Navegação – Mapa do site

InícioNúmeros83ArtigosOs joalheiros reais do liberalism...

Artigos

Os joalheiros reais do liberalismo e as estrelas de diamantes da coroa portuguesa

The Royal Jewellers of Liberalism and the Diamond Stars of the Portuguese Crown
João Júlio Rumsey Teixeira
p. 21-42

Resumos

Uma das mais célebres joias da coroa é o adereço ‘de estrelas’, executado a pedido da rainha D. Maria Pia, entre 1864 e 1866. A encomenda original do conjunto não contava com uma tiara, o que tem causado equívocos na historiografia, já que, nos nossos dias, a tiara é a peça mais afamada deste adereço. Para esclarecer esta aparente contradição acompanha-se o percurso deste adereço que, durante décadas, conheceu diferentes composições. Igualmente paradoxal permanece a notoriedade que o nome do autor da joia, Estêvão de Sousa, tem na literatura sobre o tema, apesar do desconhecimento quase total sobre a sua história. Na procura de respostas sobre os percursos do adereço e do seu criador, revela-se uma rede comercial e familiar paradigmática do liberalismo, onde o privilégio hereditário e a mestria técnico-artística constituíam variáveis de uma equação onde as escolhas da casa real foram determinantes.

Topo da página

Notas do autor

Este estudo faz parte da investigação financiada pela bolsa de doutoramento 2021.04880.BD da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Devo agradecimentos especiais a Hugo Xavier, Inês Líbano Monteiro, Manuela Santana e Teresa Maranhas, companheiros durante os trabalhos de pesquisa para o catálogo do Museu do Tesouro Real. Igualmente, agradeço ao meu verdadeiro mestre, Henrique Correia Braga, bem como ao Lourenço Correia de Matos que, de forma generosa, comigo partilharam informações por si levantadas durante as suas pesquisas. Por fim, um muito obrigado ao Tiago A. Vasconcelos Drummond Borges.

Texto integral

1Por diversas vicissitudes, depois do fim da guerra civil, em 1834, os monarcas constitucionais portugueses fruíram de um numeroso fundo diamantífero e de várias joias muito opulentas pertencentes ao património da coroa, de que detinham o usufruto (Teixeira e Maranhas 2023; Teixeira 2023). O meio-adereço de estrelas que se conserva hoje no Museu do Tesouro Real do Palácio da Ajuda (inv. 4722 e 4724) é o herdeiro, depois de inúmeras transformações, daquele que foi concebido, entre 1864 e 1866, por vontade de D. Luís (1838-1889) e D. Maria Pia (1847-1911), utilizando diamantes provenientes de parcelas do fundo diamantífero e da descravação de joias da coroa que, à época, não tinham uso pelos soberanos. Das duas peças hoje existentes, a tiara tem sido alvo de maior atenção pela literatura, sendo o contexto da sua criação quase sempre confundido com o da encomenda original do adereço (Guedes e Silva 1995, 144; Marques 2009, 159-160), o que, como veremos, não se encontra comprovado pelas fontes. Levanta-se, pois, a questão de como é que a joia mais célebre deste adereço é, atualmente, uma tiara se, na sua conceção, o mesmo adereço não contava com uma peça dessa tipologia.

2A resposta consistente a esta pergunta requer a compreensão do processo de encomenda do adereço, bem como da relação entre a casa real e os seus joalheiros. Desta forma, foi essencial procurar respostas para a questão em aberto na historiografia sobre o assunto: quem era Estêvão de Sousa, indubitável autor destas peças, cuja vida e atividade permanecem desconhecidas? Na busca de esclarecimento para esta questão surgiram novas dúvidas, igualmente relevantes, sobre a relação que realmente existiu entre Estêvão e a sociedade Pinto & Sousa, fornecedora da casa real desde a década de 1830, de que, até agora, se julgava ter sido um dos sócios (Xavier 2022; Maranhas 2023b). Desta forma, tornou-se urgente projetar uma nova luz sobre a história da atividade comercial e artística das firmas Pinto & Sousa, Estêvão de Sousa e Sousa & Arellano, bem como do percurso dos seus proprietários, principais fornecedores portugueses de obras de ourivesaria e joalharia para a casa real entre as décadas de 1830 e 1880. De resto, precisamente pela sua relevância como fornecedores régios, matricial para os seus congéneres ativos em Portugal nestes anos, a história destas firmas cruza-se com a história da cúpula política e económica dos primeiros quarenta e cinco anos do regime constitucional, saído da guerra civil (1828-1834). Feita uma investigação documental, a informação dela recolhida foi cruzada com a materialidade das peças existentes e a mais recente pesquisa publicada no catálogo do museu do Tesouro Real (Ribeiro 2023), tendo sido possível revelar o enquadramento familiar e profissional de Estêvão de Sousa e da sua produção, assim contextualizando a criação do adereço de estrelas no percurso do seu criador.

3No contexto das ações sobre os escrínios de joalharia real do período monárquico constitucional, é ainda crucial desenredar uma outra problemática: as encomendas de joalharia com gemas da coroa têm sido mote para diversas especulações, algumas enganadoras, sendo que a maioria enferma da falta de esclarecimento sobre o que era o património da coroa e o que era a propriedade privada dos membros da família real. O claro domínio destas realidades é essencial para qualquer abordagem sobre o tema pois, de outra forma, não é possível vislumbrar as razões que subjazem às escolhas feitas nas encomendas régias (Xavier et al. 2023). Neste campo, uma das premissas fundamentais a reter é a de que, em regime monárquico, a coroa transcendia a figura conjuntural do rei, já que ela representava a nação e, por essa razão, “como símbolo do país, à coroa não pertencia apenas a imaterialidade da representação nacional, igualmente lhe pertencia o maior património material do reino, de que faziam parte, naturalmente, vastas coleções de arte, onde a ourivesaria desempenhou papel de relevo” (Xavier et al. 2023).

  • 1 Carta de lei de 16-07-1855. Disponível em: https://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/30/108/p213.

4Pertença da coroa, um vasto património de joias e diamantes estava ao serviço da representação de estado dos monarcas, cujas peças eram utilizadas maioritariamente em ocasiões solenes. Uma vez que a coroa representava a nação, o seu património era entendido como parte dos bens públicos, razão pela qual as obras que o compunham se pretendiam “inalienáveis e imprescritíveis”. Detendo apenas o usufruto dos bens da coroa, os monarcas tinham, no entanto, a liberdade de neles fazerem “as mudanças […] que julgar[em] úteis para a sua conservação, melhoramento, ou aformoseamento”.1 Neste sentido, durante as décadas de regime monárquico constitucional, muitas foram as joias do acervo que sofreram inúmeras alterações, de acordo com as ordens dos monarcas que delas usufruíam (Teixeira e Maranhas 2020; Teixeira e Maranhas 2023; Teixeira 2023). Pelo peso da propriedade pública das peças, bem como do seu uso na representação de estado, as criações com estas gemas e metais foram sempre entregues a ourives ativos em Lisboa, ao contrário do que muitas vezes aconteceu com joias pertencentes às coleções particulares dos membros da família real, adquiridas ou encomendadas além-fronteiras.

  • 2 Entre as mais célebres encomendas de adereços com estrelas feitas por casas reais europeias contam- (...)

5O objeto de estudo deste artigo parte também da constatação de que o olhar crítico e competitivo sobre a opulência e a atualização estética da representação da majestade dos soberanos se acentuou nos círculos que gravitavam em torno da grande família real europeia do século XIX. Ao longo do século, o exponencial aumento da facilidade de circulação internacional, aliado à massificação da representação fotográfica, promoveu esta realidade, ao mesmo tempo que permitiu o acesso aos usos e modas ditados nos principais centros emissores. Se, até à década de 1870, Paris serviu de modelo indisputável com o arquétipo da imperatriz Eugénia (1826-1920) e da corte do segundo império a modelar, também, o gosto da jovem D. Maria Pia (1847-1911), mais tarde a capital francesa competiu com Londres, sede do império e corte inglesa, então superpotência global (Gomes 2020, 22-25, 102-103). Neste contexto, a exibição de “parures com um grande número de peças” (Gomes 2020, 102) tornou-se regra, sendo o motivo estrelar um dos preferidos para figurar neste tipo de joias, desde a década de 1850.2 Consequentemente, o facto de “que a rainha [D. Maria Pia] não possuía”, nem entre os bens da coroa, nem nos seus particulares, um adereço com magnitude que pudesse competir no palco das restantes soberanas europeias (Sousa 2023, 91), instigou a encomenda de dois conjuntos realizados com gemas da coroa a Estêvão de Sousa: um, em diamantes e esmeraldas, realizado em 1863 (Maranhas 2023a; Teixeira, no prelo), e outro, a parure de estrelas em diamantes, criada entre 1864 e 1866, aqui em análise.

