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Recensões

António Costa Pinto (coord), O Estado Novo de Salazar. Uma Terceira Via Autoritária na Era do Fascismo. Coimbra: Edições 70, 2022, 340 pp. ISBN 9789724426143

Pedro Aires Oliveira

Texto integral

1Quão “global” foi o apelo do salazarismo, um regime eminentemente nacionalista e paroquial, liderado por um ditador tímido e misantropo, que enquanto chefe de governo não visitou outro país estrangeiro que não a vizinha Espanha? No que toca à sua reputação internacional, habituámo-nos a avaliar o salazarismo pelo prisma do seu relativo isolamento e anacronismo nas décadas de 1960 e parte de 1970 – uma era de europeização, descolonização e grandes sobressaltos sociais e culturais. Mesmo que a teimosa defesa do império colonial lhe pudesse granjear ainda alguma admiração residual (sobretudo entre círculos direitistas mais marginais), o sentimento geral entre adeptos do conservadorismo na Europa e outras partes do mundo seria, sobretudo, de incredulidade e alguma condescendência relativamente a um regime tão notoriamente desfasado das grandes tendências políticas e culturais do pós-II Guerra Mundial. Essa dimensão anacrónica seria ainda acentuada pelo espetáculo burlesco dos últimos meses de vida de Salazar, nos quais um octogenário diminuído foi levado a acreditar, pelos seus colaboradores mais dedicados, que ainda detinha as rédeas do poder. Ora, este livro de António Costa Pinto vem lembrar-nos de que nem sempre foi assim. Houve um momento histórico, entre o início dos anos 1930 e uma boa parte da década de 1940, em que o salazarismo estava na crista da onda e parecia encarnar uma alternativa viável não apenas a uma democracia liberal em crise, mas também a outros “ismos” que muitos indivíduos situados politicamente à direita hesitavam em abraçar, como o nacional-socialismo alemão e o fascismo italiano.

2Através de uma série de estudos de caso que cobrem vários países europeus e latino-americanos, o volume coordenado por Costa Pinto leva-nos a esse país estranho que é o passado, para citar aqui a célebre abertura de The Go-Between (1953) que o organizador, ele próprio, tanto gosta de evocar. Em vários aspetos, este empreendimento culmina um esforço notável que Costa Pinto tem realizado nas últimas décadas no sentido de inscrever o salazarismo no quadro dos grandes debates académicos internacionais, e do qual são testemunho vários volumes coordenados individualmente ou em parceria com outros colegas, em prestigiadas editoras académicas. Em termos metodológicos, depois de um maior investimento numa perspetiva comparativa (muito em voga na ciência política e na sociologia histórica até finais do século XX), Costa Pinto revela agora uma maior apetência pelas abordagens transnacionais e “entrecruzadas”, bem em linha com as tendências cutting edge da historiografia internacional, incluindo a do fascismo. Como sabemos, este é um exercício que tem tanto de gratificante como de exigente. As competências linguísticas e a variedade de fontes que a história transnacional pode requerer dificilmente estarão ao alcance de um só investigador, pelo que o trabalho em equipa, e o formato do volume editado, é muitas vezes a opção mais pragmática e viável. Isso por vezes tem um senão, que é o de dar origem a obras demasiado fragmentadas e de qualidade desigual. Felizmente, não é este o caso. O trabalho de coordenação foi competentemente realizado e, apesar de algumas discrepâncias, conseguiu-se aqui que um número muito significativo de capítulos seguisse um conjunto de hipóteses de trabalho e premissas metodológicas afins, garantindo-se assim a coesão da obra.

