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Recensões

Tiago Saraiva, Porcos Fascistas: Organismos Tecnocientíficos e a História do Fascismo. Porto: Dafne Editora, 2022, 336 pp. ISBN 9789898217561

Marta Macedo

Texto integral

  • 1 Tiago Saraiva, Fascist Pigs: Technoscientific Organisms and the History of Fascism (Cambridge: MIT (...)

1Porcos Fascistas é um dos mais ambiciosos livros sobre ciência e fascismo editados nos últimos anos. Publicado originalmente nos Estados Unidos em 2016 pela MIT Press,1 este estudo – interessado em perceber como é que cientistas produziram “organismos tecnocientíficos” e como é que esses organismos, ou seja, plantas e animais melhorados, deram corpo a vários projetos fascistas – recebeu de imediato o reconhecimento da comunidade de historiadores norte-americana. O volume foi distinguido com o Prémio Pfizer, o maior prémio atribuído a uma monografia académica pela History of Science Society. Desde que foi editado em língua inglesa, o livro tem inspirado uma série de debates nos campos da história da ciência, da história da agricultura, da história dos fascismos e da história dos impérios, que, lamentavelmente, não tiveram até agora grande repercussão no contexto português. A publicação desta tradução vem corrigir esta falha.

  • 2 Ken Alder, “Introduction to Focus Section on Thick Things”, Isis, 98.1 (2007): 80-83.

2Na verdade, este não é um livro comum. É difícil exagerar a originalidade e a importância das propostas metodológicas e teóricas de Porcos Fascistas. Em primeiro lugar, deve ser destacada a novidade na escolha dos objetos que Tiago Saraiva se propõe analisar. Ao longo de seis capítulos, trigo, porcos e batatas, mas também café, algodão, kok-saghyz e ovelhas caraculo surgem como os principais protagonistas de uma história sobre mundos fascistas reais e imaginados. Para além de dar dignidade histórica a plantas e animais, o autor mostra de que modo a materialidade de uma atividade aparentemente pouco sofisticada como a agricultura pode informar novas perspetivas sobre um tema tão sério como o fascismo. De facto, Saraiva olha para os diferentes espaços agrícolas criados por esses organismos modernos para repensar as relações entre ciência, política e sociedade. A partir dos métodos próprios da história da ciência, cada capítulo convida-nos a focar a atenção no detalhe dessas “coisas científicas” e nos processos que produzem essas mesmas “coisas científicas”.2

  • 3 M. Norton Wise, “Science as History”, in K. Gavroglu, J. Renn (eds), Positioning the History of Sci (...)

3Assim, o trigo estudado neste livro não é um trigo genérico, mas sim uma variedade muito específica de trigo resistente à acama e à ferrugem, que serviu para montar as políticas de autarcia alimentar em Itália e em Portugal. A forma como esta variedade de trigo dependeu de, e ajudou a expandir, as estruturas burocráticas destes estados corporativos diz-nos tanto sobre as batalhas de produção como sobre o imaginário por detrás das ideologias ruralistas do fascismo. O mesmo se passa com os porcos alemães: estes não eram uns suínos banais, mas sim linhagens de porcos de elite desenvolvidos para engordarem rapidamente à base de uma dieta quase exclusiva de batata nacional. Estes porcos permitem contar uma história sobre autonomia alimentar e sobre o enraizamento dos alemães no solo pátrio. Foram também plantas melhoradas de café, algodão e kok-saghyz (para extração de borracha) que ajudaram a garantir a sobrevivência da nação orgânica fascista numa rede de impérios em concorrência. Genética moderna e trabalho forçado aparecem, por via destas plantas, como eixos centrais das campanhas de colonização dos territórios da Etiópia, Moçambique e da Europa de Leste ao longo do século XX. O caso das ovelhas caraculo, que resultam de uma cuidada seleção genética, serve também para perceber como se alimentam os sonhos imperiais destes regimes. Só ovelhas capazes de reproduzirem o mesmo padrão de pelo, ou seja, capazes de produzirem peles com elevado valor de mercado, poderiam funcionar como guarda avançada da difícil colonização branca da Europa de Leste, da Líbia e do sul de Angola. Numa analogia direta com os modos de trabalho da ciência, cada um dos capítulos escolhe um organismo vivo específico e toma-o como organismo-modelo capaz de revelar uma faceta singular dos mundos políticos e sociais fascistas.3

4Para além da escolha dos objetos, a escolha dos territórios também faz de Porcos Fascistas um livro invulgar. É muito raro encontrar um autor que domine com o mesmo à vontade tantas línguas e tantos terrenos de pesquisa. Os regimes fascistas italiano, português e alemão são analisados com igual nível de detalhe e conhecimento, nas suas dimensões nacionais e imperiais, apontando-se as particularidades de cada um, mas também os cruzamentos e as contaminações entre eles. Esta proposta, para além de ampliar a imaginação geográfica dos historiadores a trabalhar sobre contextos portugueses, dá pistas sobre os modos de fazer história comparada e transnacional. Veja-se, por exemplo, o capítulo das ovelhas caraculo, o mais arrojado em termos metodológicos: ao seguir estes organismos tecnocientíficos desde o laboratório em Halle até às zonas de fronteira de três impérios fascistas, o autor aponta para as ligações entre melhoramento de animais, genocídio e colonização branca que estão na base desses projetos de colonização.

