1Na análise do vintismo e do seu significado político é fundamental ter presente aquela que foi uma das suas características mais marcantes: a existência de diversas sensibilidades ou expressões políticas que marcaram o conteúdo, o alcance e o ritmo das mudanças e reformas defendidas pelo movimento regenerador. A inexistência de partidos ou fações políticas, na moderna aceção em que são concebidos – isto é, enquanto forças organizadas em torno de um programa de princípios e objetivos claramente definidos e partilhados em comum –, não impede o reconhecimento de que foram distintas as perceções construídas e as vontades proclamadas pelos protagonistas centrais dos acontecimentos que agitaram a primeira fase da revolução liberal portuguesa, entre agosto de 1820 e maio de 1823.
2Nos primórdios da historiografia do período nem sempre foi feita justiça a essa variedade de pontos de vista. A memória ainda fresca de acontecimentos tão marcantes na vida pública portuguesa, a que se juntou algum desencanto pelo modo como a revolução liberal foi percorrendo o seu caminho atribulado até meados do século XIX, fez com que autores como Alexandre Herculano ou Oliveira Martins atribuíssem ao vintismo um significado unicolor, ou predominantemente manchado pelos exageros radicais e jacobinos que indelevelmente marcaram a elaboração da primeira constituição “quase-republicana” portuguesa de 1822. No tom crítico que lhe foi tão peculiar, Oliveira Martins menorizou o significado do vintismo, afirmando que “Os revolucionários de 1820, imbuídos das quimeras jacobinas que a invasão francesa propagara em Portugal, foram nobres; mas – triste força é confessá-lo – foram ridículos” (Martins 1882, Livro 7º, cap. III). Assim o comprovava, em seu entender, a arrogância irrelevante de atos constituintes e legislativos inoperantes. Aceitando-se como boa tal interpretação, ficariam por explicar múltiplos aspetos do alcance reformista de uma regeneração promissora, apesar de efémera, que seriam depois retomados e enriquecidos pela legislação revolucionária de 1832-1833 de Mouzinho da Silveira, que Herculano (1873) tanto admirou.
3A apropriação feita pela historiografia de cariz republicano de finais do século XIX – com destaque para a obra de José de Arriaga (1886) – ao acentuar as virtudes anunciadoras do movimento vintista, interpretado como assomo republicano avant la lettre, não ajudou a compor uma história em que figurassem, em plano de igualdade, atores políticos com projetos distintos em confronto. Ficava reservada para períodos posteriores da história da monarquia constitucional portuguesa o reconhecimento da presença de clivagens nítidas entre partidários de D. Pedro e de D. Miguel, entre liberais e absolutistas, entre constitucionais e realistas, entre cartistas e setembristas, entre regeneradores e progressistas. Quanto ao vintismo, o primado atribuído ao peso de uma herança supostamente sectária e radical na fase de arranque da revolução liberal impedia, na prática, a aceitação de uma perspetiva de valorização da variedade de pontos de vista ou sensibilidades políticas em presença.
4Passados que foram os ímpetos interpretativos oitocentistas – liberais, antiliberais, nacionalistas, maçónicos ou republicanos –, foi através da abordagem serena de Joaquim de Carvalho (1935a e 1935b) que se fixaram os primeiros contornos de uma análise histórica do vintismo enquanto projeto político disputado por campos divergentes. Desde logo, entre os que pretendiam conservar o statu quo do antigo regime e os que procuravam inovação institucional; mas também, no âmbito da família regeneradora, entre os que procuravam seguir caminhos mais moderados e os que se inclinavam para soluções mais radicais. Os confrontos e divergências nos trabalhos parlamentares, nos artigos publicados pela imprensa periódica ou nas ações do governo, foram observados atentamente por Joaquim de Carvalho como sinais da presença de uma pluralidade de opiniões e credos cuja expressão era consentida e motivada pelas circunstâncias e pressões do momento conjuntural.
5Outra contribuição decisiva para a compreensão do vintismo enquanto território disputado por diversas correntes políticas foi dada por J. S. da Silva Dias (1979 e 1980). No primeiro desses textos (1979, vol. I, t. II, 763-788) fê-lo de forma extensiva e pormenorizada e no segundo de forma sintética e compactada, agrupando os mais relevantes atores políticos do vintismo em três categorias fundamentais – “moderados, gradualistas e radicais” – que procurou identificar à luz dos exemplos históricos que lhes terão servido de modelo. Assim, enquanto os moderados estiveram mais próximos do modelo constitucional inglês, os gradualistas tiveram como inspiração o modelo da Constituição de Cádis, ao passo que os radicais se deixaram seduzir pelos ecos rousseaunianos da Revolução Francesa, especialmente do período da Convenção. Esta classificação não se apresenta em contornos rígidos ou compartimentos estanques, explicando Silva Dias o modo como muitos políticos vintistas cruzaram as três famílias, em função dos objetos em discussão ou dos problemas em resolução. Quando o campo mais à direita do espetro político tornava difícil o englobamento de casos extremos, Silva Dias introduziu uma quarta categoria implícita de “reacionários”, por vezes também classificados como “conservadores” ou “contrarrevolucionários”, a fim de acolher aqueles que melhor aderiram ao espírito do tempo impregnado pela realpolitik dos incondicionais seguidores da Santa Aliança.