6Atendendo a este encadeado de questões, as respostas surgem mais bem articuladas se apresentadas de forma cronológica. Na secção 1 examina-se o enquadramento familiar e profissional de Estêvão de Sousa, desde o seu nascimento e formação, passando pela atividade desenvolvida na empresa do pai até à dissolução da mesma, ponto de viragem para o estabelecimento de Estêvão por conta própria. Na secção seguinte apresenta-se a empresa criada por Estêvão, a sua atividade, bem como a relação com a casa real. Na secção 3 observa-se o processo de encomenda e execução da parure de estrelas, com especial atenção ao ritmo com que surgiram os diferentes adornos de cabeça que dele fizeram parte, entre os quais a tiara hoje existente. Na quarta e última parte resume-se o percurso desta joia já em regime republicano, com especial enfoque nas alterações nela realizadas durante a década de 1940.

1. Pinto & Sousa: o berço de Estêvão de Sousa

7Em Portugal, o fim da guerra civil e a extinção das ordens religiosas (1834) marcaram a viragem definitiva para um paradigma económico, político e social liberal oitocentista. Vinte e sete anos depois da saída da família real para o Brasil, doze anos depois da independência brasileira e ao fim de seis anos de guerra civil, Portugal confrontou-se com a absoluta necessidade de cuidar da sua própria continuidade, procurando sair do estado calamitoso para onde a guerra e o descontrolo das contas públicas o tinham arrastado, hipotecando o progresso industrial e económico num momento em que, precisamente, outras velhas potências europeias deram saltos económicos e industriais (Reis 1996, 26-34). A decisão de amoedar o ouro e a prata dos conventos, de algumas igrejas, ou da casa do infantado, surge aos olhos de hoje, tal como surgiu a alguns olhos oitocentistas, como bárbara, estando na origem de um quase trauma na história da conservação do património artístico nacional. Contudo, não parece justo julgar que estas decisões foram tomadas de ânimo leve, uma vez que a aflitiva situação das finanças públicas se refletia na vida da população e num caos político que, em círculo vicioso, promovia mais instabilidade. Em última instância, a capacidade de cunhar moeda era essencial para a sobrevivência do regime e a manutenção da paz, “pois um estado em permanente bancarrota não podia durar muito tempo” (Reis 1996, 51).

  • 3 De forma resumida, a separação de poderes implicou a perda de poder do rei sobre a fazenda pública (...)

8Além desta realidade, nos anos entre a saída da corte para o Brasil e o fim da guerra civil, de forma gradual, operaram-se transformações profundas nas formas de financiamento da aristocracia e da própria casa real3 que conduziram ao empobrecimento de várias das antigas famílias aristocráticas e ao rápido enriquecimento de uma nova burguesia, na sua maioria comprometida com a política e os grandes negócios do estado. Ainda que muitos dos atores da nova elite económica acabassem nobilitados, tal passou a acontecer num sistema desligado das prerrogativas do Antigo Regime, onde o título correspondia apenas a um reconhecimento honorífico, sem qualquer contrapartida económica ou de poder efetivo. Não obstando às dificuldades sentidas pela maioria da população, este contexto de grande instabilidade, aliado à mudança de atores e de paradigma económico, gerou oportunidades para lucrativos negócios, dos quais o comércio de objetos preciosos terá sido um dos mais interessantes, “tirando partido não só da falta de liquidez das famílias da aristocracia nacional, como da extinção dos conventos masculinos […], o que colocou no mercado quantidade assinalável de objetos” (Xavier 2022, 143). Segundo Jaime Reis (1996, 51-53), entre 1835 e 1843, só a venda dos bens “confiscados a instituições religiosas […], laicas e vinculadas”, entre os quais inúmeras obras de arte, rendeu cerca de 9 mil milhões de réis, assim inundando o mercado de preciosidades.

9Exemplo de quem soube aproveitar este período para construir um negócio e uma coleção de arte notáveis foi Raimundo José Pinto (1807-1859), cujo perfil e contornos ultrarromânticos da sua vida e atividade foram revelados por Hugo Xavier (2022, 141-158) no contexto do essencial estudo sobre parte da coleção particular de D. Fernando II (1816-1885). Se a figura de Raimundo Pinto atingiu importante notoriedade na imprensa e na documentação da casa real como “ourives e agente artístico” de D. Fernando II (Xavier 2022) e do seu filho, D. Pedro V (1837-1861) (Teixeira 2020, 21), desconhecido é o facto de que na sombra da atividade da firma Pinto & Sousa se escondia a figura de Caetano Félix da Silva e Sousa (1785-c.1865), ourives da prata e verdadeiro sócio de Raimundo Pinto, de quem era vinte e dois anos mais velho. Caetano de Sousa foi pai de Estêvão de Sousa (1824-c.1881) mas, atendendo à sua discrição na documentação relativa à atividade diária da Pinto & Sousa, tem sido confundido com o seu filho Estêvão que, não tendo sido sócio dessa firma, desde cedo assinou faturas e outros registos de transação, demonstrando que aí foi empregado e desenvolveu atividade até à dissolução da mesma, em 1859 (Xavier 2022, 142; Maranhas 2023b). Importa, pois, descortinar o contexto familiar e o percurso de Caetano de Sousa até à criação da sociedade com Raimundo Pinto, não só para compreender melhor a atividade desta firma como, igualmente, para entender o contexto e formação de Estêvão de Sousa até à sua entrada no mercado, em nome próprio, aos 35 anos, como sucessor da Pinto & Sousa.

  • 4 Arquivo Distrital de Lisboa (ADL), Registos Paroquiais, Pena, Batismos 1785-1796, fl. 3v.
  • 5 ADL, Registos Paroquiais, Pena, Óbitos 1780-1807, fl. 106.
  • 6 ADL, Registos Paroquiais, Pena, Casamentos 1794-1825, fl. 187.
  • 7 Por exemplo, Palácio Nacional de Sintra, inv. PNS6006.
  • 8 Decreto 13-A, de 12-11-1831. Disponível em: https://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/13/64/p16.

10Caetano Félix da Silva e Sousa foi batizado a 30 de março de 1785 na igreja da Pena, em Lisboa, a dois passos do Campo de Sant’Ana, onde moravam os seus pais, António Pedro de Figueiredo (?-1790) e Maria Joaquina. Foi seu padrinho o prior da igreja da Pena, o reverendo Caetano Félix da Silva, de quem Caetano Félix da Silva e Sousa notoriamente herdou o nome.4 O reverendo-padrinho terá acompanhado de perto o crescimento do jovem Caetano, até porque, a 30 de abril de 1790, quando este acabava de completar cinco anos, morreu o pai, António Figueiredo, que, sem surpresa, foi enterrado na igreja da Pena.5 A família permaneceu no Campo de Sant’Ana e Caetano terá sido iniciado ao ofício de ourives da prata, do qual se tornou mestre e registou marca a 9 de março de 1807, dias antes de completar 22 anos (Almeida e Carlos 2018, 140, L-192). Nesta data, Caetano de Sousa era já casado com Maria Cândida da Fonseca, natural de Paço de Arcos e também órfã de pai, com quem contraiu matrimónio a 23 de janeiro de 1805.6 O trabalho desenvolvido por Caetano durante os primeiros anos de atividade foi bem-sucedido, não só porque exemplares da sua produção surgem com alguma regularidade no mercado antiquário e estão presentes nas coleções dos museus nacionais7 como também porque a sua situação financeira surge atestada no final de 1831, no contexto da guerra civil, quando D. Miguel (1802-1866) forçou um empréstimo nacional, para o qual os 640 proprietários e comerciantes mais ricos de Lisboa foram intimados a contribuir com 800 milhões de réis,8 tendo cabido a Caetano uma das participações mais modestas, ainda assim no valor de 200 mil réis (Santana 1978, 488 e 510).

