1Ao longo do século XIX, como foi o caso em muitas outras latitudes europeias, desenvolveu-se em Portugal uma cultura histórica marcante e complexa. Os sectores burgueses, que tinham ascendido recentemente ao poder político através do processo das guerras liberais, promoveram e cultivaram, através de uma vasta gama de formas culturais como a historiografia, a literatura, as ciências sociais, a música e a pintura, a recuperação de um passado nacional que iria legitimar a ordem política – o estado-nação – que tinha vindo substituir a monarquia absoluta. Em termos gerais, poderia dizer-se que, em todas estas disciplinas, ainda que a partir de estratégias epistemológicas e representacionais muito diferentes, triunfou a noção romântico-historicista – de matriz herculaniana – que assinalava que Portugal possuía uma “alma nacional” nascida durante a Idade Média peninsular, e que, embora extraviada durante o período de expansão ultramarina, era historicamente destinada a uma vocação ou missão universal de natureza quase messiânica. Por volta do último terço de Oitocentos, no âmbito do Scramble for Africa, e particularmente no contexto do conflito com a Grã-Bretanha em 1890, aquela conceção da história portuguesa recebeu um impulso radical, principalmente nos discursos poéticos e doutrinários que promoveram a defesa patriótica dos interesses portugueses em África sob ameaça estrangeira (Matos 2008, 95 e 101-102).
- 1 Intimação que o governo britânico fez a Barros Gomes – ministro dos Negócios Estrangeiros do gove (...)
2No conjunto de discursos produzidos na década que se seguiu ao Ultimatum britânico,1 o romance A Ilustre Casa de Ramires (1900), de Eça de Queirós, destaca-se pela sua excentricidade. Críticos como Salvato Trigo (1990, 293), João Medina (1974, 107-110), Teresa Rita Lopes (1995, 496-507) e Maria Teresa Pinto Coelho (1996, 204), entre outros, embora defendam a ideia de que, no pensamento do “último Eça”, ainda era válida a noção da possibilidade de uma regeneração nacional inspirada no prestigiado passado medieval português, reconhecem no entanto o seu questionamento da “identidade nacional” – isto dada a analogia que, no final do romance, e na voz da personagem do administrador João Gouveia, o escritor fez entre o seu protagonista aparentemente “triunfante”, o fidalgo Gonçalo Mendes Ramires, e Portugal. Marie-Hélène Piwnik (2012, 32-35), por seu lado, rejeita esta perspetiva, argumentando que o tratamento dado por Eça à história portuguesa, especialmente na sua crítica às imagens convencionais do romance histórico tradicional, não teve “papel regenerativo” nenhum, mas “trata-se, nada menos, que dos efeitos da irrisão queirosiana”, que acaba por dar à narrativa “as dimensões de uma verdadeira farsa”. O argumento que pretendo desenvolver neste artigo concorda com a interpretação de Piwnik (2012, 35), segundo a qual as evocações do passado nacional e as estratégias discursivas de representação ficcional e histórica contidas neste romance estão cheias de “comicidade”, de “discretas deslocações que afastam essa história de uma síntese que ofereça todas as garantias de seriedade”.
3Contudo, discordo das conclusões de Piwnik na medida que tendem a considerar a atitude de Eça face à consciência histórica portuguesa do seu tempo como um elemento puramente estilístico, um produto da ironia emblemática do seu realismo literário. Concentrando-se exclusivamente no texto, a erudita francesa não explora nem as relações extraliterárias nem intertextuais do romance, que poderiam oferecer uma explicação mais ampla e profunda do seu ponto de vista intempestivamente irónico ou “irrisório”. Este artigo pretende avançar nessa linha de pesquisa propondo: (1) situar A Ilustre Casa de Ramires no contexto da avalanche de discursos histórico-nacionalistas da década de 1890; (2) investigar o que está subjacente à crítica queirosiana ao nacionalismo expresso pelos referidos discursos, nomeadamente a sua esquematização convencional do devir histórico português; e (3) expor as principais estratégias poéticas utilizadas por Eça para satirizar este esquema.
4A reação discursiva das elites letradas portuguesas ao Ultimatum britânico de 11 de janeiro de 1890 tem sido extensivamente comentada na historiografia especializada. É hoje bem conhecido, por exemplo, o impulso que a imprensa inteira deu, independentemente da sua filiação partidária Regeneradora, Republicana e até Progressista, aos protestos populares de natureza patriótica que foram organizados, primeiro em Lisboa e mais tarde no Porto e em Coimbra, após a divulgação da posição do governo de José Luciano de Castro em relação ao memorando enviado por Lord Salisbury (Teixeira 1987, 705-713). Do mesmo modo, temos abundantes notícias das revistas literárias que, nos meses e anos que se seguiram ao evento, dedicaram números especiais cheios de artigos e poemas de ardor patriótico e antibritânico, entre as quais se destacam Luzitania, Jornal Comemorativo da Revivescência Pátria (Porto) e Anatema (Coimbra) (Coelho 1996, 89, 95, 122). Não obstante a diversidade de formatos e, sobretudo, de posições políticas apresentadas por estes discursos – pois enquanto alguns atribuíram a humilhação ao declínio da monarquia de Bragança, outros apontaram para o governo Progressista como único responsável –, é possível afirmar que todos eles tiveram como denominador comum a construção sobre argumentos nacionalistas moldados por referências explícitas ao percurso histórico português.
- 2 O “Terceiro Império Português” insere-se na fase crucial do novo imperialismo europeu em África, (...)
5No que diz respeito à referida característica comum dos discursos do Ultimatum, deve ser notado que teve precedentes importantes nos anos que antecederam a fase mais radical do conflito com o Reino Unido. Pelo menos desde o início da década de 1880, no âmbito do Scramble for Africa, múltiplos atores políticos e sociais tinham sistematicamente utilizado a história para legitimar o projeto de um império português transafricano. Especialistas na história de Portugal no último terço do século XIX, tais como Maria Teresa Pinto Coelho (1996, 46), Ângela Guimarães (1984, 48-49), Nuno Severiano Teixeira (1987, 688-689), Sérgio Campos Matos (2008, 102) e Miguel Bandeira Jerónimo (2015, 1-3, 15), destacam como atributo específico do chamado “Terceiro Império Português”,2 a marca “passadista” subjacente ao argumento colonialista habitual da “missão civilizadora”. Potências como o Reino Unido, a França, a Bélgica ou a Alemanha, para justificar a expansão dos seus abundantes recursos económicos em África, usaram uma retórica marcadamente “presentista” de um alegado interesse em “civilizar”, ou seja, em “proteger as tribos nativas africanas” e “promover” o seu “bem-estar moral e material” com os benefícios atuais da “civilização europeia”. Portugal, por seu lado, legitimou o seu interesse imperial ao revindicar “direitos históricos” ancorados numa “antiga vocação civilizadora” considerada como “destino histórico nacional”.
