As insígnias municipais e os primeiros armoriais portugueses: razões de uma ausência
Resumos
O presente artigo traça uma visão panorâmica da origem e características dos primeiros armoriais portugueses, quer documentais quer monumentais, existentes entre os séculos XIV e XVI. Verificando a ausência da heráldica municipal, e atendendo ao teor e às circunstâncias de produção de tais obras, procura-se explicar as causas sociais e políticas de tal exclusão. Por fim, analisa-se o aparecimento das armas municipais no armorial compilado em meados do século XVI por Brás Pereira Brandão, que estabelece um determinado modelo de apresentação e de reflexão sobre a temática das insígnias autárquicas.
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1O presente texto constitui parte da tese de doutoramento subordinada ao título Heráldica, representação do poder e memória da nação: o armorial autárquico de Inácio de Vilhena Barbosa. Para compreender as raízes do fenómeno de compilação de armas municipais, houve que levar por diante o levantamento dos armoriais existentes em Portugal durante o Antigo Regime, para neles aquilatar tal presença. Nesse contexto, verificou-se a ausência deste género de emblemas nos primeiros armoriais portugueses. Indagando as razões dessa inexistência, procurou-se relacioná-la com a utilidade política e social de que se revestiu a heráldica na transição da Idade Média para a Moderna. A exposição deste artigo parte da definição do conceito de armorial e do estado da questão dos respectivos estudos; desenvolve-se com o estabelecimento de uma relação dos primeiros armoriais portugueses; para depois intentar compreender como tais códices ou monumentos foram usados pela Coroa como instrumentos de centralização do poder. Por fim, analisam-se as circunstâncias em que se deu a irrupção das armas municipais em tais compilações, já na segunda metade do século XVI.
- 1 Louis Holtz, Michel Pastoureau, Hélène Loyau (dir.), Les armoriaux médiévaux. Actes du colloque int (...)
2Os selos e os armoriais constituem as principais fontes para o estudo das armas medievais. Todavia, ao passo que os primeiros foram há longo tempo objecto de estudo aturado, tendo dado origem a um ramo do saber histórico denominado sigilografia, o conhecimento dos segundos não tem sido alvo de sistematização, permanecendo numa relativa obscuridade. De forma a suprir tal limitação, o colóquio internacional de heráldica, reunido em Paris em 19941, foi dedicado aos armoriais, focando-se na importância do seu estudo, a começar pela catalogação e edição, e procurando abranger não só os códices escritos ou iluminados em papel ou pergaminho, mas também as decorações armoriadas em imóveis, capitéis, vitrais, tecidos e bordados.
- 2 Claire Boudreau, L’Héritage symbolique des hérauts d’armes. Dictionnaire encyclopédique de l’enseig (...)
- 3 Anthony Richard Wagner, Heralds and Heraldry in the Middle Ages. An Inquiry into the Growth of the (...)
- 4 Paul Adam-Even, «Les armoiries étrangères dans les armoriaux français du Moyen Âge», Hidalguía, n.º (...)
- 5 No volume da colecção «Typologie des Sources du Moyen Âge Occidental» dedicado às fontes heráldicas (...)
- 6 Desde que foram enunciadas em meados do século XX, tais classificações tornaram-se um instrumento d (...)
3A primeira pergunta a formular diz respeito à definição do conceito de armorial. Na apresentação das actas do colóquio de Paris, Michel Pastoureau define os armoriais como documentos ou suportes patrimoniais nos quais se inscreve a recolha e descrição de um conjunto de armas. As mais antigas dessas recolhas de armas foram realizadas na Idade Média, datando do século XIII. Existe um estudo de síntese a respeito de tais compilações realizado por Claire Boudreau para o período de transição entre a Idade Média e a Moderna2. De acordo com a escola do College of Arms de Londres, patente nas definições de Anthony Wagner3, bem como com a escola francesa, iniciada por Paul Adam-Even4, consagrada com Michel Pastoureau5 e Claire Boudreau, tais armoriais podem ser classificados conforme o tipo do seu conteúdo6:
Armoriais ocasionais: aqueles que coligem as armas de determinados personagens reunidos para uma ocasião especial, comummente de teor militar (campanha, cerco, cruzada, torneio, parada) ou político (concílio, tratado, assembleia). São geralmente compilados na mesma circunstância ou pouco depois e revelam-se cuidadosos quanto às informações heráldicas, genealógicas e sociais. Constituem a maior parte dos armoriais anteriores ao século XIV.
Armoriais institucionais: recordam as armas de personagens pertencentes a determinados corpos (ordens de cavalaria, confrarias, mesteres). A sua compilação pode estender-se por vários decénios ou mesmo séculos. São quase sempre de cuidadosa execução gráfica, apresentando amiúde iluminuras que lhes conferem um carácter prestigioso.
Armoriais gerais: são aqueles que procuram recensear um elevado número de armas (geralmente nobres) provenientes duma vasta área geográfica: por vezes um conjunto de condados, amiúde um reino ou um país, ou até mesmo a Cristandade. Como as armas são por regra classificadas pela sua origem geográfica, os eruditos do Antigo Regime apelidaram estes armoriais de provinciais, o que se aplicará hoje preferencialmente às compilações que privilegiam uma determinada circunscrição territorial (feudo, província, etc.). A designação mais corrente na actualidade é a de armoriais universais, sobretudo nos casos em que compreendem também armas de entidades imaginárias (heróis de romance, figuras mitológicas, vícios e virtudes, personagens bíblicas ou históricas de períodos pré-heráldicos) ou que viveram em tempos pré-heráldicos (reis e heróis da Antiguidade e da Alta Idade Média). Estes armoriais, de valor desigual, são quase sempre produto de oficiais de armas, e é comum a sua compilação estender-se por vários decénios. Formam a fonte mais importante para o estudo das armas dos séculos XIV e XV. Paul Adam-Even propõe a noção de armorial especial para aquele que regista as armas de todos os vassalos do mesmo suserano.
Armoriais sistemáticos: aqueles em que as armas são classificadas por sistematização das figuras. Sempre obras de oficiais de armas, estas recolhas têm por objectivo permitir uma rápida identificação dos escudos. São escassos, concentrando-se a sua existência principalmente em Inglaterra e Escócia.
Armoriais secundários: são obras literárias ou narrativas nas quais a recolha heráldica não constitui o objectivo essencial, mas em que as armas abundam ao ponto de constituir, depois de reunidas, uma espécie de armorial. Pode tratar-se de armas verdadeiras ou imaginárias, brasonadas no texto dum romance, duma canção de gesta, do relato dum torneio, duma crónica, ou pintadas à margem do texto ao pé do nome dos armígeros.
- 7 Livro do Armeiro-mor, organizado e iluminado por Jean du Cros (estudo de António Machado de Faria), (...)
- 8 António Godinho, Livro da nobreza e perfeiçam das armas, Lisboa: Inapa, 1987, pp. 9-75. Estes autor (...)
- 9 Afonso de Dornelas, «O Livro do Armeiro-mor ou Livro Grande», Archivo do Conselho Nobiliarchico, vo (...)
- 10 António Machado de Faria, «Quem ordenou e iluminou o Livro do Armeiro-mor?», Arqueologia e História (...)
- 11 Francisco de Simas Alves de Azevedo, Uma interpretação histórico-cultural do Livro do Armeiro-mor. (...)
- 12 António Rodrigues, Tratado Geral de Nobreza, Porto: Biblioteca Pública Municipal, 1931, pp. I-XXII.
- 13 Livro de Arautos (estudo codicológico, histórico, literário e linguístico, texto crítico e tradução (...)
- 14 João Paulo de Abreu e Lima, «“Europe Arma”. Um códice português armoriado de 1416», Boletim da Acad (...)
- 15 Werner Paravicini, «Signes et couleurs au Concile de Constance: le témoignage d’un héraut d’armes p (...)
- 16 Manuel Artur Norton, A Heráldica em Portugal. 1.ª Parte. Livro que trata da origem dos reis e quant (...)
4Os armoriais escritos, desenhados ou iluminados têm sido alvo de escassos estudos em Portugal. Na verdade, os trabalhos publicados limitam-se à análise de casos específicos, não existindo nenhuma visão de conjunto sobre a produção portuguesa. Alguns desses estudos acompanham a edição da respectiva obra, como os que foram dedicados aos dois grandes armoriais quinhentistas: António Machado de Faria e depois José Guilherme Calvão Borges estudaram o Livro do Armeiro-mor7, ao passo que Martim de Albuquerque e João Paulo de Abreu e Lima trataram do Livro da Nobreza e Perfeiçam das Armas8. O primeiro destes brasonários foi também estudado em breves artigos de Afonso de Dornelas9 e de António Machado de Faria10, e depois, em publicação autónoma, por Francisco de Simas Alves de Azevedo11. Se compreendermos na definição de armorial o último item proposto por Pastoureau, ou seja, os armoriais secundários, podemos contar ainda com o estudo dos conjuntos heráldicos compreendidos dentro de tratados de brasão, de obras nobiliárquicas ou geográficas, como o que Afonso de Dornelas dedicou ao Tratado de Nobreza de António Rodrigues, rei de armas Portugal12; Augusto Aires Nascimento13, João Paulo de Abreu e Lima14 e Werner Paravicini15 ao De Ministerium Armorum do arauto Constantinopla; e Manuel Artur Norton ao Livro que trata da origem dos reis de António Coelho, também ele rei de armas Portugal16.
- 17 A. Machado de Faria de Pinna Cabral, António Soares de Albergaria heráldista do século XVII. Subsíd (...)
- 18 Michel Pastoureau, «Présentation», op. cit., pp. 15-16.
5Apenas António Machado de Faria, no estudo que devotou a António Soares de Albergaria17, lançou a ideia da existência de uma certa continuidade do saber heráldico transmitido por via dos armoriais e dos tratados de brasão, dando notícia incompleta do conjunto de escritos deste género produzidos em Portugal durante a Idade Moderna. Trata-se, porém, de uma indicação incipiente, tornando-se impreterível a elaboração de uma listagem de tais obras, que venha a possibilitar a sua catalogação e estudo comparado. Tal esforço justifica-se, pois, como indica Pastoureau, as informações fornecidas pelos armoriais são deveras diversificadas18. Para o heraldista, os armoriais trazem antes de mais indicações cromáticas ausentes dos selos, para além de permitirem a observação de pormenores (tais como as diferenças) difíceis de notar noutras fontes. Para o codicólogo, os armoriais oferecem uma documentação rica e complexa, capaz de lançar desafios que obrigam ao questionamento metodológico. Para o filólogo, os armoriais escritos constituem uma fonte única no que toca à forma de o homem medieval ou moderno descrever a realidade que observa. Por fim, para o antropólogo, para o historiador da família, da sociedade, do parentesco, para o prosopografista, os armoriais fornecem material abundante e propício à comparação com outras fontes, quer de natureza escrita, quer iconográfica.
6Conforme a metodologia proposta pelo colóquio parisiense de 1994, o estudo de um armorial deve ter em atenção uma série de perguntas essenciais: qual o critério de ajuntamento das armas seleccionadas? Quem o realizou? Para quem? Em que contexto? A partir de que fontes? Com que meios? Com que intenções? Quais são as armas ausentes e que deveriam estar presentes? Quais são os dispositivos codicológicos ou monumentais escolhidos? Quais as sequências, qual a estrutura de listas formada pelas armas escolhidas? Como foi feito o trabalho de selecção, de cópia, de realização?
