Luís Trindade, Silêncio Aflito. A sociedade portuguesa através da música popular (dos anos 40 aos anos 70). Lisboa: Tinta da China, 2022, 496 pp. ISBN 9789896716691
Texto integral
1A vida de uma canção é surpreendente. No seu devir, reúne múltiplos ingredientes que lhe podem garantir condições para o sucesso e longevidade, para o fulgor seguido de saturação e de rápido declínio, para a invisibilidade inglória ou para o ressurgimento tardio. A canção passa por compositores, letristas, arranjadores, cantores, músicos e maestros, produtores, técnicos, locutores e apresentadores, até que chega finalmente a uma audiência, através da qual se dissemina de forma imprevisível. Depende de organizações culturais e comerciais, de tecnologias e de estratégias de marketing, correspondendo melhor ou pior às tendências de mercado e às preferências das audiências. A canção ligeira é devedora dos progressos tecnológicos da indústria musical, está associada a públicos que aderiram às novas tecnologias da comunicação, nomeadamente a rádio, o cinema e a televisão e, enquanto produto da cultura de massas, é consumida por uma audiência urbana em crescimento contínuo.
- 1 Rui Vieira Nery, Para Uma História do Fado (Lisboa: Público e Corda Seca, 2004).
2Conceber e escrever uma história cultural da sociedade a partir das dinâmicas da canção é um desafio que, certamente, procura equilibrar as múltiplas variáveis em presença com a necessidade de estabelecer um fio condutor que, ao salvaguardar as especificidades e as importâncias relativas dessas mesmas variáveis, identifique, de forma sistemática, os diferentes, sucessivos e, por vezes, simultâneos contextos de produção, disseminação e recepção dos objectos culturais em circulação. No livro Silêncio Aflito. A sociedade portuguesa através da música popular (dos anos 40 aos anos 70), Luís Trindade estabelece um equilíbrio notável entre a imaginação necessária para recriar os modos de audição dessa produção musical e uma igualmente necessária historicidade que descreva as formas de circulação da música ligeira (17). Silêncio Aflito está dividido em quatro capítulos, com uma introdução e uma conclusão. O autor assinala cada um dos capítulos com uma canção referencial que servirá como estudo de caso, que ilumina e dá som e voz a contextos temporais específicos, mas que funciona também, com grande eficácia, como síntese agregadora das dinâmicas identificadas em cada capítulo. Silêncio Aflito, enquanto história cultural da sociedade portuguesa em torno da música ligeira, entre os anos 1940 e o início dos anos 1970, é um dos livros mais estimulantes dados à estampa em Portugal nos últimos anos, lembrando, salvaguardadas as devidas diferenças, a problematização inovadora do trabalho de Rui Vieira Nery na construção de uma história cultural da sociedade portuguesa em torno do fado.1
3Silêncio Aflito, tal como o título revela, retrata uma sociedade em permanente tensão entre uma tentativa omnipresente de cristalização, fundada na ideologia vigente do Estado Novo, e uma lenta mas irreprimível transformação da sociedade portuguesa no pós-guerra. Nesse contexto, em simultâneo, ocorria em Portugal um processo de americanização e de europeização, que dificilmente poderia ser controlado pelo poder político. Ocorriam, também, processos tardios de industrialização e de urbanização, controlados e centralizados estes pelos governos da ditadura. Tais dinâmicas geraram múltiplas contradições internas na sociedade, contradições essas que a emergente indústria cultural acabou por amplificar. Em Portugal, o desenvolvimento, em tempos distintos, da rádio e da televisão, ambos fortemente controlados e condicionados pelo estado, a par da proliferação da imprensa, sobretudo ilustrada, e do cinema, nomeadamente do cinema oriundo de Hollywood (139 e ss.), mas também de Itália e de França, muito populares junto dos públicos nacionais.
