1Num volume coletivo de 2011, o historiador norte-americano John Gillis (2011) escrevia que havia um “buraco azul” na história ambiental, já que a disciplina era dominada por temáticas de carácter terrestre. O objetivo de Gillis com esta chamada de atenção não era suscitar um maior interesse pela história marítima, que já existia, mas sim fazer notar o território de transição entre a terra e o mar, que é, na verdade, um ecótono ou zona de interface e não uma fronteira. Gillis queria destacar o litoral enquanto espaço híbrido, capaz de inspirar histórias líquidas e sólidas, sobre os seres humanos e a natureza. Para preencher esta lacuna, o historiador norte-americano publicou, um ano depois, um livro que se tornou uma referência: The Human Shore: Seacoasts in History (Gillis 2012) descreve a história da humanidade e da sua relação com os oceanos, numa perspetiva costeira. O tema tem vindo a ganhar destaque no que diz respeito a tópicos relacionados com pescas, comunidades locais, urbanização, portos, turismo, poluição e desastres naturais (Mosley 2014). A preocupação com estes últimos é justificada e cada vez mais evidente por causa das alterações ambientais globais e dos cenários projetados para as zonas costeiras, a nível mundial, por instituições científicas como o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC 2022, 5).
2Os estudos sobre as zonas costeiras são muito abundantes nas ciências naturais, mas na área das humanidades e ciências sociais, ainda que tenham crescido nos últimos anos (e.g. Pearson 2006; Land 2007; Pastore 2014; Freitas e Dias 2015; Grancher e Serruys 2021), há muito por fazer. Assim o reconheceram os editores da revista Coastal Studies and Society ao destacar que não basta perceber como funcionam os sistemas naturais costeiros do ponto de vista bio-físico-químico; é preciso compreendê-los também enquanto espaços vividos e com futuros imaginados, marcados por elementos sociais, culturais, patrimoniais, com usos e tradições que lhes dão sentido e os definem tanto quanto as suas camadas geológicas (Freitas, James e Land 2022). Se o sentimento de que há trabalho a ser feito nesta área é geral a nível internacional, isto é ainda mais evidente em Portugal, onde a história ambiental é um campo historiográfico emergente. Segundo Paulo Guimarães e Inês Amorim (2016), há projetos de investigação e grupos de estudo, mas a história ambiental não tem um espaço consolidado (e devidamente reconhecido) dentro das instituições académicas portuguesas. Este artigo é, assim, um contributo para o desenvolvimento da história ambiental costeira a nível peninsular, abordando um tema transversal aos dois países ibéricos.
3Nas zonas costeiras de Espanha e Portugal concentram-se, seguindo uma tendência à escala mundial (Mosley 2014), algumas das maiores cidades e as principais atividades económicas destes dois países. Estas áreas, pelas suas características enquanto espaços de transição ambiental, são sistemas altamente dinâmicos e instáveis, sujeitos a múltiplos e complexos mecanismos modificadores. A sua urbanização e a intensificação das ações humanas, sobretudo a partir do século XX, têm contribuído para alterar a sua natureza, reduzindo a sua capacidade de resiliência. Por isso, muito se fala no presente sobre o futuro das zonas costeiras, sobretudo aquelas que pela maior ocupação humana se encontram mais vulneráveis à subida do nível do mar e à ocorrência de grandes tempestades. Desta forma, as cidades costeiras têm sido descritas como estando na linha da frente na batalha pela sustentabilidade, perante o aumento dos riscos previstos (Mosley 2014). Mas as questões ambientais relacionadas com o litoral não se prendem apenas com cidades e portos e outras evidentes infraestruturas; estendem-se também a outros elementos que, pelas suas particularidades, são bem menos visíveis e, por conseguinte, menos estudados.
4As florestas litorais plantadas sobre campos dunares são estruturas menos notórias do que as construções edificadas no areal para receber os banhistas que começaram a frequentar as praias ibéricas a partir do século XIX. Contudo, estas dunas e florestas não deixam de ser infraestruturas, na medida em que foram pensadas, transformadas, organizadas, mantidas com o fim de proporcionar serviços ambientais críticos à sociedade – travar um perigo, fornecer lenhas, melhorar a paisagem, permitir o desenvolvimento. A existência de uma infraestrutura implica trabalho, diz a antropóloga Ashley Carse (2012). A natureza pode ser convertida numa estrutura através do labor humano e da aplicação de um conjunto de processos técnicos, governamentais e administrativos. É o caso das florestas plantadas nas dunas, o que significa que elas têm uma história comum que permite ilustrar a relação dos seres humanos com o litoral, mostrando os impactos das intervenções antrópicas e as reações dos sistemas naturais, explicando parte das modificações profundas ocorridas neste território no último século (Freitas 2020).
5Este artigo propõe-se discutir as políticas florestais ibéricas e o processo de fixação e repovoamento florestal das dunas nas zonas costeiras das províncias espanholas de Huelva e Cádis e no concelho de Vila Real de Santo António, Algarve, entre os anos de 1870 e 1930. Pretende-se com isto suprir uma lacuna, já que, apesar da bibliografia disponível sobre o tema em cada país (Sotomayor 2001; Teixeira 2016; Palma et al 2021), escasseiam os estudos que ponderem ambas as experiências e que abordem a história do litoral, dos seres humanos, das dunas e das florestas de um ponto de vista integrado. O artigo está organizado em quatro secções. A primeira oferece uma contextualização da questão das dunas e do que levou à sua florestação a nível europeu e peninsular, no quadro da afirmação dos estados-nações e das suas preocupações com o controlo e melhoramento dos seus territórios. A segunda descreve as primeiras intervenções para fixação das dunas em solo peninsular, as instituições responsáveis e os pioneiros destes trabalhos. A terceira secção aborda as técnicas utilizadas para a fixação dos areais, com base nos modelos francês e alemão, generalizados em toda a Europa, e adaptados às condições particulares das dunas do sudoeste da Península Ibérica, por iniciativa dos responsáveis pelas operações. Por fim, a quarta secção analisa com algum detalhe o caso da arborização das dunas de Vila Real de Santo António, com base no relatório feito em 1896, pelo silvicultor Mendes de Almeida, e nas visitas técnicas de colegas espanhóis que ali se deslocaram para observar os trabalhos, mostrando a proximidade e a partilha de conhecimento prático que então existia entre florestais portugueses e espanhóis, bem como o seu interesse pelas experiências realizadas nos dois lados da fronteira.