6O menor rigor na classificação tipológica, designadamente no que se refere à diferenciação entre moderados e gradualistas, não impede o reconhecimento do mérito de uma intuição analítica decorrente da leitura dos acontecimentos na sua vertiginosa sucessão e do modo como os autores da época foram convocando fontes doutrinais ou emulando exemplos de outros países. Porém, ao tentar associar as famílias políticas a grupos sociais ou interesses de classe, Silva Dias expôs o seu modelo a fragilidades e inconsistências que não superam o mais elementar teste de identidade sociológica, retirando pertinência interpretativa ao que supunha serem as bases sociais de apoio de cada corrente ideológica ou política. A proposta feita por António Pedro Mesquita (2006) de se distinguir, na família vintista, entre “democratismo e reformismo”, continuou a testemunhar o sentido que tem o reconhecimento da existência de um campo político dividido, mas não esclareceu a essência das posições dissonantes ou em confronto. Mais sensata foi a sugestão de Zília Osório de Castro (2019) de ver plasmadas num “arco-íris liberal” as diversas cores e tonalidades que o discurso político vintista revestiu, esclarecendo desse modo que as sensibilidades em presença configuravam matizes distintos de participação cívica e perspetivas diferentes de entendimento do mundo em que viviam.
- 1 Os bicentenários de revolução de 1820 e da Constituição de 1822 suscitaram a publicação de vários (...)
7Mais importante do que definir grupos ou núcleos coesos de ação política, portadores de um sentido deliberado ou premeditado, parece ser a preocupação em captar a essência dos problemas em torno dos quais se debatem visões distintas, sabendo que o alinhamento de perspetivas não se faz sempre com a colaboração dos mesmos protagonistas. Isto é, que aqueles que nalgumas matérias ou em certos momentos do debate público se inclinam para opções mais radicais de mudança, por vezes também revelam afinidades eletivas com soluções de reforma moderada. Por conseguinte, é através do modo como exercem as suas escolhas, em função dos problemas que suscitam intervenção, que as sensibilidades políticas do vintismo revelam a sua plena notoriedade. Nas notas que se seguem procurarei ilustrar, através de alguns momentos ou problemas com especial relevância, o modo como as sensibilidades políticas do vintismo se manifestaram, na sua pluralidade e diversidade. Não se pretende contar uma história detalhada do vintismo nem proceder a um balanço sistemático da sua historiografia.1 Alguns dos acontecimentos e momentos mais relevantes do período compreendido entre agosto de 1820 e maio de 1823 apenas servem de pretexto para se revisitarem as tensões essenciais entre as forças políticas em confronto.
8O teor das proclamações emitidas pela Junta Provisional do Supremo Governo do Reino (que abreviadamente citarei como Junta do Governo), pouco depois do pronunciamento militar de 24 de agosto no Campo de Santo Ovídio na cidade do Porto, denotava uma atitude de prudência contida em relação ao alcance da revolução assim iniciada. Os apelos ao regresso do rei juntavam-se aos cuidados em garantir o respeito pela dinastia bragantina e pela religião católica. E a expressão de vontade de convocação de cortes encarregadas da elaboração de um código constitucional era, para os líderes do movimento com ligações ao Sinédrio, o elemento crucial que congregava os protagonistas interessados numa mudança de regime. Para alguns protagonistas que viveram intensamente estes acontecimentos, tratava-se mesmo de uma revolução. Para Almeida Garrett, a nação tinha-se portado “com aquela prudência, com aquela generosidade, com aquela paz, que são a alma e o penhor da pública felicidade e que são a característica de uma boa revolução” (Garrett 1821, 26). Enaltecendo idênticas virtudes pacificadoras, Manuel Fernandes Tomás chamou ao pronunciamento de 24 de agosto “uma revolução venturosa” (Tomás 1821a, 117); e no mesmo tom se referiu o redator do Astro da Lusitânia no número inaugural deste jornal, chamando-lhe “revolução milagrosa” (nº 1, 30 de outubro de 1820).
- 2 A apropriação e uso dos termos revolução e regeneração seria certamente merecedora de uma atenção (...)
9Não obstante a candura na adjetivação do conceito, havia a perceção clara de que estava em curso uma mudança que visava subverter a ordem política do regime de monarquia absoluta. Os atores em cena obedeciam a um sentido de urgência, a propósitos de intencionalidade premeditada, sentiam-se portadores de uma vontade e desejo de transformação e rutura. Era esse o sentido da revolução que procuravam incutir aos seus seguidores. Porém, também sabiam que falar de revolução poderia afastar aliados indispensáveis à consolidação do novo regime. Talvez por isso preferiram quase sempre utilizar o termo regeneração, vincando a ideia da importância de dar nova vida, ou revitalizar um corpo político exangue, carente de cuidados elementares. Assim se compreende que o conjunto de manifestos e proclamações emitidos pelas instâncias políticas e militares que fizeram o pronunciamento de 24 de agosto tenha sido publicado com o título de Coleção das Proclamações, e Outros Documentos que servem para a História da Regeneração de Portugal desde o dia 24 de Agosto de 1820. Afinal, a boa, virtuosa e milagrosa revolução era preferencialmente apelidada de regeneração pelos seus próprios mentores e executores.2
- 3 Retomo aqui, de forma abreviada, a análise minuciosa que dediquei às coleções de manifestos e pro (...)
