legitimidade atribuída no seio da economia moral camponesa (Fonseca e Freire 2009),25 ela significava um continuum das práticas de evasão, quando muito um reajuste do rol de estratégias para escapar à vigilância e punição das autoridades. Mas a emigração clandestina representava também uma nova fonte de lucro, estimulando outras práticas negociais tais como o reforço de acordos, pactos de cooperação, e a integração na rede clandestina (nem que fosse como informadores) de alguns dos elementos pertencentes ao poder local (forças de segurança, oficiais de justiça, etc.).

  • 26 Entrevistado por João Baía. Apesar das leis que regiam este corpo policial impedirem, até cumprido (...)
  • 27 Entrevista a Mendonça, realizada por Pedro Gomes a 24 de setembro de 2011, em Oleiros, Castelo Bran (...)

26Nas áreas fronteiriças, a Guarda Fiscal tinha nos seus postos de vigia agentes que partilhavam a mesma origem social e proveniência geográfica de muitos dos indocumentados e passadores que os tentavam iludir. Vários tinham mesmo sido contrabandistas (ou os seus pais e avôs) antes de ingressarem na corporação (Rovisco 2008, 32). Outros havia que tinham sido passadores e emigrantes irregulares, como era o caso de um antigo guarda-fiscal natural de Vilarelho da Raia, aldeia fronteiriça do concelho de Chaves.26 Este fator poderá explicar a tendência de elementos desta polícia para serem mais indulgentes do que outros; enfim, a terem uma “interpretação diferenciada da lei” (Heyman 2002). Um antigo comandante da GNR da zona de Pampilhosa da Serra, conhecedor dos engajadores locais, na suspeita de uma iminente infração da lei, fazia questão de os prevenir oficiosamente “‒ Olha, ai de ti se fazes isto e isto porque depois ‘vais dentro’!” Para que eles soubessem que ele sabia. Se fossem infringir a lei, que não o fizessem quando ele estivesse de serviço.27

27A gestão diferenciada da ilegalidade originava tensões expressas nos problemas de coordenação entre as corporações policiais. Conforme descrito num ofício da PIDE de 1964:

  • 28 ANTT/PIDE-DGS, SC CI(I), Proc. 218 – Secretariado Nacional da Emigração. Pasta 1, nº 468, N.T. 1177 (...)

Este facto […] leva-nos a suspeitar da passividade das duas praças da Guarda Fiscal. Em conclusão, há fortes indícios e alguns factos que demonstram que a repressão, por via marítima, à emigração clandestina não tem merecido a atenção e o interesse que se impunham por parte das autoridades competentes.28

28Note-se que, no caso dos agentes da Guarda Fiscal, considerando a sua missão aduaneira e os recursos disponíveis, afigurava-se-lhes mais vantajoso concentrarem esforços na apreensão de contrabando já que, em função da mercadoria apreendida, uma percentagem do lucro poderia ser-lhes destinada:

  • 29 Sr. Boavista, antigo passador e contrabandista entre 1962 e 1968, entrevista realizada por Pedro Go (...)

A Guarda Fiscal não ligava. Havia ocasiões em que havia centenas de homens [parados] porque o rio cresceu e estavam à espera que o rio baixasse... Eles sabiam. Só quando viam alguma coisa de contrabando diferente é que eles atuavam. […] E apanhou também vinte e tal pessoas que estavam lá numa casita daquelas e trouxe-as. Mas só porque pensou que aquele era o passador. E, como tinha ali éguas, já justificava uma apreensão.29

29O interesse pela mercadoria, em comparação com o (des)interesse pela detenção do contrabandista e do emigrante clandestino, é resumido desta forma pelo antigo agente Sancho:

  • 30 Entrevista realizada por Pedro Gomes a 5 de novembro de 2011, na Lageosa, Sabugal.