6No século XIX, a costa baixa e arenosa do sudoeste da Península Ibérica era descrita como tendo impetuosos ventos, solos pobres, charnecas e dunas despidas de qualquer vegetação (Flor 1990, 101). A predominância de extensos cordões dunares, que alternavam com costas altas de arribas, tornava esta zona muito pouco apetecível, quer em termos de ocupação humana, quer do ponto de vista agrícola. Pelo que, com exceção dos períodos sazonais da pesca, este território manteve-se por muito tempo praticamente desabitado. Assim o mostram alguns testemunhos da época:
Só percorrendo a costa portuguesa se faz ideia do que por aí vai de tristura e ermos; sente-se bem, senti-a bem, açoutado a agulhada pela areia, em nortadas de tufão e num desespero de fim irremediável, a desolação épica do maninho. Onde não há pão nem grão, nem mantenença de cristão. (Peixoto 2009 [1897])
Como en las costas los vientos que soplan del mar suelen ser los más impetuosos, desecada la arena de la playa marcha hacia el interior, formando esa serie de colinas llamadas médanos, que asemejan un mar petrificado, de deslumbradora blancura. (Codorniu 1910)
7As dunas eram então descritas como elementos monótonos na paisagem, verdadeiros desertos de areia estéril, que ameaçavam estender-se às regiões vizinhas.
- 1 Augusto Pimentel, “Arborização dos areaes do litoral” [ms. 1873], p. 33, Biblioteca do Instituto (...)
Algumas vezes experimentadas as sensações que a costa e o oceano nos produzem, não as procuramos repetir mais; os terrenos do interior com as suas encostas e ribeiras, com os prados e campos agricultados, oferecem-nos um mais risonho panorama, onde a vista se demora aprazivelmente. Não se sente já a opressão que a esterilidade, ou a profundidade da escarpa nos causa (…). (Pimentel 1873)1
Los médanos entierran a su paso los cultivos herbáceos y arbóreos y aun los edificios y pueblos enteros, formando a veces una barrera que dificulta o impide el desagüe de las tierras superiores, produciendo encharcamientos, con consecuencias lamentables para la salubridad de la región. (Codorniu 1910)
8Em várias regiões, um pouco por toda a Europa, as areias soltas, sopradas pelos ventos, levadas para o interior das terras, cobriam à sua passagem povoados, quintas e terrenos produtivos. Na Escócia, por exemplo, a propriedade de Culbin, na baía de Findhorn, foi soterrada pela areia no final do século XVII; os campos agrícolas e a própria casa senhorial desapareceram (Steers 1953). Em França, por volta de 1744, as dunas cobriram parte da povoação de Soulac, na região da Gasconha, obrigando a população a deslocar-se para o interior. Em Portugal também há histórias assim. Em Lavos, a sul da Figueira da Foz, a igreja mudou de sítio duas vezes, em 1628 e 1743 (Capela e Matos 2011 [1758]), para evitar ser engolida pelos grandes medões (nome que então se dava às dunas) que, vindos da praia, se estendiam para o interior, empurrados pelos fortes ventos desta costa. No sul da Península, o problema também se punha. A nova povoação de Vila Real de Santo António, erigida por ordem do marquês de Pombal, foi afetada pelas invasões das areias desde os primeiros momentos da localidade, na década de 1770 (Cavaco 2007, 33). Também foi este o caso de Guardamar del Segura, em Alicante, uma cidade desenhada pelo engenheiro Agustín de Larramendi, nos anos de 1820 (Figura 1). Assim, na literatura ibérica do século XIX é frequente encontrar as dunas referidas como “males”, “ameaças”, “inimigas”, comparadas a “perigosos exércitos”, sendo que, por todo o lado, se travava uma batalha contra elas (Silva 1815; Jordana 1895).
9O problema do movimento das areias era antigo e sabe-se que está relacionado com as condições climáticas da Pequena Idade do Gelo, entre os séculos XIV e XVIII, que favoreceram a diminuição do coberto vegetal dunar e a ocorrência de tempestades, com ventos fortes, capazes de fazer deslocar grandes quantidades de sedimentos. A intensificação das ações antrópicas, como a desflorestação e a expansão agrícola, favorecendo a erosão dos solos, também contribuiu neste período para o aumento do abastecimento sedimentar ao litoral, através do transporte fluvial, determinando o crescimento das dunas (Tudor et al. 2021). Contudo, há muito que as comunidades locais tinham desenvolvido estratégias para viver junto destes ambientes, utilizando estes espaços marginais para a exploração de recursos complementares (van Dam 2010).
Figura 1. Cartografia do projeto do eng. Francisco Mira para Guardamar, 1905
Fonte: Proyecto de defensa, fijación y repoblación de las dunas del término de Guardamar. Archivo General de la Región de Murcia (AGRM), FORESTAL, 59699/02. Disponível em acesso aberto: https://archivogeneral.carm.es/archivoGeneral/arg.detalle_documento?idDetalle=5656239&pidses=0.