10A linguagem destes manifestos e proclamações expressa uma coerente identificação dos motivos que explicavam a mudança que se pretendia levar a bom porto.3 Parafraseando os textos da época (Coleção das Proclamações 1820) tratava-se de aliviar o sofrimento dos portugueses, de acudir à falta de segurança de pessoas e bens, de mitigar a penúria dos soldados, de combater os erros e vícios da administração e a falta de luzes na direção do Estado, de denunciar e superar a sistemática violação de direitos básicos, a tirania e o despotismo, de ultrapassar a situação de ruína da agricultura, indústria, comércio e marinha, de exigir o regresso do rei, de reclamar as boas tradições de fiscalização política das antigas cortes e de desejar que Portugal seguisse o bom exemplo da vizinha Espanha. Como é próprio das revoluções generosas, os elementos de diagnóstico que estavam na base destas denúncias e exigências não tinham de se mostrar comprovados. Bastava proclamar retoricamente que os males eram esses, para assim se anunciar a boa nova de uma regeneração inevitável. São raras as expressões – nestes textos proclamatórios produzidos entre 24 de agosto e 15 de setembro – de incómodo pela presença militar e económica dos agentes britânicos. Ou seja, as motivações nacionalistas por vezes associadas à revolução de 1820 não encontram sinal evidente nos primeiros textos em que se esboçam motivos e propósitos de deposição da regência.
11Em relação aos objetivos e fins a atingir, a linguagem veiculada pelos manifestos e proclamações configura uma vontade de regeneração social e política nas seguintes matérias fundamentais: liberdade regrada pela lei, reformas guiadas pela razão e pela justiça, salvação da pátria, segurança e tranquilidade da nação, defesa da propriedade individual, felicidade da nação e florescimento do reino. Tudo isto sempre em atitude de fidelidade e em nome da vontade do rei e garantindo a defesa e manutenção da religião católica. Como é óbvio, são pretensões genéricas que funcionam como roteiro programático de mudanças desejadas, independentemente da ponderação da sua exequibilidade. Mas que revelam que a natureza do guião em presença remetia para a rejeição de um projeto jacobino, de uma revolução violenta que pusesse em perigo o trono e o altar.
12A maior consistência de argumentos verifica-se na forma como se anunciam os instrumentos políticos que fariam reverter os problemas diagnosticados e regenerar Portugal: substituição da regência por um governo provisório legitimado pela aclamação popular que atuasse prontamente de modo a coibir os tumultos e abafar qualquer ato de anarquia e que, acima de tudo, preparasse a convocação de cortes destinadas a dar ao país uma constituição. Foi a insistência neste último tópico duplo (cortes e constituição) que funcionou como motivação central do movimento regenerador vintista na sua fase inicial, fixando como prioridade estratégica da agenda política o aperfeiçoamento da ação governativa e o estabelecimento de uma nova ordem constitucional. Só assim o roteiro regenerador poderia tornar-se um trilho seguro. É inquestionável que o movimento regenerador inscreveu como elemento mobilizador central a vontade de dar ao país uma constituição. Todavia, o cumprimento desse desiderato exigia passos firmes e rigorosamente medidos. A relativa facilidade com que o movimento suavemente alastrou de norte para sul – não obstante os conhecidos focos de resistência em regiões da Beira e Trás-os-Montes – resultou da presença de figuras associadas a interesses políticos e sociais vinculados a posições de manifesto conservadorismo político. A participação inicial de António da Silveira Pinto da Fonseca e de Sebastião Drago Cabreira, respetivamente como presidente e vice-presidente da Junta do Governo após a jornada de 24 de agosto, é disso exemplo esclarecedor.
13A reação adversa compreensivelmente esboçada pela regência, que fez questão de vincar que era sua a legitimidade de representar D. João VI no território continental europeu do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, foi pronta e eficazmente neutralizada. A fidelidade a D. João VI era por todos reivindicada e não adiantava fazer dessa matéria um pomo de discórdia. Fr. Francisco de S. Luís, figura respeitada cuja adesão ao movimento regenerador significava uma forte motivação conciliadora, foi quem respondeu às primeiras proclamações da regência, as quais não lograram inflamar potenciais adeptos. A admiração granjeada pelo futuro reitor da Universidade de Coimbra, assim como os poderosos dotes de persuasão da sua escrita elegante, terá sido um antídoto importante para desmobilizar as pretensões da regência de convocar cortes à moda antiga, mediante representação das ordens tradicionais ou três estados do reino (clero, nobreza e povo). Os aliados com que a regência ainda contava, quer no âmbito da Academia das Ciências de Lisboa, quer nos circuitos de representação diplomática, cedo compreenderam que a reinvenção das Cortes de Lamego era um sonho que ficaria para sempre adiado.
- 4 Sobre este assunto, cf. o importante estudo e recolha documental de Moreira e Domingues (2021).
14Saliente-se, a este propósito, que a questão de saber como deveriam ser convocadas as cortes foi, em si mesma, matéria clarificadora da visão que os líderes do movimento regenerador iniciado no Porto tinham acerca do caráter amplo, popular e nacional da soberania. O impressionante sucesso que a Junta Preparatória das Cortes obteve, quer no número, quer na qualidade das respostas dadas por pessoas individuais e instituições à consulta pública sobre a forma de se organizar o processo de representação política nas futuras cortes, revela o forte sentido inovador introduzido nos princípios e práticas de representação da soberania.4 De passagem entre Londres e o Rio de Janeiro, o conde de Palmela ainda procurou contribuir para que a ideia de dar ao país uma constituição mediante a convocação de cortes representativas da vontade geral da nação, eleitas por sufrágio, não revertesse ou anulasse a ideia de soberania assente na representação monárquica. Tal foi a motivação que o levou a sugerir a negociação de uma carta constitucional outorgada por D. João VI. Mas não era essa a intenção dos militares, magistrados e negociantes mentores dos pronunciamentos de 24 de agosto e 15 de setembro. Por isso, Palmela teve de embarcar para o Brasil sem ser portador das melhores notícias para a família real. A revolução estava em marcha e a convocação de eleições para novas Cortes Constituintes era um processo irreversível.