4Aquelas circunstâncias colocavam as audiências portuguesas numa permanente tensão entre a recepção de uma oferta internacional, que rompia com os cânones políticos, sociais e culturais do fascismo luso, e a de uma oferta cultural nacional de carácter oficial, produzida pelas organizações culturais e de comunicação, fortemente controladas e violentamente limitadas pelos mecanismos de censura em vigor, oferta essa que promovia a imagem de um país lento, católico e rural, de brandos costumes, assumidamente pobre mas orgulhosamente honrado, que se considerava como o último baluarte da civilização ocidental. Tratava-se de uma tensão que se evidenciaria também, já na década de 1950 mas sobretudo nos anos 1960, numa revolução material em curso no país, associada aos hábitos de consumo de uma população cada vez mais urbanizada, aberta a tendências internacionais e permeável aos imaginários publicitários que circulavam nos meios populares de comunicação, nomeadamente através da rádio, do cinema e das revistas. Neste contexto, o autor dá significativo destaque ao estatuto sociocultural da mulher moderna (37), aos seus hábitos de consumo e à ambivalência das transformações (44) do papel da mulher e da sua imagem na sociedade portuguesa.
5Em Portugal, a canção denominada ligeira e a música dita folclórica foram alvo de particular atenção por parte do estado, no âmbito da “Política do Espírito” gizada por António Ferro. Será sob a sua sombra tutelar que se desenvolverão as estratégias do Secretariado de Propaganda Nacional para a cultura e para as artes, quer no domínio dos espectáculos, e da música ligeira em particular, através da Emissora Nacional, quer no âmbito das artes plásticas, mas também da literatura e da imprensa. Neste contexto, a criação, em 1947, do Centro de Preparação de Artistas da Rádio (115 e ss.), a partir da Emissora Nacional, foi determinante para a produção e transformação dos cantores radiofónicos, contaminando o universo crescente da música ligeira: “Em 1955, o Centro de Preparação dos Artistas da Rádio tornara-se já o principal mecanismo legitimador da música ligeira” (108). Procurava-se, dessa forma, desenvolver e consolidar um sistema de estrelas da rádio, que circulavam nos espectáculos ao vivo por todo o país e que beneficiavam da cobertura mediática das revistas e da força do cinema nacional em que muitos também participavam como actores-cantores.
6Em 1957, o imparável progresso tecnológico trouxe a Portugal, embora tardiamente, a televisão. Tal como revelam as revistas ilustradas da época, a par da rádio e do cinema, embora também em competição com estes meios de comunicação, a RTP, detida inevitavelmente pelo estado, ocupará, em muito pouco tempo, um lugar central no sistema de produção e de circulação da música ligeira, tornando-se no novo mecanismo produtor de imagens, a alimentar o star system nacional, nomeadamente através do Grande Prémio TV da Canção Portuguesa e do Festival da Eurovisão (212 e ss.). Oscilava-se entre a afirmação de uma canção nacional, oriunda de uma tradição popular considerada genuína pelo poder, e uma inevitável tendência de internacionalização da música ligeira portuguesa por aproximação e correspondente homogeneização com a produção da indústria musical internacional. A televisão, sempre ao serviço da ditadura, alcançou gradualmente uma posição cimeira no quotidiano dos portugueses (162 e ss.), enquanto metáfora de progresso material e de bem-estar ao alcance de todos, contribuindo, por outro lado, para a consagração do entretenimento enquanto conquista social (307).
- 2 Cristina Montalvão Sarmento, Os Guardiões dos Sonhos. Teorias e práticas políticas dos anos 60 (Lis (...)
7As transformações sociais dos anos 1960 acompanharam o surgimento da canção yé-yé festiva e a posterior afirmação da música pop-rock em Portugal, as quais encontraram no desenvolvimento de uma cultura juvenil de matriz urbana e na afirmação gradual de um povo pop (312) um terreno fértil para a sua disseminação. O desenvolvimento da indústria discográfica, das tecnologias de gravação e de reprodução, a aquisição de instrumentos musicais e a crescente profissionalização dos artistas contribuíram para a afirmação de uma produção musical autónoma do star system oficial, gerando uma pulverização salutar de grupos, concertos, gravações e transmissões, aos quais a prática dos festivais veio dar, aos artistas e aos públicos, um fulgor celebratório e emancipador, que a imprensa especializada apoiava mas que o regime político identificava como uma ameaça (270 e ss.). No final da década de 1960, a juventude encontrara na música ligeira um veículo eficaz para manifestar a rebeldia e a resistência de uma geração contra um regime que se recusava a ouvir a voz das novas gerações.2 Naquele contexto, a ditadura e a democracia, as desigualdades sociais, a guerra e outras formas de violência, o racismo e o colonialismo surgiram natural e inevitavelmente como temas centrais da criação musical de uma geração de baladeiros que foi capaz de se autonomizar artisticamente e de dar voz a esses temas, em língua portuguesa e com novíssimas sonoridades, enfrentando, com a música e a palavra, a violência de um regime que não tolerava tal dissensão: “A década não foi apenas agitada: as imagens e os sons agitaram-na com uma intensidade inédita” (351).