10A partir de finais do século XVIII, os estados passaram a interessar-se mais por estas regiões, em resultado do seu empenho em melhor conhecer e controlar as periferias, apostando no reconhecimento cartográfico, na exploração efetiva dos recursos e na criação de legislação que ressalvasse o seu direito primordial sobre estes territórios. A preocupação com o problema das dunas – como era designado – e a solução então encontrada para o resolver devem ser compreendidas no contexto mais amplo da afirmação dos estados modernos europeus e no seu propósito em efetivar o domínio político-administrativo sobre o território à sua disposição. Para isso, era essencial a obtenção de informações concretas e pormenorizadas sobre os espaços nacionais, o que determinou o aumento do investimento público na produção de conhecimento (científico) sobre o solo e seus recursos, através da formação de equipas especializadas, dotadas de equipamentos e métodos para o levantamento de cartas (geodésicas, geográficas, topográficas, corográficas, hidrográficas) e a criação de serviços especializados (agricultura, florestas, transportes, obras públicas) para promover o desenvolvimento das potencialidades locais (Freitas 2011).
11No âmbito das tentativas de melhoramento e aproveitamento dos territórios nacionais, considerou-se, a partir do final de Setecentos, que a melhor resposta ao problema das dunas móveis era a sua fixação com vegetação. Isto tinha o duplo propósito de evitar a destruição de terras agrícolas e de aumentar o valor económico das areias transformando-as em florestas (Artigas 1875). Entendia-se na época que aquelas serviriam para melhorar o clima e as estações, protegeriam os rios e portos do assoreamento e providenciariam madeiras e resinas, recursos de que as nações precisavam para o seu desenvolvimento. A tarefa de converter as areias em matas foi considerada prioritária pelos estados por causa dos benefícios que trazia para as economias locais e nacionais (Silva 1815). Esta solução teve origem no trabalho do engenheiro francês Nicolas Brémontier que, em finais do século XVIII, desenvolveu um método para a fixação das areias, utilizando vedações e plantando vegetação (Brémontier 1797). A sua estratégia foi posta em prática, com o apoio do estado francês, na vasta área da Gasconha que, em cerca de um século, ficou coberta por pinheiros, mostrando que era possível fixar as dunas, com sucesso, a larga escala (Freitas 2014).
12O método Brémontier espalhou-se pela Europa e outras partes do mundo. As redes de contactos de peritos de novas profissões como a silvicultura parecem ter tido um papel fundamental na difusão deste conhecimento. Em Portugal, José Bonifácio de Andrada e Silva (1815), responsável pelas matas nacionais, foi o primeiro a defender a necessidade do plantio das dunas da costa e a praticar em Lavos, o que aprendera durante as suas viagens científicas pela Alemanha e França (García-Pereda 2018). Na segunda metade do século XIX, a fixação das dunas e a sua florestação foram feitas de forma sistemática: o pinheiro-marítimo tornou-se uma tecnologia-chave ou infraestrutura básica na reclamação de terras e modernização territorial, tão importante como as valas de drenagem, canais de irrigação, diques, estradas, caminhos de ferro e pontes (Temple 2011).
13Em Portugal e Espanha, as campanhas para a fixação de dunas arrancaram, sobretudo, na segunda metade do século XIX, no litoral entre o Tejo e o Douro, no primeiro caso (Freitas 2014), na região do golfo das Rosas, Catalunha (Artigas 1875) e nos cordões dunares de Alicante (Codorniu 1910, no segundo. Estas regiões estão englobadas na área denominada golfo de Cádis, delimitada a ocidente pelo cabo de São Vicente, no Algarve, e no seu extremo oriental por Tarifa, estreito de Gibraltar. No século XIX, esta zona, importante pela sua ligação ao mar e à indústria pesqueira, tinha também potencial agrícola, havendo interesse no seu desenvolvimento económico e demográfico. Nas décadas de 1880 e 1900, as recém-formadas Direção Geral da Agricultura, em Portugal, e a Dirección General de Agricultura, em Espanha, com os seus técnicos silvicultores, alinhavaram os planos de repovoamento e fixação das dunas do Sudoeste da Península. Estes abrangiam a área de cordões dunares que se estende ao longo de vários quilómetros entre Portugal e Espanha, entre a península de Cacela, as margens do rio Guadiana, passando pela desembocadura do rio Odiel, até ao rio Guadalquivir, abarcando grande parte da costa da província de Huelva, incluindo Cádis e Vejer de la Frontera. A homogeneidade florestal encontrada nesta área é resultado das intervenções efetuadas entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX. Ainda que tenham sido seguidos dois modelos ligeiramente diferentes de repovoamento florestal, há vários aspetos comuns, quer pelas semelhanças do contexto geográfico, quer pela formação técnica dos peritos envolvidos nas operações.
14Para as primeiras gerações de engenheiros silvicultores de Espanha e Portugal, que começaram os seus trabalhos nas décadas de 1840 e 1860 respetivamente, as prioridades eram a proteção da propriedade florestal pública e a modernização da gestão florestal das principais matas nacionais. Os projetos oficiais de arborização do litoral e das serras surgiam mais tarde, nos anos de 1870. Esta questão foi primeiro abordada, em Portugal, por José Bonifácio de Andrada e Silva, intendente geral das minas e matas do reino, na Memória sobre a Necessidade e Utilidade do Plantio de Novos Bosques em Portugal (Silva 1815). Ali, o intendente chamava a atenção para o estado em que se encontravam as costas marítimas portuguesas, “todas areadas”, quais “desertos líbicos”, movendo-se as areias ao sabor dos ventos que as impeliam para o interior, causando avultados estragos pela invasão de campos agrícolas, assoreamento de barras e destruição de pequenos povoados. José Bonifácio opinava que, de maneira parecida com o que se havia feito lá fora na Gasconha, era essencial proceder-se à arborização destes terrenos incultos, com o duplo objetivo de impedir o avanço das dunas e aumentar a produção florestal nacional.