- 19 Idem, Ibidem, p. 17.
- 20 Emmanuel de Boos, «Les décors héraldiques sont-ils des armoriaux?», in Louis Holtz; Michel Pastoure (...)
7No que se refere aos armoriais entendidos para além dos documentos escritos, desenhados ou iluminados, deverá reter-se que «os conjuntos de armas pintadas ou esculpidas em monumentos ou objectos podem constituir verdadeiros armoriais»19. Como aponta Emmanuel de Boos20, a descoberta ou redescoberta de decorações civis armoriadas tem levado, nos últimos 20 anos, à procura, por parte de arqueólogos e de historiadores da arte, de modelos de descrição e apresentação dos escudos encontrados. Para esse efeito, tais investigadores recorreram aos especialistas, isto é, aos heraldistas, e apresentaram as suas análises como repertórios de brasões, ou seja, como armoriais. Por seu lado, os heraldistas perceberam de imediato o valor daquela fonte de conhecimentos heráldicos, interpretando-a como se fosse um armorial. Convém, no entanto, tentar perceber se as decorações armoriadas funcionaram efectivamente como armoriais, ou se são apenas entendidas como tal pelos investigadores contemporâneos. Antes de mais, qual o conceito de decoração armoriada? Devem ter-se em conta todos os ornamentos aplicados a um edifício ou a uma parte dum edifício (tecto, lareira, escada) ou a um objecto (por exemplo, um escrínio ou um cálice), ornamentos compostos no seu todo ou em parte por armas reais ou imaginárias, representadas em escudos ou soltas, e organizadas segundo um programa que poderá ser simples ou complexo. As decorações armoriadas distinguem-se das marcas de posse heráldicas, embora, por vezes, esta distinção não seja linear. Para esse efeito, é necessário considerar, sobretudo, a questão da existência de um programa heráldico.
8As relações entre as decorações armoriadas e os armoriais são menos evidentes do que poderia parecer à primeira vista. Com efeito, os armoriais medievais não são livros luxuosos, mas antes objectos discretos, fruto de erudição, sujeitos a uma divulgação limitada, uma vez que se destinavam a consulta do próprio autor/compilador, ou de outros arautos, ou ainda de personagens que exerciam funções diplomáticas ou protocolares. Só na segunda metade do século XV é que os armoriais tendem a adquirir características monumentais. Em contrapartida, o aspecto das decorações armoriadas é inteiramente diverso: trata-se em geral de obras luxuosas, de custos elevados, em que as armas raramente são representadas sozinhas, antes se inserem em conjuntos decorativos cujos ornamentos desempenham um papel semelhante ao da decoração iluminada dos manuscritos. Tais decorações têm uma relação intrínseca com a arquitectura e destinam-se a ser vistas por um número elevado de pessoas, mesmo quando se situam em espaços privados. Ponto comum entre os armoriais e as decorações armoriadas: em ambos os casos, encontramo-nos diante de recolhas de armas que obedecem a uma directriz coerente. A proximidade entre as decorações armoriadas e os armoriais é mais clara no caso dos armoriais ocasionais.
- 21 Anselmo Braamcamp Freire, Brasões da Sala de Sintra, Lisboa: IN/CM, 1973, 3 vols.
- 22 Martim de Albuquerque, «Ainda o tecto da sala dos brasões em Sintra», in Estudos de Cultura Portugu (...)
- 23 Para aquilatar a variedade e o arco cronológico abrangido por este género de armoriais, basta citar (...)
9Seguindo este conceito mais lato de armorial, verifica-se que alguns dos armoriais patrimoniais portugueses já foram objecto de análise. Anselmo Braamcamp Freire desempenhou neste âmbito um papel pioneiro com o estudo da sala dos brasões do paço de Sintra, devendo porém ressalvar-se que tal obra, não obstante o seu título e a inegável erudição com que foi escrita, se situa muito mais no domínio da genealogia e da história política e social do que propriamente no da heráldica21. O armorial da sala de Sintra apresenta um carácter extraordinário no panorama português, quer pela sua monumentalidade e dimensão política, sendo uma plastificação da intenção centralizadora da Coroa, quer ainda pela interessante relação que permite estabelecer entre o ofício de armas e o de pintor régio. O tecto do paço de Sintra foi estudado por Martim de Albuquerque22, que procurou enquadrá-lo na produção de outros brasonários coevos e atribuiu a sua autoria a Jorge Afonso, pintor ao serviço do rei D. Manuel I. Alguns outros armoriais patrimoniais portugueses, não obstante serem por vezes referidos, aguardam que lhes seja dedicada atenção específica, como o conjunto da capela do fundador e das capelas imperfeitas no mosteiro de Nossa Senhora da Vitória, na Batalha; ou o friso heráldico da capela do cardeal D. Jaime de Portugal na igreja de San Miniato al Monte, em Florença. Existem, no entanto, diversos outros armoriais patrimoniais dispersos por Portugal, a alguns dos quais foram dedicados escassos estudos23.
10Estabelecido o conceito de armorial e apresentada a abordagem metodológica que se tem vindo a usar para o seu estudo, caberá indagar acerca da existência de armoriais em Portugal, para procurar depois averiguar se tais compilações incluíam ou excluíam a heráldica municipal. Os primeiros armoriais portugueses de que existe notícia datam do século XIV, sendo todos eles ocasionais:
- 24 Marquês de Abrantes, Introdução ao estudo da heráldica, Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portu (...)
- 25 Cfr. Bernardo Vasconcelos e Sousa, «Vencer ou morrer. A batalha do Salado (1340)», in Francisco Bet (...)
O Rroll dos Sygnaes e pendons dos caualleyros portugueses que forom na Batalha do Çellado, cuja existência se conhece pelo inventário da livraria de D. Manuel de Castelo Branco, segundo conde de Vila Nova de Portimão24, era, como a designação indica, um armorial comemorativo da batalha do Salado, considerada na sua época como decisiva para o triunfo da Reconquista, para a continuidade do país e para a glória de D. Afonso IV e da nobreza portuguesa que nela tomou parte25;
- 26 Fernão Lopes, Crónica do Senhor Rei Dom Fernando Nono Rei destes Regnos, Porto: Civilização Editora (...)
A cobertura de cama realizada para o casamento de D. Beatriz, filha do rei D. Fernando I, com Eduardo Plantageneta, conde de Cambridge, cuja «bordadura darredor era toda darchetes daljofar, dentro iguaaes seguras daljofar, brolladas das linhageens de todollos fidallgos de Portugal, com suas armas açerca dessi»26;
- 27 O único autor a debruçar-se especificamente sobre o tecto da colegiada de Nossa Senhora da Oliveira (...)
O atrás citado tecto da igreja de Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães, que constitui um armorial comemorativo da batalha de Aljubarrota, com a figuração heráldica do rei de Portugal acompanhado dos principais cavaleiros que nela se distinguiram27.
11Destes três armoriais, o primeiro apresentava uma natureza documental, ao passo que os dois restantes eram monumentais (sendo um deles um objecto e o outro uma decoração arquitectónica). No que respeita ao evento comemorado, dois deles foram elaborados como memória de um evento militar, cobrindo precisamente aquelas que foram consideradas pelos contemporâneos como duas batalhas decisivas para o futuro do país: a do Salado e a de Aljubarrota; o outro serviu de decoração para eventos dinásticos, remetendo pois para as orientações diplomáticas do rei D. Fernando. Embora só o armorial de Guimarães tenha chegado aos nossos dias, podemos afirmar, baseados nas descrições que temos dos dois outros, que todos tinham em comum o facto de se centrarem na heráldica das famílias nobres que participaram nas batalhas ou assistiram ao consórcio. Não faria pois sentido que incluíssem qualquer alusão à heráldica municipal.
12Do século XV, conhece-se a existência de outros armoriais, alguns dos quais chegaram até hoje. O primeiro, intitulado De Ministerio Armorum, vulgo Livro de Arautos, foi elaborado pelo arauto Constantinopla, oficial de armas ao serviço do rei D. João I, e constitui, mais uma vez, um armorial ocasional, pois arrola as armas dos diversos indivíduos e entidades (não só portugueses como estrangeiros) que estiveram presentes no concílio de Constança, que decorreu entre 1414 e 1418. O segundo consiste no amplo friso que ornamenta a capela funerária do cardeal D. Jaime, filho do infante regente D. Pedro, na igreja de San Miniato al Monte, em Florença, cuja decoração armoriada realça o parentesco do defunto com diversas Casas reinantes na Europa, contribuindo para a estratégia de propaganda da dinastia de Avis.
- 28 Martim de Albuquerque e João Paulo de Abreu e Lima, «Introdução», in António Godinho, Livro da nobr (...)
- 29 Visconde de Sanches de Baena, Archivo Heraldico-Genealogico contendo noticias historico-heraldicas, (...)
- 30 Anselmo Braamcamp Freire, Armaria Portuguesa, Lisboa: Cota d’Armas Editores e Livreiros, 1989, p. 2 (...)
- 31 Idem, ibidem, p. 526.
- 32 Pressupõe-se que as armas registadas e iluminadas neste códice seriam aquelas sobre as quais o rei (...)
13Na segunda metade do século XV, existiram em Portugal diversos outros armoriais usados pelos oficiais de armas ao serviço do rei, segundo se infere de notícias e referências dispersas pela documentação coeva. Martim de Albuquerque e João Paulo de Abreu e Lima28 apontam que a primeira menção acerca da existência de um livro de registo das armas concedidas pelos soberanos portugueses vem inserida no texto da carta de brasão passada a favor de Álvaro Afonso Frade, datada de 28 de Novembro de 1471, pela qual o rei D. Afonso V ordenava «ao nosso primeiro Rei d’Armas e officiaes dellas que assim o proviquem em seus livros [e] registem»29. Por outra carta de armas, a favor de Fernão Luís, datada de 13 de Novembro de 1475, fica-se a saber que o dito registo no livro à guarda do oficial de armas principal era feito mediante iluminura: «As quaes armas hordenou o dito Rey darmas [Portugal] per nosso expresso mandado, e as Registou loguo, e ficam Registadas, e pintadas em seu liuro do Registo das armas dos fidalguos»30. Por fim, na carta que fez mercê de brasão a Rui Vasques, ao ordenar a inscrição no mesmo códice, o soberano mandou que as novas armas fossem «Registadas em o liuro que pera ello tem o dito nosso Rey darmas [Portugal] pera sempre se saber o certo e a uerdade dellas»31. Do cruzamento destas informações inferem os referidos autores que pelo menos desde 1471 existia um códice iluminado onde, por ordem régia, os oficiais competentes registavam as armas da fidalguia portuguesa32, ficando o livro na posse do rei de armas ao serviço do monarca. Na verdade, esta matéria acabou por ser alvo de legislação própria, patente na carta régia emitida por D. Afonso V em Toro a 21 de Maio de 1476 continha determinações que procuravam restringir a autoridade heráldica ao principal rei de armas ao serviço da Coroa:
- 33 Apud, D. António, Conde de São Payo, Do Direito Heraldico Português. Ensaio Historico Juridico, Lis (...)