Embora a gente apanhasse o arguido [contrabandista] púnhamos sempre nos autos que se tinha posto em fuga; que não tinha sido possível capturá-los. Quando se tratava de emigrantes não púnhamos nada. Nem se fazia relatório.30

30Estas omissões eram a regra na fiscalização do contrabando desde pelo menos a década de 1950 (Cabanas 2000, 8; Rovisco 2008, 27), sendo plausível que constituíssem uma regularidade também no respeitante à emigração clandestina. Sem embargo, existiam detenções mais ou menos ocasionais, também elas necessárias para apresentar resultados às chefias superiores e não comprometer as relações institucionais entre as polícias (incluindo a Guardia Civil espanhola). Esta ambiguidade constituía mais uma fonte de incerteza para os emigrantes e auxiliadores e, desse ponto de vista, acentuava o poder discricionário do estado. Mesmo favorecidos pela tolerância e laxismo que orientava a ação de determinadas autoridades administrativas/policiais/aduaneiras/judiciárias com os auxiliadores, estes precisavam de recorrer a outros mecanismos que salvaguardassem ao máximo a sua “profissão de risco”. Por vezes, o aliciamento de agentes do estado envolvia dinheiro e outro tipo de compensações mais ou menos simbólicas. As práticas de suborno – ocasionais ou regulares – fizeram parte da estratégia de vários passadores:

  • 31 Inácio Bolas, antigo engajador e passador. Entrevista realizada por Pedro Gomes a 26 de agosto 2011 (...)

Aparece um guarda-fiscal, pára-nos, e diz logo “‘Tá todo o mundo preso!” e aponta-nos a arma. O outro aponta-lhe também a pistola! Os dois de arma apontada e eu a falar com o guarda a tentar convencê-lo a botar a arma abaixo. E dei-lhe uma gratificação […]. Mas eu tinha um guarda amigo que me dizia tudo. Em bilhetinhos.31

31Um outro passador descreveu-nos como conseguia antecipar e fintar os movimentos das patrulhas noturnas dos guardas-fiscais, durante visitas que realizava ao posto da Guarda Fiscal:

  • 32 Francisco, taxista e passador. Entrevista realizada por João Baía a 23 de julho de 2011, em Miranda (...)

Tinha um amigo pessoal da terra dele [guarda-fiscal]. E ele explicou-me a maneira de eu saber onde os guardas estavam à noite. [...] Às vezes ia até ao quartel ver o sr. cabo Ribeiro [...] Então, eu ia ali, só olhava para o mapa (que indicava os lugares onde os guardas estavam a fazer “esperas”) e já sabia: “hoje aqui não se pode passar, que está lá a guarda”.32

  • 33 Marcelo Brito, passador. Entrevista realizada por Pedro Gomes a 28 de agosto de 2011, em Vidago, Vi (...)
  • 34 Maia, antigo comerciante, oposicionista e acusado de auxílio à emigração clandestina. Entrevista re (...)
  • 35 No âmbito de uma investigação de um caso de emigração política. ANTT/PIDE/DGS, DPI, Proc. 623, C1(2 (...)

32Estas violações dos deveres legais constituíam um risco sério, mais a mais sob a alçada de um regime autoritário. No entanto, isso não impediu a incorporação de agentes do poder judiciário, do poder local e da própria PIDE nas redes clandestinas. Foi o caso de um funcionário de uma comarca transmontana: “Eu também tinha ali um amigo no tribunal. E lá ia puxando o… mandato; e eu ia passando [para evitar o dia do julgamento]”.33 De igual modo, terá sido o caso de um agente da PIDE inserido na mesma rede de um auxiliador da zona de Peniche: “… que se eu quisesse ir para França que ele tratava disso; exigiu-me 80 contos; no aeroporto ele diz-me ‘passas ali’, e eu passei no aeroporto, com passaporte. Puseram-me o carimbo… e foi a PIDE que me passou para França!”34 No próprio arquivo da PIDE/DGS descobre-se um agente desta polícia, da zona de Chaves, a ser acusado de “mau profissional” e de estar ligado a alguma rede de engajamento.35 A incorporação na rede clandestina de funcionários do estado impele, portanto, a um repensar da dialética definida pela eficácia de uns versus a eficácia de outros.

  • 36 Entrevista a Ludgero realizada por Pedro Gomes a 2 de junho de 2012, em São João da Pesqueira. Mart (...)