- 2 Diário do Governo, 4 de abril de 1823, nº 80.
- 3 Diário do Governo, 22 de novembro de 1824, nº 278.
- 4 Boletim do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, nº 1 e 2, janeiro e fevereiro de (...)
15As autoridades portuguesas não se mostraram indiferentes a este problema. Alguma legislação produzida na primeira metade do século XIX revela que a florestação das areias do litoral era já então motivo de cuidado. Em 1823, o rei D. João VI expediu ordens para o administrador do pinhal de Leiria fazer sementeiras de pinhão, não só no interior do pinhal, mas também nos limites deste com a costa de mar, onde as areias ameaçavam com a obstrução do porto de São Martinho.2 O mesmo monarca foi também responsável pela criação da Administração Geral das Matas (1824), organismo público incumbido de zelar pelo património florestal pertencente ao estado e de nomear uma comissão de peritos para acudir prontamente às terras agrícolas dos campos de Leiria e da Nazaré, que corriam o risco de ficar cobertas pelas areias que afluíam do litoral (Freitas 2014).3 No caso luso, as intervenções iniciais de fixação de dunas foram levadas a cabo pela Administração Geral das Matas do Reino, com sede na Marinha Grande, entre 1824 e 1881. Na década de 1860, aliás, já se podiam ver os primeiros resultados dos trabalhos desta instituição: nos relatórios dos anos de 1859 a 1862 era anunciada a arborização de vários hectares de areias, pântanos e charnecas junto aos pinhais de Leiria, Pedrógão, Urso, Vieira, Medos, Vil de Matos e Ceiça.4
16Em 1866, a lei de desamortização dos bens das câmaras, paróquias, irmandades e misericórdias colocou na dependência do estado um conjunto de matas, que este achou por bem não alienar, dada a sua importância na conservação dos regimes dos rios, na acessibilidade das barras e na proteção a campos de cultura. Em 1867, o Instituto Geográfico português foi incumbido pelo ministro das Obras Públicas de proceder “ao reconhecimento dos terrenos que era necessário arborizar, sobretudo: as areias móveis do litoral, terrenos marginais, cumeadas de montanhas, bacias hidrográficas, charnecas e terrenos incultos” (Ribeiro e Delgado 1868). Para dar resposta ao que lhes era solicitado, os engenheiros responsáveis, Carlos Ribeiro e Néry Delgado, pediram informações, por meio de circulares, a engenheiros, geógrafos e corógrafos de diferentes regiões do país. Estes dados foram depois recolhidos, completados e coligidos no Relatório acerca da Arborização Geral do País (Ribeiro e Delgado 1868).
17No que concerne ao litoral, este relatório é a descrição mais pormenorizada que se conhece da orla costeira portuguesa naquela época. Os dois geólogos fizeram um trabalho notável no reconhecimento das dunas existentes, na avaliação da sua extensão e mobilidade e na determinação dos prejuízos por elas causados. O documento começa exatamente pela foz do Guadiana, observando que junto a Vila Real de Santo António (VRSA) existia uma faixa, de quatro quilómetros de comprimento e outros tantos de largura, de dunas paralelas à costa. Estas tinham sido mandadas semear por D. José I, aquando da construção da vila (em 1776), mas o pinhal tinha, entretanto, desaparecido. As areias soltas representavam um perigo para os campos agrícolas adjacentes e para a navegação no Guadiana, já que iam obstruindo a foz do rio. Este tinha então uma importância estratégica, pois os minérios explorados na mina de São Domingos eram exportados para Inglaterra, em embarcações que utilizavam aquele curso de água como via de comunicação. A arborização destes areais, entendiam Ribeiro e Delgado (1868), devia ser uma das primeiras tarefas a executar.
18A criação do ensino superior florestal, em 1865, a reestruturação da Administração Geral das Matas, em 1872, a sua extinção em 1881, e por fim a criação dos Serviços Florestais, em 1886, colocados sob a alçada da Direção Geral de Agricultura, revelam a forte aposta do estado neste sector (Pinho 2012). Mais tarde foi nomeada pela Direção dos Serviços Agrícolas do Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, por portaria de 16 de maio de 1896, uma comissão para a elaboração de um plano para a arborização das dunas, dirigida por Joaquim Ferreira Borges. A comissão publicou, em janeiro de 1897, o Projecto Geral de Arborização dos Areaes Moveis de Portugal (Borges 1897), no qual se traçava um rumo para a harmonização dos trabalhos de fixação das areias, através do seu reconhecimento, determinação das condições locais existentes e elaboração de um plano geral de sementeiras. As dunas do Algarve, incluídas no perímetro nº 10, eram descritas de Sotavento para Barlavento, começando pelos areais do Alvor, que estavam fixados e separados do oceano por uma anteduna. Esta era uma zona inundável, de contacto estreito entre o rio e o oceano, onde se davam bem as plantas adaptadas a ambientes salobros, a que chamavam marismas. Em Armação de Pera também havia alguns areais. Mas nenhum destes se comparava à extensão de dunas que começava nas praias de Tavira e se estendia até Vila Real de Santo António, abrangendo cerca de 555 hectares. Estas dunas constituíam altos medos que ameaçavam os terrenos hortícolas limítrofes e criavam bancos de areia na barra do Guadiana. Os trabalhos de fixação destes areais tinham começado, segundo o projeto, em 1886 (Borges 1897).