6Assim, por exemplo, durante as conferências de antiescravatura de Bruxelas (18 de novembro de 1889 e 2 de julho de 1890), os representantes portugueses, Henrique de Macedo, Augusto Castilho, Brito Capelo e Batalha Reis, apresentaram-se “armados de memórias, documentos e mapas geográficos com os quais teriam de demonstrar a secular atividade administrativa, científica e humanitária de Portugal em África” (Jerónimo 2015, 11). Algo semelhante aconteceu com o próprio Barros Gomes, ministro dos Negócios Estrangeiros do governo de Luciano de Castro, na sua missiva a Londres em novembro de 1889 em defesa dos direitos portugueses na Maxonalândia (norte do atual Zimbabwe). Para além de empunhar a cláusula da “ocupação efetiva” acordada pelas potências europeias na Conferência de Berlim (1885), o célebre ministro invocou o “glorioso passado português”: recordou o tratado de 1630 com os Monomotapa, os heróis e mártires portugueses que tinham morrido na região pela fé católica, e mesmo as ruínas portuguesas e as expedições de Cândido Cardoso da Costa, de quem o explorador e missionário britânico David Livingstone tinha recebido informações sobre o rio Chire e o lago Niassa (Coelho 1996, 54).
7Tendo em conta este alargado recurso à história portuguesa para apoiar o projeto imperial transafricano, não surpreende que, face à crise do Ultimatum, jornalistas, poetas, historiadores e políticos de todas as opiniões a empregassem de forma sistemática. Os jornais oferecem, em primeiro lugar, um exemplo muito claro da prática. Já em 12 de janeiro de 1890, num artigo intitulado “Infeliz Pátria”, a Gazeta de Portugal – órgão oficial do Partido Regenerador – utilizava o recurso do contraste histórico entre um passado glorioso e um presente deplorável para estabelecer a sua posição de indignação relativamente à incapacidade do governo de se opor aos “usurpadores” britânicos. Segundo o(s) autor(es) do artigo, com a aceitação indolente do “Memorando” os Progressistas tinham lançado “a nossa pátria em uma aventura em que perdemos a única joia que ainda conservamos da nossa herança brilhante, aventura em que perdemos a honra e vimos para sempre desaparecer o nosso prestígio” (Coelho 1996, 80). Uma estrutura de argumentação semelhante pode ser vista no jornal republicano Os Debates, também publicado em 12 de janeiro. Neste outro caso, embora o discurso seja muito mais específico quanto aos momentos do passado em relação aos quais o presente devia ser contrastado – o reinado da dinastia de Avis, o período das descobertas e conquistas ultramarinas, e o período do iluminismo pombalino –, o fundamento argumentativo é idêntico: parte de uma conceção da trajetória histórica portuguesa, desde um passado de “grandeza” e “valentia” até um presente de completa “desonra” e “submissão”:
Dizia-se outrora que antes morrer que má sorte. Dantes, a ficar desonrado, preferia-se morrer. Era no tempo de D. Nuno Álvarez Pereira, de Afonso de Albuquerque, de D. João de Castro e, mais modernamente, do Marquês de Pombal. Era no tempo em que nós eramos grandes, fortes, poderosos, respeitados! Hoje, no tempo destes bandidos que aí poluem todos os sentimentos de honra, todos os princípios de dignidade, todas as noções de brio, a covardia é prudência, o servilismo é sensatez, o medo é tino, a infâmia é juízo, e a coragem, e a valentia, e a dignidade e a honra é loucura! (Coelho 1996, 98)
8Outras espécies de discursos de natureza mais doutrinária não foram estranhas à mesma estratégia crítica. Veja-se o caso dos artigos publicados a 16 de janeiro de 1890 na edição especial que o jornal A Província dedicou ao Ultimatum. O dossier intitulado “Pela Pátria” reuniu trabalhos de colaboradores como Luís de Magalhães, Alberto Sampaio, Queirós Veloso, Oliveira Martins e Jaime Magalhães Lima, os quais, com base num espírito patriótico inspirado nas ideias expressas por Antero de Quental no seu artigo “Expiação”, apelavam efusivamente ao “ressurgimento” nacional (Quental 1982, 447-448; Coelho 1996, 89, 95). Entre esses artigos, “O Desagravo”, de Oliveira Martins, ilustra como poucos o uso político de imagens do passado histórico português, não só para fixar uma posição perante o conflito que se desenvolvia, mas também para impulsionar a “regeneração” do país.
9Nas páginas desse texto, Oliveira Martins (1891c, 55-67) salienta, acima de tudo, “a vibração produzida [na sociedade portuguesa] pelo ultraje da Inglaterra”. Com base neste reconhecimento, tenta direcionar o “brio nacional” utilizando um argumento de natureza histórica: Portugal, cujas forças andavam espalhadas pelos quatro cantos do mundo – e sobretudo as forças da “marinha, que na nossa história tem um papel extremo e neste episódio um título mais para a nossa admiração” –, tinha que enfrentar aquela Albião “cobarde”, “brutal” e “felina”, não no campo de batalha, mas assumindo “o bom senso, lúcido e firme a um tempo”, historicamente representado pelo “corajoso e nobre dragão de Aviz”. Esta referência ao passado da segunda dinastia tornar-se-ia, de facto, a principal arma do célebre historiador para censurar os seus contemporâneos pela sua falta de raciocínio no contexto do conflito estrangeiro. Nas obras que publicou nos meses e anos seguintes, particularmente em Os Filhos de D. João I (1891) e na Vida de Nun’Álvarez (1893), embora utilizando mecanismos mais subtis, típicos de um discurso historiográfico com aspirações de cientificidade, sugeriria também que a regeneração de Portugal exigia a ressurreição simbólica dos valores encarnados pelos primeiros reis da Casa de Avis: patriotismo, honra, bravura, genialidade, cautela (Martins 1891b, 20-21, 60-61; Coelho 1996, 86).