11Quando a Pinto & Sousa foi estabelecida, na segunda metade da década de 1830 (Xavier 2022, 142), no rescaldo da guerra e consequente período de inundação do mercado de objetos preciosos, provindos tanto de famílias depauperadas como das vendas do património nacionalizado com a extinção das ordens e outras instituições ligadas à visão absolutista do poder, Raimundo contava 32 anos e tinha marca de ourives do ouro registada desde 1833 (Xavier 2022, 141). No final da década de 1830, atendendo à jovem idade de Raimundo e à comprovada confortável situação financeira de, então já cinquentão, Caetano de Sousa, é bastante provável que a decisão de associação comercial de ambos tenha surgido da necessidade de um sócio capitalista por parte de Raimundo e da visão que ambos partilhavam sobre as oportunidades de negócio que se abriam perante a paz recém-conquistada e uma conjuntura política, económica e social invulgar. Esta parceria revelou-se uma aposta vencedora e, durante duas décadas, até à morte de Raimundo Pinto, em 1859, a Pinto & Sousa negociou algumas das mais extraordinárias obras de ourivesaria antiga que passaram pelo mercado de Lisboa, várias das quais acabaram por integrar as coleções reais (Xavier 2022), permitindo ainda aos seus sócios não só enriquecerem como, pelo menos no caso de Raimundo Pinto, recolher uma coleção de arte de primeira água, não apenas de ourivesaria (Xavier 2022, 156-157).

12Importa neste ponto esclarecer que, tal como ainda hoje acontece nalguns casos, no século XIX, a maioria das sociedades comerciais de negociação de obras de ourivesaria, incluindo também joalharia, dedicavam-se não só à criação e venda de ‘obra nova’ como à compra e venda de peças antigas, fosse para aproveitamento dos materiais preciosos, fosse, muitas vezes, para a sua revenda sem alterações. No caso da Pinto & Sousa surge evidente que esta era a realidade, sendo ainda relevante esclarecer que a atividade do comerciante de ourivesaria deve ser distinguida da do ourives-executante, mesmo que o primeiro pudesse ser mestre do ofício – como nos casos de Raimundo Pinto e Caetano de Sousa. Importa ainda reter que foi ao longo de Setecentos e início de Oitocentos que a oficina e a loja conheceram a sua separação definitiva, mesmo fisicamente, assumindo protagonismo, para o cliente, o local de compra e venda, a loja; em detrimento do lugar de execução, a oficina. Também por essa razão, ao longo do século XIX, a figura do comerciante ganhou exponencial importância e rendimento, uma vez que por si passava a gestão de todo o processo negocial, estabelecendo as margens de lucro a partir do trabalho dos seus oficiais, das oficinas com quem colaborava, ou mesmo dos preços por si oferecidos aos clientes vendedores, no caso das compras de material antigo. Consequentemente, a visibilidade pública dos verdadeiros executantes era reduzida, ao estar velada pelos nomes comerciais das firmas que progressivamente monopolizaram os créditos das obras vendidas.

  • 9  Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Casa Real (CR), caixa (cx.) 4701, recibo de pagamento d (...)
  • 10 Agradeço a generosidade de Lourenço Correia de Matos pela partilha desta informação por si recolhid (...)

13Em 1858, contando Caetano de Sousa 73 anos, Raimundo Pinto 51 e Estêvão de Sousa 34, a Pinto & Sousa foi incumbida daquela que, com grande probabilidade, terá sido a sua mais cara venda: a tiara nupcial que D. Pedro V ofereceu a D. Estefânia (1837-1859), trabalho integralmente fornecido pela firma, entre obra de ourives, cravador e os cerca de 4000 diamantes nela aplicados (Teixeira 2020). Esta encomenda é o perfeito exemplo de uma compra real, a título particular, de ‘obra nova’ sem olhar a custos, tendo o preço cobrado pela joia atingido os 78 489 330 réis, “valor da tiara que a mesma sociedade Pinto & Sousa vende[u] [...] a Sua Majestade”.9 Para a execução da peça, Raimundo Pinto e Caetano de Sousa terão recorrido aos seus melhores oficiais, entre os quais se contava um ourives de origem espanhola, Mariano Arellano, que trabalhava em Lisboa desde 1854. Em 1868, quando já era sócio de Estêvão de Sousa, Mariano haveria de requerer a distinção de ourives da casa real, afirmando claramente que “desde o ano 1854 [...] sempre tive a honra de fazer todos os objetos ricos que sua real família encomendou, ou comprou, aos Srs. Pinto e Sousa, antecessores do Sr. Estêvão de Sousa”.10 Como já de seguida constataremos, as dúvidas que poderiam subsistir em relação à autoria do trabalho de ourivesaria da tiara de 1858 dissipam-se com a redação de uma curiosa notícia de jornal, publicada em 1862, quando a mesma joia voltou a ser oferecida à noiva do novo rei de Portugal, D. Luís.

  • 11 A Lucta de 27-07-1912, p. 2.

14À data da encomenda, e tendo em conta o valor excecional da compra de D. Pedro V, o pagamento da tiara foi acordado em prestações, estendendo-se a liquidação das parcelas por vários anos, mas interrompida pela precoce morte do rei, em 1861 (Silva 2022). A essa época, D. Pedro V era o dono da joia, uma vez que também D. Estefânia havia já morrido, em julho de 1859, um ano depois de casar. Sucedeu no trono de Portugal D. Luís, que herdou do irmão não só a grande joia, como o que faltava do seu pagamento, valor saldado só em 1863, quando a Pinto & Sousa já se encontrava em processo de liquidação. O casamento de D. Luís foi apressado pela necessidade de garantir a sucessão, pelo que, logo em setembro de 1862, em Turim, se celebrou o consórcio com D. Maria Pia de Saboia (1847-1911) (Lopes 2013, 119). Nessa ocasião, a imprensa fez saber que o rei tinha oferecido uma tiara cuja descrição era decalcada daquela oferecida quatro anos antes pelo seu irmão a D. Estefânia (Teixeira 2020, 22). Décadas volvidas, já em república, os jornais lembravam ainda ser “aquele precioso diadema [...] mandado fazer por D. Pedro V para a rainha Estefânia, [que] foi mais tarde oferecido por D. Luís à sua noiva”.11

15Regressando aos relatos de imprensa coevos ao casamento de D. Luís, é interessante notar que o valor da oferta foi averbado em 20 milhões de réis, verba bem diferente dos 78,5 milhões cobrados pela joia em 1858. Ainda que o diadema presenteado tenha sido o mesmo, a discrepância no valor divulgado da oferta do noivo a D. Maria Pia é compreensível, uma vez que se reporta ao valor dos pagamentos então em falta e que, assumidos por D. Luís, seriam efetivamente pagos. O esquecimento deste pormenor tem, aliás, sido uma das causas da assunção equivocada, na historiografia recente (Marques 2009, 100 e 146; Lopes 2013, 48 e 128; Franco 2017), de que a tiara oferecida por D. Luís a D. Maria Pia era distinta daquela presenteada por D. Pedro V a D. Estefânia o que, como explicado, era do conhecimento público ainda no início do século XX.

  • 12 Gazzetta del Popolo de 28-09-1862, p. 5. Tradução do autor: “a jovem noiva trazia na cabeça uma ver (...)
  • 13 Il Subalpino de 27-09-1862, p. 382.
  • 14 Palácio Nacional da Ajuda, inv. 4088.
  • 15 A Revolução de Setembro de 13-09-1862, p. 2.
  • 16 Para a esmagadora maioria da população, esta seria a primeira oportunidade para observar a joia, nã (...)
  • 17 Vd. nota 27.