19No ano de 1901 foi publicado, no Diário do Governo, o decreto de 24 de dezembro, que definiu a nova estrutura dos Serviços Florestais e Agrícolas e estabeleceu em Portugal o Regime Florestal. Este visava assegurar a criação, exploração, desenvolvimento e conservação da riqueza florestal do país, nas áreas onde a arborização fosse considerada de utilidade pública. Dentro destas, destacava-se, para a região Sul, a necessidade de repovoamento arbóreo das dunas (Devy-Vareta 2003, 449). Em Espanha, a Dirección General de Agricultura nomeou, no ano de 1887, a primeira comissão técnica encarregada de executar os planos de Repoblación y Fixación de Dunas nas províncias de Huelva e Cádis, que compreendiam entre si uma área de cerca de 13 000 hectares (Artigas 1888; Cerón 1888). Entendia-se que a plantação de extensos pinhais em áreas de dunas teria um contributo bastante positivo para a riqueza florestal nacional. Porém, segundo Sotomayor (2001), só em 1892, surgiu a Comisión de Repoblación de las Dunas del Suroeste, que publicou os primeiros relatórios acerca do estado das dunas em alguns pontos da costa gaditana e onubense.
20De acordo com estes, a província de Huelva possuía cordões dunares nos municípios de Ayamonte, Isla Cristina, Moguer (Dunas de Odiel) e Almonte, os cotos de Ibarra e de Bayo e propriedades vizinhas. Sob a alçada desta comissão estavam também Puerto de Santa María, Rota e Vejer de la Frontera (Barbate). Tarifa juntou-se depois a esta lista, já que nesta fase inicial pertencia ao Ministerio del Ejercito. Devido à crise financeira em Espanha, os vários estudos, projetos e planos não saíram do papel por falta de aprovação superior e recursos para os executar, pelo que apenas foram colocados em prática no início do século XX. Nessa época, foi nomeado para encabeçar estes trabalhos o silvicultor Luis Heraso. De acordo com Ángel Fernández de Castro (1900, 227), Espanha seria o único caso da Europa a não ter qualquer intervenção planeada para a fixação das dunas, pois até Portugal contava já com um plano de intervenção.
21Os trabalhos iniciaram-se no ano de 1905, em Puerto de Santa María. No ano seguinte começaram os de Vejer de la Frontera, por ordem real do Ministerio de Hacienda, através da División Hidrológica-Forestal del Guadalquivir, que era também responsável pela província de Huelva (Romero 1909). Depois de 1919, há registo de 90 hectares de pinhais na zona do Puerto de Santa María, nas Dunas de San Antón. Os trabalhos nas dunas de Odiel começaram em 1924. Foram registados ainda 1202 hectares expropriados ao Monte Breña de Vejer para formar o Pinhal de Barbate, em 1926. Em Almonte, as campanhas começaram em 1938, tendo o seu estudo prévio sido redigido por Heraso, em 1890 (Heraso 1890). Também só naquela primeira data se iniciaram os trabalhos em Tarifa, devido à existência na zona de equipamentos e áreas militares pertencentes ao Ministerio del Ejército. Mais uma vez, por razões económicas, estes trabalhos apenas puderam intensificar-se a partir de 1924, e estenderam-se até 1944 (Kith e Tassara 1946, 415). Segundo a imprensa local, “sorprende, admira y entusiasma cuanto allí se ha hecho bajo la inteligente dirección del sabio ingeniero don Manuel Fernández de Castro. Antes de diez años admirarán allí los visitantes uno de los mejores y más bellos parques naturales de Europa” (Piury 1918).
22Os planos para o repovoamento de dunas, em Portugal e Espanha, partiram, como já foi afirmado, de diferentes modelos, um inspirado em França, outro na Alemanha, mas as semelhanças são muitas; houve combinações e ambos foram adaptados às condições locais. O silvicultor Henrique de Mendia (1881), no seu Estudo sobre a Fixação e Aproveitamento d’uma parte das Areias Moveis das Costas de Portugal, descreveu as alterações feitas ao método de Brémontier aplicado em Portugal. As fontes históricas analisadas permitem perceber que os casos de Espanha e Portugal, no que toca à arborização das dunas, apresentam semelhanças e diferenças que vale a pena destacar. Em matéria cronológica, por exemplo, os peritos lusos começaram mais cedo as suas experiências, graças aos trabalhos de José Bonifácio de Andrada e Silva, na primeira década do século XIX (García-Pereda e Marques 2018). Na vizinha Espanha, uma maior pressão para a defesa das matas nacionais evidenciou-se no processo de reformas legais que levou à criação do Código Florestal de 1863, muito antes de Portugal, determinando a manutenção de uma proporção maior de florestas públicas, o que ainda hoje constitui uma diferença evidente entre os dois países.
23Os métodos francês e alemão para a arborização das dunas partiam do princípio base que a primeira tarefa a executar era o controlo das areias que provinham da praia e a sua fixação junto à orla costeira, para criar as condições de abrigo necessárias para o crescimento das espécies florestais na retaguarda. Os dois procedimentos baseavam-se na edificação de uma anteduna ou duna litoral, paralela à linha de costa ou perpendicular aos ventos, que funcionava como barreira à ação da energia eólica, responsável pelo transporte das areias trazidas pelas marés e depositadas na praia. A anteduna era criada pela instalação de uma vedação, feita com estacas e ramos de tojo entrelaçados. Esta sebe, servindo de obstáculo às areias carreadas pelos ventos, fazia com que elas se depositassem na sua base, acumulando-se e crescendo até formar a duna artificial. Quando as vedações ficavam soterradas pelas areias, eram construídas outras por cima até a anteduna obter a altura pretendida. A substituição destas sebes apresentava custos elevados, pelo que foram feitas alterações para reduzi-los e agilizar os trabalhos. Assim, as sebes de ramos de tojo foram substituídas por paliçadas de madeira ou ripados móveis. As tábuas ou ripas que apodreciam eram facilmente substituídas por novas e quando soterradas podiam ser elevadas por meio de um elevador ou cavalete de madeira (Teixeira 2016).