- 3 O Cacau (da Ribeira), com música de Fernando Tordo, letra de José Carlos Ary dos Santos e orquestra (...)
- 4 Natália Correia, O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro (Lisboa: Ágora, 1973).
- 5 José Carlos Ary dos Santos, “O Turismo”, in Insofrimento in Sofrimento (Lisboa: Sociedade Astória, (...)
8Em Março de 1974, Sérgio Godinho recebeu, no Coliseu dos Recreios, em Lisboa, o prémio, atribuído pela Casa da Imprensa, de melhor disco de música ligeira para o LP Os Sobreviventes, que tinha sido lançado em 1972 pela Guilda da Música, etiqueta da editora Sassetti (462). A consagração dos baladeiros, como um coro da primavera (441), antecipara-se, dessa forma, à revolução. Depois da libertação festiva do 25 de Abril, parecia ter-se criado uma nova aflição, na espera pela “noite que acaba no dia/ e que nunca mais amanhece/ rápido olhar que se adia/ e que nunca mais acontece”. Esses e outros versos da autoria de Ary dos Santos eram cantados todas as noites por Tonicha, em Outubro de 1974, no Parque Mayer, na revista Uma no Cravo, Outra na Ditadura: “É no cacau da Ribeira/ que Lisboa se derrama/ dos poetas à rameira/ à procura de uma cama. […] É no cacau da Ribeira/ que a noite nunca se acaba/ e o dia recomeça/ no calor duma torrada”.3 Permaneciam no ar tensões e contradições, alimentando uma atmosfera simultaneamente implosiva e explosiva, em avalanches de palavras entrecortadas por silêncios abismais. A jovem liberdade precisaria de tempo para desanuviar “o sítio onde se chora”,4 para negociar os impasses acumulados no “país azul/ com mais hotéis do que hospitais”,5 e para enfrentar outras inquietações políticas, sociais e culturais que estavam já a eclodir na sociedade portuguesa.
Notas
1 Rui Vieira Nery, Para Uma História do Fado (Lisboa: Público e Corda Seca, 2004).
2 Cristina Montalvão Sarmento, Os Guardiões dos Sonhos. Teorias e práticas políticas dos anos 60 (Lisboa: Edições Colibri, 2008); Rui Bebiano, O Poder da Imaginação. Juventude, rebeldia e resistência nos anos 60 (Coimbra: Angelus Novus, 2003).
3 O Cacau (da Ribeira), com música de Fernando Tordo, letra de José Carlos Ary dos Santos e orquestração de Pedro Osório, foi interpretada por Tonicha na revista Uma no Cravo, Outra na Ditadura, estreada no Teatro ABC, em Lisboa, a 24 de Outubro de 1974. A canção seria incluída no LP As Duas Faces de Tonicha, lançado pela Zip Zip (Sassetti), em Dezembro de 1974.
4 Natália Correia, O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro (Lisboa: Ágora, 1973).
5 José Carlos Ary dos Santos, “O Turismo”, in Insofrimento in Sofrimento (Lisboa: Sociedade Astória, 1969).
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Referência eletrónica
Carlos Vargas, «Luís Trindade, Silêncio Aflito. A sociedade portuguesa através da música popular (dos anos 40 aos anos 70). Lisboa: Tinta da China, 2022, 496 pp. ISBN 9789896716691», Ler História [Online], 83 | 2023, posto online no dia 25 setembro 2023, consultado no dia 17 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/12340; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.12340
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