«Dom Afonso, etc. A quantos esta minha carta virem, faço saber que a mim me praz, movido por alguns justos respeitos, que nenhum rei d’armas, arauto, passavante, nem nenhuma outra pessoa, possa ordenar nenhumas armas por mim novamente dadas, nem por outra nenhuma maneira confirmadas, senão Portugal meu rei d’armas […] e assim tenha como ora tem o livro do registo e tombo das ditas armas por mim novamente dadas e por ele ordenadas, e das armas de todos os fidalgos antigos, e de linha direita […].»33
- 34 Ordena a carta régia, com efeito: «E porem mando aos meus chanceleres e escrivães da minha chancela (...)
14Verifica-se, portanto, que em 1476 as armas novas, conferidas em nome do monarca pela autoridade do rei de armas Portugal, eram arroladas num registo próprio (constituindo assim um armorial que, por outro trecho da mesma carta de lei, se deduz ser um códice iluminado34) do qual constavam, outrossim, as armas antigas, isto é, aquelas cuja origem não radicava numa concessão régia. O armorial assim constituído servia, pelo menos aos olhos do poder central, como fonte de consulta fidedigna, a que se poderia recorrer em caso de dúvida, para saber o que era certo e verdade acerca das armas. Assim, no processo de instrumentalização da heráldica em prol do poder régio, o reinado de D. Afonso V. parece ter desempenhado um papel de relevo, quer através da concessão de cartas de armas como forma de nobilitação e público reconhecimento dos serviços prestados à Coroa, quer pela via da criação de um registo mantido pelos oficiais de armas régios, considerado como fonte para a avaliação da correcção dos usos heráldicos.
- 35 Existem diversos exemplares e variantes desta obra: Biblioteca Municipal de Santarém, Manuscritos d (...)
- 36 Martim de Albuquerque e João Paulo de Abreu e Lima, «Introdução», in António Godinho, Livro da nobr (...)
15Partindo da certeza quanto à existência de um primeiro armorial de registo de armas concedidas pelo rei, já detectável em 1476, afigura-se todavia inviável, para já, o estabelecimento de um rol concreto dos códices similares reunidos até ao reinado de D. Manuel I. Nenhum deles parece ter chegado aos nossos dias, e as alusões, conquanto abundantes, são imprecisas; torna-se difícil averiguar a quantas obras as variadas referências documentais se reportam. Na ausência de mais informações, devem reter-se as conclusões a que chegaram Martim de Albuquerque e João Paulo de Abreu e Lima: existiam pelo menos dois destes códices, o primeiro, cuja designação se ignora, corresponderia ao mencionado nas cartas de armas afonsinas; o segundo foi o Livro antigo dos reis de armas (ou Livro velho de registo de armas), de que frei Manuel de Santo António, nomeado reformador do cartório da Nobreza em 1745, possuía cópia, a que recorreu amplamente para a elaboração do seu Thezouro da Nobreza de Portugal35. O número de referências leva à conclusão de que «existiram diversos livros de iluminura heráldica em Portugal ao longo do século XV e no início do século XVI que todos podem ser considerados – apesar da especificidade registral de alguns – como autênticos armoriais36.»
- 37 O carácter oficial desta justificação assumiu a forma de um juramento solene, realizado sobre os Ev (...)
- 38 Francisco de Simas Alves de Azevedo, Uma interpretação…, pp. 54-59.
16Por fim, o final do século XV corresponde à época de criação do primeiro armorial iluminado que chegou até aos nossos dias: o Livro do Armeiro-mor, cuja análise se revela importante para a compreensão das características gerais dos armoriais subsequentes. Em primeiro lugar, por se tratar de uma encomenda régia, mandada executar por D. Manuel I à máxima autoridade heráldica então existente no reino: o rei de armas Portugal. Como este responsável explica no prólogo que serve de justificação, recebeu ordem de compilar as armas dos reinos cristãos, mouros, judeus e gentios, bem como as das famílias nobres de Portugal, jurando assinalar a cada um as armas a que tinha direito37. Para além do carácter universal e especial, já apontado por Francisco de Simas Alves de Azevedo38, a obra em questão apresenta-se como instrumento do poder régio. Na sua parte universal, este armorial concentra-se nos reinos (reais e imaginários), na série mítica dos nove da fama, nas dignidades do império e do reino de França; na parte especificamente portuguesa, apresentam-se as armas da Casa real, dos chefes de nome e armas das famílias nobres, apresentadas por critérios mistos de precedência de títulos, de valimento na corte, de antiguidade da estirpe (terminando, pois, com algumas das armas novas concedidas pelos soberanos da dinastia de Avis). Em nenhuma destas duas partes se justificava portanto a inclusão da heráldica municipal, matéria estranha ao teor da obra.
- 39 Direcção Geral de Arquivos/Torre do Tombo, Casa Forte, 163.
- 40 Apud Francisco de Simas Alves de Azevedo, Uma interpretação…, p. 74.
- 41 Idem, ibidem, p. 77.
17Em segundo lugar, é de reter que o Livro do Armeiro-mor se destinava ao cumprimento de uma missão singular. Este armorial foi, com efeito, entregue à guarda de D. Álvaro da Costa, armeiro-mor e armador-mor do reino, em cuja descendência se manteve até ao período final da monarquia, quando foi reclamado pelo rei D. Carlos, passando depois para a Torre do Tombo39. Ora, no regimento respectivo, determinava-se o seguinte: «Item ordenamos que o livro que mandámos fazer das armas dos fidalgos de nossos reinos o traga sempre o dito nosso armador-mor em uma das arcas em que andarem as armas da nossa pessoa para cada vez que o quisermos ou cumprir de ser visto por algum caso, no-lo possa mostrar e dar»40. Deste modo, o Livro do Armeiro-mor era entendido como obra de consulta pessoal do soberano, o que se deve inserir no contexto da transformação da heráldica, ao longo do século XV, num dos instrumentos de expressão e apoio à política de afirmação do poder régio. Com efeito, «a elaboração do Livro do Armeiro-mor […] representa a consagração jurídica e artística, digamos, da orientação política que levou a realeza portuguesa (desde meados do século XV) a incluir nos seus direitos o de conceder armas, a proibir o uso de armas não de sua concessão, a passar cartas de brasão que são cartas de nobilitação ou de confirmação da nobreza, a intervir com tudo isto, e activamente, no modo dessa qualidade se exprimir simbolicamente»41. Para compreender a razão de ser deste armorial, é importante reter que ele espelha a ideia da relação privilegiada entre a nobreza e a heráldica, mediante reconhecimento público operado pela autoridade competente (os oficiais de armas) em nome do soberano.
- 42 Veja-se, por todos, João Paulo de Abreu e Lima, «Oficiais de armas em Portugal nos séculos XIV e XV (...)
18Neste princípio reside a causa da não inclusão das armas municipais. Com efeito, a elaboração do Livro do Armeiro-mor insere-se num ciclo iniciado com a criação de oficiais de armas ao serviço da Casa real, ainda no século XIV42. A partir de então, assiste-se à tentativa de afirmação de uma autoridade heráldica exercida por estes funcionários, a quem competia fiscalizar os usos heráldicos e, sobretudo, transformá-los num instrumento de reconhecimento simbólico da ordem social, realizado sob a égide do monarca. Assim se explica o surgimento das cartas de brasão de armas, pelas quais o rei, ao elevar um indivíduo ao estatuto de nobreza, o dotava simultaneamente de uma insígnia que tornava tal condição patente e pública. Nalguns casos, a carta não se refere a um processo de nobilitação, mas antes à alteração de armas previamente existentes como forma de assinalar um determinado feito ou uma relação privilegiada com o soberano; nestes casos, a alteração introduzida nas armas pré-existentes recebe o nome de acrescentamento honroso. Em qualquer das duas hipóteses, afirma-se um entendimento e uma prática da heráldica não apenas como sistema identificativo das linhagens, mas também como sistema honorífico, definido por uma autoridade política e técnico-administrativa exclusiva (respectivamente exercidas pelo rei e pelos oficiais de armas por este nomeados), consagrador de uma memória baseada no princípio do serviço à Coroa.
- 43 Apud Conde de São Paio (D. António), Do Direito Heraldico Português…, pp. 35-36.
19Assim, em paralelo com a heráldica assumida (como tinha sido até então), surge uma heráldica concedida; e mesmo as armas anteriores às doações régias vêem-se incluídas no arrolamento oficial elaborado pela autoridade heráldica e na posse pessoal do monarca: o Livro do Armeiro-mor. Esta apropriação da autoridade heráldica pela Coroa não se opera apenas pela via da concessão de armas ou pela elaboração de armoriais oficiais; ela passa também pela promulgação de legislação restritiva, como a ordenança emitida por D. Afonso V em Toro, em 21 de Maio de 1476, pela qual se proíbe o uso de metais nas armas de plebeus43. Esta lei, além de confirmar que até então os não nobres faziam uso legítimo de armas próprias, constitui um primeiro mecanismo de associação da heráldica ao estatuto de nobreza.
- 44 Apud Idem, ibidem, pp. 42-63.
20O processo culminou com as disposições administrativas tomadas no reinado de D. Manuel I. Em primeiro lugar, fixou-se o corpo de oficiais de armas, cuja estrutura passou a ser permanente, obedecendo a uma hierarquia consolidada, cuja nomenclatura revelava de modo explícito a dimensão estatal, territorial e imperial que tais oficiais representavam: os reis de armas passaram a ostentar o nome dos reinos (por ordem hierárquica, Portugal, Algarve, Índia); os arautos, os das principais cidades (Lisboa, Silves ou Ceuta, Goa); e os passavantes, os das maiores vilas (Santarém, Tavira, Cochim). Os oficiais de armas receberam um regimento próprio, em que ficavam consignadas as suas funções, tanto de ordem protocolar como heráldica, integrando-se assim plenamente na estrutura da Coroa44.
- 45 Entenda-se que as cartas de armas, para além desta dimensão honorífica, podiam também desempenhar u (...)
- 46 A lei de 16 de Setembro de 1597, de Filipe II, referente aos tratamentos, incluía uma disposição qu (...)
21Em segundo lugar, instituiu-se um sistema de diferenças heráldicas de cariz genealógico, o qual advogava que todos quantos quisessem ostentar armas, com excepção dos chefes de linhagens que já se achavam reconhecidos (por assim dizer, registados) nos armoriais oficiais, teriam que solicitar à autoridade heráldica o reconhecimento do respectivo uso. Tal lógica abrangia não somente aqueles que obtinham armas novas ou acrescentamentos honrosos conferidos pelo monarca, obrigatoriamente consagrados por uma carta de brasão de armas que tornava patente tal novidade, mas também quantos herdavam armas de família mas, não sendo chefes de linhagem, necessitavam de lhes jungir a respectiva diferença. Com esta última disposição, o rei colocava-se como fonte da legitimidade heráldica, plenamente entendida como dimensão honorífica ao serviço da Coroa45. Mais tarde, a legislação restritiva no que se refere à usurpação de armas ou de insígnias heráldicas haveria de se estender aos ornamentos exteriores ao escudo, em particular os coronéis denotativos de títulos46.
22Em terceiro lugar, o reinado manuelino pautou-se pela produção de obras que vieram consagrar esta dimensão da heráldica ao serviço da Coroa. Antes de mais, realizaram-se pelo menos três outros armoriais monumentais:
- 47 Cuja biografia foi objecto de estudo na introdução ao Livro da nobreza e perfeiçam…, escrita por Ma (...)
- 48 Cfr. a secção intitulada «O Livro da Nobreza e Perfeiçam no contexto dos armoriais portugueses», na (...)
- 49 Idem, ibidem, p. 35.