24O método alemão foi o mais usado a partir do início do século XX em Portugal, tendo sido defendido por silvicultores como António Mendes de Almeida ou Joaquim Ferreira Borges, que estudara na escola de Tharandt, entre 1877 e 1881 (García-Pereda 2018). Era considerado o mais adequado às condições da costa portuguesa, baixa e plana, com o mar a invadir com frequência as sementeiras (Mesquita 1907). Este método preconizava a criação de duas linhas paralelas de sebes formadas por haste de tojo ou ramagens que, pela sua porosidade, geravam uma anteduna mais consistente do que aquela que era produzida pelo uso do método francês. Não devendo ultrapassar os 10 metros de altura, a duna artificial do sistema alemão era bem mais económica e não exigia uma manutenção constante. Numa segunda fase, procedia-se à plantação da vegetação pioneira, que ajudava a estabilizar os solos arenosos e protegia as árvores, durante os primeiros anos de vida, do calor, do vento e das areias. Estas plantações eram feitas na retaguarda da anteduna, numa área disposta em quadrículas, linear e regrada, segundo o método francês, ou mais naturalista e sem ordenação geométrica, de acordo com o procedimento alemão. Na terceira e última fase dos planos eram avaliadas a temperatura média da área, assim como os seus níveis de humidade relativa, num período anual. Procedia-se ainda à avaliação do solo e do seu substrato geológico a fim de concluir que espécies florestais poderiam ser produzidas com sucesso. Estes procedimentos eram comuns aos planos de repovoamento e fixação de dunas em Portugal e Espanha.
25As espécies de árvores utilizadas – pinheiros-marítimos e mansos – eram mais ou menos as mesmas (na Alemanha, Fig. 2, como no norte de Portugal antes de 1800 (Lopes 2021), preferia-se o Pinus sylvestris), mas no caso luso os eucaliptos (concretamente, o Eucalyptus eugenioides) eram também usados desde 1840 para drenar a água acumulada nas zonas baixas entre as dunas, responsáveis, segundo o conhecimento médico da época, pelas febres que proliferavam entre as populações locais (García-Pereda e Rodrigues 2022). Na Costa da Caparica, por exemplo, os eucaliptos faziam parte das 70 000 árvores plantadas na campanha de 1906, assim como outras espécies experimentais, como as acácias, casuarinas e Pinus halepensis. Como a areia era pobre em elementos nutritivos, fizeram-se adubações com kainite e escórias (Lupi 1950; Dias 1953).
Figura 2. Duna da Prússia
Fonte: Mundo Ilustrado (Madrid), 1880, 75, p. 92.
26Em Espanha seguia-se, aparentemente, o método francês. Mas a técnica parece extremamente parecida com a descrita como alemã. Possivelmente, a classificação da técnica como francesa ou alemã podia ter mais a ver com as simpatias políticas de cada país no momento histórico concreto. Os processos iniciavam-se avançando as intervenções da praia para o interior, dividindo a área intervencionada em duas zonas. A primeira era a zona litoral ou costeira e a segunda era a zona interior, já que o pinheiro apenas se desenvolve a uma distância relativa de 300 metros da linha de costa. Era necessário que antes da sua plantação se fizesse a sementeira de espécies vegetais pioneiras, como a Ammophilla arenaria (também conhecida como Psamma arenaria, estorno ou barrón) e o Elymus farctus arenarius na primeira linha de dunas litorais. Na segunda zona, tal como se fazia em Portugal, procedia-se à plantação das espécies florestais, como pinheiro-negral ou marítimo (Pinus pinaster), alternados com pinheiro-manso (Pinus pinea), estorno e retama (Genista monosperma), seguindo os procedimentos dos engenheiros franceses Brémontier e Goury, pois eram considerados os mais económicos. Luis Heraso (1890) calculou para as dunas de Almonte que, ao longo de 20 anos, seriam gastas 1 429 352 de pesetas. O pinhal que resultasse desse esforço traria um potencial de exploração agrícola e industrial de 18 914 400 de pesetas, num período de 80 anos, com uma renda anual de 430 000 pesetas. Queria assim demonstrar o quão rentável poderiam ser estas intervenções a longo prazo, apesar dos seus elevados custos iniciais.
27Na biblioteca do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas existem duas versões do Projecto Geral da Arborização dos Areaes Moveis de Portugal. Uma impressa (Borges 1897) e outra manuscrita, que corresponde ao relatório original. Ambas têm em anexo as memórias descritivas referentes aos diferentes perímetros, que resultaram do reconhecimento dos areais do litoral. Na versão impressa só constam as descrições dos quatro primeiros perímetros; já a versão manuscrita inclui os 10 perímetros completos e as plantas correspondentes. A memória descritiva do 10º perímetro, relativa às dunas de Vila Real de Santo António, foi elaborada pelo silvicultor António Mendes de Almeida (1896), em dezembro de 1896. Mendes de Almeida fez um relatório pormenorizado sobre os areais do Sotavento algarvio e do contexto humano envolvente. Assim, estes areais tinham como limites, a norte, as hortas e a estrada de Faro a VRSA; ao sul, o oceano; a nascente, o rio Guadiana e VRSA; e a poente, o pinhal do Cabeço e as barracas com o mesmo nome. Não havia fontes, cursos de água, lagoas, pântanos, pauis, baixas húmidas ou alagadiças nesta região, ambientes característicos de outras regiões dunares. Existia, porém, próximo das areias de Monte Gordo, um esteiro (da Carrasqueira), que estava ligado ao rio Guadiana e era usado como via de comunicação. Havia ainda a linha do caminho de ferro, que ligava Faro a VRSA, e um caminho que atravessava as sementeiras e ligava à estrada real que conduzia à praia (Figura 3). Estas vias eram importantes para assegurar o fornecimento dos materiais necessários às atividades em curso.
