- 1 De fato, o livro dedica um terço de suas páginas à história marítima (“L’Océan et ses contraintes”) (...)
1A ideia central de O Trato dos Viventes concerne a junção, mediante o comércio de escravizados africanos e a navegação bilateral, dos portos portugueses em ambas as margens do Atlântico Sul, numa matriz espacial colonial que formou o Brasil. O livro – inicialmente publicado em 2000, com várias reimpressões em São Paulo e uma edição atualizada americana (Alencastro 2018) – tem origem no doutorado sobre as repercussões do final do tráfico de africanos para o Brasil que comecei a preparar em 1970 na Universidade de Paris X-Nanterre, sob a direção de Frédéric Mauro, um dos primeiros discípulos de Braudel e autor de um livro fundamental sobre Portugal e o Atlântico no século XVII (Mauro 1960) que merecia ser mais lido pelos historiadores atlanticistas.1 Principalmente nas universidades do Brasil, que possui a maior costa nacional atlântica e parece não saber disso. Sem entrar numa polémica vã sobre precedências historiográficas, lembro esta filiação de minhas pesquisas porque muitos historiadores jovens e menos jovens pensam que a Atlantic History nasceu em Harvard e Johns Hopkins. Na mesma ordem de ideias, o saudoso historiador A.J.R. Russell-Wood, mencionando favoravelmente meu livro, escreveu que eu havia me inscrito, “inconscientemente ou não”, nas perspectivas da Atlantic History (Russell-Wood 2009, 52).
2Com uma bolsa do governo francês, depois renovada no doutorado, obtive o diploma do Institut d’Études Politiques (IEP) de Aix-en-Provence, onde também cursei parte da graduação em História e redigi uma monografia sobre o Império do Brasil. Fiquei intrigado com a forte resistência brasileira, da Independência até 1850, à supressão do tráfico transatlântico de africanos imposta pela Inglaterra. Aix-en-Provence possuía, provavelmente, a melhor Faculdade de História da França. Lá, havia também estudantes do mundo inteiro e, em particular, da África. Entre eles, um grupo de republicanos etíopes liderados pelo historiador Aleme Eshete, que impressionava a nós todos por sua seriedade intelectual. Na mesma época, como auxiliar de pesquisa no Centre d’Études des Pays de l’Océan Indien, tive meu primeiro contato com a documentação luso-africana redigindo sínteses sobre Moçambique. Cursos sobre o asiento de negros e a guerra de sucessão da Espanha me deram luzes sobre a disputa das potências marítimas pelo controle do comércio de africanos. Mais tarde, em Paris, Vitorino Magalhães Godinho, que veio muitas vezes de Clermont-Ferrand para participar do seminário de Mauro, me instruiu sobre o tema do asiento antes e depois da Restauração.
3Em Paris, o meio de exilados brasileiros era denso e aumentou a partir de 1973 quando chegaram estudantes e militantes até então refugiados no Chile de Allende. Nesta época, a ditadura brasileira acentuava a repressão e as perspectivas de volta ao país pareciam cada vez mais distantes. Paralelamente, a leitura da imprensa brasileira dos anos 1850 disponível na Bibliothèque Nationale e na British Library, e da correspondência diplomática em Paris e Londres, deixou claro que a supressão do comércio atlântico de africanos era o topo de uma problemática atravessando toda a história brasileira. Retomei então a pesquisa “à rebours” até o século XVI, sem me preocupar com os prazos fixados às teses, graças ao apoio de Frédéric Mauro.
