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Recensões

António Borges Coelho, Portugal na Europa das Luzes. História de Portugal, vol. VII. Lisboa: Editorial Caminho, 2022, 288 pp. ISBN 9789722131469

Sérgio Campos Matos

Texto integral

1Raros livros de história abrem com um poema do próprio autor, como é o caso deste: “Acendo as palavras. Abrem a janela das coisas. Um toque da mão, um mover dos olhos, o soar da voz, sentimos os afectos, o desafio do confronto, a alegria do diálogo e da partilha. Estas palavras emergem do magma dos objectos, da fala, dos documentos, da escrita dos mortos e dos vivos e procuram sentidos”. O que não surpreende, se lembrarmos que estamos perante um dos raros historiadores portugueses que também é poeta. Um poeta que se estreou no já distante ano de 1962 com Roseira Verde. Este é o sétimo volume de uma História de Portugal que alcança assim o tempo do Marquês de Pombal, no qual se centra. É um trabalho assente em larga informação tratada a partir de fontes da época e em bibliografia disponível.

2Incide sobre um período que, desde os anos 50 do século XX, foi estudado em diversas direcções por historiadores portugueses e estrangeiros, em trabalhos de história económica, de história social, política e cultural e em biografias históricas. Refiram-se os trabalhos seminais de Jorge Borges de Macedo e de J. S. da Silva Dias. E, mais recentemente, de Nuno Monteiro, José Luís Cardoso, Jorge Pedreira, José Vicente Serrão, Rui Santos, Ana Cristina Araújo e Keneth Maxwell, entre tantos outros. Trabalhos que se distanciaram da velha querela ideológica entre pombalistas e anti-pombalistas que desde o tempo do próprio Pombal dividiu o campo historiográfico e político, com momentos de exacerbação polémica como aquando do primeiro centenário da morte de Sebastião José de Carvalho e Melo (1882). Lembro, a título de exemplo, entre os críticos de Pombal, Camilo Castelo Branco que lhe dedicou longa catilinária e, do lado dos pombalistas, o historiador Latino Coelho que o enalteceu numa extensa biografia em que o viu como protótipo de um “homem novo”. Compreende-se que António Borges Coelho passe ao largo desta controvérsia que dominou a cultura política e a agenda historiográfica até meados do século XX, uma controvérsia datada e demasiado centrada na figura daquele que foi considerado (não por acaso por alguns liberais e republicanos) o maior estadista português de todos os tempos. A óptica do autor é outra: compreender e não julgar o passado.

3O que diferencia este projecto de uma História de Portugal de um só autor de várias outras obras individuais e colectivas publicadas ao longo do século XX e já nos princípios do século XXI? Em primeiro lugar, a intenção de se dirigir a um leitor não académico mas interessado e dotado de formação histórica. Logo, em sintonia com esta intenção, uma estratégia narrativa em que se articulam relato de acontecimentos (seguindo de perto fontes da época) com outros pontos de vista, em que o autor procura caracterizar estruturas demográficas, sociais, económicas e institucionais, em conjunturas específicas. Leia-se o exemplar prólogo-síntese, que condensa a visão do historiador sobre a época que estuda. Muito raros são os conceitos analíticos que o historiador adopta: note-se até a parcimónia com que recorre a termos como despotismo esclarecido ou despotismo iluminado e estado absoluto e a ausência dos conceitos de regalismo, ultramontanismo ou burguesia (prefere homens de negócio). E, não por acaso, o vocabulário usado para traçar um balanço reflexivo da política pombalina recorre ao confronto com alguns dos mais abstractos termos do pensamento político da época: progresso, tolerância, liberdade, igualdade. Conceitos que eram usados nesse tempo com sentidos que não são, evidentemente, os usados nos dias de hoje. Daí que se note nestas páginas uma resistência silenciosa (mas evidente ao leitor mais atento) ao uso de rótulos e categorias abstractas – construtos não raro inadequados para quem queira captar a dimensão vivencial e dinâmica dos problemas humanos.