16Nas celebrações do casamento em Turim, a grande tiara dada por D. Luís foi usada por D. Maria Pia, tal como contam os jornais italianos: “la giovane sposa aveva in capo una vera corona reale, tutta splendente di diamanti, dono del Re di Portogallo, suo marito”.12 Outro jornal, Il Subalpino, relata que, na mesma ocasião, D. Maria Pia, além do “ricco diadema di diamanti”, envergava as ordens supremas de Portugal,13 ou seja, a banda e condecorações com que surge representada no busto que Santo Varni (1807-1885) executou, com toda a probabilidade, segundo o figurino dessa ocasião.14 O gesso preparatório para este busto em mármore, pertencente à Accademia Ligustica di Belle Arti, Génova, representa fielmente o perfil da joia realizada, em 1858, pela Pinto & Sousa, de que hoje se conserva a armação descravada (Teixeira 2020). Ainda pela imprensa portuguesa ficamos a saber que, antes de partir com a comitiva real para Itália, a tiara “esteve [...] em exposição na ourivesaria do Sr. Estêvão de Sousa, rua Bela da Rainha, 23 a 27”, ocasião em que foi esclarecido que “o artista que deu o desenho e dirigiu o trabalho foi o Sr. Mariano Arellano [tendo] a execução de tão aprimorada obra consumi[do] 50 dias de laborioso trabalho”.15 Como em seguida explicado, em 1862, a Pinto & Sousa encontrava-se em processo de liquidação, trabalhando então Estêvão de Sousa e Mariano Arellano de forma associada, sob o nome comercial de Estêvão de Sousa. É, por isso, natural que, para a afirmação da nova firma, a (re)apresentação da tiara16 tenha sido feita publicitando o nome de Arellano, assim elevado a artista principal da “Estêvão de Sousa - sucessor da Firma Pinto & Sousa”.17

2. Estêvão de Sousa: sucessor de Pinto & Sousa e ourives da casa real

  • 18 Raimundo Pinto trabalhava para a casa real, pelo menos, desde 1835 (Xavier 2022, 142).
  • 19 ADL, Registos Paroquiais, São Julião, Batismos 1812-1825, fl. 86. O assento de batismo de Estêvão s (...)
  • 20 Tendo em conta que casou 13 anos depois, em 1837, e que o irmão seguinte nasceu em 1817. Assento de (...)
  • 21 ADL, Registos Paroquiais, São Julião, Batismos 1812-1825, fl. 43v.
  • 22 ANTT, CR, cx. 4701 – Cópia da procuração de plenos poderes de Caetano Félix da Silva e Sousa para o (...)
  • 23 ADL, Registos Paroquiais, São Julião, Batismos 1812-1825, fl. 63.
  • 24 ADL, Registos Paroquiais, São Julião, Batismos 1844-1859, fl. 9.

17Como mencionado, colaborava quotidianamente na Pinto & Sousa o filho de Caetano, Estêvão de Sousa (1824-c.1881), que, desta forma, se iniciou no negócio com o pai e o seu sócio, Raimundo Pinto, fornecedores da família real desde que formaram sociedade.18 Estêvão era o filho mais novo de Caetano, tendo nascido a 25 de julho de 1824.19 À data do seu nascimento, a família contava já com outros descendentes, sendo a mais velha Maria Emiliana, que então deveria contar com cerca de 10 anos de idade;20 em 1817 nascera Caetano de Sousa (Jr.)21 que, através das ações do pai, sabemos que sofria de algum tipo de doença mental e cedo foi dado como incapaz;22 em 1821, nascera ainda José de Sousa, que não resistiu aos primeiros tempos de vida, vindo a morrer pouco depois de ser batizado.23 Tendo em conta estes acontecimentos familiares, a partir do seu nascimento, compreendemos que Estêvão foi encarado pelo pai como seu sucessor. Tal como Caetano, também Estêvão herdou o nome do seu padrinho que foi “Estêvão José Alves, casado, morador nesta freguesia [de São Julião, Lisboa]”.24 Iniciado ao ofício de ourives da prata, dele fez exame e registou marca (Almeida e Carlos 2018, 149-150, L-248 e L-249), parecendo ter demonstrado especial habilidade para o cinzel, como testemunham algumas das poucas peças marcadas com o seu punção que chegaram aos nossos dias.

  • 25 ANTT, CR, cx. 4701, cópia da procuração (...), fls. 1 a 2v.
  • 26 ANTT, CR, cx. 4701, recibo de pagamento da oitava prestação da tiara, de 5-10-1863.

18Em 1859, meses depois da venda da tiara de D. Estefânia, morreu inesperadamente Raimundo Pinto, deixando a sociedade sem um dos seus sócios. Caetano de Sousa contava então 74 anos e a sua saúde poderia já não ser a melhor, uma vez que três anos depois o encontramos doente e sem capacidade para gerir pessoalmente a liquidação da firma, decidida “por ocasião da morte de seu falecido sócio, Raimundo José Pinto, cuja sociedade girou debaixo da firma Pinto & Sousa”. Desta forma, entre 1859 e 1862, Estêvão de Sousa esteve à frente da liquidação dos ativos da Pinto & Sousa com os herdeiros de Raimundo Pinto, de que era cabeça de casal a viúva, Balbina dos Reis Pinto (Xavier 2022, 155-158). À data da dissolução, um dos maiores ativos da sociedade seria a “a dívida da casa real, no nome de Sua Majestade el-rei o senhor Dom Pedro quinto” que, como atrás referido, montaria a cerca de 20 milhões de réis. Sublinhando a importância deste ativo nas ações de extinção da sociedade, está o facto de que o último ato do processo de liquidação foi, precisamente, a entrega de metade do valor da última prestação à viúva de Raimundo Pinto, tendo a outra metade revertido a favor de Caetano Félix da Silva e Sousa, então com 78 anos.25 A oitava e última prestação da tiara, 8 489 330 réis, foi paga por D. Luís a 5 de outubro de 1863, um ano depois de D. Maria Pia, a nova dona da opulenta joia, ter aportado em Lisboa como rainha de Portugal.26

  • 27 Legenda utilizada nos cabeçalhos das faturas de Estevão de Sousa nos primeiros anos de atividade – (...)
  • 28 Agradeço a generosidade de Lourenço Correia de Matos pela partilha desta informação por si recolhid (...)
  • 29 Ibidem, mç. 18, nº 13528 e seguinte.
  • 30 Há alguns anos, Henrique Correia Braga, perito-avaliador de renome na praça de Lisboa, identificou (...)

19Com o encerramento da Pinto & Sousa, Estêvão estabeleceu-se por conta e em nome próprio, dando assim continuidade ao negócio cujo saber-fazer, contactos e segredos herdara da sociedade do pai e de Raimundo Pinto, bem como dos anos em que nela tinha colaborado ativamente. Entre os clientes herdados como “sucessor da firma Pinto & Sousa”27 encontrava-se a casa real, ativo reputacional que Estêvão não perdeu tempo a utilizar, tendo requerido a distinção do “título de ourives da real casa e [de] poder colocar no frontispício do seu estabelecimento as armas reais portuguesas”, graça que recebeu uma semana depois do pedido, a 14 de outubro de 1861.28 Tal como o pai, Estêvão de Sousa era ourives da prata e, talvez também por essa razão, para comercializar e criar, sob o nome da sua firma, obras de ouro e joalharia, carecia de um sócio ourives do ouro. Segundo as palavras de Mariano Arellano, sabemos que, já antes de 1868, era “ourives em Lisboa, associado com o Sr. Estêvão de Sousa”,29 assim descobrindo que o espanhol não só transitou da Pinto & Sousa para a nova firma de Estêvão como a ele se associou comercialmente, tendo certamente continuado a ser responsável pela execução das mais importantes joias. Neste contexto, existe uma marca de Lisboa, para obras de prata, registada com os apelidos de Estêvão de Sousa e Mariano Arellano (Almeida e Carlos 2018, 207, L-595) que, atendendo às marcas de ensaiador pelas quais surge usualmente acompanhado, se pode concluir ter estado em atividade até cerca de 1881, o que está em sintonia com a restante documentação sobre a atividade de Estêvão, que aponta para a sua morte em 1881 e cujo sucessor comercial foi o sobrinho, Caetano Maria de Oliveira Belo (c.1840-1923), filho de Maria Emiliana, irmã mais velha de Estêvão (Figura 1).30

Figura 1. Diagrama societário e genealógico das firmas Pinto & Sousa, Estêvão de Sousa, Sousa & Arellano e Bello & C.ª

Figura 1. Diagrama societário e genealógico das firmas Pinto & Sousa, Estêvão de Sousa, Sousa & Arellano e Bello & C.ª

3. O adereço de estrelas

  • 31 Além de Teixeira (2023), o tema da venda do fundo diamantífero será aprofundado na nossa tese de do (...)