15Assim, a partir de 1 de outubro de 1820, a nova Junta do Governo que agregou as lideranças provisórias emanadas dos pronunciamentos do Porto (24 de agosto) e de Lisboa (15 de setembro) deixou de se preocupar com quaisquer focos de resistência alimentados pelos antigos governadores do reino. Os ânimos pareciam serenar à medida que a aposta constitucional ganhava número crescente de adeptos. No campo militar, a ausência de Beresford e a desmobilização de oficiais ingleses em posições de comando contribuíram para que tudo se fizesse de forma pacífica, sem conflitos armados explícitos e sem sangue derramado. Para que este desfecho tivesse sido possível foram muito importantes a intenção moderada e a atitude conciliadora negocial dos mentores da revolução, entre os quais cumpre destacar as figuras de Manuel Fernandes Tomás e de Fr. Francisco de S. Luís.
- 5 Manifesto aos Portugueses (24 de agosto de 1820), Proclamação aos Habitantes de Lisboa (28 de ago (...)
- 6 Carta aos Governadores de Lisboa (3 de setembro de 1820), in Coleção das Proclamações…, 104-107; (...)
16Os manifestos e proclamações de sua autoria são peças políticas que expressam uma orientação estratégica definida em função de uma preocupação primordial: instituir as bases de um regime político constitucional que não abdica de pilares de sustentabilidade assentes na coroa e na religião católica e que estabelece novas formas de legitimidade e de representação que valorizam o papel dos cidadãos e a sua configuração enquanto nação soberana. No caso específico dos textos de Manuel Fernandes Tomás, destinaram-se sobretudo a mobilizar a opinião pública nacional para o apoio incondicional aos movimentos iniciados a 24 de agosto.5 Quanto a Fr. Francisco de S. Luís, a sua escrita visou estabelecer uma ponte com o monarca ausente e os seus representantes desalojados do poder, assim como sossegar os soberanos europeus sobre a bondade da revolução portuguesa, procurando assim evitar qualquer intervenção dos países da Santa Aliança que fizesse perigar o seu desfecho.6
17Uma vez dirimida a questão de saber como proceder à convocação das cortes, a solução que prevaleceu como escolha política fiel à representação da soberania da nação passou a ser disputada em torno do modelo a adotar no processo de eleição dos deputados. Esta matéria serviu de pretexto para um novo confronto entre as sensibilidades políticas em presença, desta vez entre os membros da Junta do Governo que procuravam conduzir o processo de acordo com regras definidas sobre as etapas de eleições indiretas que melhor se ajustavam à natureza dos eleitores e os que, fora do governo, consideravam que bastaria seguir o modelo já testado da constituição espanhola de Cádis e sustentavam que era urgente proclamar as bases de uma constituição portuguesa inspiradas em tal modelo. A estes últimos juntaram-se, em aliança tática desconcertante, alguns militares insatisfeitos com o decurso da revolução e o próprio António da Silveira Pinto da Fonseca (que presidia à Junta do Governo), que via nesta discórdia uma oportunidade para afastar os líderes da regeneração em marcha, entre os quais sobressaía, naturalmente, Manuel Fernandes Tomás. A demissão de Fernandes Tomás e de outros membros do governo ocorreu no dia de S. Martinho (11 de novembro de 1820). Porém, foi apenas um compasso de espera para um regresso com legitimidade reforçada e que viria a ditar o afastamento da órbita do poder de António da Silveira e de Sebastião Cabreira, ou seja, daqueles que, aparentando adesão aos pronunciamentos de agosto e setembro, continuavam a representar as sensibilidades conservadoras e realistas interessadas em travar o curso irreversível dos acontecimentos.
- 7 Sobre a relevância deste tema no período aqui em análise, cf. Tengarrinha (2013, 317-390).
18No rescaldo da Martinhada, os representantes de posições políticas mais radicais acabaram por ver consagrados os seus intentos, forçando Fernandes Tomás a alterar as instruções para a convocação das cortes e tornando-as praticamente iguais às do modelo gaditano. A comparação entre as novas e as anteriores instruções não revela diferenças processuais particularmente significativas. No entanto, a forma como a recente imprensa periódica se envolveu no debate sobre o assunto permite-nos perceber a importância do domínio da opinião pública para a formação das sensibilidades políticas do vintismo. Essa era uma das novidades introduzidas pelo movimento regenerador: a formação de opinião pública através da liberdade de imprensa.7
- 8 Sobre a relevância das temáticas da educação para a cidadania constitucional no discurso liberal (...)