10No entanto, talvez as amostras mais sofisticadas deste uso político do passado português se encontrem na esfera ficcional, na chamada “literatura do Ultimatum”. Uma das primeiras manifestações é a peça A Torpeza, de António de Campos Júnior, apresentada no Teatro Alegria no dia 7 de março de 1890. No âmago do enredo do drama, as alegorias de Inglaterra e Portugal são levadas ao tribunal das nações e da história. Nesse quadro, Portugal, personificado por um “velho paladino que se abordoa ao montante heroico de Aljubarrota e afivela sobre as roupagens da sua pobreza o arnês impoluto, em que se refletiam as auroras da Renascença, durante a marcha triunfal das seis mil léguas, das escarpas de Sagres às mais remotas ínsulas de Oceânia”, é interpelado pela história, que vem em sua defesa armada com o poderoso indício do passado: “Velho! Levanta essa cabeça branca e não chores! Faz-te o mundo justiça. Ninguém te julga um covarde. Foste sozinho o paladino da civilização, fizeste bussola a estrela polar da renascença; a tua espada pôde mais que as multidões das cruzadas… Ergue essa cabeça branca. Ainda tens a tua alma antiga, herói” (Campos Júnior 1890, 13-14, 40-41). Mais uma vez, embora aqui vestido com uma linguagem poética, aparece o mecanismo simbólico de contraste passado-presente. Como pode ser observado, a “jovem” nação portuguesa da época dos reis de Avis e da Renascença é oposta à “velha” e “decadente” da Modernidade, da qual se espera uma reação digna daquele outro “heroico” passado.
11Encontramos algo muito semelhante no campo da poesia propriamente dita, onde os exemplos abundam. Aí estão, para mencionar apenas alguns títulos relevantes, A Desafronta (1890), de Jaime Victor; Finis Patriae (1890), de Guerra Junqueiro; e Troça à Inglaterra (1890), de Gomes Leal. Todavia, a mais notável e complexa contribuição lírica do Ultimatum é sem dúvida Pátria (1896), longo poema de Guerra Junqueiro. Trata-se de uma obra trabalhada durante seis anos que, talvez por causa disso, transcendeu a esfera da literatura puramente panfletária. Nos seus versos não encontramos, como nos casos até agora citados, imagens dispersas e vagas do passado português, orientadas especificamente para fazer a crítica da situação face ao Reino Unido e para impulsionar a “regeneração nacional”. Pelo contrário, embora o poema Pátria prossiga objetivos políticos muito claros – principalmente, o de censurar a posição dos governos dos partidos monárquicos perante o governo de sua majestade britânica, defendendo a solução republicana para o país –, testemunhamos nas suas páginas uma atualização completa e coerente da versão da trajetória histórica nacional de Portugal mais conceituada naquela altura (Coelho 1996, 163-164):
Que é da grandeza heroica do passado,
Que é das torres d’outrora olhando o mar?!...
Blocos no chão, vestidos d’heras,
Ameias, gárgulas, esferas,
Poeiras de sonhos, de quimeras,
Luto, nudez, desolação,
Eis os restos de tantos extermínios,
De tanta dor e tanta maldição!...
Já nem cabe sequer em meus domínios
A magra sombra vã do meu bordão!
Régios palácios, fortalezas,
Mosteiros, campas, catedrais,
Orgulhosos padrões de mil empresas,
Conspurcados de lama e de impurezas,
Entre montes de entulho e silveiras!
Meus impérios distantes divididos,
Minha terra natal inculta e só! (Junqueiro 1896, 176-177)
12O excerto aqui citado é retirado da famosa cena XXI de Pátria, aquela em que a personagem principal do poema, o Doido-Portugal, reconhece finalmente a sua “alma”, ou seja, o espírito de Nun’Álvarez Pereira identificado “com um passado luminoso qual Idade de Ouro” que regressa para lamentar a situação atual e redimir Portugal (Coelho 1996, 175). Antes do clímax temos, no entanto, um conjunto de cenas que gradualmente referem o curso inteiro da história portuguesa. Na cena VIII, por exemplo, Astrólogus, cronista-mor d’el-rei, narra a história de “mil anos” do Doido-Portugal: o seu “heroico” e “glorioso” começo como povo montanhês que, talvez devido ao seu “vigor” e “alento”, um dia mau enlouqueceu e foi para o mar; enlouqueceu, quase morreu, e num último lance heroico, foi para o mar novamente e para a batalha, só para ser mantido em cativeiro durante quase seis anos, e lentamente desmaiar enquanto é envenenado pelos seus parentes (Junqueiro 1896, 58-64). Mais tarde, nas famosas cenas XIII a XXI, a narração histórica continua, agora a partir da dramatização das sucessivas aparições dos reis e rainhas da dinastia Bragança – de D. João IV a D. Luís –, cujos atos decadentes são comentados pelo Doido, que consegue então narrar a sua vida e reconhecer, no aparecimento do último “fantasma” – o do corajoso condestável –, a sua própria “alma” (Junqueiro 1896, 111-172).
13O esquema da história portuguesa, poética e extensamente elaborado por Guerra Junqueiro na sua Pátria, é o que de facto está subjacente a todos os outros discursos jornalísticos, doutrinários e literários até agora citados. A ideia é clara: a vida de Portugal estende-se desde um passado medieval em que o seu carácter histórico – heroico, nobre, corajoso, aventureiro – é conformado e desenvolvido até uma modernidade que, a começar pelo período das descobertas e conquistas de além-mar, e chegando ao final do século XIX, leva à traição progressiva da sua natureza original. A proposta de alcançar a regeneração nacional é mesmo idêntica à daqueles outros, embora neste caso com um evidente preconceito republicano: nos parágrafos finais de Pátria, a partir da imagem do velho e da criancinha que encontram a espada de Nun’Álvarez junto ao Doido-Portugal crucificado pelos corsários ingleses, Guerra Junqueiro (1896, 186-187) reclama simbolicamente o ressurgimento futuro do passado português – e em particular, de um Portugal camponês como aquele que, imagina, foi o do período medieval.
- 3 Existiu nessa altura uma outra interpretação da história portuguesa discordante com a conceção he (...)