20Em 1863, D. Luís ordenou a segunda grande venda de diamantes da coroa, depois do seu irmão, D. Pedro V, ter determinado a primeira em 1859 (Teixeira 2023). Não sendo os contornos desta liquidação o tema deste artigo, interessa reter que, nessa altura, D. Luís procurou precaver o futuro do fundo diamantífero da coroa que, a ritmo acelerado, se extinguia. A sequência de escolha dos lotes a vender foi sábia, sendo primeiro liquidados os diamantes de menor dimensão, menos raros. Até à venda seguinte, em 1876, a saída de pedras do cofre dos diamantes lapidados foi feita com cautela, até porque estes tinham potencial de aplicação ao real serviço, uma vez que a função da joalharia na representação dos soberanos continuava a ser central.31 De facto, durante a segunda metade do século XIX, em praticamente todas as monarquias do globo, a necessidade de execução de joias opulentas foi crescente, uma vez que a sua utilização era indispensável à representação dos soberanos em majestade. Reforçou esta necessidade a massificação da fotografia, que não mentia sobre a sumptuosidade das joias envergadas e, neste campo, substituiu a pintura no jogo diplomático. As imagens fotográficas dos monarcas em momentos de solenidade e, por isso, adornados de joias, eram escrutinadas com particular cuidado quanto à riqueza material e atualização estética dos adereços exibidos. Para mais, sendo a captação fotográfica imediata e muito mais frequente que a do retrato pintado, esta realidade aumentou a necessidade de diversidade nas joias à disposição das soberanas, uma vez que a regularidade com que a sua imagem era registada e divulgada nos círculos políticos, diplomáticos e da opinião pública cresceu exponencialmente.

  • 32 Arquivo do Palácio Nacional da Ajuda (APNA), Inventário de 1844, fl. 39.

21Recém-casado e com estas preocupações nas entrelinhas das decisões tomadas, D. Luís parece ter usado a ocasião da venda de 1863 como pretexto para apresentar as joias e os diamantes da coroa à sua usufrutuária: a sua mulher e rainha de Portugal, D. Maria Pia. Assim, na mesma altura em que se escolheram os lotes a vender, foram também selecionadas joias antigas e reservadas parcelas de diamantes soltos para a criação de novos e modernos adereços (Teixeira e Maranhas 2020, 98-100; Maranhas 2023b; Teixeira 2023). Foi neste contexto de reformulação das joias da coroa, espoletado pela venda de diamantes de 1863, que o adereço de estrelas terá começado a ganhar forma. Estêvão de Sousa foi a escolha óbvia, até porque, imediatamente antes de dar início aos trabalhos de criação da parure de estrelas, tinha entregado uma outra, igualmente opulenta, realizada a partir do desmanche do grande laço de esmeraldas de D. Maria Bárbara de Bragança (1711-1758) (Sousa 2023; Maranhas 2023a), que Estêvão conseguiu ter pronta para ser “depositad[a] nas reais mãos de Sua Majestade el-rei, o senhor Dom Luís 1º, em 24 de dezembro de 1863”,32 ou seja, a tempo da celebração do Natal desse ano.

  • 33 APNA, Inventário de 1844, fl. 39v. Como citado, os 10 diamantes pequenos que enriqueciam os brincos (...)
  • 34 Ibidem, fl. 39v.

22Consequentemente, de 1864 a 1866, esteve a oficina de Estêvão de Sousa, certamente pela mão de Mariano Arellano, ocupada com a criação das seis peças que compunham o adereço na sua forma original e que, como em seguida veremos, somava 69 estrelas cravejadas com 1110 diamantes em talhe de brilhante, num total ligeiramente superior a 515 quilates. A primeira peça entregue, a 20 de fevereiro de 1865 – esperava então D. Maria Pia o seu segundo filho, o infante D. Afonso (1865-1920), que viria a nascer a 31 de julho –, foi o “par de brincos formados de duas estrelas montadas em ouro com vinte [e] dois brilhantes pesando vinte e dois quilates, três grãos, um oitavo e um dezasseis-avos, e mais dez brilhantes miúdos que foram incluídos no feitio”.33 Cinco dias depois, a 25 de fevereiro, foram entregues duas das principais joias do novo adereço, de que a mais relevante era “um devant-corsage composto de dezanove estrelas de diferentes tamanhos, montadas em ouro, com trezentos e sessenta e nove brilhantes, pesando cento e noventa e quatro quilates e um oitavo”. Ou seja, tratava-se de um conjunto de 19 estrelas que poderiam ser posicionadas livremente no vestido, idealmente na frente do corpete, mas nada obstando a outras utilizações. Entregue em conjunto com esta versátil constelação estava “um pente formado de cinco estrelas montadas em ouro, com oitenta brilhantes pesando trinta e cinco quilates e três grãos”. Menos de sete meses depois, a 14 de setembro de 1865, a oficina de Estêvão de Sousa entregava no paço mais uma joia do conjunto: “um colar formado de dezoito estrelas e fecho, montadas em ouro, com duzentos e quatro brilhantes, pesando cento e oitenta quilates e um dezasseis-avos”.34

  • 35 Ibidem, fl. 39v.
  • 36 ANTT, CR, cx. 7333, [Conta do que] SM [...] D. Luís, comprou a Estêvão de Sousa [em] 1866, fl. 1.
  • 37 Ibidem, fl. 2.

23Para completar o adereço, foram ainda criadas duas pulseiras de modelo diferente, ao longo de 1866. A primeira, entregue a 22 de março de 1866, contava com menos estrelas mas diamantes maiores e, possivelmente, seguia o modelo de uma escrava larga onde estavam aplicadas “cinco estrelas montadas em ouro, com noventa e cinco brilhantes, pesando trinta e sete quilates, dois grãos, um dezasseis-avos e um trinta e dois-avos”. A outra pulseira, última peça deste adereço, entregue no paço a 26 de outubro de 1866, apresentava um muito sofisticado desenho formado por uma espiral maleável de ouro, com quatro voltas, onde cintilavam “vinte estrelas montadas em ouro, com trezentos e trinta brilhantes, pesando quarenta e cinco quilates, um oitavo, um dezasseis-avos e um trinta e dois-avos”.35 Sobre estas duas pulseiras sabemos quanto cobrou Estêvão pelos feitios, possivelmente incluindo o ouro, verbas lançadas nas despesas particulares de D. Luís com a casa de Estêvão de Sousa (Maranhas 2023b). Assim sendo, o feitio da pulseira com cinco estrelas custou 270 000 réis e foi lançado na folha de compras de D. Luís no mesmo dia em que a peça foi entregue.36 Já a pulseira em espiral importou em 540 000 réis, registados nas despesas do rei igualmente no dia da entrega da peça, denotando a verba o maior peso em ouro da obra, mas também a sua superior complexidade de execução.37 Esta última joia era o perfeito exemplo da conjugação entre a estética romântica e o seu desejo/admiração pelo progresso (Teixeira, no prelo).

  • 38 APNA – Inventário de 1844, fl. 50v.
  • 39 Ibidem, fls. 13v, 14, 50v e 55v.
  • 40 Ibidem, fls. 49v-55.
  • 41 46 682 625 réis (APNA, Inventário de 1844, fls. 39v e 55v. a 57).

24A seleção dos diamantes para a execução de todas as peças foi, muito possivelmente, feita em conjunto com Estevão de Sousa, tendo sido triada uma parcela de 119 diamantes soltos da coroa, com 215,36ct, cuja pedra maior pesava 12,13ct.38 Os restantes 981 brilhantes, pesando 300,41ct, foram descravados de três joias da coroa que então não tinham uso: 710, com 231,56ct, do diadema feito em 1834 para D. Maria II (Teixeira e Maranhas 2023); 211, com 43,41ct, do castão de bengala feito por volta de 1756 para D. José, entre os quais o diamante do topo que, pesando 18,06ct, foi escolhido para ficar ao centro da maior estrela do devant-corsage;39 e ainda mais 60 pequenos brilhantes, com 25,44ct, saídos de uma placa da Torre-Espada feita para D. João VI (1767-1826).40 No final, os diamantes aplicados em todas as peças do conjunto somavam, segundo os valores estipulados, em 1844, no inventário de “joias, baixelas e mais preciosidades da coroa”, um total de 46,7 milhões de réis,41 valor que não contempla nem o feitio das novas peças, nem o ouro nelas aplicado.