Figura 3. Plano hidrográfico da barra e porto do rio Guadiana, 1881
Fonte: Biblioteca Nacional de Portugal. Disponível em acesso aberto em: https://purl.pt/1955.
28Segundo a memória descritiva (Almeida 1896), em 1871, a Câmara Municipal de VRSA, para ajudar à realização das sementeiras, cedeu os areais mencionados à Administração Geral das Matas. Ofereceu-se ainda para fornecer os guardas necessários à vigilância das operações para garantir a sua viabilidade e assegurar que não tinha o mesmo destino do pinhal mandado plantar por D. José. A Direção Geral de Agricultura (que sucedeu à AGM), contudo, só tomou posse dos areais em 1886, quando quis dar início à sua arborização. Os trabalhos foram iniciados, mas perderam-se pouco depois, porque alguns influentes locais conseguiram a revogação da concessão, com o pretexto de que os areais eram necessários para a criação de uma nova povoação, no sítio da Ponta d´Areia. A questão ficou resolvida em 1887, quando a Câmara cedeu ao estado parte das dunas, reservando para si uma área de 68 ha, entre o antigo lazareto e a Ponta d´Areia.
29Mendes de Almeida (1896) escreveu que as dunas mais elevadas, conhecidas por Medo e Medo Gordo, situadas junto ao antigo farol, tinham cerca de 20 metros. O seu movimento, para SO, seguindo a direção dos ventos predominantes, afetava os terrenos particulares adjacentes, terrenos hortícolas com abundância de água, produtores de primores de grande valor, que iam abastecer os mercados de Lisboa (Cabreira 1918). A mobilidade das dunas também contribuía para o assoreamento da barra do Guadiana, criando bancos de areia que dificultavam a navegação. Só a Mina de São Domingos carregava 200 a 300 vapores com cobre que seguiam para França, Inglaterra, Alemanha, Rússia, Bélgica e Holanda. As seis fábricas de conserva de peixe a laborar em Vila Real também exportavam os seus produtos por via marítima e tinham o mesmo problema. O estado também tinha sofrido prejuízos por causa das areias que tinham soterrado as barracas do lazareto construído nas dunas, em 1885, para albergar os que faziam quarentena ou estavam doentes com cólera, em resultado de uma epidemia que começara em Espanha. A arborização das dunas era, assim, vista como uma forma de travar o avanço das areias e criar uma área florestal que forneceria materiais de construção e lenhas aos povos da região.
30As sementeiras iniciadas em 1886 (e perdidas, pelo acima exposto) tiveram continuação nos anos de 1887 a 1891. À época do relatório tinha já sido arborizada uma área de 33,80 ha. Mendes de Almeida (1896) considerava que era pouco, mas o que existia era suficiente para provar a sua importância. Com efeito, a povoação de Vila Real estava a crescer para sul, com novas fábricas e casas de habitação, ao abrigo das sementeiras, que davam segurança aos proprietários locais. Do ponto de vista técnico, explicava Mendes de Almeida, os trabalhos deviam ter sido iniciados junto às barracas dos pescadores do Cabeço, mas devido aos prejuízos causados pelas areias junto a Vila Real, as sementeiras tinham começado perto desta povoação. Numa segunda fase, para proteger os trabalhos efetuados e aproveitar a facilidade de acesso, estava previsto fazerem-se novas sementeiras junto da estrada que seguia para Monte Gordo e daí em direção à beira-mar, onde seria formada a duna litoral. O silvicultor sugeria que fosse estabelecida a 200 metros da linha das maiores marés. Assim se mantinha na praia uma ampla faixa longitudinal livre, porque os pescadores que a habitavam precisavam de espaço para puxar e secar as suas redes. A técnica a utilizar nas sementeiras era descrita com clareza: primeiro, faziam-se as sementeiras de abrigo para proteção dos trabalhos já efetuados; depois, nos anos seguintes, devia começar-se a semear do mar para terra, interrompendo-se esta ordem no 4º ano, para fazer uma faixa de sementeiras paralela à do 1º, pois seria preciso mudar o ripado estabelecido nesse primeiro ano, uma vez que a anteduna já deveria estar formada nessa altura. A descrição dos materiais usados e sua proveniência é também interessante: os matos eram da serra do Algarve e Alentejo (e.g., Azinhal, A dos Guerreiros, Laranjeiras, Pomarão); as tábuas para o ripado iam de Lisboa; o penisco, do Pinhal de Leiria; as sementes das plantas arenosas eram colhidas localmente e as de tojo provinham das matas nacionais. Isto mostra que as operações não estavam limitadas ao nível circunvizinho, mas implicavam uma vasta rede de contactos, funcionários, transportes e fornecedores.
31O relatório de Mendes de Almeida (1896) é precioso enquanto fonte histórica para perceber não só os trabalhos de fixação das areias e sua evolução, materiais usados, custos e procedimentos, mas também a situação das dunas enquanto parte integrante de um território com um contexto político, económico e social. Através deste documento é possível conhecer as principais atividades económicas locais, as relações entre o estado e o poder municipal, as preocupações dos proprietários em relação à segurança das suas terras e a vontade de expansão do núcleo urbano, condicionado pelas dunas ativas. São, contudo, escassas as fontes conhecidas com detalhes sobre os trabalhos nas dunas do Algarve, na primeira metade do século XX; por isso se revelam importantes as visitas técnicas e os relatórios dos florestais espanhóis sobre esta região, para completar a informação existente e estudar a evolução das campanhas iniciadas em 1886.
