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Recensões

Filipa de Castro Guerreiro, Colónias Agrícolas: a arquitectura entre o doméstico e o território, 1936-1960. Lisboa: Dafne Editora, 2022, 297 pp. ISBN 9789898217578

Frederico Ágoas

Texto integral

1Apresentado em 2016 como tese de doutoramento, o trabalho Colónias Agrícolas Portuguesas da Junta de Colonização Interna, de Filipa de Castro Guerreiro, é agora publicado pela Dafne Editora, devidamente revisto e aparado, em edição requintada. Importa salientá-lo porque, para além de outros méritos, a obra em apreço começa por oferecer um roteiro visual das concretizações da política de colonização interna por intermédio da reprodução das plantas e alçados dos casais agrícolas e dos assentamentos construídos, e ainda por via da selecção de fotografias das colónias e do quotidiano (largamente idealizado) dos seus ocupantes. Para os menos familiarizados com esta matéria, trata-se de uma conveniente via de acesso à natureza destes projectos e ao imaginário político a eles associado.

2De forma mais geral, Colónias Agrícolas constitui também uma sinopse introdutória das ambições tecnocráticas do Estado Novo de fixar a população e uniformizar o território, emparcelando a norte e parcelando a sul. Com efeito, o livro começa por conduzir-nos dos antecedentes remotos das ideias colonizadoras, associados à percepção da existência de grandes áreas por cultivar, até ao reconhecimento do fracasso do programa colonizador, na década de 1950, passando por uma experiência colonizadora no final da I República, em Milagres (Leiria), e pela criação da Junta de Colonização Interna (JCI), em 1936. Esta tomará então conta de um outro projecto de colonização em curso, no Sabugal, e levará para o terreno uma bateria de estudos para a construção de mais cinco colónias agrícolas, em Pegões, na Gafanha, no Barroso, no Alvão e na Boalhosa. Tal ímpeto daria origem, afinal, a pouco mais de 500 casais, bem aquém da expectativa de constituir algumas dezenas de milhares.

  • 1 Maria Elisa Lopes da Silva, Estado, Território, População: As Ideias, as Políticas e as Técnicas de(...)

3Vale a pena sublinhar a capacidade de síntese com que a autora, na primeira das três partes do livro, aborda a bibliografia e a documentação disponíveis acerca da colonização interna (embora ainda não incorpore o mais recente trabalho sobre o tema)1 e a forma como aí integra a sua própria investigação, centrada na arquitectura dos sete colonatos realmente construídos – à escala da casa, da respectiva parcela de terreno, do assentamento e do território envolvente. O essencial dessa investigação tem depois tradução aturada na segunda parte do livro, onde se destrinçam quatro momentos na prática arquitectónica da JCI. Esta ficaria marcada pelo estabelecimento de uma metodologia para a edificação das colónias, pensadas como assentamentos de lavoura autónomos e exemplares (1936-1942); pela valorização do lar de família e pela inscrição do edificado no seu entorno natural (1942-1946); pela racionalização do casal agrícola e pela demarcação urbanística e simbólica do território (1946-1954); e, enfim, por intervenções localizadas de cariz comunitário e pelo desenho da paisagem (1954-1960). A terminar, na terceira parte da obra, seguem-se algumas reflexões acerca da conexão destas práticas com debates de âmbito geográfico, urbanístico e arquitectónico, vigentes à época, e uma nota prospectiva acerca da necessidade de estudar a relação da colonização interna com a construção de colonatos em Moçambique e Angola.

4Importa destacar o contributo que este trabalho representa para a história da colonização interna. Embora abordada, desde há muito, a pretexto de debates em torno da questão agrária ou da ideologia do salazarismo, e estudada de múltiplas perspectivas, não fora ainda verdadeiramente tratada sob o prisma do edificado e da intervenção na paisagem. Trata-se da face mais visível da colonização interna, entre outras estratégias mais discretas de que essa política se revestiu, como a atribuição de glebas sem casa ou intervenções pontuais no espaço rústico. Mas trata-se, também, a par das pesquisas referidas ou da assistência técnica à lavoura, de um dos eixos da acção do estado, neste âmbito, que extravasa o que foi construído. O estudo da arquitectura permite acompanhar o processo conturbado que levou, em cada caso, da selecção dos terrenos e do desenho dos assentamentos à sua edificação e ampliação progressiva. Esta passará a contemplar, no decurso do tempo, a construção de equipamentos sociais como escolas, igrejas, postos médicos ou centros comunitários, e, ainda, arranjos urbanísticos e paisagísticos relativamente tardios.