4Houve dois momentos decisivos na elaboração do livro, ambos provocados por eventos externos. O primeiro foi o 25 Abril de 1974 em Portugal. Como muitos outros exilados portugueses e brasileiros residindo na França, fui para Lisboa em plena exaltação. Retomar o dia-a-dia da língua portuguesa depois de oito anos na França, pesquisar sobre as colônias africanas e o Brasil no AHU, no ANTT e na BNL, na altura em que o império desmoronava e Portugal redefinia seu destino europeu, suscitou-me reflexões contrastadas. Na sala do AHU na Junqueira chegavam retornados aflitos, desesperados, em busca do Diário Oficial de Angola, Moçambique ou Guiné com o registro de seu prévio estatuto de funcionários coloniais que os habilitava a receber um subsídio governamental. Ler manuscritos seiscentistas neste ambiente me levou a pensar na “Singularidade do Brasil” no âmbito do processo colonial português e europeu. Com este mesmo título, o assunto foi tratado na conclusão do livro e, na sequência de conversas com Alfredo Margarido, meu colega na Université de Vincennes, num estudo comparativo dos mulatos no Brasil e em Angola. Nesta altura, graças em boa parte a conversas com Claude Meillassoux, que fez parte de minha banca de tese, e Roberto Schwarz, meu principal interlocutor intelectual desde então, eu já havia definido o plano da tese apresentada em Nanterre em 1986, “Le Commerce des Vivants: traite negrière et ‘Pax Lusitana’ dans l’Atlantique Sud – XVIe siècle-XIXe siècle”. Jean Devisse, presidente da minha banca, que dirigia a Société Française d’Histoire d’Outre-Mer, propôs-me rever o manuscrito da tese para posterior publicação. Tinha este trabalho em perspectiva quando, algumas semanas depois, mudei-me com minha família para o Brasil, de onde havia partido 20 anos antes.
- 2 Fundado em torno de Fernando Henrique Cardoso por um grupo de professores que, como ele, haviam sid (...)
5Ocorreu então o segundo momento decisivo na redação do livro. A volta para meu país em 1986, a residência em São Paulo, as discussões com estudantes e colegas no Instituto de Economia da Unicamp e, sobretudo, no Cebrap modificaram a minha percepção da história brasileira.2 A ditadura terminara no ano anterior e a Assembleia Constituinte começava seus trabalhos em Brasília. No grande corredor subterrâneo ligando o Congresso ao Anexo do Senado, circulavam delegações de sindicalistas, indígenas, quilombolas, professores, policiais, com símbolos e roupas distintivas que davam a descrição visual de uma nova nação em movimento. O ministro da Cultura, Celso Furtado, com quem eu havia convivido em Paris e que foi praticamente meu codiretor da tese de doutorado, e depois esteve na banca de minha Livre-Docência, convidou-me para participar de reuniões preparatórias das comemorações do centenário da Abolição, em 1988, e da criação da Fundação Palmares. Tudo isso me ajudou a entender o significado histórico do Movimento Negro que se afirmava como um componente da redemocratização e se impunha na contemporaneidade brasileira.
6Mais diretamente em relação com o livro, continuei a discussão sobre o século XVII com Evaldo Cabral de Mello, que já havia conhecido em Paris, e passei a trabalhar com John Monteiro no Cebrap. Estava claro que devia reescrever as partes da tese relativas à invasão holandesa no Atlântico Sul, especialidade de Evaldo, e ao bandeirantismo, tema que John dominava. Decidi então transformar o doutorado em dois livros. O primeiro, até o fim do século XVII, altura em que o Brasil não era o Brasil. O segundo do começo do século XVIII até 1850-1860, quando, premido pela supressão do tráfico de escravizados africanos, o governo brasileiro estimula a imigração para a frente agrícola cafeeira. Nesta época, com a cessação das rotas entre a América do Sul e a África, rompe-se a matriz espacial colonial sul-atlântica. Neste contexto, redigi uma tese de Livre-Docência em História Econômica na Unicamp focando a conjuntura dos séculos XVI e XVII no Atlântico Sul. Daí saiu O Trato dos Viventes, que finalizei na Sorbonne Université, acolhido pela saudosa Katia Mattoso, com uma bolsa da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Trabalho ainda no segundo volume cujo subtítulo continua o do primeiro: O Fardo dos Bacharéis – Formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos XVIII e XIX.
7O recorte dado à periodização não era uma novidade. Em 1928, o grande intelectual paulista Mário de Andrade, formulou uma interpretação mais tarde explicitada por Antônio Candido e incorporada por Celso Furtado: os eventos marcantes da América Portuguesa nos séculos XVI e XVII são “fruto das condições de determinadas capitanias (...), não resultam da coletividade colonial”. Para Mário de Andrade (1935, 7), somente na segunda metade do século XVIII se estabelece a “coletividade colonial”. Ou seja, só há um “Brasil colonial”, e eventualmente protonacional, no século XVIII quando surgem em volta da economia mineira redes de trocas continentais unindo as capitanias entre si. Como coordenador do volume sobre o Império do Brasil, na coletânea de quatro volumes dirigida por Fernando Novais, sobre história da vida privada no Brasil (1997), participei de reuniões regulares com os colegas que dirigiam os outros volumes, discutindo muitos outros temas da historiografia brasileira, entre os quais a questão da periodização.