3A principal questão que se procurava averiguar era a de perceber até que ponto o Estado Novo de Salazar, e em particular o seu aparato corporativo (em parte decalcado do fascismo italiano), teria constituído uma “terceira via” inspiradora para vários regimes e movimentos políticos numa conjuntura de crise política (a erosão das democracias parlamentares do pós-guerra), económica (o impacto da Grande Depressão) e até mesmo “civilizacional” (o questionamento das certezas do liberalismo burguês na ressaca da I Guerra Mundial). É certo que outros regimes dotados de alguma “hibridez” (a ditadura de Miguel Primo de Rivera em Espanha, ou o “Austro-fascismo” de Engelbert Dollfuss) poderão também ter exercido alguma atração, mas o seu carácter mais efémero, e até menos estruturado em termos doutrinários, fez com que o seu lastro fosse menos relevante do que o do salazarismo. Esta é porventura a primeira tentativa de rastrear sistematicamente a projeção, e apropriação, transnacional do salazarismo, o que lhe confere uma assinalável dimensão inovadora.

4Um capítulo introdutório do coordenador (“Em busca de uma terceira via. A ditadura de Salazar e a difusão dos modelos autoritários na era do fascismo”) revela-nos a sua aptidão bem conhecida pelas sínteses ancoradas na discussão de problemas e hipóteses teóricas, bem como um conhecimento invejável da literatura especializada. Nesta visão de conjunto, assume especial relevância o conceito, cunhado por Marianne Kneuer e Thomas Demmelhuber, de “centro de gravidade autoritário”, o qual nos coloca de prevenção em relação a uma difusão transnacional do salazarismo como mera operação de marketing político orquestrada pelo Secretariado de Propaganda Nacional e o seu dinâmico coordenador, António Ferro (não obstante o contributo que estes deram para a projeção além-fronteiras do Estado Novo).

5Na realidade, o livro oferece-nos uma visão bem mais fina dos mecanismos e canais de circulação de ideias e imagens, em suma, das “transferências culturais”. Certamente que os “intelectuais-políticos” (p. 22, n. 9), através das suas redes e meios de influência próprios, foram agentes determinantes nesse processo, como fica abundantemente claro ao longo de vários capítulos – e não deixa de ser interessante, aliás, verificar a proliferação de intelectuais muitas vezes investidos no papel de diplomatas e oficiais de propaganda. Alguns (poucos, na verdade) ainda são nomes que qualquer leitor bem informado facilmente reconhece, como o romeno Mircea Eliade, adido de imprensa da embaixada romena em Lisboa entre 1941 e 1945; outros, porém, são perfeitamente obscuros (e vagamente demenciais), trazendo-nos à memória alguns personagens da Literatura Nazi nas Américas (1996), de Roberto Bolaño.

6No entanto, muita da atratividade do salazarismo resultaria da fórmula mágica que este parecia oferecer para todos os descontentes com a ordem liberal-democrática (e o bolchevismo, bem entendido) que, por algum motivo, evitavam lançar-se nos braços do nazismo ou do fascismo. Ora por razões geopolíticas, ora por temerem o “paganismo” ou outras dimensões da vertigem totalitária, muitos conservadores, sobretudo os de orientação mais confessional, renderam-se à combinação alegadamente sensata e moderada do Estado Novo. Os que visitavam o país ficavam encantados com o aspeto ordeiro, asseado e tranquilo de Lisboa e outras cidades portuguesas; muitos escreviam de volta artigos reproduzindo os indicadores estatísticos da “ressurreição” portuguesa, depois de décadas de balbúrdia liberal-republicana. E entre os que conseguiam uma entrevista ou audiência privada com Salazar, raros eram os que não sucumbiam à sua “aura platónica” de ditador-filósofo (algo que perdurou bem pela Guerra Fria adentro, conquistando eminentes políticos de várias democracias ocidentais).