33Na atividade clandestina, a probabilidade de escapar às autoridades oscilava consoante o perfil do emigrante e do auxiliador.36 Segundo um antigo advogado e notário de São João da Pesqueira, os passadores de fronteira eram os que mais facilmente escapavam das teias do tribunal “e os intermediários é que, normalmente, eram apanhados”. No entanto, pesava sobre todos o receio de serem apanhados, principalmente pela PIDE, a quem competia a instrução preparatória dos processos levados a tribunal. Ainda que a emigração clandestina não fosse encarada como o principal risco à “segurança do estado”, a polícia política portuguesa corporizava ao expoente o poder discricionário do estado (Mann 1984, 185-213), razão pela qual o medo foi um instrumento privilegiado na gestão das populações. Vários dos depoimentos narram o uso de violência, inclusive de tortura, durante os interrogatórios:

  • 37 Igor Jesus, engajador e passador. Entrevista realizada por João Baía a 23 de julho de 2011, em Mira (...)

Uma pessoa sem roubar nada a ninguém, nem matar, agredirem uma pessoa, mas porquê? Eles eram uns animais. Eram uns animais. Com um pau ali em baixo dos joelhos e os dedos entalados por baixo do pau, punham o pessoal em cima do pau ali uma hora, os dedos ficaram todos lisinhos ali [...]. Até faziam dizer aquilo que não era, quanto mais o que era...37

34O testemunho deste passador alerta-nos para a necessária crítica das fontes policiais (Patriarca 1997). Nunca saberemos se as mudanças de discurso dos declarantes suspeitos de auxílio à emigração clandestina registadas nos relatórios, autos de averiguação, de acareação, etc., da PIDE foram resultado de contra-argumentação, de mera débil deliberação ou de coação física. O medo de cair nas malhas da PIDE acompanhava o emigrante mesmo depois de passar os Pirenéus. Um artigo sobre a chegada de portugueses a França publicado na revista Esprit (número especial intitulado “Les étrangers en France”), em abril de 1966, alertava para essa “exportação do medo”:

  • 38 Claude Laurent, “Les Portugais”, Esprit, abril de 1966, pp. 705-718.

Depois, encontrando-se em França (desde 1963, parece) uma rede de informadores da PIDE, que faz pesar sobre os emigrantes o medo de não poderem voltar a Portugal ou de serem presos – reforçando assim a influência não desprezível das autoridades consulares e religiosas, que exploram a dependência real ou imaginária dos emigrantes perante os serviços respetivos.38

35Tendo, por norma, deixado o seu agregado familiar em Portugal, para quem a dureza física e o risco de detenção inerente às viagens clandestinas eram preços demasiado altos a pagar, o emigrante continuava, no estrangeiro, sujeito ao poder discricionário dos agentes administrativos. De um lado, os agentes consulares de quem dependia para efeitos dos pedidos de regularização e, do outro, os agentes nacionais com quem tinha de lidar aquando do seu regresso à pátria de origem, principalmente quando sobre ele pendiam processos não resolvidos. Ao continuar a confinar a liberdade de movimentos aos emigrantes, com incidência especial nos “desertores” e membros da oposição política, o estado fragilizava o emigrante clandestino (Pereira 2014, 419-421). Fragilização que começa, aliás, a montante, na “produção legal da ilegalidade migrante” (De Genova 2002, 429).

4. Conclusão

36Propusemo-nos revisitar a operacionalidade das redes de auxílio à emigração irregular para França, a partir da exploração combinada de registos orais dos seus múltiplos protagonistas e de arquivos estatais não unicamente centrais, ou seja, localizados nas regiões onde estas irregularidades operavam. Este caminho protegeu-nos da parcialidade e perniciosidade da perspetiva estatocêntrica. O exercício do poder do Estado Novo e a evolução das políticas migratórias foram, desta forma, postas à prova “de baixo para cima”. Esta perspetiva, aliada ao amplo recorte geográfico dos nossos dados, estimulou uma visão integrada e global das formas de atuação das redes de auxílio, renovando a reflexão feita sobre o seu lugar na história da política portuguesa durante as últimas décadas de ditadura e na história da mobilidade “irregular” contemporânea.