5Em termos teóricos, Porcos Fascistas é um importante contributo para repensar o lugar da ciência e o lugar do estado na contemporaneidade. O livro filia-se numa tradição historiográfica que coloca o fascismo no leque dos regimes políticos modernos e, como tal, propõe-se analisar o fascismo como uma forma específica de biopolítica, onde a ciência desempenhou um papel fundamental. Mas ao situar plantas e animais no centro de uma narrativa normalmente ocupada por humanos, ao olhar para uma série de processos aparentemente inócuos, banais e estendidos no tempo, Tiago Saraiva abre novas pistas para pensar o papel da ciência e também o papel do estado no governo dos sujeitos. Na verdade, este livro não se foca nas experiências limite da ciência eugénica nazi, nem discute as purgas dos cientistas oposicionistas. Sem negar a importância desses episódios, o autor afasta-se das propostas historiográficas que procuram formas de colaboração ou resistência para perceber a relação entre ciência e fascismo. Se à primeira vista não há nada de particularmente abjeto ou heróico, de fascista ou antifascista, no trabalho de seleção de variedades ou espécies mais produtivas e resistentes, o livro mostra como é que essas novas formas de vida, cuidadosamente criadas em laboratório, serviram tanto para ampliar o conhecimento científico sobre genética como para sustentar os projetos fascistas em Itália, Portugal e Alemanha.

6Após a leitura deste livro só pessoas particularmente desatentas poderão duvidar que, nestes regimes, a ciência moderna se construiu usando os recursos do estado, e que essa mesma ciência ajudou a construir o estado fascista ao fornecer aos poderes públicos recursos para agir sobre o território e sobre o coletivo social. Ou seja, a ideia ainda demasiado enraizada no senso comum de que o progresso científico é inevitavelmente democrático cai por terra com este livro. O autor revela, passo a passo, e a partir dos mais diversos objetos e contextos, que foi com base na ciência mais avançada aplicada ao trigo, porcos, algodão ou carneiros que se montaram os mais violentos projetos políticos do século XX. Se alimentar, em sentido literal e em sentido metafórico, as nações fascistas dependeu de plantas e animais fascistas e produziu formas de estado fascistas, este livro não ignora as paisagens também fascistas que esses objetos científicos ajudaram a construir. Tal como o foco na agricultura e nas ideologias ruralistas interessa aos historiadores da política, da economia e dos mundos sociais do fascismo, esta estética da produção é a ligação mais óbvia entre os interesses dos historiadores da ciência e os interesses de um conjunto mais vasto de pesquisadores interessados no território e na paisagem. Campos de searas douradas, celeiros e casas do povo, planícies de batatas, rolos de arame farpado e fazendas-modelo dão forma às paisagens nacionais do trigo e dos porcos e às paisagens coloniais das ovelhas caraculo.

7É exatamente na articulação entre organismos e projetos de colonização que o livro explora os caminhos mais inovadores para os historiadores dos fascismos, convidando-os, por um lado, a pisarem territórios que extravasam as fronteiras do continente europeu e, por outro lado, a olharem para os territórios da Europa como espaços de colonização. Ou seja, as “coisas científicas” examinadas neste livro permitem ligar políticas nacionalistas a políticas imperiais, permitem juntar aos temas clássicos da historiografia dos fascismos os temas clássicos da historiografia dos impérios, como a violência e a coerção, associadas tanto à conquista da terra como à extração do trabalho e a sua racialização. O mais poderoso argumento lançado nas páginas dos Porcos Fascistas vem inclusive quebrar as balizas políticas – de nação e império – que são usadas para organizar as duas partes do livro. Ao seguir os organismos concretos que materializaram sociedades fascistas, damo-nos conta que os projetos de conquista das terras pobres do Alentejo e do deserto do Namibe, dos baldios do sul de Itália e dos campos da Etiópia, das planícies da Alemanha e dos territórios da Ucrânia fazem parte de um mesmo contínuo de práticas.

8Essa ideia não se traduz apenas por palavras. Quando olhamos para as fotografias colocadas lado a lado de mulheres prisioneiras em Auschwitz a trabalharem nos lotes experimentais de kok-saghyz e de homens negros a carregarem fardos de algodão numa fábrica da Beira, em Moçambique (pp. 200-201) é possível perceber a dimensão colonial do fascismo na Europa e em Africa. Este não é o único exemplo da poderosa narrativa visual contida neste livro. O novo caderno fotográfico, exclusivo da edição portuguesa, acrescenta muitas camadas de interpretação e mostra bem como o uso das imagens ajuda na construção do discurso histórico. Pela mão da Dafne, com uma tradução exemplar e com o cuidado no desenho e na produção que caracteriza esta pequena editora, Porcos Fascistas chega agora às livrarias portuguesas. Trata-se sem dúvida de um dos acontecimentos editoriais de 2022.

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Notas

1 Tiago Saraiva, Fascist Pigs: Technoscientific Organisms and the History of Fascism (Cambridge: MIT Press, 2016).

2 Ken Alder, “Introduction to Focus Section on Thick Things”, Isis, 98.1 (2007): 80-83.

3 M. Norton Wise, “Science as History”, in K. Gavroglu, J. Renn (eds), Positioning the History of Science (Dordrecht: Springer, 2007), 177-184.

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Marta Macedo, «Tiago Saraiva, Porcos Fascistas: Organismos Tecnocientíficos e a História do Fascismo. Porto: Dafne Editora, 2022, 336 pp. ISBN 9789898217561»Ler História [Online], 81 | 2022, posto online no dia 21 setembro 2022, consultado no dia 18 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/10909; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.10909

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Autor

Marta Macedo

Instituto de História Contemporânea, NOVA FCSH, Portugal

Marta.cdm@gmail.com

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