5Por esta via, o estudo permite também ilustrar e detalhar transformações na própria missão da JCI. Esta passará de putativa propulsora de um projecto grandioso de engenharia económico-social, com ambições de redistribuir a terra para povoar o Sul – de maneira a promover o desenvolvimento da agricultura familiar e o aumento do nível de vida –, a mero “agente modernizador” nas áreas sob a sua tutela, essencialmente a Norte, com objectivos moralizadores e propagandísticos que atravessam a história do organismo. Fora dessas áreas, à Junta incumbiu ainda a vigilância e o apaziguamento do conflito social nos campos, embora não por intermédio de operações arquitectónicas. Parte das pesquisas científicas e das intervenções suplementares empreendidas neste contexto podem ser entendidas nesta perspectiva.

6A um outro nível, Colónias Agrícolas constitui igualmente um profícuo trabalho de história da arquitectura – e de arquitectura, propriamente dita. Antes de mais, pelo levantamento dos desenhos dos sete colonatos, que ficam agora disponíveis na sua globalidade e que oferecem uma imagem ao mesmo tempo sintética e detalhada do que foram estes projectos, na sua materialidade. O livro destaca-se igualmente pela leitura de conjunto das diferentes opções que, a cada momento, foram apresentadas por um punhado de arquitectos para os mesmos programas genéricos. Dessa análise sobressai a passagem gradual de assentamentos dispersos a implantações concentradas, e de casais individuais, em moradias, a habitações geminadas (na Boalhosa), ou ainda a deriva na concepção geral das colónias. Originalmente imaginadas como um somatório de unidades individuais, interligadas por desígnios produtivos comuns e pela necessidade partilhada de assistência técnica, passariam a ser planeadas como comunidades e conjuntos arquitectónicos. A este gesto corresponde a introdução progressiva de novos programas para equipamentos colectivos, já referida, ou de formas diferenciadas de gerar o espaço público nas colónias, não circunscritas às necessidades funcionais de circulação.

7Como pano de fundo deste enredo, encontramos a incorporação de arquitectos na JCI, nos primeiros anos da década de 1940, que substituem os engenheiros no desenho das colónias, e o desdobramento das soluções adoptadas para as diversas tipologias e assentamentos. Tal evolução seria animada por debates autóctones em torno do tema da casa rústica e do habitat rural, movidos por geógrafos e etnógrafos, nas décadas de 1940 e 1950, e por discussões internacionais acerca do carácter hodierno da arquitectura vernacular – sem que isso signifique, salienta a autora, “que o novo homem que se pretende construir, então, seja o homem liberto pelo Movimento moderno” (p. 282). Ainda a este respeito, importa sublinhar o que o livro em apreço representa para a eventual revalorização deste património, hoje um pouco ao abandono, mas com um amplo alcance estético, desde logo, e também ético e político; e o que livro representa igualmente para a discussão em torno das implicações políticas da arquitectura modernista ou para a problematização do trabalho burocrático dos arquitectos sob um regime autoritário.

8Mais genericamente, vale a pena registar o contributo deste trabalho para a história contemporânea de Portugal e do Estado Novo. Não apenas pelo modo como se soma a outros estudos análogos, e não propriamente pela forma como a arquitectura, enquanto cultura, traduz aqui a política, mas sobretudo pelo modo como a história das colónias agrícolas condensa em si e ilumina traços marcantes do período que cobre, no que toca à afirmação e ao declínio do regime, por um lado, e ao desenvolvimento do estado, por outro. Com efeito, parece legítimo vislumbrar nesta história a arrancada radical do Estado Novo, vertida na ambição de expropriar e povoar o Sul a partir do estirador; a matriz fascista de muitos dos seus desígnios, patente na filiação italiana e espanhola da política em causa; ou as aspirações totalitárias do Estado Novo, expressas na tentativa de miniaturização idealizada da vida rural. Da mesma maneira, a relutância resignada em abandonar os princípios primordiais do salazarismo e o primado da ruralidade pode aqui ser entrevista na incorporação paulatina de soluções de cariz urbano no desenho tradicionalista dos assentamentos e dos casais agrícolas.

