Fernando Rosas (coord), Revolução Portuguesa, 1974-1975. Lisboa: Tinta-da-china, 2022, 350 pp. ISBN 9789896716752
Texto integral
1Lançado a dois anos das comemorações dos cinquenta anos do 25 de Abril de 1974, no ano em que a longevidade da democracia superou a da ditadura, Fernando Rosas coordenou um novo volume sobre a transição portuguesa. Esta obra, dada à estampa com a qualidade habitual da editora Tinta-da-china, junta a colaboração de vários docentes e investigadores do Instituto de História Contemporânea da NOVA-FCSH que, entre setembro e dezembro de 2021, participaram num seminário sobre a revolução portuguesa. Estes contributos ficam marcados por uma interessante junção entre várias gerações de académicos que se dedicam ao estudo da revolução portuguesa. Destaque para Fernando Rosas, que teve um papel precursor na investigação sobre a historiografia portuguesa da segunda metade do século XX. Mas também Maria Inácia Rezola, Manuel Loff, Albérico Afonso Costa ou Pedro Aires Oliveira que, de uma geração mais recente, já têm vasto trabalho sobre este período histórico. Finalmente, investigadores como Hugo Castro e Ricardo Noronha demonstram que os estudos sobre a transição continuam a interessar as mais recentes gerações das ciências sociais e humanas em Portugal. De destacar, ainda neste volume, o contributo de investigadores que, no período em questão, foram atores proeminentes: Fernando Oliveira Baptista e Pedro de Pezarat Correia.
- 1 Fernando Rosas (coord.), Portugal e a Transição para a Democracia, 1974/1976 (Lisboa: Colibri, 1999 (...)
2No fundo, Fernando Rosas acaba por atualizar e aprofundar com este livro o seu contributo para a historiografia da Revolução de Abril. Lembremo-nos que, já em 1998, havia organizado, através do IHC-NOVA e da Fundação Mário Soares, um seminário sobre a mesma temática. O livro que daí resultou era caracterizado por uma junção de historiadores pioneiros nos estudos sobre a Revolução (casos de António Reis, António Costa Pinto, Fátima Patriarca, António José Telo, Philippe Schmitter e José Medeiros Ferreira) e de atores do processo revolucionário, dos quais se destacavam Mário Soares, Vasco Lourenço, Otelo Saraiva de Carvalho e Jorge Sampaio.1 Neste sentido, e ao contrário do volume agora editado pela Tinta-da-china, a nova geração de historiadores ficava à margem, substituída por um objetivo mais memorialista.
3No primeiro capítulo do livro aqui em apreciação, Fernando Rosas, centrando-se numa análise dos antecedentes do golpe militar que abriu as portas à Revolução de Abril, começa por enunciar a crise final do regime durante o marcelismo. Para além da questão colonial, o autor presta atenção aos fatores menos explorados, económicos e sociais. Do ponto de vista económico, referência para a crise petrolífera que muito contribuiu para “desenhar-se surdamente a ameaça da incapacidade financeira” do regime (p. 13), a braços com a despesa da guerra colonial. Já do ponto de vista social, a importância da enunciação das profundas mudanças trazidas pelos processos de industrialização, terciarização e urbanização que contribuíram para a radicalização da contestação social ao regime autoritário, com consequências particulares para a significativa recomposição da resistência antifascista. Estas transformações sociais foram uma das razões apontadas por Fernando Rosas para que a oficialidade intermédia, que num primeiro momento se organizou em oposição ao regime por questões fundamentalmente corporativas, optasse por derrubar o regime. Perante esta “tempestade perfeita”, o sucesso do golpe permitiu que, rapidamente, se desse início ao “processo revolucionário de massas”, fruto da pulverização do aparelho do Estado e da transformação da natureza das Forças Armadas: de “espinha dorsal da violência institucionalizado do Estado” a instituição “favorável à iniciativa popular” (pp. 39-40).