7Em termos de distribuição geográfica, o volume agrega contribuições que se reportam aos contextos nacionais de França (Olivier Dard e Ana Isabel Sardinha Desvignes), Países Baixos (Robin de Bruin), Dinamarca (Joachim Lund), Grécia (Aristotle Kallis), Hungria (José Reis Santos), Brasil (Leandro Pereira Gonçalves e Pedro Ivo Dias Tanagino; Luciano Aronne de Abreu e Gabriel Duarte Costa Guta), Equador, Colômbia, Peru (Carlos Espinosa), Chile e Argentina (Gabriela Gomes). Nalguns destes capítulos, é possível ver como a conexão católica foi absolutamente crucial. Como sublinha Costa Pinto: “Em alguns casos, o Estado Novo serviu como um modelo precoce de «democracia orgânica», mais afastado do fascismo. Simultaneamente, noutros contextos, particularmente nos regimes da Europa controlada pelo Eixo, foi apresentado como sendo compatível com este” (p. 28). Em suma, Portugal oferecia uma síntese apelativa para muitos católicos reacionários inconciliados com a modernidade ou traumatizados com as investidas secularistas típicas de algum liberalismo. Nesta apropriação do salazarismo, assumiram particular saliência certos intelectuais e/ou clérigos jesuítas (uma ordem bem adestrada nesses combates), da Hungria à Argentina – o que nos faz acreditar que a história transnacional da Companhia tem ainda um ângulo que carece de ser estudado com maior profundidade.

8Noutros contributos, o que ressalta é sobretudo o apelo da síntese corporativa, que por sinal esteve longe de seduzir apenas fascistas e reacionários. Em vários países europeus, incluindo alguns com tradições democráticas e trabalhistas respeitáveis, o “meio-termo” corporativo atraiu um certo número de católicos progressistas, liberais e sociais-democratas não-marxistas, como bem demonstra Robin de Bruin no seu ensaio sobre as receções do salazarismo nos Países Baixos entre 1933 e 1946. E apesar de “maculado” pelas suas associações ao fascismo italiano, e depois ao esclerótico regime português na década de 1960, o corporativismo enquanto ideologia potencialmente conciliadora entre capital e trabalho não deixaria de conhecer um revivalismo nas democracias consolidadas do pós-guerra, como notava em 1974 um dos estudiosos mais sérios do fenómeno, o politólogo Philippe C. Schmitter. Se os jesuítas se distinguiram na “rota católica”, na do corporativismo o protagonismo recairá porventura nos juristas e professores de Direito, construtores incansáveis dos edifícios teóricos da “terceira via”, cujos debates afloram em vários capítulos da obra.

  • 1 Timothy W. Ryback, Hitler’s Private Library. The Books that Shaped His Life (New York: Vintage Book (...)

9Para um leitor menos versado nas histórias nacionais convocadas para este volume algumas discussões acabam, inevitavelmente, por se revestir de alguma aridez. Felizmente, o capítulo assinado por Duncan Simpson e Rita Almeida Carvalho introduz aqui alguma leveza (que não deve ser confundida com ligeireza). O seu estudo sobre os livros estrangeiros da biblioteca de Oliveira Salazar, esmiuçando a correspondência que foi possível identificar na Torre do Tombo para enquadrar certas ofertas e dedicatórias, é a vários títulos fascinante e deixa-nos convencidos de que os autores têm um livro em potência, na esteira do que outros historiadores têm feito em relação às bibliotecas pessoais de ditadores como Adolf Hitler ou Josef Estaline.1 Num balanço geral, certamente que poderíamos apontar alguns outros estudos de caso promissores para um volume com esta ambição – países como a Bélgica, Roménia, Irlanda ou Reino Unido, por vezes aflorados em vários capítulos, vêm-nos à mente. Mas isso não retira mérito e interesse a este empreendimento, que rasga novas linhas de pesquisa e confirma o seu coordenador como um dos nomes cimeiros da literatura internacional sobre as direitas do século XX.

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Notas

1 Timothy W. Ryback, Hitler’s Private Library. The Books that Shaped His Life (New York: Vintage Books, 2008); Geoffrey Roberts, A Biblioteca de Estaline. Um Ditador e os Seus Livros (Lisboa: Livros Zigurate, 2023).

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Pedro Aires Oliveira, «António Costa Pinto (coord), O Estado Novo de Salazar. Uma Terceira Via Autoritária na Era do Fascismo. Coimbra: Edições 70, 2022, 340 pp. ISBN 9789724426143»Ler História [Online], 83 | 2023, posto online no dia 25 setembro 2023, consultado no dia 17 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/12334; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.12334

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Pedro Aires Oliveira

IHC/NOVA FCSH-IN2PAST, Portugal

mpoliveira@fcsh.unl.pt

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