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InícioNúmeros58Dossier: Goa: 1510-2010Apresentação

Dossier: Goa: 1510-2010

Apresentação

Ângela Barreto Xavier
p. 7-8

Texto integral

«Então mandou lançar pregões com trombetas pola cidade, que sob pena de morte, ninguém tomasse cousa alguma, nem fizessem mal á gente, mouros nem gentios, porque eram vassalos d’ElRey de Portugal»

(Gaspar Correia, Lendas da Índia, II, p. 59)

1Sabemos hoje que a descrição que Gaspar Correia fez, nas Lendas da Índia, da primeira conquista de Goa por Afonso de Albuquerque, há quinhentos anos atrás, é mais benigna do que aquela que terá sido a realidade da tomada da cidade que se constituiu, aos olhos da coroa portuguesa, como a «chave de toda a Índia». Apesar dessa benignidade ser altamente discutível (e com sérios laivos de ideologia nacionalista, quando evocada na actualidade), já o poder simbólico que, durante cinco séculos, a conquista e a história de Goa adquiriu não só na imaginação política do império português, mas também em múltiplas configurações identitárias nacionais e locais, é inquestionável. Por isso mesmo, e pese embora a bibliografia que tem Goa como objecto de estudo ser numerosa, muitas das dinâmicas imperiais e pós-coloniais que caracterizaram estes quinhentos anos de história comum, com ou sem dominação imperial, merecem ser retomadas. É esse horizonte reflexivo que preside a este dossier e ao seu título: Goa 1510-2010.

2Também em Goa – como em Portugal –, os passados, sobretudo o passado imperial, continuam a alimentar o presente, anunciando-se demasiadas vezes, e tantas vezes inesperadamente, sob a forma de memórias míticas cristalizadas. Quem é que não ouviu falar do «Apóstolo das Índias», Francisco Xavier? Quem é que não ouviu falar da arte indo-portuguesa, e das igrejas de Goa? Quem é que não estudou os casamentos promovidos por Afonso de Albuquerque?

3Muitas outras interrogações podiam ser elencadas enquanto parte dessa memória partilhada, mas também da historiografia sobre Goa. Algumas delas são analisadas em diferentes artigos deste dossier. Jason Keith Fernandes examina os usos a que o Foral de Mexia, um documento produzido em 1526, muitas vezes utilizado como a descrição mais fiável da organização político-administrativa das aldeias de Goa, tem sido submetido em contexto pós-colonial, democrático. Filipa Vicente mostra como um orientalista goês, Gerson da Cunha, situado nas margens do poder imperial português e britânico, conseguia produzir uma escrita sobre a história de Goa extremamente actualizada, pertinente e sofisticada. Paulo Varela Gomes revisita as igrejas católicas de Goa para propor uma nova interpretação daquilo que vulgarmente se entende por arte «indo-portuguesa», enquanto o Hospital Real de Goa emerge, pela mão de Cristiana Bastos, como um espaço onde se repercutiram, ao longo da sua longa história, e de diferentes maneiras, as tensões e fracturas que marcaram a sociedade colonial. As atitudes médicas, em diferentes momentos, do século XVI ao século XX, perante a decomposição do corpo de São Francisco Xavier – em constante tensão com a crença na sua incorruptibilidade – são o objecto da reflexão de Pamila Gupta, e é na vizinhança desses territórios, ou seja, do problema da corrupção, mas agora a corrupção do corpo da sociedade colonial, que se situa o trabalho de Nandini Chaturvedula.

4Não se trata, pois, de um dossier comemorativo. Comemorar um evento militar que deu origem a uma das dominações imperiais com maior longevidade na história dos impérios europeus seria, no mínimo, insólito. Trata-se, isso sim, de revisitar, não o evento, mas momentos e aspectos da história paradigmática e singular que com ele se iniciou. Paradigmática porque se constituiu como modelo arquetípico, revisitado, invocado, apropriado, por ‘colonizadores’ e por ‘colonizados’, por estrangeiros e por locais, ao longo destes quinhentos anos. Singular porque dada a sua duração, os seus protagonistas, as expressões que foi manifestando, edificadas, escritas, experienciais, Goa continua a ser um desafio aliciante, e constante, para o cientista social. Enquanto lugar micro, mas lugar com uma textura histórica muito densa, os estudos mais recentes sobre Goa não só iluminam facetas desconhecidas da história imperial e pós-colonial, como têm permitido – pela impossibilidade de os dados empíricos se submeterem completamente aos modelos de interpretação dominantes – problematizar teoricamente.

5Enfim, um conjunto de boas razões para poder desejar, convictamente, boas leituras!

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Ângela Barreto Xavier, «Apresentação»Ler História, 58 | 2010, 7-8.

Referência eletrónica

Ângela Barreto Xavier, «Apresentação»Ler História [Online], 58 | 2010, posto online no dia 30 novembro 2015, consultado no dia 19 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/1112; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.1112

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Autor

Ângela Barreto Xavier

Investigadora Auxiliar do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (ICS-IUL)

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Direitos de autor

CC-BY-NC-4.0

Apenas o texto pode ser utilizado sob licença CC BY-NC 4.0. Outros elementos (ilustrações, anexos importados) são "Todos os direitos reservados", à exceção de indicação em contrário.

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