4A contribuição de Maria Inácia Rezola centra-se na análise do período que decorreu entre 25 de abril de 1974 e 11 de março do ano seguinte, na perspetiva dos centros de poder. A autora retrata a estrutura de poder político-militar formal, demonstrando a importância da institucionalização do Movimento das Forças Armadas nos primeiros anos da revolução. Fruto da explosão social reivindicativa, a alteração da cadeia de comando das Forças Armadas, a fragilidade das forças político-partidárias e a posição assumida por António de Spínola, o MFA rapidamente abandonou a ideia de se retirar da vida política, assumindo-se como um agente político “legitimado por um poder revolucionário” (p. 58). Esta tese recupera os trabalhos do pioneiro Medeiros Ferreira e de Sánchez Cervelló, que salientaram a importância da instituição militar no “pensamento estratégico da revolução” (p. 52). Rezola demonstra que a institucionalização do MFA e a criação do Conselho da Revolução na sequência do 11 de Março de 1975 foram feitas “num contexto de alguma unidade interna”, matizando a ideia de que estes processos se integravam numa dinâmica mais vasta de escalada do chamado sector gonçalvista no aparelho militar e na estrutura do estado (pp. 66-67). No capítulo terceiro, Manuel Loft analisa a fase seguinte, de radicalização profunda da revolução, entre o 11 de Março e o 25 de Novembro de 1975, demonstrando a existência de um tenso debate entre a legitimidade revolucionária e a legitimidade eleitoral. Para o professor da Universidade do Porto, a excecionalidade da revolução portuguesa compreende-se melhor se procurarmos ultrapassar uma visão dicotómica entre estas duas realidades. Na verdade, o “paradoxo essencial da democracia” é que “ela não deixa de ser o produto de uma revolução socialista, tal como ficou plasmado no seu texto constitucional, ainda que o seu modelo político e social tenha evoluído rapidamente” num sentido liberal-democrático tradicional (p. 116-117).
5A partir deste texto, o volume coordenado por Fernando Rosas entra numa dimensão sectorial, com contributos de atores e de académicos de várias gerações. Albérico Afonso Costa descreve a disputa político-ideológica nas comissões de moradores e trabalhadores de Setúbal, demonstrando que a revolução portuguesa de 1974-1975 chega a Setúbal num momento em que a cidade passava por uma transformação económica e social, fruto de um processo de modernização industrial que se iniciara na década de 1960. Esta nova vaga de industrialização, sobretudo ligada à metalomecânica e à construção naval, gerou um boom demográfico que agravou o problema habitacional. Numa sociedade de base proletária que, ao contrário de gerações anteriores, estava mais escolarizada, a participação cívica contra o regime fazia-se, sobretudo, em torno do Círculo Cultural de Setúbal. Fruto destas características, e apesar da influência do PCP, Albérico Afonso Costa demonstra-nos como no imediato pós-25 de Abril o movimento popular se radicalizou, tornando Setúbal num “laboratório de experiências de organização da vida urbana” (p. 161).
6Já Fernando Oliveira Baptista debruça-se sobre a “Política agrícola e a Reforma Agrária”, aprovada pelo decreto-lei nº 203/75, de 15 de abril. Esta peça legislativa, adotada na sequência de um processo de radicalização política e da nacionalização do sector produtivo, deve ser compreendida, segundo o autor, como fruto das transformações ocorridas na década de 1960 no sector agrícola – diminuição da população rural (emigração e urbanização) e o consequente aumento dos salários rurais; crescente mecanização e monetarização da produção agrícola; intensificação dos sistemas de produção nas unidades de maior dimensão (Alentejo, Ribatejo e Beira Baixa) e florestação das zonas de agricultura familiar do Algarve, Centro e Norte de Portugal. Estas transformações económicas e sociais foram acompanhadas, no pós-25 de Abril, pela implosão das elites políticas e sociais rurais das zonas de latifúndio, o que permitiu uma mudança radical nas vivências da ordem política e social dessas regiões onde os assalariados eram a base da atividade agrícola, dando origem ao movimento de ocupação de terras.