14Tal esquematização da história portuguesa, bem como a designação dos seus momentos e personagens-chave, não foi, afinal, uma contribuição original do pensamento de Guerra Junqueiro, nem de qualquer um dos seus colegas contemporâneos que escreveram artigos, poemas, dramas ou textos doutrinários após o Ultimatum. Aquela foi antes uma reinterpretação da conceção romântico-historicista da história de Portugal desenhada havia quase sessenta anos por Alexandre Herculano (Catroga 1996, 40), e que, no final do século XIX se tinha tornado em certa medida convencional graças à sua reavaliação, não sem modificações consideráveis, nas obras históricas de Antero de Quental e Oliveira Martins (Catroga 1982, 43; Matos 2008, 101). Poder-se-ia até dizer – recuperando as formulações teóricas de Arthur Danto (2002, 292-296) e Frank Ankersmit (2004, 210-234) – que muitos dos escritores e políticos da última década do século XIX pensaram e agiram a partir do “conceito” ou “representação” da realidade histórica formulado por Herculano nas suas Cartas sobre a História de Portugal (1842), e desenvolvido na sua História de Portugal (1846-1853) e na sua História da Origem e Estabelecimento da Inquisição em Portugal (1853-1857):3
Habituados pela educação, e até por um estudo superficial e irrefletido, a considerar o século decimo sexto como a verdadeira era da grandeza nacional, parece-nos que o mais rico tesouro das nossas recordações históricas está na pintura dos reinados brilhantes de D. Manuel e D. João III […] no espetáculo dos nossos descobrimentos e conquistas do Oriente e da América, do engrandecimento do nosso comércio, e do respeito e temor, que por isso nos cantava o resto do mundo […]. Mas, se a história não é um passatempo vão; se, como toda a ciência humana, deve ter uma causa final objetiva, ao contrário da arte que por si mesma é causa, meio, e fim da sua existência […] não é por certo naquela brilhante época que havemos de encontrar esses importantes resultados do estudo da história; porque a virilidade moral da nação portuguesa completou-se nos fins do seculo XV, e a sua velhice, a sua decadência como corpo social, devia começar imediatamente. (Herculano 1886, 133)
- 4 Embora seja verdade que Oliveira Martins teve uma conceção mais positiva das descobertas ultramar (...)
15É verdade que, mais do que apropriarem-se da conceção de Herculano, os membros da Geração de 70 ainda ativos no período pós-Ultimatum contrariaram muitos dos seus princípios, especialmente os do campo do pensamento político – v. g., a questão da liberdade individual, a democracia, e a monarquia; e que figuras como Antero e Oliveira Martins criticaram fortemente a relutância do “solitário de Vale de Lobos” em pensar a história a partir de uma metodologia sintético-apriorística destinada a descobrir a finalidade imanente e transubjetiva do processo histórico geral da humanidade (Catroga 1982, 10-33). No entanto, todas estas divergências políticas e filosóficas não impediram aqueles intelectuais de conceberem a história nacional com base no esquema desenhado no fragmento das Cartas acima citado. Mesmo partindo de doutrinas políticas opostas, como o socialismo e o republicanismo, muitos deles tinham na altura internalizada a ideia herculaniana de que a “época dourada”, “viril”, da história nacional tinha sido o período medieval (incluindo, no entanto, as aventuras ultramarinas), e que o estabelecimento da monarquia absoluta não tinha feito senão corromper o carácter nacional originalmente “popular” e “constitucional” (Saraiva 1971, 217).4
16A prova mais óbvia deste fenómeno da consciência histórica é, sem dúvida, fornecida pelo poema Pátria referido acima. Por outro lado, pode também afirmar-se que alguns dos principais vultos intelectuais daquele período foram ainda mais longe, assumindo, face ao conflito com a Grã-Bretanha, o corolário prático da interpretação herculaniana da história nacional: quer dizer, o projeto de revitalizar a sociedade portuguesa a partir do recurso ao passado medieval. Ironicamente, a despeito das críticas que tinham lançado anos antes contra os poetas ultrarromânticos herculanianos, escritores como Guerra Junqueiro e Oliveira Martins, após a lição do Mestre, fizeram do período da dinastia Avis, e especificamente da figura de Nuno Álvares Pereira, modelo histórico capaz de conduzir à ressurreição nacional – “Exemplo superior da conceção cristã da vida”, diz Oliveira Martins em A Vida de Nun’Álvarez, “ e por isso venerado como santo, Nuno Álvarez é porventura o tipo culminante da energia própria desta nossa raça peninsular ibérica, idealista na alma, e afirmativamente heroica” (Martins 1984, 314).
- 5 Na terceira edição da sua História de Portugal e no seu “Prólogo“ a Camões, Os Lusíadas e a Renas (...)
17Todavia, no contexto do Ultimatum em que ganhou força a ideia de que só a recuperação da “índole portuguesa” do passado medieval poderia salvar Portugal da sua queda trágica de três séculos, houve alguns intelectuais que se distanciaram dessa perspetiva e apresentaram uma posição crítica face à esquematização herculaniana da história portuguesa e ao nacionalismo exacerbado. Entre eles o vulto mais conspícuo foi Eça de Queirós.5 O conflito de 1890 com a Grã-Bretanha não foi, todavia, o primeiro momento em que Eça deixou claras as suas reticências quanto ao uso político da história nacional (Coelho 1996, 196-197). Já desde As Farpas (1871) tinha criticado fortemente a forma como os seus contemporâneos, políticos e intelectuais, empregavam o passado renascentista para defender o projeto colonial em África. À invocação dos feitos heroicos das descobertas e conquistas de além-mar como justificação e defesa do império, Eça replicava: – “Sim, sim! Bem sabemos! A honra nacional, Afonso Henriques, Vasco da Gama, etc. Mas somos pobres, meus senhores! E que se diria de um fidalgo (quando os havia), que deixasse em redor dele seus filhos na fome e na imundície – para não vender as salvas de prata que foram dos seus avós?” (Queirós s.d., 108).