19Um dos primeiros e bem-sucedidos projetos jornalísticos resultantes da revolução de 1820 foi o Astro da Lusitânia, redigido por Joaquim Maria Alves Sinval. O tom que imprimiu ao jornal foi de permanente inconformismo com a moderação e lentidão das reformas levadas a cabo pelo governo e pelas cortes. Ficou célebre o artigo “O tempo perdido” (nº 13, 27 de novembro de 1820), no qual lamentou o ritmo demasiado lento das mudanças esperadas na abolição de direitos antigos e na criação de uma nova cidadania política. Nesse sentido, sugere a necessidade de se “compor livros elementares, que espalhados pelos povos lhes subministrem as ideias que lhes são necessárias para conhecerem a natureza do novo sistema de governo que nós acabámos de estabelecer” (ibid). A compreensão da necessidade e utilidade de um governo constitucional exigia, para o Astro da Lusitânia, um programa educativo que consolidasse a adesão popular a novos ideais e a novas práticas políticas de exercício da soberania. Para que, afinal, se compreendesse qual o sentido e as vantagens de se dotar a nação de um novo código político constitucional.8
20O sucesso do artigo do Astro da Lusitânia não se deveu à mensagem direta transmitida, mas sim à polémica que suscitou junto da figura central da Junta do Governo, Manuel Fernandes Tomás, que sob o disfarce de “Compadre de Belém” protagonizou um notável debate público sobre as vantagens de se atuar de forma lenta e moderada, para não precipitar o risco de regresso ao ponto de partida. As Cartas do Compadre de Belém e do Compadre de Lisboa, e as respostas sucessivas que lhes foi dando Alves Sinval nas páginas do Astro da Lusitânia, são testemunho exemplar do confronto de posições bem distintas sobre o modo de se atacarem os interesses de grupos sociais privilegiados do antigo regime senhorial e clerical, e sobre os cuidados a ter na preservação de equilíbrios sociais e políticos que não fizessem perigar os propósitos do movimento regenerador. As palavras de Fernandes Tomás são, a este propósito, bem esclarecedoras da intencionalidade que imprime ao seu programa de reformas:
Que a moderação, e a suavidade, glorioso timbre de um governo justo e ilustrado, hão de acompanhar sempre as medidas empregadas nas operações económicas das reformas, que forem necessárias. E que finalmente a nossa conduta pode servir de exemplo e modelo aos povos do universo, que quiserem regenerar-se; porque em nossa revolução não separámos ainda, nem as ideias morais das ideias liberais, nem a justiça da política. (Tomás 1821b, 159)
21A necessidade de abolição de antigos direitos e privilégios não suscitava qualquer dúvida ou hesitação por parte dos múltiplos intérpretes que emergiram nos meses que se seguiram à deposição da regência de D. João VI. A regeneração não deixava de ser uma revolução, como bem explica Fernandes Tomás no excerto acima transcrito. No entanto, ficou desde cedo patente a divergência de opiniões quanto às prioridades estratégicas a estabelecer e quanto ao procedimento, gradual ou repentino, que se revelava socialmente mais adequado e politicamente mais eficaz. A opção moderada e gradualista de Fernandes Tomás ficou bem expressa nas Cartas do Compadre de Belém, e também no jornal O Independente que fundou e escreveu com o seu correligionário político José Joaquim Ferreira de Moura. Com efeito, as páginas de O Independente, fazendo contraponto ao tom radical e exaltado do Astro da Lusitânia, oferecem testemunho inequívoco da relevância de ações de educação cívica e de formação para a cidadania ativa que implicavam, para serem consequentes, uma ponderação rigorosa das condições em que a revolução podia avançar, ou necessitava de ser travada. As ideias de conciliação e tolerância, os sentimentos que presidem à formação de um verdadeiro espírito constitucional, recomendavam a atenuação de posições extremadas e a apologia de virtudes dialogais. No discurso direto transmitido por estes autores centrais do movimento regenerador vintista, torna-se clara a existência de sensibilidades e orientações distintas, fazendo-se uso de designações sugestivamente identificadoras das principais disputas no plano político. Vale a pena sentir a relevância desses debates nas palavras proferidas na época, através do seguinte excerto de O Independente:
De quando em quando lá se ouve umas vezes o grito de um corcunda, que suspira pela doçura dos privilégios, e pelo arranjo que lhe fazia o poder arbitrário e irresponsável; outras vezes o de um exaltado, que com o pretexto da liberdade, e dos interesses do povo, clama pelas mortes, pelos exílios, pelo destroço, e pelas ruínas, mas sobretudo (e aqui bate o ponto…) pela queda dos empregos públicos (já se sabe que o primeiro intuito é para se empregar ele a si e aos seus amigos…). Porém todos estes gritos são perdidos, ninguém os atende. Os entusiastas destas duas tão opostas espécies, perdem o seu tempo no meio deste bom senso, desta moderação, desta prudência de que é dotado o povo português. Pobres corcundas, pobres exaltados, toda a gente vos despreza. (O Independente, suplemento ao nº 15, 11 de dezembro de 1821)
- 9 Não cabe aqui, naturalmente, um desenvolvimento deste tema que foi pioneiramente investigado por (...)
- 10 Uma seleção dos textos políticos mais relevantes publicados por O Independente foi recentemente e (...)
22O novo léxico político que os regeneradores vintistas, na sua diversidade, foram construindo – do qual este texto de O Independente é singularmente exemplificativo – representa um dos mais importantes legados da fase inicial da revolução liberal portuguesa, conforme amplamente reconhecido pela historiografia do período.9 No caso do texto aqui em apreço, a leitura do guião da revolução de 1820 através do breviário de cidadania constitucional veiculado por O Independente permite compreender as vantagens de contenção da palavra e do gesto, de apelo ao bom senso, sem se alienarem propósitos generosos de mudança de hábitos políticos. As mensagens jornalísticas de Fernandes Tomás e de Ferreira de Moura dão conta da polarização política existente (corcundas e exaltados) e reclamam para si próprios os benefícios de serem moderados, procurando deste modo amortecer o tom inflamado dos debates parlamentares e da retórica tribunícia dos deputados mais empenhados na luta pelas causas que fizeram do vintismo uma experiência política tão singular.10
23A intenção programática de convocação de cortes que dessem ao país uma constituição foi concretizada com sucesso a partir do final de janeiro de 1821. Era essa a promessa proclamada na sequência dos pronunciamentos do Porto e de Lisboa, foi esse o propósito central que mobilizou os deputados eleitos que, além das prerrogativas constituintes, assumiram a plenitude de representação da nação com atributos de poder legislativo. Assim, as Cortes Gerais e Extraordinárias da Nação Portuguesa constituíram-se como palco natural de um intenso debate em relação a todas as matérias suscetíveis de deliberação política ou ordenamento legal. Nessa medida, foram, por excelência, o lugar de exibição de sensibilidades e tendências políticas em processos de confronto e convergência.