8Desse modo, equivoquei-me na edição original do livro ao ceder ao hábito generalizado no Brasil de grafar “Colônia”, para designar a América portuguesa desde 1500. O “C” maiúsculo entifica num mesmo território a abstração de um espaço presumidamente colonial, omite a perenidade das feitorias, das economias de enclave, do capitalismo comercial na África e na Ásia, gerando uma narrativa teleológica que conduz o vice-reino à independência e à unidade nacional brasileira. Insisti no primeiro capítulo do livro, e mais ainda na edição americana, na diferença abissal que existe entre o destino de São Paulo, fundada em 1554, e Macau, ocupada em 1557, e “desocupada” em 1999, sem sair de seu estatuto de enclave, com uma porcentagem mínima de lusófonos. Além da documentação do século XVI, tive grande prazer em ler, e depois citar no livro, João de Barros, Fernão Mendes Pinto e Diogo do Couto, entre outros autores quinhentistas e seiscentistas. Procurei mostrar que um fator decisivo desta diferença se situa no Atlântico Sul, na deportação maciça de africanos para o Brasil durante três séculos. Notei ainda que o fluxo regular de deportados de Angola, depois da reconquista de 1648, estimula as expedições de extermínio de comunidades indígenas anteriormente cativadas por proprietários rurais incapacitados de adquirir escravizados. Noutras palavras, os ameríndios também são vítimas da intensificação do tráfico atlântico. A longue durée do comércio atlântico de escravizados, macrociclo da construção do Brasil, decompõe os chamados “ciclos” do açúcar, do ouro, do café em subciclos econômicos. Foi a migração forçada de africanos que permitiu o desenvolvimento simultâneo da economia do açúcar e do ouro, como também, na primeira metade do século de XIX, a emergência da economia do café no Sudeste. Um artigo que publiquei nos Annales resume esta interpretação (Alencastro 2006).
9À luz dos comentários que li e ouvi sobre o livro, há um tema da primeira edição que merecia mais destaque e desdobramentos: a importância de Buenos Aires e da rede comercial rio-platense. Acentuei este ponto na edição americana e na nova edição brasileira, que será publicada junto com o segundo volume. Deveria ter ficado bem evidente que a geo-história do Atlântico Sul inclui, desde o século XVII, a África, o Brasil e o Rio da Prata. Como indicou Charles Boxer (1952) no seu livro pioneiro sobre Salvador de Sá, e como demonstra a documentação, a expedição de reconquista de Angola, lançada em 1648 do Rio de Janeiro, tinha dois objetivos distintos. O primeiro consistia na retomada do fluxo de escravizados para as plantações de cana de açúcar da Guanabara, o segundo, e talvez o mais importante, visava a reexportação de escravizados angolanos para Buenos Aires em troca da prata de Potosí. Como é sabido, boa parte da prata obtida em Buenos Aires pelo comércio peruleiro (em referência ao Alto Perú onde estava Potosí), passava por Lisboa, Sevilha, Manila e Macau e ia parar na China. Assim analisado, o Atlântico Sul aparece como um dos eixos da economia-mundo.
- 3 “Por mais atento que Caio Prado esteja à vida desse vasto conjunto... limita-se muitas vezes ao ho (...)