32Ángel Castro, silvicultor proveniente da Andaluzia, visitou, em 1904, o território conhecido como Perímetro Florestal de Vila Real de Santo António, tendo escrito dois artigos sobre o assunto, publicados na revista espanhola Montes (Castro 1905ab). Na região algarvia, Castro encontrou uma combinação dos modelos francês e alemão, enquanto no lado espanhol, onde trabalhava, se seguia o modelo de fixação e povoamento florestal dos terrenos dunares definido pelos franceses. Castro observou também que, em comparação com os trabalhos ainda por executar na margem espanhola do rio Guadiana, em Vila Real de Santo António aqueles estavam bem mais adiantados, estando em marcha a criação de uma mata nacional (Castro 1905a, 95). O método alemão foi predominante em Vila Real de Santo António a partir de 1905, tendo sido, contudo, adaptado às condições algarvias. Desta forma, as sebes de ripas rodeavam as sementeiras por três lados, formando uma proteção que impedia a invasão das areias. Estas eram semeadas com pinheiro-marítimo e manso, sendo as sementes abrigadas por estorno e cobertas com tojo ou rama de pinheiro. Esta cobertura abrigava os pinheiros embrionários e permitia o seu desenvolvimento nos primeiros anos. As linhas de plantação eram estabelecidas de forma perpendicular à direção do vento (Dias 1953, 6). Segundo Lupi (1950), foi sobretudo após 1902 que se registou um incremento dos trabalhos e um crescimento da área plantada, que passou de 5 a 6 hectares por ano para 28. Mas, no primeiro decénio do século XX, o efeito da arborização das dunas parecia não se fazer ainda sentir para os lados de Monte Gordo (Macedo e García, 2013). Com efeito, o escrivão da comarca de Loulé, António Joaquim Teixeira, a banhos naquela praia, escrevia que
mesmo dentro da povoação a areia acumula-se de tal forma que algumas casas têm ficado soterradas, dentro de pouco tempo. É necessário estar constantemente a remover a areia […]. A igreja, por exemplo, já estaria soterrada, se não tivessem o cuidado de afastar a areia, que em volta forma montes, que, quasi, chegam à altura do telhado. Até já falam em levantá-la, continuando as paredes, e fazendo o pavimento ao nível da areia que a circunda. Se tal o fizerem, seria, segundo a tradição, a terceira vez que assim fazem. (Oliveira 1999 [1908], 185)
33Quando o silvicultor galego Diego Terrero (1921, 86) visitou Portugal, em 1921, a florestação das dunas entre Vila Real e Monte Gordo estava, porém, dada como concluída. Monte Gordo, que na altura contava com 700 casas, tinha passado a ser a praia favorita da “gente do baixo Alentejo e dos algarvios do sotavento” (Camacho 1923, 219; Cavaco 1974). Segundo o político alentejano Brito Camacho, “dentro de alguns anos estará ali formado um dos mais vastos pinhais de Portugal, constituindo uma riqueza de Estado, e no meio dele, completando a paisagem, a povoação destacará na alvura dos seus prédios, realizando uma certa forma de estética urbana”. Acácias, pinheiros, casuarinas e eucaliptos eram “agradáveis à vista, ótimos para a saúde”, mas ainda havia trabalho para fazer:
Uma abundante sementeira de piorno fixará as areias da Praia, evitando que elas invadam as casas que são a avançada, para o mar, da povoação. E além de ter essa vantagem, oferecerá à vista alguma coisa a que ela se prenda com agrado, que o espetáculo dos areais intermináveis, começando por ser interessante, acaba por ser monótono. (Camacho 1923, 233)
34O silvicultor português Vasco Lupi (1950), aquando da sua visita em 1950, observou que os 18 hectares plantados na primeira fase dos trabalhos estavam cercados por cerca de 500 metros de ripados móveis de comprimento, e 350 m de largura, formados por tábuas de 2 m de altura e 0,20 m largura, separadas entre si por um intervalo de 0,10 m. Lupi era o responsável pelo relatório florestal para o concelho de Vila Real de Santo António, no contexto do Inquérito Agrícola e Florestal de 1950 (García-Pereda 2023). A viagem de Castro pode ser considerada a primeira visita de um silvicultor estrangeiro às matas portuguesas. O silvicultor galego Diego Terrero ficou em Portugal durante vários meses (Terrero 1921). Em sentido contrário, sabe-se da participação de António Mendes de Almeida no Congresso Agrícola de Madrid, em 1911 (Almeida 1911). Graças aos relatórios destas visitas é possível identificar uma matriz ibérica comum, mas também algumas diferenças assinaláveis nas soluções adotadas.
35As costas do Algarve e da Andaluzia partilhavam muitos problemas e desafios nas últimas décadas do século XIX. Essa convergência permitiu descobrir afinidades que, em vários momentos, aproximaram as redes de técnicos florestais de Espanha e Portugal. Há evidências de uma circulação interna no mundo peninsular, com as experiências portuguesas a terem impacto na imprensa espanhola. As soluções desenvolvidas num dado território podiam ser trasladadas para o outro lado da fronteira. A facilidade na circulação de agentes administrativos permite avaliar o grau de interação que tinham os silvicultores de ambos os lados da raia. O facto de alguns deles terem estudado na escola de Tharandt, na Alemanha, contribuiu para a construção de redes internacionais, que facilitavam a circulação de pessoas, bens e modelos de atuação. Finalmente, as relações silvícolas ibéricas não foram caracterizadas e condicionadas, na questão da arborização das dunas, pela suspeição, mas pela partilha e curiosidade. Concluindo esta brevíssima análise é possível entender a importância da concretização destes planos de fixação de dunas. Os seus benefícios eram indubitáveis, quer a nível económico, quer a nível social, transformando terrenos, entendidos como desertos, insalubres e pouco convidativos, em sítios de grande interesse para a exploração florestal e subsistência animal, agregando-lhes um valor paisagístico e recreativo. A longo prazo, estas intervenções foram determinantes para o desenvolvimento demográfico e o crescimento económico das regiões, províncias e municípios nas quais foram levadas a cabo.