  • 42 Por esta altura, Arellano parece ter procurado ver o seu trabalho sair da sombra dos Sousas, tendo (...)

25Sabendo que esta era a composição original do adereço de estrelas à data da última entrega de peças, levanta-se a questão sobre a origem do célebre diadema que fez, e faz, parte deste conjunto. Como já de seguida veremos, a resposta a esta pergunta surge dois anos depois de completado o conjunto, em 1868, mas a sua compreensão requer do leitor contemporâneo o conhecimento de que, durante todo o século XIX, as joias mais opulentas, sobretudo as de grande dimensão e compostas por vários elementos, eram concebidas de forma a serem transformáveis. Excelente exemplo desta realidade é, precisamente, a parure agora em estudo, em que todas as estrelas de maior dimensão eram destacáveis por meio de parafusos que as fixavam às armações, fossem estas simples alfinetes para prender à roupa, as bases das pulseiras e do colar ou, quando surgiram, das tiaras. Foi em março de 1868 que Estêvão de Sousa entregou a primeira estrutura de cabeça “para 11 estrelas”, na mesma altura em que D. Maria Pia encomendou outras armações “que corroboram [...] a utilização polivalente daquelas estrelas, para as quais foi concebida uma outra estrutura de [cabeça, com] suporte [...] ‘para uma estrela grande’” (Maranhas 2023b). Ou seja, em 1868 foram fornecidas duas armações: uma para onze estrelas e outra para uma só estrela central.42

  • 43 Em 2002, o castão de bengala de D. José foi roubado durante uma exposição no Museon de Haia, para a (...)

26Atendendo à constituição atual da tiara, a estrela central nela aplicada corresponde, em número e peso dos diamantes, à descrição da composição material da estrela maior que originalmente fazia parte do devant-corsage e onde, ao centro, foi aplicado o diamante proveniente do topo do castão de bengala de D. José, que aí ainda permanece.43 É, por isso, muito provável que as armações de tiara tenham sido pensadas para aplicação das estrelas maiores do devant-corsage. A certa altura, a armação da tiara para onze estrelas terá sido reduzida para apenas nove (Figura 2a), tendo assim permanecido até 1889, quando passou a uso de D. Amélia (Maranhas 2023). Não obstante, em 1881, D. Maria Pia decidiu aumentar a altura da peça, acrescentando-lhe um segundo aro na base e criando um espaço onde podia ser aplicado “um fio de brilhantes” (Maranhas 2023b), forma como surge envergada, por diversas vezes, por D. Amélia (Figura 2b). A peça terá permanecido inalterada até 1907/08, quando D. Amélia, possivelmente com o intuito de assim a envergar na planeada visita de 1908 ao Brasil, ordenou o acrescento de 16 estrelas, entre as nove maiores já existentes, retiradas das outras peças do adereço (Teixeira e Maranhas 2020, 99-100; Maranhas 2023b) (Figura 2c). À exceção da fiada de diamantes na base, retirada por ocasião do restauro da década de 1940, a tiara permanece inalterada desde o acrescento ordenado por D. Amélia. Atendendo ao regicídio de 1908, é possível que o diadema nunca tenha sido utilizado por esta rainha e, consequentemente, por qualquer outra, na sua nova e mais opulenta composição.

Figura 2. Fotomontagem representando a evolução da tiara de estrelas

Figura 2. Fotomontagem representando a evolução da tiara de estrelas

4. Um desfecho em república

  • 44 Além de Maranhas (2023a), o tema dos restauros da década de 1940 é abordado num artigo a publicar n (...)
  • 45 O reaproveitamento de gemas de joias preexistentes é uma prática ancestral que foi também comum na (...)

27Não sendo o tema central deste artigo,44 é essencial para a compreensão da materialidade das peças hoje sobreviventes do adereço de estrelasperceber que, durante a década de 1940 e ainda nos primeiros anos de 1950, as joias p rovenientes dos bens da coroa, agora propriedade do estado português republicano, sofreram um profundo processo de restauro cuja premissa principal foi a de reconstruir as joias mais antigas, do século XVIII, em detrimento das mais recentes (Maranhas 2023a; Teixeira, no prelo). Tal foi possível porque, entre o acervo de joalharia da coroa, permaneciam as armações descravadas das joias de onde tinham sido retiradas gemas ao longo do reinado de D. Luís, entre as quais o adereço de estrelas.45 Neste contexto, na década de 1940, existiam ainda 68 das 69 estrelas da encomenda original, sendo que aquela em falta era uma das mais pequenas do colar.

  • 46 APNA, 1º relatório de José Rosas Jr. sobre o restauro das joias da coroa.
  • 47 A armação do colar conta com numeração gravada nas fixações das estrelas, que igualmente estão nume (...)

28Depois de décadas de constantes transformações, a disposição das estrelas cristalizara-se em 1910, após a implantação da república e perda da função de adorno das figuras régias. Desta forma, quando foi dado início aos trabalhos de restauro, as estrelas distribuíam-se da seguinte forma: 25 na tiara, 15 na pulseira em espiral, três aplicadas em ganchos de cabelo, 18 estavam soltas para aplicar diretamente na roupa, e a armação do colar continha sete das oito estrelas pequeninas, que eram fixas.46 Entre todas as peças, foi então decidido recuperar apenas o colar e a tiara, descravando todas as outras. No caso do diadema, além do conserto de quebras e fissuras na armação, foi retirada a fiada de brilhantes da base, de resto permanecendo a joia com a configuração de 1907 (Teixeira e Maranhas 2020, 99-100; Maranhas 2023a; Teixeira, no prelo). Já no caso do colar, foram restauradas as falhas na malha, reposta a pequena estrela em falta e escolhidas nove estrelas de tamanhos decrescentes, entre as que estavam soltas, para preencher o lugar das que originalmente ali estavam.47

  • 48 APNA, 1º relatório de José Rosas Jr. sobre o restauro das joias da coroa, verba 16.971-12, fl. 2.

29Todas as restantes 26 estrelas, bem como a armação da pulseira em espiral, foram descravadas e os seus diamantes aplicados no restauro de outras peças. Infelizmente, o ourives que dirigiu este processo, José Rosas Jr. (1885-1958), não teve a sensibilidade de conservar as armações das peças que descravou, tendo procedido à “venda de dois brilhantes de fraca qualidade e do ouro pertencente às cravações das joias inutilizadas” (Maranhas 2023a), ação em direta oposição com o que havia sido feito no tempo de D. Luís e D. Maria Pia e que, paradoxalmente, foi crucial para permitir a Rosas Jr. dirigir a reconstrução de várias joias do século XVIII. À distância de oito décadas, não deixa de ser singular a leitura das justificações então apresentadas para a destruição de algumas joias em detrimento de outras, como a pulseira em espiral, sobre a qual o ourives expôs o seu julgamento: “esta joia, sem qualquer interesse artístico, foi desprovida dos brilhantes, que se utilizaram em diversos restauros”,48 tendo assim acabado a sua armação derretida, em conjunto com todas as restantes descravadas nesta campanha de restauro.

5. Conclusão

30Estêvão de Sousa é, na literatura sobre a história da joalharia real portuguesa, o mais célebre joalheiro português dos primeiros anos do liberalismo. Recorrentemente citado e celebrado pela criação do adereço de estrelas de diamantes da coroa, paradoxalmente, Estêvão pouco mais tem sido que o nome associado às peças ainda existentes dessa parure. Fica claro, desta investigação, como o contexto comercial e familiar de Estêvão de Sousa foi mais complexo do que, à partida, se poderia supor, exemplificando a intrincada realidade da elite comercial da capital nos segundo e terceiro quartéis do século XIX, contexto onde o patronato da casa real representava uma mais-valia ímpar. Paralelamente, também o percurso do adereço de estrelas não é uma história simples, tendo, por isso mesmo, induzido em erro vários investigadores, sobretudo na datação da armação de diadema ainda hoje existente. Ao ser composto por dezenas de estrelas desmontáveis e de utilização muito versátil, ao longo dos anos, D. Maria Pia pôde encomendar armações alternativas, mais ou menos efémeras, para as aplicar. Foi isso que aconteceu em 1868, quando foram entregues duas armações para diademas: uma para 11 estrelas e outra para apenas uma, ao jeito de aigrette. A forma como está hoje montada a tiara de estrelas é, pois, a versão, sucessivamente alterada até à década de 1940, da armação de diadema para 11 estrelas entregue em 1868. Não obstante tratar-se de um adereço com diamantes da coroa, D. Luís pagou do seu bolso particular as despesas de criação destas joias para uso da sua mulher, pelo que pôs à disposição de D. Maria Pia o seu ourives mais profícuo.