18Mas talvez um dos momentos mais interessantes da precoce censura de Eça ao uso tendencioso da memória histórica se encontre no quadro da sua famosa e longa polémica com Pinheiro Chagas. Falo sobretudo da segunda fase da contenda, aquela que se segue ao artigo “O Brasil e Portugal” (31-10-1880) publicado por Eça na Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro (Queirós s.d., 592-599), ao qual Pinheiro Chagas respondeu intemperadamente no seu artigo de 28 de novembro de 1880 em O Atlântico (Matos 1998, 245-249; Reis 1999, 108-109; Mónica 2001, 720). Na série de réplicas que o primeiro fez ao segundo também nas páginas de O Atlântico (29-12-1880 e 06-02-1881), encontramos uma condenação mordaz dos “patriotacas, patriotinheiros, patriotadores, ou patriotarrecas” como Pinheiro Chagas, para quem, diz Eça, “a pátria não é a multidão que em torno dele palpita na luta da vida moderna – mas a outra pátria, a que há trezentos anos embarcou para a Índia ao repicar dos sinos, entre as bênçãos dos frades, a ir arrasar aldeias de mouros e traficar na pimenta” (Queirós 1983, vol. 2, 51). Nesses mesmos artigos, Eça também censura a indolência dos referidos “patriotarrecas” perante os males da sociedade portuguesa do presente, dada a sua incapacidade de fornecer qualquer outra solução a não ser cantar os louvores do passado glorioso:
Esse, a sua maneira de amar a pátria é tomar a lira e dar-lhe lânguidas serenatas […] Esse, cousa pavorosa! não ama a pátria, namora-a: não lhe dá obras, impinge-lhe odes. Esse, quando a pátria se aproxima dele, com as mãos vazias, pedindo-lhe que coloque nelas o instrumento do seu renascimento – põe lá (ironia magana!) o quê? Os louros de Ceuta! Quando o povo lhe pede mais pão e mais justiça, responde-lhe, torcendo o bigode: – Deixa lá. Tu tomaste Cochim. (Queirós 1983, vol. 2, 51)
19Já na conjuntura do Ultimatum, vivendo em Paris desde 1888, Eça reage ao conflito e às explosões nacionalistas com uma atitude crítica – embora menos beligerante – semelhante à que encontramos nos seus artigos dos anos 1870 e 1880. No seu famoso texto doutrinário “O Ultimato” (fevereiro de 1890), ainda que reconheça que o memorando de Lord Salsbury teve a virtude de evidenciar “o respirar, o mover, o palpitar de um corpo que muitos julgavam morto, gelado, fácil de pisar e talvez de retalhar”, adverte, no entanto, sobre os perigos do nacionalismo exacerbado e inútil em que as elites e as classes populares estavam imersas:
Esse movimento se começa a perder em direções desviadas, transversais, inúteis – à maneira de uma torrente que, em lugar de correr direita ao moinho para o fazer trabalhar, se espalha pelos lados em riachos esguios e lentos que bem depressa a areia suga! (Queirós 1965, 240-241)
20Na mesma veia, a sua carta a Oliveira Martins de 28 de janeiro de 1890, talvez devido à sua natureza íntima, revela um Eça muito mais agressivo e em discordância com a verbosidade discursiva dos seus contemporâneos:
Não estou certo do que deva pensar desse renascimento do Patriotismo, esse gritos, esses crepes sobre a face de Camões, esses apelos às Academias do mundo, esses renunciamentos heroicos das casimiras e do ferro forjado, essas joias oferecidas à Pátria pelas senhoras, essas pateadas aos Burnays e Mózers, esse ressurgir de uma ideia coletiva, toda essa barafunda sentimental e verbosa, em que o estudante do liceu e o negociante de retalho me parecem tomar de repente o comando do velho Galeão Português. (Queirós 1983, vol. 2, 34)
- 6 A Ilustre Casa de Ramires foi publicada em 1900, editada por Júlio Brandão. Antes dessa época, en (...)
21Embora seja possível observar nestas linhas um intelectual que diz “duvidar” da contribuição oferecida ao problema com o Reino Unido pelas manifestações de patriotismo dos seus conacionais – manifestações que achava tão inocentes que, sugere, o país dava a impressão de ser conduzido por um “estudante do liceu” ou um “negociante de retalho” –, a verdade é que o tom satírico do seu discurso insinua algo mais do que uma antipatia ingénua pelo “renascimento do Patriotismo”. Acontece que, talvez por ter vivido desde Paris aquele episódio que feriu “a consciência pública nacional de um país subitamente acordado para as suas fragilidades” (Reis 2014, 15), ainda que talvez nisto tivesse mais peso a distância espiritual que caracterizava o seu pensamento (Piwnik 2012, 43), Eça parece começar a desligar-se ou a localizar-se fora do conceito de realidade histórica que era convencional em Portugal no final do século XIX – ou seja, do esquema e das implicações práticas da conceção herculaniana da história nacional partilhada pelos seus amigos e colegas Antero, Oliveira Martins e Guerra Junqueiro. No entanto, foi num texto posterior – A Ilustre Casa de Ramires (1900)6 – que o romancista expressou, de uma forma mas ampla e acabada, a partir de recursos simbólicos ou metafóricos, a sua distância em relação ao nacionalismo português contemporâneo e à ideia da história nacional nele implícita. No centro desse intempestivo distanciamento crítico, Eça destacou a natureza ficcional das esquematizações ou metanarrações da história nacional.
22Seria um erro de juízo supor que o interesse de Eça na história portuguesa nasceu da sua antipatia pelos discursos nacionalistas do Ultimatum. Como Carlos Reis (1999, 109; 2014, 14) corretamente observou, já em obras como O Crime do Padre Amaro (terceira versão, 1880) e Os Maias (1888) é possível detetar uma inscrição explícita da história na narrativa ficcional queirosiana, “não como cenário estático, mas como elemento ideologicamente atuante”. Existe, no entanto, uma subtil, mas marcante, diferença entre a conceção da história imanente na configuração destas obras e a que Eça evidenciou em A Ilustre Casa de Ramires – a qual está muito mais próxima da que encontramos na sua mais célebre ficção histórica, A Relíquia (1887). Em O Crime do Padre Amaro e em Os Maias, por exemplo, vemos um romancista que ainda confia na capacidade da história – como realidade passada e como escrita – para fazer a crítica da sociedade portuguesa no último terço do século XIX – tanto que o conhecido final da terceira versão de O Crime e a analepse de abertura de Os Maias parecem ser reproduções simbólicas da ideia decadentista da história recente de Portugal esquematizada por Oliveira Martins no seu Portugal Contemporâneo (Reis 1999, 109-111; 2014, 14). Por outro lado, em A Ilustre Casa encontramos, não só uma atualização, mas uma radicalização da ousada e polémica afirmação apontada na carta de 15 de junho de 1885 ao conde de Ficalho, redigida por Eça no contexto da escrita precisamente de A Relíquia (Cunha 1997, 125-126):
À sua carta recebida em Bristol, respondo de Londres, onde vim indagar sobre pedras, nomes de ruas, mobílias e toilettes para a minha Jerusalém. Digo minha – e não de Jesus, como pedia a devoção, ou de Tibério, como pedia a história – porque ela realmente me pertence, sendo, apesar de todos os estudos, obra da minha imaginação. Debalde, amigo, se consultam in-fólios, mármores de museus, estampas, e coisas em línguas mortas – a História será sempre uma grande Fantasia. (Queirós 2008, I, 370)
23A Ilustre Casa de Ramires não é apenas, como é dito frequentemente, uma sátira do romance histórico tradicional e ultrarromântico – uma ridiculização da linguagem arcaica, das reconstruções de espaços, trajes e atitudes medievais, e da inclusão de enredos amorosos entre cavaleiros e donzelas, característicos de obras tais como Eurico, o Presbítero, de Herculano (1844); Ódio Velho Não Cansa (1848), de Rebelo da Silva; ou Novelas Históricas (1869), de Pinheiro Chagas (Pimpão 1972, 561; Earle 1988, 515-519; Marinho 1999, 106; Monteiro 2014, 34). É muito mais do que isso. É sobretudo uma crítica ao fundamento da consciência romântico-historicista da história portuguesa, ou seja, à filosofia ou metanarrativa da história nacional subjacente não só ao romance histórico e à poesia, mas também à historiografia, aos discursos políticos e aos artigos jornalísticos do período pós-Ultimatum. Todavia, o aspeto mais interessante do questionamento desenvolvido por Eça neste romance é, sem dúvida, a sua apresentação: no mais puro estilo irónico (Sacramento 1945, 258), ele configurou-o como uma ficção que acabou por revelar a própria ficcionalidade – a “grande Fantasia”, como dizia na carta ao conde de Ficalho – das esquematizações convencionais do devir histórico português.