37Para entender o modo como determinados agentes administrativos, aduaneiros e policiais do estado, assim como determinados atores políticos, judiciais e religiosos, geriram diferenciadamente a interpretação e a execução das leis, o recurso às noções de gestão diferenciada das ilegalidades (Fischer e Spire 2009) e a ativação de redes relacionais (Ruivo 2000) afiguram-se particularmente úteis. Permitem-nos elucidar a forma como aqueles agentes, juntamente com emigrantes e auxiliadores conseguiam subverter o poder normativo do estado em seu benefício. O capital simbólico que a emigração vinha gerando fora dos grandes centros urbanos, os laços sociais e as solidariedades locais, de parentesco ou de classe, uniam os integrantes da rede. Associados a formas de lucro decorrentes do gizar de estratégias das redes, como a corrupção, estes foram fatores centrais para a eficácia das redes. A duplicidade da política de emigração manifestava-se, assim, na discrepância entre o direito a emigrar e as barreiras que o negavam, entre a criminalização da emigração e a repressão inefetiva no terreno.

38Condicionada pelas relações de força acima descritas, a duplicidade da ação policial, administrativa e judicial do estado pode sintetizar-se da seguinte forma: (i) endurecimento da repressão legislativa e leves sentenças dos tribunais; (ii) discursos, normas e leis visando suprimir a clandestinidade, e a falta de meios para controlar a longa fronteira, bem como a falta de zelo em deter os infratores; (iii) descontinuidades na cooperação policial a nível nacional e internacional, e a cooperação transfronteiriça das redes clandestinas. Estas contradições estimularam a emigração irregular, e a manutenção de Salazar no poder e, simultaneamente, a sua capacidade de aderir à modernização económica europeia e (por isso) manter viva a sua política imperialista em África (Pereira 2009, 37). O estudo das perceções e das práticas dos agentes responsáveis pela aplicação das leis que visavam fazer abrandar ou dirimir a emigração irregular permitiu, por fim, detetar e aferir a permeabilidade das instituições públicas (em diferentes esferas e patamares da pirâmide hierárquica estatal) à atividade das redes clandestinas. Mais do que a dualidade entre a (in)eficácia do estado versus a (in)eficácia destas redes, o jogo de forças desvela-se mais complexo. Uma configuração entrelaçava candidatos a emigrantes, auxiliadores e um estado ambivalente que, concomitantemente, divergiam nos interesses e convergiam na mesma “malha” de irregularidades. O emigrante estava irregular, as redes eram ilegais, mas ao estado, tal como ao governo, a situação não era totalmente inconveniente.

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Notas

1 Victor Pereira baseia esta estimativa nos dados das entradas de portugueses em França, recolhidos pelo Ministério do Interior francês (2014, 434). Desde 1957, o número de saídas foi aumentando significativamente a cada ano até, pelo menos, 1966, registando-se o pico entre 1969 e 1971 com uma média a rondar as 119 mil entradas em cada ano.

2 Em outubro de 1964, o jornal Portugal Democrático (nº 87, p. 5), editado no Brasil (ligado à oposição ao salazarismo), fazia eco de uma reportagem de Robert Collin no conhecido semanário Paris Match (ali traduzida para português) então intitulada “O tráfico de portugueses”. A expressão “Negriers des Temps Modernes” encabeça uma crónica sobre a emigração portuguesa publicada no jornal francês La Défense, em dezembro de 1964 (nº 482, pp. 8-9).

3 O argumento deste artigo seria integrado no livro A Ditadura de Salazar e a Emigração (Pereira 2014), resultado do seu trabalho de doutoramento.

4 Dados novos recolhidos no âmbito do projeto “Além do fracasso e do maquiavelismo: a emigração irregular portuguesa para França, 1957-1974” (vide Agradecimentos).