Um novo códice iluminado, intitulado Liuro da nobreza e perfeiçam das armas dos Reis christãos e nobres linhagens dos reinos e senhorios de Portugal, da autoria do bacharel António Godinho Cabral47, fidalgo cavaleiro da Casa Real, guarda e escrivão da câmara dos reis D. Manuel I e D. João III. Conforme o autor declara no prólogo, a realização da sua obra deveu-se à necessidade de corrigir e completar os armoriais anteriores, em uso no juízo da Nobreza, impondo-se assim o novo códice como principal instrumento de trabalho dos oficiais de armas. No que se refere ao conteúdo48, o Livro da nobreza e perfeiçam das armas situa-se na sequência do Livro do armeiro-mor, constituindo o «livro padrão» dos oficiais de armas49;
- 50 Cfr. Martim de Albuquerque, As armas de Camões..., pp. 15-17; IDEM, A expressão do poder em Luís de (...)
- 51 Apud Sousa Viterbo, A Livraria real especialmente no Reinado de D. Manuel. Memória apresentada à Ac (...)
Mais outro códice iluminado que se conservava na guarda-roupa do rei, e por esse motivo é conhecido pela designação de Livro de armas da guarda-roupa50, cujo paradeiro se desconhece mas que constava do inventário realizado por ocasião do falecimento de D. Manuel I em 152151;
- 52 Anselmo Braamcamp Freire, Brasões…, vol. I, pp. 22-23.
- 53 José Custódio Vieira da Silva, «A importância da Genealogia e da Heráldica na representação artísti (...)
O tecto armoriado da sala dita dos brasões ou dos veados, no paço real de Sintra, espaço simbólico por excelência, cuja realização se situou entre 1512 e 1520, podendo-se apontar como mais prováveis os anos de 1517 e 1518, segundo o abalizado juízo de Braamcamp Freire52. Para além de constituir um monumento heráldico de dimensão ímpar, a sala dos brasões do paço de Sintra traduz uma simbologia «precisa e clara: o centro reserva-se ao monarca; à sua volta, submissa e ordenadamente (mesmo que nimbada de ouro e refulgente de luz), escalona-se a demais nobreza – os leais e fiéis vassalos»53.
- 54 Designadamente Libro de Armas de Portugal y otras curiosidades por otro que tenia el Señor Don Duar (...)
- 55 Obra da qual existe uma recente reedição fac-simile: Pedro de Gracia Dei, Blasón General y Nobleza (...)
- 56 Coube a Afonso de Dornelas assinalar a filiação do tratado de António Rodrigues. É interessante not (...)
23Além destes, a produção de armoriais portugueses quinhentistas abrangeu ainda o códice mandado compilar pelo senhor D. Duarte, neto do rei D. Manuel I, de que existem diversas cópias54. Uma outra criação manuelina relevante consiste no Tratado de Nobreza compilado pelo bacharel António Rodrigues, rei de armas Portugal, a partir da obra Blason general y Nobleza del Universo publicada em 1489 por Pedro de Gracia Dei55, e que fora dedicada a D. João II56. Desde o título, torna-se evidente que se quis vincar a estreita associação entre nobreza e heráldica. O motivo, como vimos, aponta para a nobilitação se ter tornado um instrumento nas mãos do poder régio, pois, para além de determinados aspectos jurídicos e fiscais relevantes, ela integrava também uma forte componente de prestígio social. Ora, este dependia em parte dos símbolos que permitissem a clara identificação, como o vestuário, a posse e exibição de armas brancas, a ostentação de numerosa criadagem e de certos bens prestigiosos que levavam à noção de viver «à lei da nobreza». Mas, de forma mais óbvia e imediata, tal identificação realizava-se sobretudo por meio dos sinais heráldicos que, pela sua própria natureza hereditária, permitiam uma perpetuação do estatuto na mesma família, quer de forma prospectiva, abarcando portanto a descendência, quer por vezes de forma retroactiva, englobando a ascendência e nobilitando-a sob a capa dos usos heráldicos. Formava-se assim um círculo perfeito: a Coroa passava a deter o exclusivo da criação heráldica (pelo menos oficial), usando-a como instrumento de consagração da ordem social vigente sob a autoridade régia; por seu turno, a nobreza passava a contar com um sistema simbólico que, mediante o recurso à autoridade régia, consagrava de forma visível e inegável a sua condição.
24Nesse sentido, o Tratado de Nobreza vincava a diferença existente entre as armas concedidas e as assumidas. Como assinala Martim de Albuquerque,
- 57 Martim de Albuquerque, As armas de Camões..., p. 558.
«na primeira fase da Heráldica e no decurso de toda a Idade-Média, o uso de armas não resulta de concessão, mas de assunção, ou seja, não deriva de qualquer manifestação unilateral da vontade régia, antes de um acto de apropriação particular, que o decurso do tempo consolida e legitima.»57
- 58 António Rodrigues, Tratado…, p. 146.
- 59 Em particular a partir da dinastia de Avis: «Bártolo é autor de um dos poucos textos jurídicos que (...)
- 60 Cf. Bartolo da Sassoferrato, De Insigniis et Armis (a cura di Mario Cignoni), Firenze: Giampiero Pa (...)
25Segundo a doutrina tradicional, as armas assumidas tinham tanto valor quanto as concedidas, devendo sempre, como é natural, respeitar o princípio de não usurpar sinais alheios, de maneira a permitir que a heráldica funcionasse como sistema identificativo eficaz. Mas o Tratado de Nobreza veio advogar uma nítida distinção entre estes dois tipos de heráldica. Desde logo, António Rodrigues afirma que só o chefe de uma linhagem pode trazer as respectivas armas plenas, tendo todos os demais descendentes obrigação de as diferençar58, para o que se afigurava útil, quando não indispensável, a intervenção dos oficiais de armas, o que pressupunha, neste período, o recurso à autoridade régia. Mais adiante, o rei de armas Portugal revela a fonte a que recorreu para determinar a importante questão do direito às armas: trata-se de Bártolo de Sassoferrato, jurisconsulto trecentista que exerceu uma influência ímpar na história do direito europeu, e que conheceu extraordinária divulgação em Portugal59. Ora, o célebre jurista escreveu também um tratado dedicado à matéria da armaria60, que se pode considerar como a primeira reflexão teórica acerca do direito heráldico, e que serviu como fonte de inspiração não só para heraldistas, como também para legisladores. Foi, portanto, com base nesta autoridade então incontestada que António Rodrigues reforçou a distinção entre os dois tipos de armas em causa:
- 61 António Rodrigues, Tratado…, p. 147.
«Aqui é de notar que as armas dadas pelo Rei ou príncipe são de maior autoridade, segundo Bartolo escreve no tratado acima dito, entanto que entre dois homens iguais em dignidade houvesse contenda que quais armas deveriam proceder ou ser antepostas, devem preceder as que foram dadas pelo Rei ou príncipe»61.
26O raciocínio subjacente a esta primazia apoiava-se na dimensão legal de que as armas concedidas beneficiavam por via do reconhecimento conferido pela autoridade régia, ao passo que as assumidas se pautavam apenas pelo uso imemorial, oficioso e difícil de provar.
27É nas funções e características basilares dos armoriais manuelinos que se devem procurar as causas da ausência da heráldica municipal nas suas folhas. Estas compilações funcionavam como registo solene e oficial da armaria, operado pela autoridade competente em nome do soberano, repousando numa lógica de associação da heráldica à nobreza. Desta forma, tais armoriais – livros ou monumentos – tinham como objectivo a representação simbólica duma determinada camada social, mediante um sistema emblemático específico e tendencialmente exclusivo, representação consagrada sob a autoridade soberana (que, por sua vez, encabeçava a nobreza e era por esta reconhecida como fons honorem). Não espanta pois que a Coroa tenha envidado esforços para erradicar ou pelo menos marginalizar todo o tipo de heráldica que escapasse a esta lógica ou, mais ainda, que a contrariasse.
- 62 Acerca de tais usos, a partir da análise de um caso específico, veja-se Miguel Metelo de Seixas, As (...)
- 63 Jorge de Matos, A foralidade portuguesa e a heráldica nacional, Sintra: separata de Vária Escrita. (...)
28Ora, era precisamente essa a situação da heráldica autárquica. Desde o princípio do século XIII, a adopção de armas pelos municípios portugueses havia-se verificado por iniciativa dos mesmos, sem qualquer tipo de sancionamento por parte de uma autoridade superior, quer régia, quer senhorial. Os concelhos escolhiam livremente os sinais a figurar nas bandeiras que identificavam as suas tropas, nos selos com que autenticavam documentos, nas pedras de armas com que assinalavam a entrada no seu território, a posse de determinado bem ou a intervenção municipal na construção e manutenção de edifícios públicos, como paços do concelho, chafarizes, pontes, celeiros, tercenas, muralhas62. Nesse sentido, as armas municipais medievais funcionavam como simbólica do poder local, assumindo-se como «afirmações de personalidade legal autónoma face aos poderes real e senhorial, atestando competência administrante da respectiva comunidade local.»63
29Mesmo antes do reinado de D. Manuel I, a Coroa parece ter procurado minorar o alcance administrativo e simbólico dos sinais adoptados pelos municípios, antes de mais como instrumentos de autenticação. Com efeito, já D. Dinis tomou duas medidas diferentes e complementares a esse respeito: por um lado, realizou a primeira doação régia de selo, em 1302, ao recém-criado concelho de Borba, mostrando desta forma que a escolha desses símbolos podia ou devia ser prerrogativa régia; por outro lado, em 1305, determinou que a autenticação tabeliónica se realizasse exclusivamente com o selo das armas reais, cuja matriz ficava à guarda de um homem de confiança seleccionado pelo rei:
- 64 Miguel Metelo de Seixas, As armas municipais…, pp. 151-152. A citação da determinação dionisina é r (...)
«mandei fazer o sobredito seelo que haja em cada ûa cidade e em cada ûa vila e em algum julgado em que haja meu tabeliom ou tabeliães o qual seelo tem os meus sinaees e leteras que contam o meu nome e nome da cidade ou da vila ou do julgado. E este seelo deve a têer homem qual eu tever por bem per meu mandado.»64
- 65 Veja-se, por exemplo, Miguel Metelo de Seixas e João Bernardo Galvão-Telles, Heráldica no concelho (...)
30Já no século XV, as alterações do recrutamento para a hoste régia, derivadas não só do processo de centralização como também da evolução do equipamento militar e da transformação das formas de guerra, ditaram o progressivo abandono das bandeiras carregadas com a emblemática municipal. Por fim, no reinado do Venturoso, o reordenamento administrativo e jurídico do reino, realizado por via da reformulação do conjunto dos instrumentos que regulavam as relações entre a Coroa e os concelhos, operou-se mediante a concessão de forais novos. Estes documentos eram invariavelmente iluminados com as armas reais, por vezes completadas pela empresa do rei (a esfera armilar) e pela cruz da Ordem de Cristo, tudo símbolos identificativos de D. Manuel I; quando eram encadernados, tais sinais repetiam-se nas pastas65. A Leitura Nova, compilação dos forais então concedidos numa espécie de mapa jurídico-administrativo do reino, constitui uma obra-prima da iluminura portuguesa, na qual se consagra de forma inédita e exclusiva a emblemática do soberano (e do seu sucessor, em cujo reinado se deu por concluída a tarefa), pois os frontispícios apresentam a particularidade de possuir um tema comum e único, repetido quarenta e três vezes, como nota Sylvie Deswarte:
- 66 Sylvie Deswarte, Les enluminures de la Leitura Nova. Etudes sur la culture artistique au Portugal a (...)