24As bases da Constituição e a própria Constituição tiveram honras de primeiro plano, ocupando a sua discussão uma parte significativa dos debates parlamentares. E foi justamente sobre o desenho dos princípios constitucionais que os deputados vintistas expressaram com maior veemência pontos de vista divergentes sobre o articulado em aprovação. A definição de soberania assente na nação, a questão da igualdade perante a lei e as garantias dos cidadãos perante a justiça, a divisão de poderes, a possibilidade de existência de um regime bicamaral, a sensível questão do veto real, as atribuições e composição do Conselho de Estado, a eventualidade de abdicação real e a sucessão régia, as competências e os limites do poder executivo, o exercício do direito de voto e as regras do sistema de eleitoral – todas estas matérias foram objeto de intensas discussões que permitiram uma clara diferenciação das opções políticas em jogo.
25Os resultados das votações revelam que o alinhamento dos deputados não foi sempre feito do mesmo modo, o que aliás foi na época constatado com o intuito de identificar as clivagens políticas dos representantes da nação (Gorjão 1822) em relação aos temas essenciais do debate político. Porém, quaisquer que fossem os compromissos pontuais de aliança no recinto das cortes, acicatados ou não pela pressão da opinião pública, a aprovação do articulado final da Constituição revela a supremacia dos defensores de uma ordem político-constitucional assente no primado do poder legislativo e na subalternização da figura do monarca. Muitos dos deputados que votaram favoravelmente os princípios consagrados na Constituição de 1822 e que foram os seus principais obreiros materiais – nomeadamente Fernandes Tomás, Borges Carneiro, Ferreira de Moura, Bento Pereira do Carmo, Francisco Soares Franco, José Ferreira Borges ou Manuel Alves do Rio – acabaram por ver os seus nomes associados a declarações de voto mais radicais nalgumas das matérias essenciais da definição da moldura constitucional do novo regime político liberal inaugurado no verão de 1820.
26Todavia, perante o vasto elenco de assuntos debatidos nas cortes, não é possível estabelecer separações nítidas entre tendências de voto expressas por deputados considerados na sua individualidade. Ou seja, a questão não é tanto a de saber como votou o deputado A ou B em determinado artigo ou decreto em apreciação, mas sim a de reconhecer que a discussão desse artigo ou decreto suscitou interpretações e interpelações distintas, independentemente dos deputados que as expressavam. Deste modo, quando nas cortes se discutiram os projetos de decretos sobre a liberdade de imprensa, a extinção da Inquisição, a abolição de direitos senhoriais, a reforma dos forais, as relações comerciais com o Brasil, a reforma dos tribunais, a forma de provimento de cargos públicos, ou as opções de protecionismo aduaneiro em relação à importação de produtos agrícolas ou industriais, não foram óbvios os consensos formados sobre o sentido maioritário da votação. Todos os assuntos serviram de pretexto para a demonstração de dotes de retórica parlamentar que enquadrava opiniões políticas distintas sobre os rumos que a revolução ia tomando, na rotina diária das soluções adotadas para os assuntos em agenda. Vejamos alguns exemplos sugestivos e elucidativos de uma certa polarização política dos debates parlamentares.
27No caso específico das questões de índole económica, as clivagens demonstradas foram quase sempre desfavoráveis às opções de laissez-faire. As posições de liberalismo económico foram sustentadas por um reduzido número de deputados, entre os quais se destacou João Rodrigues de Brito. Pregou quase sempre no deserto, apelando à leitura e conhecimento das obras dos autores fundadores da economia política, com destaque para Adam Smith, Jean-Baptiste Say, David Ricardo e Heinrich Storch. Nunca desanimou perante as réplicas que recebeu de outros conhecedores dos meandros da economia política que, se era útil para explicar a importância do alargamento e liberalização do mercado interno, ou do crescimento da produção e do consumo, nunca foi ciência triunfante nas Cortes Constituintes para justificar propósitos de liberdade económica nas trocas internacionais.
28O liberalismo económico integral foi sempre acolhido com alguma desconfiança entre os mais afoitos políticos liberais. Porém, os simpatizantes e defensores de medidas legislativas favoráveis à liberdade de comércio e de produção não desperdiçaram a oportunidade de sublinharem a relevância da causa em que acreditavam, quer nas cortes, quer noutros âmbitos da esfera pública. O exemplo dado pela Memória (1822) da Comissão para o Melhoramento do Comércio de Lisboa é bem esclarecedor: ao relatório formalmente aprovado pela comissão, de teor claramente protecionista, foram acrescentados depoimentos de alguns negociantes da praça de Lisboa que manifestaram o seu descontentamento com as orientações votadas pela maioria dos membros da comissão e que demonstraram a sua abertura a medidas favoráveis ao livre-câmbio. No entendimento destes objetores, a livre importação de produtos manufacturados deveria ser considerada vantajosa, uma vez que “permitindo a todos a livre importação, teremos maior abundância, e por conseguinte havemos de comprar as mesmas mercadorias por menor preço: pois concorrendo todas as nações indistintamente, mais exportação vêm a ter os nossos géneros, e mais valia, que é o que deve merecer maior atenção” (Memória 1822, 3). Neste como em muitos outros debates públicos, sobrava sempre lugar para posições de pragmática conciliação, preconizando-se “inteira liberdade de comércio em tese, e em prática regrada pela diferença de direitos” (ibid, 26). Ou seja, prática protecionista mascarada de retórica liberal.