31Estêvão de Sousa foi o delfim e sucessor da sociedade comercial que o seu pai, Caetano Félix de Sousa, estabeleceu, por volta de 1839, com Raimundo José Pinto: a Pinto & Sousa, irrivalizável fornecedora de ourivesaria da família real até ser liquidada, em 1859. Ao longo deste artigo explica-se como Estêvão herdou, da Pinto & Sousa, não só o saber-fazer, como os clientes, entre os quais a casa real. Esclarece-se ainda como, igualmente e de forma crucial para a continuação de um trabalho de excelência, Estêvão soube manter perto de si mestres que trabalharam antes para a firma do seu pai. Entre estes encontrava-se Mariano Arellano que, tendo sido responsável pelo desenho e execução da tiara nupcial de D. Estefânia, em 1858, depois se associou a Estêvão quando este se estabeleceu em nome próprio. Sousa e Arellano foram, assim, responsáveis pela idealização do adereço de estrelas, em conjunto com D. Maria Pia.

Topo da página

Bibliografia

Almeida, Fernando Moitinho de; Carlos, Rita (2018). Inventário de marcas de pratas portuguesas e brasileiras, séc. XV a 1887. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

Antunes, Vanessa; Fernandes, Fátima (2019). “Caridade evangélica e o reinado de D. Maria II: as ocorrências inéditas com os bens preciosos do Palácio de Runa”, in C. M. Soares e M. Malta (ed), D. Maria II, princesa do Brasil, rainha de Portugal: arte, património e identidade. Lisboa: Artis – IHA FLUL, pp. 136-146.

Franco, Anísio (2017). Lisboa desconhecida & insólita: histórias que (provavelmente) nunca ouviu. Porto: Porto Editora.

Gere, Charlotte; Rudoe, Judy (2010). Jewellery in the Age of Queen Victoria: A Mirror to the World. London: The British Museum Press.

Gomes, Dulce R. das Neves (2020). O retrato de uma rainha: a construção da imagem de D. Maria Pia de Sabóia (1847-1911). Coimbra: Universidade de Coimbra (dissertação de mestrado).

Guedes, Rui; Silva, Nuno Vassalo e (1995). Joalharia portuguesa. Lisboa: Bertrand Editora.

Lopes, Maria Antónia (2013). Rainhas que o povo amou. Lisboa: Temas e Debates.

Maranhas, Teresa (2023a). “Campanha de restauro das joias do Tesouro Real no Século XX”, in Catálogo do Museu do Tesouro Real do Palácio Nacional da Ajuda. Lisboa: Imprensa Nacional, pp. 82-85.

Maranhas, Teresa (2023b). “Diadema e Colar de Estrelas”, in Catálogo do Museu Tesouro Real do Palácio Nacional da Ajuda. Lisboa: Imprensa Nacional, pp. 100-103.

Marques, Eduardo Alves (2009). Se as jóias falassem. Lisboa: Esfera dos Livros.

Matos, Lourenço Correia de (2009). Os fornecedores da Casa Real (1821-1910). Lisboa: Dislivro Histórica.

Meylan, Vincent (2013). Mellerio dits Meller: joaillier des reines. Paris: Éditions Télémaque.

Páscoa, Marta Cristina (2019). “D. Maria II e a Casa de Bragança: reestruturação administrativa e encontro de contas”, in C. M. Soares e M. Malta (ed), D. Maria II, princesa do Brasil, rainha de Portugal: arte, património e identidade. Lisboa: Artis – IHA FLUL, pp. 121-128.

Reis, Jaime (1996). O Banco de Portugal, das origens a 1914, vol. 1. Lisboa: Banco de Portugal.

Ribeiro, José Alberto (coord) (2023). Catálogo do Museu Tesouro Real do Palácio Nacional da Ajuda. Lisboa: Imprensa Nacional.

Santana, Francisco (1978). Documentos do cartório da Junta do Comércio respeitantes a Lisboa, vol. II (1804-1833). Lisboa: Câmara Municipal de Lisboa.

Scarisbrick, Diana; Vachaudez, Christophe; Walgrave, Jan (coord.) (2007). Parures du pouvoir: joyaux des cours européennes. Bruxelles: ING/Fonds Mercator.

Silva, Isabel Corrêa da (2022). “Virtudes do corpo e da alma: um itinerário crítico pela memória de D. Pedro V”. Ler História, 81, pp. 185-206.

Sousa, Gonçalo de Vasconcelos e (2023). “Guarnição de corpete”, in Catálogo do Museu Tesouro Real do Palácio Nacional da Ajuda. Lisboa: Imprensa Nacional, p. 91.

Teixeira, João Júlio Rumsey (2020). Uma tiara com 4000 diamantes: história e paradeiro da tiara de D. Estefânia, reconvertida por D. Maria Pia e vendida após a implantação da República. 1858-1912. Lisboa: Palácio Nacional da Ajuda e autor.

Teixeira, João Júlio Rumsey (2023). “Diamantes da coroa portuguesa: da reserva de segredo às Estrelas de D. Maria Pia”, in Catálogo do Museu Tesouro Real do Palácio Nacional da Ajuda. Lisboa: Imprensa Nacional, pp. 40-45.

Teixeira, João Júlio Rumsey (no prelo). “O cunho ideológico do Estado Novo no restauro das joias da coroa portuguesa: 1941-1954”. Conservar Património.

Teixeira, João Júlio Rumsey; Maranhas, Teresa (2020). “Os diamantes são para sempre, as joias não: descravações e reconversões de joias da família real no séc. XIX”, in M. J. Neto e M. Malta (ed), Coleções de arte em Portugal e Brasil nos séculos XIX e XX. Lisboa: Caleidoscópio, pp. 95-113.

Teixeira, João Júlio Rumsey; Maranhas, Teresa (2023). “Joias do Tesouro do Palácio Nacional da Ajuda”, in Catálogo do Museu Tesouro Real do Palácio Nacional da Ajuda. Lisboa: Imprensa Nacional, pp. 74-81.

Xavier, Hugo (2022). “Propriedade minha”: ourivesaria, marfins e esmaltes da coleção de D. Fernando II. Lisboa: PSML/MBCB, série “Coleções em Foco”, nº 4. https://www.parquesdesintra.pt/media/b3ypxvgi/pnpena-ebook-n4-pt_low-res_23mb.pdf.

Xavier, Hugo et al. (2023). “Apresentação do Comissariado do Museu do Tesouro Real”, in Catálogo do Museu Tesouro Real do Palácio Nacional da Ajuda. Lisboa: Imprensa Nacional, pp. 24-29.

Topo da página

Notas

1 Carta de lei de 16-07-1855. Disponível em: https://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/30/108/p213.

2 Entre as mais célebres encomendas de adereços com estrelas feitas por casas reais europeias contam-se, por exemplo: em 1856, para a imperatriz Eugénia de França (Meylan 2013, 214); em 1862, para a imperatriz Isabel da Áustria (1837-1898) (Scarisbrick, Vachaudez e Walgrave 2007, 250); em 1863, para a princesa de Gales, Alexandra (1844-1925) (Gere e Rudoe 2010, 108); ou, em 1875, para a rainha Isabel II de Espanha (1830-1904) (Meylan 2013, 187).

3 De forma resumida, a separação de poderes implicou a perda de poder do rei sobre a fazenda pública e também o fim das prerrogativas de sangue, das tenças régias e das rendas das comendas, que constituíam fontes de receita da aristocracia, da família real e de várias instituições por estas apadrinhadas. Vejam-se, por exemplo, os casos de reestruturação financeira do morgado da Casa Bragança e do Asilo de Runa depois de 1834 (Antunes e Fernandes 2019; Páscoa 2019).