«A própria constância deste tema é indício do peso do seu significado […] Traduzindo o desejo de centralização do monarca, quase todos os volumes desta série de livros são guarnecidos com uma espécie de estandarte triunfal com as armas e os emblemas régios.»66
- 67 Cfr. Sylvie Deswarte-Rosa, op. cit., pp. 55-56; Martim de Albuquerque, A Consciência Nacional Portu (...)
31Diversas medidas de cariz normativo (tanto administrativo como religioso), como por exemplo a uniformização dos sistemas ponderais e a oficialização do culto prestado ao anjo custódio do reino67, para além de promover a uniformização dos costumes praticados no território nacional, serviram de instrumento para a difusão dos sinais régios a um grau até então inédito. No âmbito desta propaganda imagética da Coroa, os antigos símbolos municipais, embora nem sempre tenham chegado ao ponto de cair em desuso, foram amiúde abafados pela emblemática régia. Com efeito, em contraste com os usos anteriores, tornou-se frequente, porventura recorrente, a representação das armas municipais conjugar os antigos sinais próprios com a emblemática régia tal como ela figurava nos seus instrumentos de difusão. É compreensível e significativo o facto de tal conjugação conceder sempre o lugar honroso aos emblemas do rei, ficando as armas municipais em posição de nítida subordinação. Deste modo, as representações simbólicas transmitiam a ideia de uma sujeição do poder local ao central, efectivamente consagrada pelas reformas manuelinas. Contudo, só um levantamento das manifestações heráldicas dos municípios portugueses medievais e modernos (a nível sigilográfico, epigráfico, iconográfico, monumental e documental) permitirá estabelecer uma lista cronológica de concelhos que tenham combinado os seus símbolos próprios com os régios, a partir da qual será possível estabelecer um quadro comparativo e averiguar o verdadeiro alcance do fenómeno. De qualquer modo, compreende-se que a heráldica municipal não tenha tido lugar nos citados armoriais manuelinos: não só não se enquadrava no espírito de tais obras, como contrariava mesmo quer o princípio da reserva da heráldica para a nobreza, quer a afirmação dos símbolos régios como emblemática de um poder vigente em todo o território.
- 68 D. Emmanuele Caietano Sousa, Bibliotheca stemmato-graphica hoc est genealógico-heraldica, BNP, Cód. (...)
- 69 Eduardo de Campos de Castro de Azevedo Soares (Carcavellos), Bibliographia Nobiliarchica Portugueza(...)
- 70 No «Apparato» com que abre a sua obra monumental, D. António Caetano de Sousa regista o nome de Brá (...)
- 71 O armorial esteve patente ao público por duas vezes, nas exposições do 4.º centenário de Vasco da G (...)
- 72 Martim de Albuquerque, A expressão do poder em Luís de Camões, Lisboa: IN/CM, 1988, pp. 66-70.
32A primeira inclusão conhecida da heráldica municipal num armorial data da segunda metade do século XVI, cabendo à obra coligida e iluminada por Brás Pereira Brandão e pelo seu sobrinho-neto Brás Pereira de Miranda. O códice em causa tem por título Livro Darmas da nobreza fidalgia do Reino de purtugal. tirado do lyvro que os Reis de purtugal tem na sua guarda Roupa por braz pereira brandam com muita verdade. e asy otras Armas que vieram a sua notiçia e achou em musteiros em sepulturas Amtigas como se veran de lynagems que ya non a memorya delas. começa primeiro nas ensinias e armas das cidades episcopais do Reino nam tem blasõ pola antiguidade ou por descuido dos cronistas e Reis nam serem disto coryosos. Trata-se de uma obra pouco conhecida, mas que se reveste da maior importância, já mencionada em algumas bibliografias especializadas, como a de D. Manuel Caetano de Sousa68; em 1916, Eduardo de Azevedo Soares (Carcavellos) deu uma notícia mais extensa do autor e das obras na sua Bibliographia nobiliarchica portugueza69. Este armorial manteve-se sempre na posse da família dos condes de Alcáçovas70, desconhecendo-se o seu actual paradeiro71. Martim de Albuquerque realizou a análise codicológica da obra, concluindo que ela foi parcialmente copiada do Livro da guarda-roupa dos reis72. Francisco de Holanda informa que Fernando Brandão, pai de Brás, havia exercido o ofício de guarda-roupa do infante D. Fernando, pelo que se depreende a facilidade com que o compilador poderá ter acedido ao precioso códice aí guardado.
- 73 Para a caracterização codicológica do armorial, veja-se Idem, Ibidem, pp. 68-69.
33A presença das armas municipais no início do armorial de Brás Pereira Brandão é conhecida por via da análise que Martim de Albuquerque fez da obra73. As razões de tal inclusão vêm explicitadas no próprio termo de abertura do códice, em que o autor menciona as «ensinias e armas das cidades episcopais do Reino [que] nam tem blasõ pola antiguidade ou por descuido dos cronistas e Reis nam serem disto coryosos». O que reter desta justificação? Em primeiro lugar, que o autor achou necessário fazê-la, o que se poderá relacionar com a consciência do carácter inédito do seu gesto. Quando Brás Pereira Brandão declara que as cidades em causa «nam tem blasõ», poderia parecer, à primeira leitura, que estava a indicar a inexistência das respectivas armas; mas a sequência revela o que o autor quer na verdade significar: «pola antiguidade ou por descuido dos cronistas e Reis nam serem disto coryosos». Ou seja, as armas das cidades existiam há muito tempo, tanto que se podiam inscrever no que vulgarmente se designava como uso imemorial, encontrando-se fora da alçada dos oficiais de armas ao serviço da Coroa. Apesar de tal conceito não se revelar de forma explícita no texto do autor, é possível relacionar este carácter arcaico das armas municipais com a sua natureza de heráldica assumida. Por isso elas não haviam captado a atenção dos organizadores dos armoriais «oficiais», pela mesma ordem de razões que ditara a exclusão de outros tipos de heráldica (eclesiástica, corporativa, burguesa), pois a atenção dos oficiais de armas estava centrada na instrumentalização da armaria ao serviço da Coroa, para consagração duma ordem política e social, como insígnia de nobreza.
- 74 Cfr. Miguel Metelo de Seixas, João Pinto Ribeiro e a vexilologia municipal portuguesa: Em torno de (...)
34É nítida a crítica implícita na frase de Brás Pereira Brandão, quando este aponta o «descuido» e a falta de curiosidade dos oficiais de armas a respeito da heráldica municipal. Explica-se assim que o primeiro armorial a incluir armas municipais se tenha devido a uma mera iniciativa privada, radicando na curiosidade de um estudioso da heráldica que, conhecedor dos armoriais «oficiais», estranhou neles a ausência de um tipo de heráldica que não só se distinguia pela sua antiguidade, como também pela sua aplicação a usos correntes e de forte impacto visual, pois as armas municipais, além de continuarem a selar documentos e figurar em pedras de armas, eram ostentadas, sob a forma vexilológica, em todas as circunstâncias públicas em que as câmaras se faziam representar. Na verdade, a importância da bandeira municipal como símbolo da comunidade e do poder local há muito extravasara dos campos de batalha ou das fortificações para as cerimónias religiosas e civis. Em meados do século XVII, o jurista João Pinto Ribeiro afirmava claramente, em polémica contra as intenções de certas elites locais, que na bandeira municipal se condensava a simbólica da soberania imanente às câmaras, resíduo da liberdade primordial de que estas gozavam antes de se sujeitarem voluntariamente ao poder régio74.
- 75 Cfr. Maria de Fátima Machado, O Central e o Local. A Vereação do Porto de D. Manuel a D. João III, (...)
35Talvez não seja por acaso que Brás Pereira Brandão, primeiro estudioso a incorporar armas autárquicas num armorial, fosse morador no Porto, cidade fortemente ligada à defesa da autonomia municipal quer contra as ingerências do poder central, quer contra as prepotências senhoriais de nobres e eclesiásticos75. Francisco de Holanda ficou hospedado em sua casa pelo menos duas vezes, antes do ano de 1549, quando acompanhou o infante D. Fernando, duque da Guarda (filho do rei D. Manuel I), numa peregrinação a Santiago de Compostela. Dessas estadas guardou boas memórias, sobretudo da segunda, quando «achando-me com mais ócio na volta da romaria que na ida», aí passou «oito dias, de vida boa». Inspirado nas conversas que tiveram os dois pintores e amigos, Holanda acabou por escrever o seu tratado de desenho Do Tirar Polo Natural (em forma de diálogo, sendo Brás Pereira um dos dois interlocutores), em cujo prólogo fornece curiosas indicações acerca do seu anfitrião. Dá-o por filho de Fernando Brandão, guarda-roupa do infante D. Fernando (filho do rei D. Duarte), e
«homem fidalgo de muito gentis partes e habilidades, e principalmente na arte da pintura tem muito engenho e natural, e no conhecimento da arquitectura, por onde nos não enfadávamos muitas vezes de praticar alguns primores sobre as tais disciplinas que se acham em mui poucos fidalgos portugueses. E gastávamos nisso partes das noites.»
- 76 Francisco d’Holanda, Do Tirar Polo Natural, Lisboa: Livros Horizonte, 1984, pp. 11-12.
36A segunda estada de Holanda em casa de Brás Pereira deveu-se aliás a uma circunstância que prova a existência de relações entre este e D. Fernando (a quem Holanda acompanhou na peregrinação), já que o infante pediu ao pintor que levasse ao portuense «umas cabeças de gesso antigas que vieram de Roma»76.
- 77 Jorge de Matos, «O pintor Francisco de Holanda e as armas do Prior do Crato – uma reflexão epistolo (...)
37É certo que Brás Pereira Brandão e Francisco de Holanda, além das questões teóricas da pintura, partilhavam o gosto pela heráldica: quanto ao primeiro, basta assinalar o trabalho de compilação e iluminura do armorial que compôs; o segundo, por sua vez, era filho do rei de armas e notável iluminador António de Holanda, e teve ele próprio alguma produção heráldica, aliás não desprovida de carga política, conforme se deduz da sua carta a D. António, prior do Crato77.
- 78 Apesar do desconhecimento sobre o actual paradeiro da obra, foi possível consultar uma sua reproduç (...)
38A lista das armas municipais integradas no armorial de Brás Pereira Brandão seguiu o critério de apresentar apenas as cidades episcopais do reino, não abrangendo, pois, nem as demais cidades, nem as sedes episcopais criadas no ultramar. Ocupando apenas os dois primeiros fólios do armorial, o rol das localidades abrangidas é o seguinte78:
39fl. 2: Braga, Lamego, Viseu, Guarda;
40fl. 2 v.º: Lisboa, Coimbra, Évora, Porto;
41fl. 3: Silves, Santarém;
- 79 O verso do fl. 1 é ocupado com o escudo de armas do reino do Algarve. Não fazendo parte da secção d (...)
42fl. 3 v.º: Bragança, Beja, Elvas, Leiria79.