29Outro exemplo significativo das dissensões entre campos polarizados foi dado pela discussão do decreto sobre as relações comerciais com o Brasil. Curiosamente, foi um decreto que nunca chegou a ser votado, tendo-se prolongado a sua discussão ao longo de meses, até ao final dos trabalhos parlamentares das Cortes Constituintes em novembro de 1822. Originou debates acalorados e intensos que puseram em confronto deputados portugueses e brasileiros que exibiram perspetivas distintas acerca das vantagens e desvantagens dos regimes de exclusivo comercial característicos dos pactos coloniais mercantilistas. Manuel Borges Carneiro, um dos mais arreigados e radicais deputados do campo político liberal, não hesitou em argumentar a favor do estabelecimento de um regime de comércio protegido, assente no princípio de que “eu não admito liberdade de comércio senão no mais ou no menos: liberdade de comércio ilimitada são vãs teorias de gabinetes” (Diário das Cortes, sessão de 27 de abril de 1822). O regresso a relações comerciais protegidas, que a abertura dos portos brasileiros de 1808 e os Tratados de Amizade e Comércio com a Grã-Bretanha de 1810 tinham inviabilizado, seria para este deputado a única forma de evitar que Portugal não saísse humilhado de um relacionamento comercial com o Brasil que tinha deixado de dar benefícios aos negociantes portugueses.
- 11 Sobre o significado destes debates e suas implicações na construção da independência brasileira q (...)
30No campo oposto, representando os interesses políticos brasileiros, António Carlos de Andrada e Silva foi a voz que mais se ouviu em defesa de uma reciprocidade efetiva de direitos à luz de princípios de liberdade de comércio e da suposta integridade do Reino Unido de Portugal e Brasil. Acusando Borges Carneiro de “confundir o bem dos negociantes com o bem do comércio” (Diário das Cortes, sessão de 9 de abril de 1822), o deputado paulista António Carlos insurgiu-se contra todas as tentativas de restabelecimento de um sistema colonial assente num regime de privilégios e monopólios.11 À semelhança de outros debates, também aqui a voz de Fernandes Tomás surgiu a pontuar um desfecho indesejado mas inevitável. A questão das relações comerciais com o Brasil era já uma falsa questão, pois a emancipação económica e a consequente independência política da nação brasileira davam passos decisivos que não podiam ser estancados. Por isso afirmou, provocando escândalo mas revelando tremenda lucidez, em célebre e muito citado discurso:
Passe o senhor Brasil muito bem que cá nós cuidaremos da nossa vida […]. Se realmente os povos do Brasil desejam verdadeiramente desunir-se de Portugal, eu declaro altamente que a minha opinião é que se desunam […]; este é o direito de todos os brasileiros, e de todas as nações. (Diário das Cortes, sessão de 22 de março de 1822)
31Estes debates com implicações no processo de regeneração económica foram, sem sombra de dúvida, momentos decisivos para a demonstração da existência de uma pluralidade de pontos de vista que disputavam na esfera pública a liderança do movimento vintista. Um movimento que, como veremos de seguida, tinha opositores que questionavam a legitimidade do processo político iniciado em 24 de agosto de 1820.
32Ao longo do triénio vintista, a adesão a novos conceitos de cidadania e soberania, a defesa dos princípios da igualdade e da liberdade, a aceitação de um regime político constitucional assente na divisão de poderes (com claro predomínio do poder legislativo), não foram partilhadas de forma universal. Conheceram adversários discretos e opositores declarados. A liberdade de imprensa permitiu que, ao lado dos jornais que apoiavam as causas da regeneração liberal, surgissem publicações periódicas que fizeram do combate às ideias liberais e constitucionais a sua principal razão de existência. Entre os principais títulos surgidos merecem destaque a Gazeta Universal (José Agostinho de Macedo), O Patriota Sandoval (Cândido de Almeida Sandoval) e o Punhal dos Corcundas (Fr. Fortunato de Boaventura). O tom quase sempre xistoso das imprecações antiliberais garantiu relativo sucesso na esfera pública, justificando a desmontagem e combate que lhes dedicaram os jornais do campo liberal. Para estes, os protagonistas do campo conservador e realista eram apelidados de “corcundas”.
33Apesar de não terem expressão organizada nas Cortes, os adeptos de uma resistência ideológica ao liberalismo beneficiaram dos erros e decisões apressadas das Cortes, obtendo à custa dos seus adversários uma posição de crescente relevo numa esfera pública muito polarizada. Para quem via no movimento iniciado em 1820 uma cruzada contra o trono e o altar, as acusações de jacobinismo, de maçonismo, ou de traição à pátria, ao rei e à religião católica, com as quais brindavam os responsáveis de tal movimento, eram epítetos de garantida repercussão junto de grupos e agentes sociais e políticos favoráveis a um regresso ao anterior estado de coisas. Para os interessados na manutenção da ordem e das ordens do antigo regime, as vozes de oposição antiliberal eram um tónico que inspirava confiança na reversão do processo revolucionário.