4 Arquivo Distrital de Lisboa (ADL), Registos Paroquiais, Pena, Batismos 1785-1796, fl. 3v.

5 ADL, Registos Paroquiais, Pena, Óbitos 1780-1807, fl. 106.

6 ADL, Registos Paroquiais, Pena, Casamentos 1794-1825, fl. 187.

7 Por exemplo, Palácio Nacional de Sintra, inv. PNS6006.

8 Decreto 13-A, de 12-11-1831. Disponível em: https://legislacaoregia.parlamento.pt/V/1/13/64/p16.

9  Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT), Casa Real (CR), caixa (cx.) 4701, recibo de pagamento da oitava prestação da tiara, de 5-10-1863.

10 Agradeço a generosidade de Lourenço Correia de Matos pela partilha desta informação por si recolhida no ANTT, Mordomia-Mor da Casa Real, mç. 18, nº 13528 e seguinte (vd. igualmente Matos 2009, 77).

11 A Lucta de 27-07-1912, p. 2.

12 Gazzetta del Popolo de 28-09-1862, p. 5. Tradução do autor: “a jovem noiva trazia na cabeça uma verdadeira coroa real, resplandecente de diamantes, presente do rei de Portugal, seu marido.”

13 Il Subalpino de 27-09-1862, p. 382.

14 Palácio Nacional da Ajuda, inv. 4088.

15 A Revolução de Setembro de 13-09-1862, p. 2.

16 Para a esmagadora maioria da população, esta seria a primeira oportunidade para observar a joia, não só porque, por ocasião do casamento de D. Pedro V e D. Estefânia, não encontrámos notícia da mesma ter sido publicamente exposta, como também porque, nas pontuais ocasiões em que D. Estefânia a terá envergado, apenas a elite cortesã teve oportunidade de a ver de perto.

17 Vd. nota 27.

18 Raimundo Pinto trabalhava para a casa real, pelo menos, desde 1835 (Xavier 2022, 142).

19 ADL, Registos Paroquiais, São Julião, Batismos 1812-1825, fl. 86. O assento de batismo de Estêvão surge copiado no livro de batismos de 1844-1859, com pequenos acrescentos nos nomes: ADL, Registos Paroquiais, São Julião, Batismos 1844-1859, fls. 8v. e 9.

20 Tendo em conta que casou 13 anos depois, em 1837, e que o irmão seguinte nasceu em 1817. Assento de casamento de Maria Emiliana: ADL, Registos Paroquiais, São Julião, Casamentos 1831-1867, fl. 36v.

21 ADL, Registos Paroquiais, São Julião, Batismos 1812-1825, fl. 43v.

22 ANTT, CR, cx. 4701 – Cópia da procuração de plenos poderes de Caetano Félix da Silva e Sousa para o seu filho Estêvão de Sousa, outorgada a 27-08-1862, fl. 2v., onde se lê “[...] na qualidade de tutor de seu filho demente, Caetano de Sousa [...]”.

23 ADL, Registos Paroquiais, São Julião, Batismos 1812-1825, fl. 63.

24 ADL, Registos Paroquiais, São Julião, Batismos 1844-1859, fl. 9.

25 ANTT, CR, cx. 4701, cópia da procuração (...), fls. 1 a 2v.

26 ANTT, CR, cx. 4701, recibo de pagamento da oitava prestação da tiara, de 5-10-1863.

27 Legenda utilizada nos cabeçalhos das faturas de Estevão de Sousa nos primeiros anos de atividade – por exemplo, vd. Matos (2009, 77, fig. 64).

28 Agradeço a generosidade de Lourenço Correia de Matos pela partilha desta informação por si recolhida no ANTT, Mordomia-Mor da Casa Real, mç. 15, nº 10641 e seguinte. Vd. igualmente Matos (2009, 77 e 162).

29 Ibidem, mç. 18, nº 13528 e seguinte.

30 Há alguns anos, Henrique Correia Braga, perito-avaliador de renome na praça de Lisboa, identificou e divulgou, entre os seus pares, a marca Sousa & Arellano como pertencente a Estêvão de Sousa e Mariano Arellano, ainda que a mesma esteja por atribuir em Almeida e Carlos (2018, 207, L-595). Devo um agradecimento especial ao Henrique e à sua generosa partilha do manancial de informação que conserva na memória e no seu arquivo.

31 Além de Teixeira (2023), o tema da venda do fundo diamantífero será aprofundado na nossa tese de doutoramento, bem como num artigo a publicar em breve, atualmente em fase de revisão.

32 Arquivo do Palácio Nacional da Ajuda (APNA), Inventário de 1844, fl. 39.

33 APNA, Inventário de 1844, fl. 39v. Como citado, os 10 diamantes pequenos que enriqueciam os brincos não saíram dos da coroa, mas foram fornecidos por Estêvão, tendo o seu valor sido cobrado em conjunto com o feitio da joia.

34 Ibidem, fl. 39v.

35 Ibidem, fl. 39v.

36 ANTT, CR, cx. 7333, [Conta do que] SM [...] D. Luís, comprou a Estêvão de Sousa [em] 1866, fl. 1.

37 Ibidem, fl. 2.

38 APNA – Inventário de 1844, fl. 50v.

39 Ibidem, fls. 13v, 14, 50v e 55v.

40 Ibidem, fls. 49v-55.

41 46 682 625 réis (APNA, Inventário de 1844, fls. 39v e 55v. a 57).

42 Por esta altura, Arellano parece ter procurado ver o seu trabalho sair da sombra dos Sousas, tendo para isso requerido a mesma distinção de ser reconhecido como ourives da casa real, tal como Estêvão havia feito em 1861 (agradeço a generosidade de Lourenço Correia de Matos pela partilha desta informação recolhida no ANTT, Mordomia-Mor da Casa Real, mç. 18, nº 13528).

43 Em 2002, o castão de bengala de D. José foi roubado durante uma exposição no Museon de Haia, para a qual havia sido emprestado pelo Palácio Nacional da Ajuda. A identificação do diamante central que originalmente o decorava tem, por isso, um significado especial na lembrança material dessa peça, hoje perdida.

44 Além de Maranhas (2023a), o tema dos restauros da década de 1940 é abordado num artigo a publicar na revista Conservar Património (Teixeira, no prelo).

45 O reaproveitamento de gemas de joias preexistentes é uma prática ancestral que foi também comum na casa real portuguesa (Teixeira e Maranhas 2020). Contudo, ao contrário dos seus antecessores, no caso das joias descravadas por ordem de D. Luís e D. Maria Pia, foram conservadas as estruturas das peças desmontadas.

46 APNA, 1º relatório de José Rosas Jr. sobre o restauro das joias da coroa.

47 A armação do colar conta com numeração gravada nas fixações das estrelas, que igualmente estão numeradas. Observando a correspondência daquelas hoje aplicadas no colar, constata-se que várias foram colocadas em lugares distintos dos originais. Tal aconteceu porque a estrela central era originalmente maior, mas foi desfeita no processo de restauro. Assim, as estrelas atuais estão aplicadas em lugares onde, na versão original, estavam estrelas maiores.

48 APNA, 1º relatório de José Rosas Jr. sobre o restauro das joias da coroa, verba 16.971-12, fl. 2.

Topo da página

Índice das ilustrações

Título Figura 1. Diagrama societário e genealógico das firmas Pinto & Sousa, Estêvão de Sousa, Sousa & Arellano e Bello & C.ª
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/docannexe/image/12726/img-1.jpg
Ficheiros image/jpeg, 176k
Título Figura 2. Fotomontagem representando a evolução da tiara de estrelas
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/docannexe/image/12726/img-2.jpg
Ficheiros image/jpeg, 2,4M
Topo da página

Para citar este artigo

Referência do documento impresso

João Júlio Rumsey Teixeira, «Os joalheiros reais do liberalismo e as estrelas de diamantes da coroa portuguesa»Ler História, 83 | 2023, 21-42.

Referência eletrónica

João Júlio Rumsey Teixeira, «Os joalheiros reais do liberalismo e as estrelas de diamantes da coroa portuguesa»Ler História [Online], 83 | 2023, posto online no dia 29 novembro 2023, consultado no dia 21 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/12726; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.12726

Topo da página

Autor

João Júlio Rumsey Teixeira

IHA/NOVA FCSH/IN2PAST, Portugal

joaoteixeira@fcsh.unl.pt

Topo da página

Direitos de autor

CC-BY-NC-4.0

Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.

Topo da página
Pesquisar OpenEdition Search

Você sera redirecionado para OpenEdition Search