24A fim de compreender esta afirmação, que é, de facto, o principal argumento deste artigo, é necessário partir de uma breve descrição das características formais que conferem singularidade a A Ilustre Casa de Ramires. Em primeiro lugar, convém salientar que se trata de um “romance metadiegético”, ou seja, de um romance que, como parte da sua trama, envolve a configuração de um outro romance cujo argumento é, por sua vez, baseado numa estrutura de feitos desenhados por outras narrações (Reis e Lopes 1998; Pageaux 1990; Monteiro 2014, 34; Reis 2014, 19). Especificamente, o que encontramos nas páginas do livro é o relato de alguns meses da vida – junho-dezembro – de Gonçalo Mendes Ramires, fidalgo da velha aldeia de Santa Ireneia, em que se narra como este último, na sua ânsia de entrar na vida política portuguesa, participa nas eleições para deputado do círculo de Vila Clara (possivelmente uma localidade do distrito de Viseu), e procura ganhar prestígio social escrevendo um romance histórico, A Torre de D. Ramires, estimulado pelo seu antigo colega coimbrão, José Lúcio Castanheiro, editor de uns Anais de Literatura e de História. É importante notar que uma boa parte da narrativa do romance principal é dedicada ao processo de escrita do romance histórico acima mencionado, e que existem também grandes segmentos dos capítulos do livro que fazem referência direta à narrativa que vai configurando Gonçalo. Esta última, por sua vez, é um relato dos feitos guerreiros do antepassado medieval do próprio “Fidalgo da Torre”, Tructesindo Ramires, alferes de D. Sancho I, e que Gonçalo toma a liberdade de “recuperar” – quase literalmente – de um poema escrito pelo seu tio Duarte, O Castelo de Santa Ireneia, e de “completá-lo” a partir do recurso à História de Portugal de Herculano (Queirós 2014, 52, 83, 91).
25Como se pode ver, A Ilustre Casa de Ramires tem uma estrutura narrativa bastante complexa, que alguns críticos definem como “figuração poliédrica”. A técnica da “metadiégesis” ou de mise-en-abyme – a narração dentro de outra ou outras narrações – parece, desde o início, conferir ao romance um “rendimento irónico”, dada a sua referência ao próprio processo de escrita. Esta ironia é confirmada pela prioridade que Eça dá às modalidades subjetivistas de enunciação: refiro-me ao pouco peso concedido à narração heterodiegética – à narração “objetiva” enunciada por um narrador exterior à ação –, que é apenas usada para dar a informação necessária para desencadear ou iniciar a ação ficcional, e ao privilégio que outorga à narração de acordo com o ponto de vista das personagens – principalmente ao que Gonçalo “vê, faz, diz, pensa e até sonha” (Monteiro 2014, 24).
26Com estas considerações formais em mente, é possível observar, desde as primeiras páginas do romance, a crítica de Eça ao esquema da história portuguesa partilhado pelos seus contemporâneos. Refiro-me à famosa analepse do capítulo I que se segue à cena introdutória em que Gonçalo, sentado na livraria da sua casa senhorial em Santa Ireneia, em frente à mesa em que os “rijos volumes da História Genealógica, todo o Vocabulário de Bluteau, tomos soltos do Panorama, e ao canto, em pilha, as obras de Walter Scott, sustentando um copo cheio de cravos amarelos”, pensa no romance que está a escrever, A Torre de D. Ramires, isto enquanto olha para a “inspiradora da sua Novela – a Torre, a antiquíssima Torre […] robusta sobrevivência do Paço acastelado, da falada Honra de Santa Ireneia, solar dos Mendes Ramires desde os meados do século X” (Queirós 2014, 39-40):
Gonçalo Mendes Ramires (como confessava esse severo genealogista, o morgado de Cidadelhe) era certamente o mais genuíno e antigo fidalgo de Portugal. Raras famílias, mesmo coevas, poderiam traçar a sua ascendência, por linha varonil e sempre pura, até aos vagos senhores que entre Douro e Minho mantinham castelo e terra murada, quando os barões francos desceram, com pendão e caldeira, na hoste do Borguinhão […]. Mais antigo na Espanha que o Condado Portucalense, rijamente como ele, crescera e se afamara o Solar de Santa Ireneia – resistente como ele às fortunas e aos tempos. E depois, em cada lance forte da História de Portugal, sempre um Mendes Ramires avultou grandiosamente pelo heroísmo, pela lealdade, pelos nobres espíritos. (Queirós 2014, 40)
27A história familiar dos Ramires e dos seus feitos ligados à história de Portugal, referida pelo narrador do romance depois deste eloquente preâmbulo, vai desde Lourenço Ramires, “colaço de Afonso Henriques” e participante na batalha de Ourique, ao próprio Gonçalo, passando por personagens como Diogo Ramires, lutador em Aljubarrota; Paulo Ramires, “pajem do guião” que desaparece em Alcácer Quibir juntamente com D. Sebastião; ou Nuno Ramires, cortesão de D. João V., que esbanja a fortuna da casa com “sumptuosas festas de Igreja”, entre outros tantos Ramires (Queirós 2014, 41-42). Este relato, aparentemente recuperado da fictícia História Genealógica do morgado de Cidadelhe, e que dá a impressão de seguir à letra a interpretação romântico-historicista da história de Portugal esquematizada por Herculano – estendendo-se desde o passado medieval supostamente cavalheiresco e glorioso dos Ramires-Portugal, até aos séculos mais recentes em que, “como a nação, degenera a nobre raça” (Queirós 2014, 42) –, não pode ser lido sem reconhecer a sua tonalidade irónica (Piwnik 2012, 35).