43O critério seguido, contudo, apresentava falhas: faltavam algumas sedes, como Portalegre e Beja; aparecia a cidade de Silves em vez da de Faro, que a substituíra como sede desde 1564; os escudos de Elvas e Silves encontravam-se delineados mas não preenchidos; e, por fim, a inclusão de Santarém não se justificava, pois esta localidade manteve a categoria de vila até ao século XIX e nunca chegou a ser sede episcopal. Ora, tais lacunas deviam provir, pelo menos em parte, das circunstâncias em que esta secção do armorial foi criada. Com efeito, os armoriais «oficiais» até então existentes haviam gozado de importantes meios para a sua elaboração, contando com a participação de oficiais de armas experimentados, os quais tinham à sua disposição os recursos materiais e humanos do juízo da Nobreza. Tais oficiais soíam deslocar-se junto com a corte, onde exerciam habitualmente as suas funções, e eram também enviados em missões no território do reino e no estrangeiro, quer de natureza protocolar ou diplomática, quer de aprendizagem do ofício, colhendo então informações e elementos comparativos para a elaboração dos seus estudos, bem como formação para a dimensão artística do seu trabalho. Dentro do reino, para além de outras incumbências pontuais, os oficiais de armas foram encarregados por D. Manuel I da realização de uma espécie de levantamento dos usos heráldicos das famílias nobres, para registo nos ditos armoriais. Toda esta actividade pressupunha um forte investimento da Coroa, bem como um processo de institucionalização da actividade dos oficiais de armas.
44No que se refere às circunstâncias da sua produção, o armorial de Brás Pereira Brandão corresponde a um modelo bem diferente. Não se trata de uma obra de munificência régia, enquadrada numa estrutura estatal, dotada de utilidade política e social definida à partida, mas antes do produto de um indivíduo isolado, que actua à margem das instituições oficiais, e cujo trabalho parece depender essencialmente de recursos próprios. No caso vertente, a parte mais substancial do armorial deriva de uma circunstância particular: a proximidade com relação à guarda-roupa do rei, que lhe terá permitido copiar o códice aí conservado. Para as armas municipais, não se conhece nem se pode deduzir a origem das informações que terão levado aos brasões representados. No desconhecimento de qualquer colectânea anterior de teor semelhante, poder-se-á especular que o autor tenha partido de fontes avulsas, coligindo informações de origem díspar. Deste procedimento derivariam, assim, as lacunas que a sua lista apresenta, bem como a limitação às cidades episcopais, as mais importantes do reino e cujas armas seriam, de modo geral, as mais difundidas.
45Por outro lado, o armorial de Brás Pereira Brandão procede a uma uniformização das armas municipais apresentadas, integrando-as no mesmo tipo de escudo, dando-lhes como único ornamento exterior uma coroa de formato uniforme. Não se conhecem os fundamentos da presença desta coroa nas armas municipais; nem se sabe se Brás Pereira terá feito eco de uma prática existente (cujos vestígios não tenham chegado aos nossos dias) ou, pelo contrário, agido de livre iniciativa. Contudo, deve assinalar-se a parecença de tal coroa com o coronel usado pelos condes; na ausência de explicação coeva para tal figuração, poder-se-á aventar a hipótese de se estar diante de uma correspondência de ordem protocolar, uma procura de equivalência de dignidades.
- 80 Armaria, Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa, série azul, Ms. 135, pp. 273-280.
46Para além de quantos foram aqui mencionados, é possível que tenham existido outros armoriais, uma vez que a heráldica constituía uma parte integrante e comum à cultura das elites da época. Assim, o hábito de coligir recolhas de armas, longe de se confinar aos meios administrativos especializados (isto é, aos oficiais de armas) e às produções monumentais da iluminura quinhentista, extravasava para diversos outros quadrantes da sociedade. Assim, a cópia do Livro do Senhor Dom Duarte que hoje se conserva na biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa traz, no verso do primeiro fólio, uma apresentação escrita pelo copista. Nela se esclarece que o original nunca chegou a ser concluído, encontrando-se integralmente transcrito para aquela cópia, realizada em 1582, a qual foi completada pelo compilador mediante recurso a outras fontes. Nessa parte então acrescentada figuram oito páginas com as “Imsignias das Cidades de Portugual”, cujas listagem e armas correspondem às que se encontram no códice de Brás Pereira Brandão, embora por ordem diferente e com mais uma povoação (Portalegre)80.
47Ter-se-á perpetuado o modelo de colectânea de armas municipais fornecido por Brás Pereira Brandão, nos seus princípios gerais e com inevitáveis adaptações, até ao final do Antigo Regime? Esta indagação poderá fornecer algumas pistas para o estudo da presença da heráldica autárquica em obras dos séculos XVII e XVIII, designadamente quanto aos seguintes aspectos:
Inclusão das colectâneas de armas municipais em armoriais universais (ou especiais, neste caso referentes às armas da nobreza de Portugal), de que formam um pequeno capítulo, por vezes apenso e sempre dotado de um carácter marginal com relação ao teor da obra em que se insere;
Recolecção de dados dependente de iniciativa privada e desprovida de objectivos legais ou administrativos, mesmo quando se trate de obras realizadas por oficiais de armas ao serviço da Coroa;
Restrição do número de municípios representados, sendo o critério mais apertado o das cidades episcopais, passando depois pela figuração da totalidade das cidades, para finalmente incluir também as principais vilas; só em casos excepcionais se poderá atingir a ideia de representar o conjunto das armas de todos os municípios do reino, com eventual menção de alguns territórios ultramarinos;
Nos armoriais desenhados, iluminados ou com gravuras, simplicidade da figuração das armas, com dois modelos básicos: ora aparece o escudo sem qualquer ornamento exterior, ora o escudo encimado por uma coroa de características variáveis; não são figurados elementos exteriores então existentes na heráldica de família, como elmos, paquifes e viróis, timbres, tenentes ou suportes, listéis com divisas ou gritos de guerra.
- 81 A. Machado de Faria de Pinna Cabral, António Soares de Albergaria…
48Para caracterizar a presença destas recolhas de armas municipais nos armoriais coligidos no Antigo Regime, um trabalho prévio e indispensável consiste na elaboração da lista de tais publicações, às quais se devem somar obras de âmbito mais geral mas que compreendam capítulos de heráldica, incluindo a autárquica. O estabelecimento de tal lista não se afigura tarefa fácil. Antes de mais, porque não foi ainda tentada: com excepção de António Machado de Faria, que se debruçou sobre a obra heráldica do padre António Soares de Albergaria81, nenhum estudioso se dedicou à análise ou mesmo ao simples arrolamento dos armoriais e tratados de heráldica da época moderna. Em segundo lugar, porque muitas destas obras nunca viram letra de forma, permanecendo sob forma manuscrita, e encontram-se dispersas não só por arquivos e bibliotecas públicas, mas também na posse de particulares.
49A proliferação de armoriais, de tratados de brasão, de capítulos de heráldica insertos em obras de natureza genérica vem provar que, longe de esmorecer com o ocaso da Idade Média, a heráldica afirmou-se como sistema emblemático preponderante na sociedade portuguesa moderna. Está por aprofundar a análise do papel social que a armaria passou a desempenhar a partir de então. Para compreender, mais particularmente, o significado e o alcance da heráldica municipal entendida como simbólica do poder local, mister se torna proceder ao levantamento e caracterização das obras em que ela aparece: quais são os armoriais ou tratados em que surge, quais aqueles que a não mencionam? Quais os critérios de escolha ou exclusão das armas? Estas são figuradas ou apenas descritas? Há algum tipo de explicação delas (origem, significado, alterações, circunstâncias de uso, acrescentamentos)? Quando aparece a sua inclusão em obras não exclusivamente dedicadas à heráldica? Que relação se estabelece entre a heráldica e outros ramos do conhecimento que lhe são associados (não apenas a genealogia e a nobiliarquia, mas também a história, a geografia, o direito)? Que papel preenchem as armas autárquicas no seio do conjunto da armaria representada em tais obras?
- 82 Cfr., Miguel Metelo de Seixas e João Bernardo Galvão-Teles, «Privilégios não valem sem serem expres (...)
50Todas estas interrogações constituem achegas para a problematização da presença da heráldica municipal na literatura especializada ou genérica do Antigo Regime. Sem que se perca de vista que, na época moderna, o conhecimento das regras da armaria (o que tecnicamente se chama brasão), bem como das insígnias usadas pelas principais instituições e famílias, constituía um elemento inerente à educação de todos quantos detinham elevada posição social quer por nascimento, quer por desempenho de ofício82. A heráldica era portanto entendida como sistema emblemático que expressava e transmitia a imagem de uma determinada ordem social e política, servindo como espelho comprovativo da hierarquia vigente ou almejada. Na época de profundas transformações vividas na transição da Idade Média para a Moderna, entre os séculos XV e XVI, as armas permitiam auferir e consagrar a posição das famílias integradas na nobreza; por sua vez, os oficiais de armas, que passaram a estar em exclusivo ao serviço do rei, compilavam armoriais que serviam de repositório das armas reconhecidas pela Coroa. Nesse contexto, as armas municipais eram entendidas como expressão marginal e porventura atentatória da associação recorrente entre heráldica e nobreza; não fazia sentido, por conseguinte, que elas figurassem em tais compilações. Esta limitação foi ultrapassada quando se verificou a reunião de armoriais por iniciativa de privados. Só então surgiram os primeiros armoriais autárquicos.
Notas
1 Louis Holtz, Michel Pastoureau, Hélène Loyau (dir.), Les armoriaux médiévaux. Actes du colloque international «Les armoriaux médiévaux». Institut de Recherche et d’Histoire des Textes. CNRS (Paris, 21-23 mars 1994), Paris: Le Léopard d’Or, 1997.
2 Claire Boudreau, L’Héritage symbolique des hérauts d’armes. Dictionnaire encyclopédique de l’enseignement du blason ancien (XIVe-XVIe siècles), Paris: Le Léopard d’Or, 2006, 3 vols. Para um estado da questão sobre os oficiais de armas e o saber por eles produzido, cfr., Werner Paravicini, «Le héraut d’armes: ce que nous savons et ce que nous ne savons pas», Revue du Nord, tome 88, n.º 366-367, 2006, pp. 467-490.
3 Anthony Richard Wagner, Heralds and Heraldry in the Middle Ages. An Inquiry into the Growth of the Armorial Function of Heralds, Oxford: OUP, 1956, sobretudo capítulo VI, «Heralds, Heraldry, and the Rolls of Arms», pp. 46-55; desenvolvido de forma circunscrita ao caso inglês em Anthony Wagner, Heralds of England. A history of the Office and College of Arms, London: Her Majesty’s Stationnery Office, 1967.
4 Paul Adam-Even, «Les armoiries étrangères dans les armoriaux français du Moyen Âge», Hidalguía, n.º 12, Set.-Out. 1958, pp. 785-800.
5 No volume da colecção «Typologie des Sources du Moyen Âge Occidental» dedicado às fontes heráldicas, Michel Pastoureau estabeleceu em 1977 um estado da questão dos estudos dos armoriais, que actualizou na segunda edição, em 1998. Michel Pastoureau, Les Armoiries, Turnhout: Brepols, 1998, pp. 38-45, 84-85 e 89; incluiu também, a pp. 48-50, uma comparação entre armoriais e selos enquanto fontes heráldicas. No seu tratado de brasão (1979), que se revelou fundamental para a renovação conceptual dos estudos heráldicos, como denotam as sucessivas reedições de 1993, 1997, 2003 e 2008, Pastoureau dedicou um capítulo às fontes, entre as quais os armoriais. Idem, Traité d’Héraldique, Paris: Bordas, 1993, pp. 222-230 e, novamente em comparação com os selos, pp. 232-233.