7Ricardo Noronha analisa a dinâmica económica focando-se nas intervenções técnicas e políticas que promoveram a conceção de um novo modelo económico em Portugal durante o PREC. Esse modelo económico, que está plasmado na primeira versão da Constituição de 1976, não foi seguido pela política, economia e sociedade do período de consolidação democrática. A adesão à CEE e a segunda revisão constitucional de 1989 eliminaram o “legado revolucionário”, colocando a “via portuguesa para o socialismo” na gaveta (pp. 186-187). Olhando para a dinâmica cultural, Hugo Castro demonstra como a revolução marcou uma estreita parceria entre a música e a atividade revolucionária. Num capítulo particularmente interessante e inovador pela sua abordagem metodológica, fica claro que a atividade de muitos cantores captou e difundiu uma clara radicalização do discurso político e social. Esta radicalização acabou por instrumentalizar e, também, promover “as expressões musicais tradicionais”, criando uma “cultura popular renovada e politicamente consciente” (p. 269).
8Os dois últimos textos deste volume abordam as duas principais dinâmicas externas da revolução portuguesa: a descolonização e a política externa. Pedro de Pezarat Correia mostra-nos como o encerramento do ciclo africano não é um movimento atípico na história imperial portuguesa. Processou-se num contexto em que a metrópole se confrontava com uma grave crise interna, numa conjuntura externa de violência armada – guerra colonial –, em que o paradigma político era favorável às lutas pela independência, reconhecidas pelas instituições internacionais. Por fim, o final de ciclo deixou um legado de mudança no regime político metropolitano. Para o autor, a especificidade do ciclo africano prende-se com a necessidade de o ler de uma forma abrangente, unindo o processo de colonização com o momento da descolonização. Fazendo isto, afasta-se a ideia, sempre falsa, de que existem diferentes tipos de colonização: umas profundamente repressivas, outras “boazinhas” (p. 276). Esta ideia ajuda a desconstruir os vícios de que Portugal ainda hoje padece e que impedem o entendimento da descolonização na sua globalidade (p. 300).
9Finalmente, Pedro Aires Oliveira analisa uma área particular da ação do estado, a política externa, para concluir que foi afetada quer pela dinâmica internacional quer pelas lutas políticas e sociais internas (p. 313). Começando por enumerar a necessidade de matizar os graus do isolamento/ostracismo que o regime português sofria em vésperas do 25 de Abril, o autor salienta que, em finais de 1973, a posição internacional do Estado Novo era-lhe “claramente desfavorável” (p. 318). Pedro Oliveira demonstra, ainda, que o desejo de mudança democrática após o 25 de Abril não foi acompanhado de uma rutura em relação às principais linhas da política externa – exceção feita à questão colonial. Através de uma minuciosa análise dos programas de governo, o autor explica que apenas do V Governo Provisório emergiu uma linha, na política externa, em que implicitamente se defendia a “transição para o socialismo”. A concretização desta via poderia provocar mudanças significativas para o país, colocando-o na esfera dos países não-alinhados (p. 323). Deste rumo resta a posição tradicional de Portugal se colocar como ponte entre diferentes espaços geopolíticos e regionais. A finalizar o capítulo, Pedro Oliveira analisa os impactos da revolução no Ministério dos Negócios Estrangeiros – pouco intensa em termos de saneamentos se comparada com outros ministérios, mas fundamental para a igualdade de género, já que permitiu a abertura da carreira às mulheres.
10Em suma, este volume dado à estampa em 2022 contribui, de forma relevante, para a historiografia da revolução portuguesa de 1974-1975.
Notas
1 Fernando Rosas (coord.), Portugal e a Transição para a Democracia, 1974/1976 (Lisboa: Colibri, 1999).
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Referência eletrónica
Daniel Marcos, «Fernando Rosas (coord), Revolução Portuguesa, 1974-1975. Lisboa: Tinta-da-china, 2022, 350 pp. ISBN 9789896716752 », Ler História [Online], 82 | 2023, posto online no dia 28 março 2022, consultado no dia 11 fevereiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/11881; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.11881
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