4Ao invés, a linguagem do historiador, depurada e bem calibrada, recorre com frequência ao vocabulário da época – raramente a conceitos operatórios forjados pelas ciências sociais em tempos mais recentes. Como no volume anterior, a voz do historiador/narrador como que se apaga para dar lugar a verbos de acção através dos quais falam os próprios agentes históricos. Por exemplo, o marquês de Pombal a tomar medidas para a reconstrução de Lisboa destruída pelo terramoto. Pombal fala na primeira pessoa, sem aspas: “Por causa dos assaltos, proíbo a construção de ângulos salientes ou poiais nas paredes de fora… etc.” (p.225); ou D. Rolim de Moura, numa carta/relato de viagem à Amazónia, dirigida ao governador Furtado de Mendonça (1754), é um viajante que fala na primeira pessoa, sem aspas, dando conta de adversidades e perigos para os portugueses tais como a resistência dos “gentios”, doenças e mortes (pp.133-134). Ou Ratton dando conta da sua estratégia de aproveitamento da quinta da Barroca d’Alva. Na narrativa da viagem à Índia de D Leonor de Távora (1750), alternam passagens entre aspas e outras sem aspas (estas portanto assumidas pelo historiador, logo investidas de um valor de verdade), e há um episódio digno de menção: o comportamento diferenciado de homens e mulheres perante uma rija tempestade (aqueles bem mais assustados e atrapalhados, entre estas “nem o mais pequeno rumor”) em que até se deu uma “chuva de laranjas”, quando se romperam as redes em que iam guardados estes frutos (p.110).

5Exemplos de empolgantes narrativas de acontecimentos e do seu impacto são a do terramoto de Lisboa de 1755 ou a do atentado ao rei D. José. Ou ainda o relato dramático da aplicação das penas aos culpados da tentativa de regicídio: oito homens e uma mulher da alta nobreza (entre eles um duque, dois marqueses, uma marquesa e um conde). A narrativa tensa dos interrogatórios e das execuções do duque de Aveiro e dos Távoras chega então a extrema crueza na execução da marquesa de Távora e dos seus filhos José Maria e Luís Bernardo (entre os restantes supliciados), o que dá bem ao leitor o carácter implacável da acção do despotismo pombalino (p.197). O historiador remata telegraficamente, acentuando o contraste brutal entre a violência dos suplícios na execução das penas de morte e os rituais da corte: “As cinzas foram lançadas ao Tejo. No dia seguinte houve beija-mão de toda a corte”. Poucos meses depois, Pombal era elevado a conde de Oeiras e premiado com diversas mercês, propriedades e comendas. O leitor que interprete e retire as suas conclusões.

6Estes exemplos revelam um processo complexo de construção historiográfica. E bem poderia inscrever-se no debate ainda tão actual, que se reacendeu desde os anos 70 entre os historiadores ocidentais (Hayden White, Paul Veyne, Roger Chartier, entre outros), acerca das fronteiras entre história e ficção. Evidentemente, em Borges Coelho nota-se sempre o cuidado de não transpor essa linha porosa. Mas nele encontra-se o historiador artista que trata a língua amorosamente, com paixão e rigor. E, ao mesmo tempo joga nessa fronteira com o leitor, abrindo e fechando aspas no uso das fontes, como se perguntasse recorrentemente: até que ponto a autenticidade e verosimilhança de uma narrativa da época pode encerrar verdade histórica?