6 Desde que foram enunciadas em meados do século XX, tais classificações tornaram-se um instrumento de trabalho suficientemente adequado para ser seguido pela maior parte dos estudiosos de heráldica. Este facto levou a que o colóquio internacional de 1994 os mantivesse como critérios recomendados de classificação dos armoriais. Cfr., Michel Pastoureau, «Présentation», in Louis Holtz; Michel Pastoureau; Hélène Loyau (dir.), op. cit., pp. 12-13.
7 Livro do Armeiro-mor, organizado e iluminado por Jean du Cros (estudo de António Machado de Faria), Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1956; Livro do Armeiro-mor (estudo de José Calvão Borges), Lisboa: Academia Portuguesa da História / Inapa, 2000, pp. XVII-LXXIII.
8 António Godinho, Livro da nobreza e perfeiçam das armas, Lisboa: Inapa, 1987, pp. 9-75. Estes autores traçam um esboço dos armoriais que precederam ou seguiram de perto a produção do seu objecto de estudo.
9 Afonso de Dornelas, «O Livro do Armeiro-mor ou Livro Grande», Archivo do Conselho Nobiliarchico, vol. I, 1925, pp. 99-129; Idem, «O Livro Grande, tratado de nobreza universal», Archivo do Conselho Nobiliarchico, vol. II, 1927, pp. 13-43.
10 António Machado de Faria, «Quem ordenou e iluminou o Livro do Armeiro-mor?», Arqueologia e História, vol. 6, 1928, pp. 88-89; Idem, «Subsídios para o estudo da iluminura em Portugal. O Livro Grande ou Livro do Armeiro-mor», Armas e Troféus, I série, vol. I, 1932, pp. 136-148.
11 Francisco de Simas Alves de Azevedo, Uma interpretação histórico-cultural do Livro do Armeiro-mor. Fastos significativos da história da Europa reflectidos num armorial português do séc. XVI, Lisboa: Edição de Francisco Alberto d’Almeida Alves de Azevedo, 1966, pp. 27-49.
12 António Rodrigues, Tratado Geral de Nobreza, Porto: Biblioteca Pública Municipal, 1931, pp. I-XXII.
13 Livro de Arautos (estudo codicológico, histórico, literário e linguístico, texto crítico e tradução de Aires Augusto Nascimento), Lisboa: Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1977. Aires Augusto Nascimento centrou-se, contudo, na leitura e tradução do texto, deixando de fora a componente heráldica, aliás fundamental para a compreensão da obra; por isso, como aponta Werner Paravicini, tal edição «ocultou tanto quanto revelou o códice».
14 João Paulo de Abreu e Lima, «“Europe Arma”. Um códice português armoriado de 1416», Boletim da Academia Portuguesa de Ex-Líbris, n.º 43, 1968, pp. 15-22.
15 Werner Paravicini, «Signes et couleurs au Concile de Constance: le témoignage d’un héraut d’armes portugais», in, Denise Turrell et alii, Signes et couleurs des identités politiques. Du Moyen Age à nos jours, Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2008, pp. 155-188.
16 Manuel Artur Norton, A Heráldica em Portugal. 1.ª Parte. Livro que trata da origem dos reis e quantos houve em Portugal e como sucederam por António Coelho. 2.ª Parte. Correcções e Aditamentos, Lisboa: Dislivro Histórica, 2006, vol. III, pp. 27-45.
17 A. Machado de Faria de Pinna Cabral, António Soares de Albergaria heráldista do século XVII. Subsídios para a história da heráldica portuguesa, Lisboa: separata de Tombo Histórico, 1929.
18 Michel Pastoureau, «Présentation», op. cit., pp. 15-16.
19 Idem, Ibidem, p. 17.
20 Emmanuel de Boos, «Les décors héraldiques sont-ils des armoriaux?», in Louis Holtz; Michel Pastoureau; Hélène Loyau (dir.), op. cit., pp. 281-283.
21 Anselmo Braamcamp Freire, Brasões da Sala de Sintra, Lisboa: IN/CM, 1973, 3 vols.
22 Martim de Albuquerque, «Ainda o tecto da sala dos brasões em Sintra», in Estudos de Cultura Portuguesa, Lisboa: IN/CM, 2000, vol. 2, pp. 157-188.
23 Para aquilatar a variedade e o arco cronológico abrangido por este género de armoriais, basta citar, sem pretensões de carácter exaustivo, os botões esmaltados da cruz processional de Santo André de Mafra; o tecto pintado da igreja de Nossa Senhora da Oliveira, em Guimarães, comemorativo da batalha de Aljubarrota; ou as molduras da série de retratos da parentela da rainha D. Maria Pia, no paço real da Ajuda. Cfr., respectivamente, Miguel Metelo de Seixas, Contributo para o estudo do sistema de diferenças da Casa Real portuguesa: os botões esmaltados heráldicos da cruz processional de Santo André de Mafra, Lisboa: separata de Tabardo n.º 2, 2006; Luís Ferros, «A decoração heráldica do tecto da igreja da Colegiada de Nossa Senhora da Oliveira», in Actas do Congresso Histórico de Guimarães e Sua Colegiada. 850.º Aniversário da Batalha de S. Mamede (1128-1978), Guimarães: s/n, 1981, vol. IV, pp. 383-401; Miguel Metelo de Seixas e João de Morais Vaz, Uma série de molduras armoriadas do Palácio Nacional da Ajuda referentes à parentela da rainha D. Maria Pia de Sabóia, Lisboa: separata de Tabardo n.º 1, 2002.
24 Marquês de Abrantes, Introdução ao estudo da heráldica, Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1992, p. 38.
25 Cfr. Bernardo Vasconcelos e Sousa, «Vencer ou morrer. A batalha do Salado (1340)», in Francisco Bethencourt e Diogo Ramada Curto (org.), A Memória da Nação. Colóquio do Gabinete de Estudos de Simbologia realizado na Fundação Calouste Gulbenkian. 7-9 Outubro, 1987, Lisboa: Sá da Costa, 1991, pp. 505-514.
26 Fernão Lopes, Crónica do Senhor Rei Dom Fernando Nono Rei destes Regnos, Porto: Civilização Editora, s/d, p. 364 (cap. CXXX).
27 O único autor a debruçar-se especificamente sobre o tecto da colegiada de Nossa Senhora da Oliveira como armorial foi Luís Ferros, no artigo já citado de 1981.
28 Martim de Albuquerque e João Paulo de Abreu e Lima, «Introdução», in António Godinho, Livro da nobreza e perfeiçam…, p. 33.
29 Visconde de Sanches de Baena, Archivo Heraldico-Genealogico contendo noticias historico-heraldicas, genealogias e duas mil quatrocentas cincoenta e duas cartas de brazão d’armas, das familias que em Portugal as requereram e obtiveram e a explicação das mesmas familias em um indice heráldico com um appendice de cartas de brazão passadas no Brazil depois do acto da independencia do Imperio, Lisboa: Typographia Universal, 1872, vol. I, p. XXXV.
30 Anselmo Braamcamp Freire, Armaria Portuguesa, Lisboa: Cota d’Armas Editores e Livreiros, 1989, p. 283.
31 Idem, ibidem, p. 526.
32 Pressupõe-se que as armas registadas e iluminadas neste códice seriam aquelas sobre as quais o rei teria tido algum tipo de intervenção, fosse por concessão de armas novas, por reconhecimento de sucessão de armas de família ou ainda por acrescentamento honroso.
33 Apud, D. António, Conde de São Payo, Do Direito Heraldico Português. Ensaio Historico Juridico, Lisboa: Centro Tipografico Colonial, 1927, p. 35. Este autor engana-se, contudo, ao datar a carta de lei de 1466, o que é inverosímil quando se considera que ela foi promulgada em Toro, onde D. Afonso V estava em 1476. A confusão deve ter resultado de lapso de leitura paleográfica.
34 Ordena a carta régia, com efeito: «E porem mando aos meus chanceleres e escrivães da minha chancelaria, e a quaesquer outros reis d’armas, que acontecendo que alguma carta á sua mão vá, não vendo certificado que por ele dito Portugal forem ordenadas, e em seu livro registadas, e assentadas e pintadas, tal carta não selem nem passem em maneira alguma». Apud Idem, Ibidem, p. 65.
35 Existem diversos exemplares e variantes desta obra: Biblioteca Municipal de Santarém, Manuscritos da Biblioteca de Braamcamp Freire, 19/7/4; Direcção Geral de Arquivos/Torre do Tombo, Cartório da Nobreza, códice 44 e livro 17; Biblioteca da Ajuda, 50-V-18.
36 Martim de Albuquerque e João Paulo de Abreu e Lima, «Introdução», in António Godinho, Livro da nobreza e perfeiçam…, p. 35.
37 O carácter oficial desta justificação assumiu a forma de um juramento solene, realizado sobre os Evangelhos, de que o compilador seguiria a verdade e a justiça na atribuição das armas, que viriam consignadas segundo a ordem da sua hierarquia e antiguidade; para certificação do que o texto de abertura foi assinado pelo rei de armas Portugal, na presença de duas testemunhas (Pero de Lemos, capelão do rei, e Afonso Mexia, seu escrivão da câmara), seguindo-se a iluminura com as armas do responsável pela compilação. Livro do Armeiro-mor (estudo de José Calvão Borges)…, p. 1.
38 Francisco de Simas Alves de Azevedo, Uma interpretação…, pp. 54-59.
39 Direcção Geral de Arquivos/Torre do Tombo, Casa Forte, 163.
40 Apud Francisco de Simas Alves de Azevedo, Uma interpretação…, p. 74.
41 Idem, ibidem, p. 77.
42 Veja-se, por todos, João Paulo de Abreu e Lima, «Oficiais de armas em Portugal nos séculos XIV e XV», Genealogica & Heraldica. Lisboa 1986. Actas do 17.º Congresso Internacional das Ciências Genealógica e Heráldica, Lisboa: Instituto Português de Heráldica, 1989, pp. 309-344.
43 Apud Conde de São Paio (D. António), Do Direito Heraldico Português…, pp. 35-36.
44 Apud Idem, ibidem, pp. 42-63.
45 Entenda-se que as cartas de armas, para além desta dimensão honorífica, podiam também desempenhar um papel de relevo a nível fiscal e político-administrativo. Cfr. Miguel Maria Telles Moniz Côrte-Real, Fidalgos de Cota de Armas do Algarve, s.l.: Edição do Autor, 2003, p. 328.
46 A lei de 16 de Setembro de 1597, de Filipe II, referente aos tratamentos, incluía uma disposição que restringia aos titulares o uso de coronéis. Conde de São Paio (D. António), Do Direito Heraldico Português…, p. 40.
47 Cuja biografia foi objecto de estudo na introdução ao Livro da nobreza e perfeiçam…, escrita por Martim de Albuquerque e João Paulo de Abreu e Lima, pp. 13-16.
48 Cfr. a secção intitulada «O Livro da Nobreza e Perfeiçam no contexto dos armoriais portugueses», na mesma introdução ao Livro da nobreza e perfeiçam…, pp. 32-35.
49 Idem, ibidem, p. 35.
50 Cfr. Martim de Albuquerque, As armas de Camões..., pp. 15-17; IDEM, A expressão do poder em Luís de Camões, Lisboa: IN/CM, 1988, pp. 70-72; Idem; João Paulo de Abreu e Lima, «Introdução», in António Godinho, Livro da nobreza e perfeiçam…, pp. 34-35.