5 Para preservar a confidencialidade, os nomes dos entrevistados aqui publicados são fictícios.

6 Usando a conceptualização de Enzo Traverso (2012, 71-87), as memórias fracas – memórias subalternas, sem visibilidade ou interditas no espaço público – contrastam com as memórias fortes – as “memórias oficiais” celebradas e validadas pelo estado.

7 Arquivo Histórico Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros (doravante, AHDMNE), pasta Expediente 030015, 22.12.1959, Proc. nº 43.15, nº 132 de 31.12.1959, MNE nº 4352 /59-S.

8 Pelo menos até 1967, ano da suspensão dos recrutamentos anónimos e nominativos (Pereira 2009, 64). O coronel Baptista esteve “de pedra e cal” na chefia da Junta de Emigração até abril de 1969, abandonando funções por ter alcançado o limite de idade.

9  Circular nº 2/62-S, Lisboa, 29.3.1962.

10 Estes eram temporariamente detidos em prisões espanholas, ocorrendo frequentemente a transferência dos reclusos de prisão em prisão, em direção à fronteira portuguesa.

11 A todos os que auxiliassem indivíduos a sair do país ou que interferissem na obtenção de passaportes ordinários sob pretexto de serem utilizados para fins turísticos, quando, na realidade, se destinavam a emigrantes, seriam punidos com a pena de prisão maior de dois a oito anos; aos emigrantes clandestinos eram mantidas as penas aplicáveis pela legislação então em vigor.

12 O regedor era o representante local, ao nível da freguesia, da polícia e da administração central.

13 No caso dos contratos nominativos. De acordo com o conteúdo das “Instruções às Câmaras”, também “só era permitida a emigração de mulheres sós contratadas por estrangeiros quando já tenham trabalhado para eles ou tenham no país de destino parentes até ao 3º grau”. Arquivo da Câmara Municipal de Torres Vedras, ofício da Junta de Emigração nº 8, Ministério do Interior – nº 27672/62-SE, MLR/MM, registo nº 03391, 21.8.1962.

14 Dependendo da região, as indústrias mineira, dos lanifícios e vidreira eram os maiores empregadores.

15 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, arquivo da PIDE/DGS (doravante ANTT/PIDE/DGS), Informação de Santarém (Tomar), 25.3.1965.

16 Aproximamo-nos do conceito de redes relacionais formulada por Fernando Ruivo (2000, 256), segundo o qual a diminuição da distância ao poder e uma reapropriação do mesmo podem ser desencadeadas através do poder relacional, e na medida do capital relacional de cada um. Sobre as formas de clientelismo e caciquismo político do tempo da monarquia e que perduraram após a instauração da república, vide Oliveira (1996).

17 Citação constante de ofícios do governador civil Alexandre Arménio Maia dirigidos ao presidente de uma das câmaras municipais do seu distrito pedindo justificações para o deferimento de pedidos de passaportes. Arquivo Municipal de Mangualde (doravante AMM), Governo Civil de Viseu, Correspondência recebida 1943-1968, Ofício confidencial urgente, Viseu, 7.3.1957, 12, nº f-7/3.

18 Nome fictício.

19 Dr. Cristóvão, presidente de câmara desde os inícios dos anos 1960 até 1974. Foi também deputado. Entrevistado por Pedro Gomes a 31 de maio de 2012. É de sublinhar que as razões invocadas pelos entrevistados não esgotam o conjunto de razões possíveis, nomeadamente quando o exercício político se conjugava com interesses mais particulares.

20 AMM, Circular confidencial nº 14/57-S, Lisboa, 16.4.1957.

21 ANTT/PIDE-DGS, SC, CI(I), Proc. 218 - Secretariado Nacional da Emigração, pasta 1, 468, NT: 1177. Of. nº 418, 2º doc., 414-416, Guarda, 7.10.1963.

22 ANTT/PIDE-DGS, SC, PC, 1758/64, NT: 5694. Também a delegação da PIDE do Porto informava o seu diretor que se cogitava “que no Governo Civil de Braga se têm emitido passaportes de forma irregular, através de pessoa muito chegada ao Chefe do Distrito”. ANTT/PIDE-DGS, Ofício confidencial, PIDE – Delegação Porto, 11.05.1966.