34A desobediência cívica de figuras tutelares da hierarquia clerical (de que a recusa do Cardeal-Patriarca em jurar as bases da Constituição é exemplo paradigmático), assim como a escassa aceitação pelos representantes da aristocracia titulada das vantagens ou benefícios de uma monarquia constitucional, eram sinais claros de que o regime em construção conhecia poucos apoios nos escalões sociais mais elevados. A tardia aceitação de D. João VI em regressar a Lisboa, a animosidade explícita do infante D. Pedro que preferiu dizer que ficava no Brasil e, sobretudo, a recusa insubordinada de D. Carlota Joaquina em aceitar a constituição aprovada pelas Cortes em setembro de 1822, alimentavam as suspeitas de que a Casa de Bragança, a quem os liberais vintistas guardavam respeito formal, esperava apenas o momento oportuno para fazer regressar a monarquia ao seu estado absoluto.
35Por conseguinte, não é de admirar que nas eleições para as Cortes Ordinárias, que se iniciaram a 15 de novembro de 1822, se tenha verificado a representação de sensibilidades adversas do constitucionalismo liberal. Um dos deputados que demonstrou apetência para servir de porta-voz dos opositores contrarrevolucionários foi José Acúrsio das Neves, que não hesitou em defender no parlamento a atitude, que entendia corajosa, de D. Carlota Joaquina em não jurar a constituição. Não obstante a sua inegável adesão a princípios liberais no terreno económico, nunca esqueceu o saneamento que vitimou a sua carreira pública no período que se seguiu aos pronunciamentos de 1820. Para Acúrsio das Neves seria essencial preservar a perenidade das instituições, evitar mudanças bruscas e precipitadas, cuidar de não destruir de uma assentada hábitos, valores e modos ancestrais de organização social e política consolidados ao longo de sucessivas gerações. A sua animosidade contra o espírito revolucionário do vintismo residia nessa preocupação em manter os alicerces de um edifício social e político cuja preservação considerava ser fundamental (Neves 1822).
- 12 Para uma apreciação sintética e guião interpretativo da formação da cultura política contrarrevol (...)
36Estes e outros argumentos foram ganhando fôlego nos primeiros meses de 1823.12 A rebelião iniciada em Vila Real em fevereiro de 1823 pelo segundo conde de Amarante, que pareceu querer vingar o seu tio António da Silveira afastado do poder na sequência da Martinhada, ainda foi controlada pelas tropas fiéis ao regime constitucional. Porém, o avolumar de sinais de descontentamento e o ambiente internacional cada vez mais favorável ao restabelecimento das monarquias absolutas acabariam por tornar inevitável o que veio mesmo a acontecer: o golpe contrarrevolucionário da Vilafrancada pôs termo às mudanças que ocorreram no triénio vintista e repôs a ordem política que vigorava antes de 24 de agosto de 1820. Do vintismo ficavam os ensinamentos que seriam moderadamente respeitados durante o período de vigência da Carta Constitucional (1826-1828), mas que só 10 anos mais tarde, com a entrada das tropas liberais em Lisboa em 24 de julho de 1833, viriam a ser devidamente celebrados e ampliados.
37Os aplausos à Vilafrancada foram certamente produzidos por todos os que nunca se conformaram com a ocorrência dos pronunciamentos de agosto e setembro de 1820, muito menos com o rumo que a revolução emergente foi conhecendo. Abrangeram também muitos dos que, apesar de nunca terem deixado de contemporizar com o regime deposto da monarquia absoluta, criaram alguma expetativa em relação à possibilidade de sucesso de um regime dotado de algum grau de inovação institucional e política. Este campo conservador e corcunda, realista e contrarrevolucionário, corporizou os múltiplos descontentamentos provocados por palavras e atos que considerava serem excessos revolucionários. Soube usar de forma hábil o ambiente de liberdade de imprensa (uma das grandes conquistas do vintismo), esse novo espaço público de circulação da palavra, para preparar o retorno à ordem política do regime absolutista. Representa uma das três sensibilidades políticas aqui caraterizadas.
38A constatação da existência de fraturas identitárias alarga-se aos que inequivocamente se situaram no universo liberal. Com efeito, os protagonistas mais fiéis ao espírito do 24 de agosto dividiram-se em dois campos políticos fundamentais. Por um lado, o campo liberal radical, exaltado, que defendia soluções mais arrojadas de mudança institucional e política, com postura mais extremada, especialmente quando estava em causa o combate a prerrogativas régias ou direitos estabelecidos. Por outro lado, o campo liberal moderado e gradualista que, sem hesitar em relação às questões cruciais da construção do regime constitucional, manteve uma atitude de prudência sobre o modo de se cumprir o guião da revolução, sobre o alcance e velocidade das reformas a levar a cabo, na expetativa de que chegassem a bom porto. Com inevitáveis hesitações e recuos, procurou dar à revolução de 1820 um sentido de progresso gradual, gerindo conjunturas críticas com as armas políticas ao seu alcance. Os seus principais representantes (com destaque para a figura emblemática de Manuel Fernandes Tomás) terão, porventura, sido traídos pela ingenuidade de pensar que os campos extremados (conservador e radical) se poderiam aproximar. Mas foi deste campo liberal moderado a principal contribuição para que os avanços alcançados no vintismo se repercutissem, 10 anos mais tarde, na transformação significativa da economia e sociedade de antigo regime.
39A tentação de se interpretarem estas sensibilidades políticas do vintismo à luz de critérios de classificação política do nosso tempo – a direita, a esquerda e o centro – não pode iludir a precaução de se considerar que tais etiquetas só fazem sentido para realçar a importância da controvérsia pública e do debate de ideias na construção do mundo contemporâneo. Essa foi uma das contribuições históricas mais relevantes que integram a herança da cultura política do vintismo.