51 Apud Sousa Viterbo, A Livraria real especialmente no Reinado de D. Manuel. Memória apresentada à Academia Real das Sciencias de Lisboa, Lisboa: Typographia da Academia, 1901, p. 12.pp. 70-71.
52 Anselmo Braamcamp Freire, Brasões…, vol. I, pp. 22-23.
53 José Custódio Vieira da Silva, «A importância da Genealogia e da Heráldica na representação artística manuelina», in O Fascínio do Fim. Viagens pelo final da Idade Média, [Lisboa]: Livros Horizonte, 1997, pp. 131-151, p. 133. Na esteira das informações fornecidas pelo abade de Castro, a autoria da obra foi atribuída por Martim de Albuquerque a Jorge Afonso, pintor régio da maior importância, que também desempenhou o ofício de armas, pois era passavante em 1507 e arauto no ano seguinte. Martim de Albuquerque, «Ainda o tecto…», pp. 183-188.
54 Designadamente Libro de Armas de Portugal y otras curiosidades por otro que tenia el Señor Don Duarte hijo del Infante Don Duarte que fue hijo del Rey Don Manuel y de la Infanta Doña Isabel, DGA/TT, Casa-Forte, n.º 179; Armas de Reinos, Ciudades, Principes, Ordenes Militares y Monacales, Biblioteca Nacional de España, MSS/12527; Armaria, Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa, série azul, Ms. 135. Cfr. Martim de Albuquerque e João Paulo de Abreu e Lima, «Introdução», in António Godinho, Livro da nobreza e perfeiçam…, p. 35, nota 4.
55 Obra da qual existe uma recente reedição fac-simile: Pedro de Gracia Dei, Blasón General y Nobleza del Universo, Badajoz: Unión de Bibliófilos Extremeños, 1993.
56 Coube a Afonso de Dornelas assinalar a filiação do tratado de António Rodrigues. É interessante notar que a obra de Gracia Dei se dividia em duas partes formalmente distintas – um tratado do brasão e outro de nobiliarquia – ao passo que o rei de armas português preferiu fundir os dois, eliminando a expressa separação anteriormente existente. Cfr. Afonso de Dornelas, «O bacharel António Rodrigues, principal rei de armas Portugal», in António Rodrigues, Tratado Geral de Nobreza, Porto: Biblioteca Pública Municipal, 1931, pp. XIV-XIX. Os dados biográficos fornecidos por Dornelas devem hoje ser completados com as informações patentes em Sylvie Deswarte-Rosa, «A mais homrrada cousa de similhante calydade que em parte alguma do mundo se posa ver», in Leitura Nova de D. Manuel I, Lisboa: Edições Inapa, 1997, p. 50.
57 Martim de Albuquerque, As armas de Camões..., p. 558.
58 António Rodrigues, Tratado…, p. 146.
59 Em particular a partir da dinastia de Avis: «Bártolo é autor de um dos poucos textos jurídicos que integravam as bibliotecas dos primeiros príncipes de Avis. […] E na livraria de D. Duarte, entre os livros de Direito em linguagem, além de compilações legais […], apenas se contam obras do jurista de Sassoferrato.» Martim de Albuquerque, Bártolo e o Bartolismo na História do Direito Português, Lisboa: separata do Boletim do Ministério da Justiça, 1981, p. 16.
60 Cf. Bartolo da Sassoferrato, De Insigniis et Armis (a cura di Mario Cignoni), Firenze: Giampiero Pagnini editore, 1998. O interesse demonstrado pela matéria heráldica corresponde a uma das principais características da Escola dos Comentadores, em que se integra o jurista de Sassoferrato: a ideia de que o Direito, longe de constituir um conjunto imutável de regras herdadas da tradição, deve considerar e adaptar-se às alterações de uma ordem social e política em constante mutação. Cfr. António Hespanha, Panorama Histórico da Cultura Jurídica Europeia, Mem Martins: Europa-América, 1997, pp. 102-103. Nesse sentido, a atenção concedida por Bártolo às questões de direito heráldico correspondem à necessidade de reflectir sobre uma realidade nova, não contemplada na legislação até então existente.
61 António Rodrigues, Tratado…, p. 147.
62 Acerca de tais usos, a partir da análise de um caso específico, veja-se Miguel Metelo de Seixas, As armas municipais de Pinhel, Lisboa: separata de Armas e Troféus, 2004, pp. 150-155.
63 Jorge de Matos, A foralidade portuguesa e a heráldica nacional, Sintra: separata de Vária Escrita. Cadernos de Estudos Arquivísticos, Históricos e Documentais, 2003, p. 62.
64 Miguel Metelo de Seixas, As armas municipais…, pp. 151-152. A citação da determinação dionisina é retirada de José Mattoso, Identificação de um país. Ensaio sobre as origens de Portugal. 1096-1325, Lisboa: Estampa, 1985, vol. I, p. 382.
65 Veja-se, por exemplo, Miguel Metelo de Seixas e João Bernardo Galvão-Telles, Heráldica no concelho de Fronteira, Fronteira: Universidade Lusíada / Câmara Municipal de Fronteira, 2002, pp. 25-28.
66 Sylvie Deswarte, Les enluminures de la Leitura Nova. Etudes sur la culture artistique au Portugal au temps de l’Humanisme, Paris: FCG, 1977, pp. 53-54. Esta autora desenvolveu o tema na introdução que à edição em fac-simile dos frontispícios: Sylvie Deswarte-Rosa, «A mais homrrada cousa de similhante calydade que em parte alguma do mundo se posa ver», in Leitura Nova de D. Manuel I, op. cit., pp. 19-92.
67 Cfr. Sylvie Deswarte-Rosa, op. cit., pp. 55-56; Martim de Albuquerque, A Consciência Nacional Portuguesa. Ensaio de História das Ideias Políticas, Lisboa: Tese de doutoramento, FL-UL, 1974, vol. I, pp. 352-355.
68 D. Emmanuele Caietano Sousa, Bibliotheca stemmato-graphica hoc est genealógico-heraldica, BNP, Cód. 1148, fl. 29.
69 Eduardo de Campos de Castro de Azevedo Soares (Carcavellos), Bibliographia Nobiliarchica Portugueza, Braga: Ed. Autor, 1916, vol. I, pp. 92-93.
70 No «Apparato» com que abre a sua obra monumental, D. António Caetano de Sousa regista o nome de Brás Pereira de Miranda como autor de matérias genealógicas e traça o percurso de transmissão do seu espólio literário: «Os seus escritos entendo ficaraõ em poder de seu neto D. Jorge Henriques, Senhor das Alcaçovas, e Védor da rainha, D. Maria Anna de Austria». D. Antonio Caetano de Sousa, Historia Genealogica da Casa Real Portugueza, desde a sua origem até o presente, com as Familias illustres, que porcedem dos Reys, e dos Serenissimos Duques de Bragança, justificada com instrumentos, e Escritores de inviolavel fé, e offerecida a ElRey D. Joaõ V. Nosso Senhor, Lisboa Occidental: Na Officina de Joseph Antonio da Sylva, 1735, p. LXI.
71 O armorial esteve patente ao público por duas vezes, nas exposições do 4.º centenário de Vasco da Gama, em 1925, e do 4.º centenário d’Os Lusíadas, em 1972. Foi também citado em trabalhos avulsos de Armando de Mattos, Francisco de Simas Alves de Azevedo e Martim de Albuquerque.
72 Martim de Albuquerque, A expressão do poder em Luís de Camões, Lisboa: IN/CM, 1988, pp. 66-70.
73 Para a caracterização codicológica do armorial, veja-se Idem, Ibidem, pp. 68-69.
74 Cfr. Miguel Metelo de Seixas, João Pinto Ribeiro e a vexilologia municipal portuguesa: Em torno de uma polémica seiscentista, Porto: separata da Revista Lusófona de Genealogia e Heráldica, 2006, pp. 189-206.
75 Cfr. Maria de Fátima Machado, O Central e o Local. A Vereação do Porto de D. Manuel a D. João III, Porto: Afrontamento, 2003, pp. 71-104.
76 Francisco d’Holanda, Do Tirar Polo Natural, Lisboa: Livros Horizonte, 1984, pp. 11-12.
77 Jorge de Matos, «O pintor Francisco de Holanda e as armas do Prior do Crato – uma reflexão epistolográfica», Tabardo, n.º 1, 2002, pp. 85-93. António de Holanda esteve ao serviço não só de D. Manuel I, como também de D. Fernando, duque da Guarda, irmão do monarca. É conhecido o gosto que este infante nutria pela produção de obras iluminadas, em especial de natureza genealógica, devendo-se-lhe a encomenda a António de Holanda e Simão Bening da magnífica árvore dos reis de Portugal. Cfr. António de Holanda e Simão Bening, A Genealogia do Infante Dom Fernando de Portugal, Porto / Lisboa: Banco Borges & Irmão, 1984. Sobre a vida e obra de Francisco de Holanda: José da Felicidade Alves, Introdução ao estudo da obra de Francisco de Holanda, Lisboa: Livros Horizonte, 1986.
78 Apesar do desconhecimento sobre o actual paradeiro da obra, foi possível consultar uma sua reprodução na posse de Martim de Albuquerque, a quem se agradece a gentileza; os agradecimentos são extensivos a João Portugal, a quem se deve a notícia da existência desta reprodução e as diligências efectuadas para a compulsar e reproduzir, com autorização do seu proprietário.
79 O verso do fl. 1 é ocupado com o escudo de armas do reino do Algarve. Não fazendo parte da secção das armas municipais, deve ter sido colocado nesta posição por integrar o que chamamos de heráldica de domínio, ou seja, por representar um território ou uma instituição dotada de expressão territorial, sendo nisso semelhante aos municípios. A encimar o escudo algarvio, figura uma coroa real aberta, representativa da dignidade de reino, diferente das que ornamentam as armas municipais nos fólios seguintes. A inserção das armas do reino do Algarve pode justificar-se por se tratar da única entidade com expressão territorial, para além do reino de Portugal e dos seus municípios, dotada de expressão heráldica autónoma. Os demais organismos ou divisões administrativas, judiciais ou eclesiásticas não tinham insígnias próprias, nem mesmo quando se encontravam ligadas ao exercício de um poder senhorial. Não havia, assim, armas identificativas de um determinado senhorio ou título, mas antes armas das linhagens que os detinham, complementadas com os ornamentos exteriores denotativos da respectiva dignidade.
80 Armaria, Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa, série azul, Ms. 135, pp. 273-280.
81 A. Machado de Faria de Pinna Cabral, António Soares de Albergaria…
82 Cfr., Miguel Metelo de Seixas e João Bernardo Galvão-Teles, «Privilégios não valem sem serem expressos». A pedra de armas da casa da Praça, em Óbidos: um caso de heráldica de família nos finais do Antigo Regime, Lisboa: separata de Dislivro Histórica, n.º 2, p. 272.
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Referência do documento impresso
Miguel Metelo de Seixas, «As insígnias municipais e os primeiros armoriais portugueses: razões de uma ausência», Ler História, 58 | 2010, 155-179.
Referência eletrónica
Miguel Metelo de Seixas, «As insígnias municipais e os primeiros armoriais portugueses: razões de uma ausência», Ler História [Online], 58 | 2010, posto online no dia 07 dezembro 2015, consultado no dia 18 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/1218; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.1218
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