  • 2 A este respeito, cf. Silva, op. cit., pp. 207-209.

9A mesma história arquitectónica das colónias agrícolas serve ainda de sinédoque do lastro histórico de ambições estatais só então materializadas, sob a Ditadura Militar e o Estado Novo; do alargamento das funções do estado durante esse período, com reflexo na profusão de equipamentos colectivos anexados aos colonatos; e da especialização das actividades técnicas na administração pública, com a introdução de arquitectos e paisagistas para cumprir funções desempenhadas por engenheiros. O mesmo processo traduz ainda a autonomização progressiva dos domínios de governação, plasmada na disjunção dos fundamentos económico-sociais da colonização, entretanto pensada como alicerce eventual de uma arrancada industrial assente na modernização capitalista da agricultura e já só indirectamente destinada a absorver o excesso de mão-de-obra no Sul.2 Assim pode ser entendido, com efeito, o próprio estiolar da JCI, pelo menos no que toca à sua actividade no domínio da habitação – entretanto objecto de políticas públicas em meio urbano, de maior envergadura, sem alcance económico directo.

  • 3 Joana Brites, O Capital da Arquitectura. Estado Novo, Arquitectos e Caixa Geral de Depósitos (1929- (...)
  • 4 Tiago Saraiva, Fascist Pigs: Technoscientific Organisms and the History of Fascism (Cambridge: MIT (...)

10Colónias Agrícolas pode ainda servir de pretexto para discussões acerca do lugar da colonização interna no quadro de projectos análogos, no estrangeiro, tal como foi explorado por Elisa Lopes da Silva no trabalho supracitado, ou sobre o papel da arquitectura modernista na afirmação das ditaduras (e vice-versa), nos termos sugeridos por Joana Brites para o caso português, a propósito de outros programas arquitectónicos.3 No seguimento disto, o livro de Filipa de Castro Guerreiro pode também servir discussões acerca das especificidades do salazarismo, no quadro dos autoritarismos e totalitarismos europeus, sobre o carácter moderno ou atávico das formas de governação do fascismo (independentemente dos seus desígnios substantivos, ou do recurso suplementar à repressão e à violência política) e sobre a relação entre fascismo e colonialismo tardio, como foi efectuado por Tiago Saraiva a partir da história da ciência.4 No horizonte destas pesquisas permanece a possibilidade de explorar o papel das ditaduras e dos impérios no desenvolvimento do estado, e a importância do estado (metropolitano e imperial) na conformação dos campos sociais científicos, artísticos e intelectuais que começou por sancionar, pela sua acção, muitas vezes a despeito das suas intenções.

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Notas

1 Maria Elisa Lopes da Silva, Estado, Território, População: As Ideias, as Políticas e as Técnicas de Colonização Interna do Estado Novo (tese de doutoramento, ULisboa, ISCTE-IUL, UCP e UÉvora, 2020).

2 A este respeito, cf. Silva, op. cit., pp. 207-209.

3 Joana Brites, O Capital da Arquitectura. Estado Novo, Arquitectos e Caixa Geral de Depósitos (1929-1970) (Lisboa: Prosafeita, 2014).

4 Tiago Saraiva, Fascist Pigs: Technoscientific Organisms and the History of Fascism (Cambridge: MIT Press, 2016).

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Frederico Ágoas, «Filipa de Castro Guerreiro, Colónias Agrícolas: a arquitectura entre o doméstico e o território, 1936-1960. Lisboa: Dafne Editora, 2022, 297 pp. ISBN 9789898217578»Ler História [Online], 83 | 2023, posto online no dia 29 novembro 2023, consultado no dia 13 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/12624; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.12624

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Autor

Frederico Ágoas

CICS.NOVA – NOVA FCSH, Portugal

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