28Vários exemplos podem ser apontados. De Lourenço Ramires, chamado “o Cortador” – talvez antecipando, com este cognome, a observação mordaz que mais tarde no romance, mas na voz de Gonçalo, é feita sobre o provável “avô carniceiro” de qualquer fidalgo (Queirós 2014, 238) –, Eça diz que durante a batalha de Ourique “também avista Jesus Cristo sobre finas nuvens de ouro, pregado numa cruz de dez côvados”. De Diego Ramires, “o Trovador”, assinala que, através da sua espada, o pendão real de Castela cai em Aljubarrota – aquele pendão no qual, ao fim da batalha, o seu irmão de armas, D. Antão de Almada, “se embrulha para o levar, dançando e cantando, ao Mestre de Avis”. No auge da época em que “Portugal se faz aos mares”, refere sobre o capitão do Golfo Pérsico, Baltasar Ramires, que, embainhado na sua “pesada armadura”, afunda-se “hirto” e em silêncio durante o naufrágio do Santa Bárbara. Do período bragantino, conta como Inácio Ramires, que acompanha D. João como “reposteiro maior” e faz fortuna como negreiro, perde tudo para um velho frade capuchinho e morre no seu solar de uma “cornada dum boi” (Queirós 2014, 40-42). Ao contrário dos seus predecessores historicistas, o narrador desta analepse desenvolve, de facto, uma paródia subtil que remove o ar de seriedade, seja este épico ou trágico, dos episódios mais relevantes do referido esquema histórico, dando-lhes em vez disso uma tonalidade satírica.
29Contudo, a analepse do capítulo de abertura de A Ilustre Casa de Ramires não é o único trecho onde encontramos a apreciação satírica de Eça sobre a história portuguesa. Existem outras secções em que ele ironiza principalmente em relação àquele período medieval que, como já vimos, não só os ultrarromânticos, mas também os seus colegas da Geração de 70, concebiam como a quintessência do heroísmo português, capaz de fazer sair o país do seu declínio secular. É verdade que aquele passado é constantemente lembrado, sobretudo pela voz e o pensamento da personagem de Gonçalo para se encorajar, tanto na sua aventura política e na sua carreira literária, como nas suas relações com os aldeões de Santa Ireneia, usando-o como uma espécie de herança que inundava de heroísmo a sua pessoa – “Mas sentia a grandeza e o préstimo histórico desse arrojo que outrora impelia os seus a arrasar solares rivais, a escalar vilas mouriscas […] dentro do espírito e das expressões do século era pois um bom Ramires – um Ramires de nobres energias, não façanhudas, mas intelectuais, como competia numa idade de intelectual descanso” (Queirós 2014, 153-154). No entanto, é preciso reconhecer que o medievo é posto também em causa pelo próprio “fidalgo” (Cunha 1997, 123). Talvez um dos momentos mais explícitos desta ambiguidade seja aquele em que, depois de ter concluído a sua Torre de D. Ramires, através de um discurso interior narrativizado, testemunhamos a admiração, mas igualmente as dúvidas e o desgosto, que ele vem a sentir pela história do Portugal medieval, especialmente depois de ter trabalhado na cena final do romance, na morte do Bastardo de Baião – episódio aparentemente histórico que tinha recuperado do poemeto do seu tio Duarte e da História de Portugal de Herculano:
Mas agora, abandonada a banca onde tanto labutara, não sentia o contentamento esperado. Até esse suplício do Bastardo lhe deixara uma aversão por aquele remoto mundo afonsino, tão bestial, tão desumano! Se ao menos o consolasse a certeza de que reconstituíra, com luminosa verdade, o ser moral desses avós bravios… Mas quê! Bem receava que sob desconsertadas armaduras, de pouca exatidão arqueológica, apenas se esfumassem incertas almas de nenhuma realidade histórica… Até duvidava que sanguessugas recobrissem, trepando dum charco, o corpo dum homem, e o sugassem das coxas às barbas, enquanto uma hoste mastiga a ração!... Enfim, o Castanheiro louvara os primeiros capítulos. A multidão ama, nas Novelas, os grandes furores, o sangue pingado: e em breve os Anais espalhariam por todo o Portugal, a fama daquela Casa ilustre, que armara mesnadas, arrasara castelos, saqueara comarcas por orgulho e pendão, e afrontara arrogantemente os Reis na cúria e nos campos de lide. (Queirós 2014, 341-342)
30Como este extrato mostra, por um lado, Gonçalo não só considera o passado afonsino “bestial” e “desumano”, mas até duvida da sua realidade, isto é, que a morte do Bastardo tenha ocorrido como o seu tio e Herculano tinham registado; por outro lado, ele é notoriamente orgulhoso dos seus heroicos antepassados que enfrentaram “arrogantemente os Reis na cúria e nos campos de lide”. Eça faz, pois, coincidir numa mesma mente, duas posições em relação ao passado medieval – desprezo e exaltação –, dando assim lugar à perceção de uma conceção ambígua ou irónica da história. Mas o passado medieval não é o único período da história portuguesa sobre o qual vemos Eça ensaiar a representação de pontos de vista ou interpretações contraditórias que eliminam as pretensões autoritárias dos discursos históricos unívocos e ideológicos (Kellner 1989, 117). Outro exemplo desta “multivocalidade” está numa das cenas finais de A Ilustre Casa, aquela em que Titó, Gracinha, Videirinha e o administrador João Gouveia, por ocasião do regresso esperado de Gonçalo da sua aventura na Zambézia, discutem a questão do império português em África. Assim, enquanto pela voz de Gracinha contemplamos uma verdadeira atualização dos elogios históricos convencionais das explorações portuguesas de além-mar do século XVI – “O quê! vender o que tanto custou a ganhar, com tantos trabalhos no mar, tanta perda de vida e fazenda” –, através da do administrador João Gouveia participamos numa completa ridicularização daquelas mesmas empresas – “Quais trabalhos, minha senhora? Era desembarcar ali na areia, plantar umas cruzes de pau, atirar uns safanões aos pretos… Essas glórias de África são balelas. Está claro, V. Ex.ª fala como fidalga, neta de fidalgos. Mas eu como economista. E digo mais…” (Queirós 2014, 370).