23 Arquivo Judicial da Comarca de Tondela, 1967, Maço 16, nº 3, 1ª Secção, nº 163/67, Autos de Crimes de Querela.

24 Michael Mann distingue duas formas de poder do estado: poder discricional (ou despótico) e poder infraestrutural. O primeiro abrange a capacidade que a elite política tem de executar ações, sem mecanismos de rotina ou negociações institucionais com os grupos da sociedade civil. A PIDE representa bem este tipo de poder. O poder infraestrutural tem a ver com a capacidade do estado em penetrar a sociedade civil e implementar decisões políticas lógicas na totalidade do seu território.

25 Embora seja um tópico a estudar com mais atenção, o registo oral de muitos passadores que frequentemente “desviavam” a conversa para as histórias do contrabando é um indício dessa tensão.

26 Entrevistado por João Baía. Apesar das leis que regiam este corpo policial impedirem, até cumprido determinado tempo, que a atividade num posto de “fronteira” coincidisse com a área de residência do agente ou com a área de um estabelecimento comercial pertencente a um familiar seu (Costa 2015, 13-14). Informação igualmente prestada por Cavaco, antigo guarda-fiscal, entrevistado por Pedro Gomes a 08 de novembro de 2011, Segura, Idanha-a-Nova.

27 Entrevista a Mendonça, realizada por Pedro Gomes a 24 de setembro de 2011, em Oleiros, Castelo Branco.

28 ANTT/PIDE-DGS, SC CI(I), Proc. 218 – Secretariado Nacional da Emigração. Pasta 1, nº 468, N.T. 1177. Ofício confidencial nº 100/64, nº 3.406/64 – SR.

29 Sr. Boavista, antigo passador e contrabandista entre 1962 e 1968, entrevista realizada por Pedro Gomes e por João Baía a 6 de julho de 2011, em Penha Garcia, Idanha-a-Nova.

30 Entrevista realizada por Pedro Gomes a 5 de novembro de 2011, na Lageosa, Sabugal.

31 Inácio Bolas, antigo engajador e passador. Entrevista realizada por Pedro Gomes a 26 de agosto 2011, em Vidago, Vila Real.

32 Francisco, taxista e passador. Entrevista realizada por João Baía a 23 de julho de 2011, em Miranda do Douro, Bragança.

33 Marcelo Brito, passador. Entrevista realizada por Pedro Gomes a 28 de agosto de 2011, em Vidago, Vila Real.

34 Maia, antigo comerciante, oposicionista e acusado de auxílio à emigração clandestina. Entrevista realizada por Pedro Gomes e por João Baía a 13 de julho de 2011 na Atouguia da Baleia, Peniche.

35 No âmbito de uma investigação de um caso de emigração política. ANTT/PIDE/DGS, DPI, Proc. 623, C1(2), Pasta 1, UI 7026.

36 Entrevista a Ludgero realizada por Pedro Gomes a 2 de junho de 2012, em São João da Pesqueira. Marta Silva (2011) assinala também que os engajadores eram mais fáceis de identificar do que, por exemplo, os passadores espanhóis.

37 Igor Jesus, engajador e passador. Entrevista realizada por João Baía a 23 de julho de 2011, em Miranda do Douro, Bragança.

38 Claude Laurent, “Les Portugais”, Esprit, abril de 1966, pp. 705-718.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Pedro David Gomes e João Baía, «A emigração irregular para França: repressão, tolerância e colaboração, 1957-1974»Ler História, 83 | 2023, 169-189.

Referência eletrónica

Pedro David Gomes e João Baía, «A emigração irregular para França: repressão, tolerância e colaboração, 1957-1974»Ler História [Online], 83 | 2023, posto online no dia 29 novembro 2023, consultado no dia 16 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/12853; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.12853

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Autores

Pedro David Gomes

CICS.NOVA, Universidade Nova de Lisboa, Portugal

pedroddg@gmail.com

João Baía

ICS, Universidade de Lisboa, Portugal

joaobaiacosta@hotmail.com

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