7Registem-se outras características diferenciadoras desta obra. Por um lado, não segue qualquer espírito de sistema determinista. Os conflitos sociais e a acção dos homens são sempre de resultado incerto. Por outro, a não preocupação de exaustividade (mas poderá algum historiador ser exaustivo?). Em qualquer trabalho historiográfico há sempre opção por um ponto de vista. Pela escolha de certos tópicos. Por certas fontes, em detrimento de outras. Também neste Portugal na Época das Luzes há cuidadosa selecção de fontes e estudos (devidamente abonados em poucas mas significativas notas de rodapé). E o tratamento dos temas parte por vezes do exemplo concreto, da narrativa de casos sintomáticos. Se há problemática que esteja no centro da atenção de António Borges Coelho é precisamente a do homem concreto, de carne e osso, com as suas dificuldades e anseios, com a sua experiência de vida e expectativas. Há uma atenção muito especial aos grupos sociais e aos conflitos sociais: levantamentos populares no continente. Por exemplo, o levantamento no Porto contra os privilégios da Companhia das Vinhas do Alto Douro que agravavam a vida dos taberneiros, das camadas populares e até dos ingleses. O historiador narra a revolta popular, a intervenção do exército e o brutal desfecho em que, além de numerosos exilados políticos, houve 26 condenados à morte, enforcados. Mas há também alusão a conflitos entre os colonos portugueses e espanhóis e os Guaranis no Brasil. Ou o conflito entre o poder central do estado absoluto, a Companhia de Jesus e sectores da nobreza que se inscreve, confronto afinal decisivo entre o Estado e a Igreja (mas não toda a Igreja), entre despotismo esclarecido pombalino e ultramontanismo.

8Borges Coelho não esquece a geografia alargada em que se movem as comunidades humanas, os tão diferenciados e dispersos territórios do império português que se desenvolvem a partir do Atlântico, os entrepostos africanos, o Brasil e o Oriente. Uma detalhada incursão pelo Portugal da administração local e regional, em que se torna evidente que as estruturas políticas e administrativas que pesam não são apenas as do estado central. Note-se ainda a preocupação de situar Portugal no contexto europeu, o da Europa das Luzes, dos filósofos iluministas que tiveram considerável eco entre as elites nacionais. Tempo que o autor caracteriza em breves palavras como “De Luzes e sombras. De levantamentos de camponeses. De guerras de resistência dos índios. Dos quilombos dos escravos negros fugitivos. Das Guerras de Sucessão de Espanha, na Polónia e na Áustria. Da Guerra dos Sete Anos. Das guerras do centro, do leste e do norte da Europa. Das revoluções e das guerras contrarrevolucionárias”. O historiador não esquece o campo da cultura, do ensino (dos estudos menores à reforma da Universidade de Coimbra), da censura. E pergunta: “Até onde vão as Luzes?”. O que é perguntar por outras palavras: até onde foi a modernidade do despotismo esclarecido?

9A estimulante leitura deste livro bem pode ser uma introdução à compreensão do pombalismo. Dá a conhecer fontes da época e constrói a partir delas uma narrativa fundamentada. E uma leitura da sociedade portuguesa que, ainda que não explicitamente, leva o leitor a interrogar-se no final: como compreender a tão rápida queda de Pombal, após ter alcançado o fastígio da glória? A concluir, duas palavras sobre o historiador e o seu percurso. Estamos perante um trajecto de grande coerência e originalidade, iniciado nos anos 60, então em condições adversas de repressão e censura. Estudou temas da maior relevância, subalternizados ou esquecidos no tempo em que a eles se dedicou (ou tratados de um modo enviesado pelo nacionalismo do Estado Novo): a revolução de 1383-85, a problemática da expansão portuguesa, a então esquecida cultura islâmica no território que viria ser Portugal, o pensamento de Espinosa, as minorias judaicas, o tribunal da Inquisição, a história de Lisboa, a cronística e a historiografia, a começar por Fernão Lopes e Herculano criticamente estudados e anotados nos dias de chumbo da prisão (leiam-se os relevantes estudos publicados recentemente no seu livro Oficiais da História, 2021) e tantos outros temas. Em todos eles, um enfoque central: os problemas humanos, os problemas sociais, a luta de classes. A diversidade de situações históricas e de vivências dos portugueses nos seus encontros com outros povos, por vezes pacíficos, outras de extrema violência. Sempre procurando historicizar os problemas para assim os compreender, Borges Coelho tem um estilo único, especialmente adequado a dar-nos o que há de mais diverso na vida humana: o horror e o sublime.

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Referência eletrónica

Sérgio Campos Matos, «António Borges Coelho, Portugal na Europa das Luzes. História de Portugal, vol. VII. Lisboa: Editorial Caminho, 2022, 288 pp. ISBN 9789722131469»Ler História [Online], 83 | 2023, posto online no dia 25 setembro 2023, consultado no dia 22 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/12354; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.12354

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