31Com base nas estratégias ficcionais de índole irónica analisadas até este momento o esquema convencional da história portuguesa é relativizado, revelando assim a sua ficcionalidade, ou seja, a sua natureza como uma perspetiva entre outras possíveis. Em resumo, as ditas estratégias são: (1) a metadiégese que permite observar os mecanismos de elaboração tortuosa, e até plagiária, de um romance histórico; (2) a analepse paródica dos episódios da história de Portugal em que os Ramires participaram; e (3) a avaliação ambígua que, na voz de diferentes personagens, é feita do passado medieval e renascentista português. A estas é possível acrescentar a comparação final que, através da consciência lúcida deste romance, a do administrador Gouveia, é elaborada entre Gonçalo e Portugal, caracterizando-os, literalmente, como autênticos Doidos (Queirós 2014, 375), e não um falso Doido como aquele outro do poema de Guerra Junqueiro. Tendo em conta os elementos acima aludidos, poder-se-ia mesmo ir mais longe e afirmar que, com base na sua relativização, Eça foi o destruidor do mito ou ficção da história nacional que procurou enraizar e legitimar o estado-nação. Refiro-me ao mito romântico-historicista segundo o qual, desde a Idade Média, Portugal tinha uma “alma nacional” diferenciada, caracterizada pela ausência de despotismo, pelo seu parlamentarismo original, pela unidade da coroa e do povo contra os sectores privilegiados, pelo seu sebastianismo, e com a missão de exercer uma vocação hegemónica na Península e além-mar, isto apesar do seu declínio dos três séculos absolutistas, parcialmente diminuído com o estabelecimento da monarquia liberal (Matos 2008, 95-97).
32Mas será que Eça realmente pôs fim a todas as ficcionalizações ou esquemas da história nacional portuguesa do seu tempo? Talvez a resposta mais conveniente a essa pergunta seja que ele próprio empreendeu uma nova esquematização. Passo a explicar. Enquanto Herculano, Antero, Oliveira Martins e Guerra Junqueiro tinham configurado a história de Portugal em termos de um “romance”, entendido no seu sentido arquetípico como a narração do triunfo do herói sobre as forças das trevas – pois por detrás das suas críticas à situação presente do seu país, e das referências à trágica queda do herói, esteve sempre a esperança sebastianista de que Portugal triunfaria sobre si próprio e sobre os seus inimigos e seria redimido –, em A Ilustre Casa de Ramires temos outro tipo de enredo. O que observamos na esquematização eciana da vida de Gonçalo-Portugal, portanto da história portuguesa, é antes um “romance satírico” ou, por outras palavras, “uma forma de representação disposta para expor, de um ponto de vista irónico, a fatuidade da conceção romântica do mundo” (White 2014, 9-10). A sátira, aponta Hayden White, dá forma irónica às esperanças, possibilidades e verdades humanas; é uma apreensão da incapacidade da consciência para compreender plenamente o mundo. A sátira é uma consciência da inadequação da própria imagem da realidade; é um repúdio a todas as conceptualizações sofisticadas do mundo. A Ilustre Casa de Ramires, romance que narra o ilusório triunfo político, literário e colonizador do herói – de um Gonçalo-Portugal-D. Sebastião que regressa enriquecido de África –, apela irónica e ficcionalmente para o dito repúdio.
- 7 A última fase da carreira literária de Eça de Queirós, que corresponde à escrita de livros tais c (...)
33Extrapolando para o caso português o modelo do “desenvolvimento ontogenético da consciência histórica” de Jörn Rüsen (2005, 9-39), proposto por este último para compreender a transição da consciência histórica pré-moderna para a moderna durante o século XIX, poder-se-ia postular que o pensamento do “último Eça” (Monteiro 2014, 15-16)7 constitui a fase “crítica” na história da consciência histórica portuguesa moderna. No período pós-Ultimatum existia uma “narrativa-mestra” da história portuguesa que, afirmando a continuidade essencial entre a realidade social do passado medieval e o presente liberal-constitucionalista, e sendo replicada por um grande número de políticos, poetas e historiadores – entre eles Pinheiro Chagas, Antero de Quental, Oliveira Martins e Guerra Junqueiro –, tinha adquirido o estatuto de “tradicional” e “exemplar”. Esta metanarrativa romântico-historicista esquematizava a história portuguesa em três fases: em primeiro lugar, uma época medieval concebida como o berço daquele vigoroso e heroico “carácter nacional” que levara um povo a olhar para além das costas ocidentais da Europa; a seguir, um período de três séculos, onde o ser nacional quase tinha perecido sob o absolutismo, a corrupção e a decadência; e finalmente, uma época presente liberal-democrática que, embora representando um avanço em relação à anterior, dava continuidade à trajetória descendente da nação, à espera de um ressurgimento messiânico. Esse relato que, não só tinha definido a unidade e a identidade da sociedade liberal portuguesa como também fornecido os modelos de ação que essa sociedade procurava transmitir como lições para o presente, foi o que o autor de A Ilustre Casa de Ramires veio negar, questionando e dissolvendo a sua estrutura, os seus princípios morais, as suas ideias de continuidade e de identidade (Rüsen 2005, 13-14, 30-32).
34A crítica da metanarrativa romântico-historicista que encontramos nas páginas de A Ilustre Casa de Ramires não foi, contudo, feita através dos meios às vezes grosseiros e explícitos de um texto doutrinário, mas com base nas estratégias subtis da narrativa ficcional. A distância irónica, a sátira e a paródia foram, sem dúvida, os principais aliados de Eça nesta tarefa: satirizando os momentos fundamentais da esquematização convencional da história portuguesa em que um Ramires sempre participou; caricaturando – como narrador ou através da voz do protagonista Gonçalo – os artifícios da representação “realista” do passado típicos do romance histórico tradicional e da historiografia; e dramatizando as diferentes versões ou pontos de vista que as personagens têm sobre o mesmo acontecimento ou processo da história portuguesa – por exemplo, as descobertas e conquistas de além-mar. Através de tais estratégias poéticas e retóricas, Eça despojou a narrativa tradicional, assimilada e replicada pelos discursos dos seus contemporâneos, do seu carácter unívoco.
35Tendo em conta isto, foi o “último Eça” um antinacionalista? Provavelmente não. Assim como os seus contemporâneos – e o demonstram os textos doutrinários que escreveu nessa altura –, o romancista amava a sua pátria e queria vê-la emergir dos problemas políticos, económicos e sociais que experimentava no final do século XIX. Ele apenas não concordava com os meios utilizados pelos “patriotarrecas” que, face aos problemas do seu tempo, não deixavam de empunhar o “glorioso” passado português. Distanciando-se deles, a forma particular de Eça contribuir para o bem nacional foi detetar e denunciar, no quadro de um romance, as aporias e ficções imanentes à interpretação romântico-historicista da história nacional portuguesa – a maior de todas, a de imaginar uma origem medieval, com traços aristocráticos, para uma entidade objetivamente moderna como era o estado-nação português.