10Examinei, no capítulo quinto, os escritos dos tratadistas ibéricos e as reflexões dos jesuítas portugueses e, em particular, os textos do padre Antônio Vieira sobre a escravização dos ameríndios e dos africanos. Pensei que o tema merecia um capítulo inteiro por uma razão precisa. Ativos nas duas pontas da rede escravista sul-atlântica, em Angola e no Brasil, grandes proprietários de terras e cativos, partícipes do comércio atlântico e continental de escravizados, os jesuítas portugueses, mais do que os jesuítas espanhóis ou que qualquer outra ordem missionária europeia, não podiam desincumbir-se de justificar o tráfico de africanos. Daí as páginas percucientes de Vieira sobre a legitimidade da deportação de angolanos para o Brasil, ao mesmo tempo em que propugnava a liberdade dos ameríndios. Na linha dos ensaios pioneiros de Antônio José Saraiva (1963 e 1967), procurei demonstrar que não havia incoerência na doutrina vieirista: a deportação de africanos para o Brasil garantia a liberdade das comunidades ameríndias, na medida em que respondia à demanda de trabalho compulsório dos colonos e das autoridades coloniais. Achei que a subseção desse capítulo intitulada “A teoria negreira jesuítica” iria suscitar críticas de historiadores e autores adeptos de uma leitura irênica da obra de Vieira. Não foi o caso. Na verdade, o tema que levantou mais reticências foi a tese central do livro, a desterritorialização da história colonial brasileira e a ideia subjacente de que Angola era a parte mais importante da América portuguesa. Na sua vasta maioria, a historiografia sobre o Brasil, escrita por brasileiros ou não brasileiros, permanece irremediavelmente ancorada no território da América Portuguesa. Desde 1948, Braudel sublinhava o viés territorialista que levava os estudiosos brasileiros a interpretar a história do país “de dentro para fora”, e notava a ausência do Atlântico Sul na obra de Caio Prado Júnior.3 Por isso, escrevi vários artigos sobre a geo-história do Atlântico Sul (v.g. Alencastro 2015) e espero ser mais convincente no meu próximo livro.
11Efetivamente, creio que a perspectiva sul-atlântica rompe a barreira disciplinar que separa os historiadores americanistas dos historiadores africanistas e ajuda a entender os eventos que transcorrem nas duas margens do oceano. No capítulo 6 analisei o teatro sul-atlântico da guerra dos Trinta Anos e os desdobramentos das batalhas coloniais, indicando o fio condutor que liga múltiplos conflitos: as expedições escravistas paulistas no Paraguai; a guerra hispano-luso-holandesa no Brasil, em Angola e na Costa da Mina; as expedições saídas do Brasil com armas e soldados em destino a Angola que participaram da batalha de Ambuíla (1665), submetendo o reino do Congo aos portugueses; a batalha de Pungo-Andongo (1671), destruindo o reino do Dongo; a “guerra dos Bárbaros” (1650-1720), longo conflito no Nordeste brasileiro configurando, pela primeira vez nesta escala, uma politica de extermínio das nações indígenas; e, enfim, a ofensiva final contra Palmares, a qual, parafraseando Cadornega, se apresenta como um dos episódios da história geral das guerras sul-atlânticas. Simultaneamente, desenha-se o isolamento do Pará-Maranhão, assim como o contraste seiscentista entre o espaço continental e o espaço marítimo do Brasil, a oposição entre a rede continental dos paulistas-bandeirantes escravizadores de indígenas e a rede marítima dos fluminenses-peruleiros traficantes de africanos, superada no século XVIII com a conexão dos enclaves da América portuguesa, de Angola, da baía de Benim, da Alta Guiné, às minas de ouro do polígono Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso.
12Como muitos outros trabalhos similares, meu livro se baseou nas pesquisas e estudos sistêmicos de duas gerações de especialistas que levaram à criação da Trans-Atlantic Slave Trade Database (TSTD), lançada em 2006. Tive a chance de participar do congresso de Nantes sobre o tráfico atlântico de africanos, em 1985, organizado por Serge Daget, onde foi discutida, em torno de Barbara Solow, David Richardson e David Eltis, a ideia do TSTD, e segui a evolução do projeto ao longo das décadas seguintes. Desde o livro de Philipp D. Curtin (1969), que consolidava as estatísticas éditas sobre o tráfico atlântico de escravizados, ficou evidente que o Brasil tinha sido o destino da maior parte dos africanos deportados para o Novo Mundo. Herbert Klein e Joseph Miller, que encontrei várias vezes, me ensinaram bastante sobre o tráfico e Angola, e David Eltis me enviou as estatísticas então disponíveis do futuro TSTD. Mais tarde, incorporei os dados do TSTD atualizados em 2012 e outros estudos mais específicos produzidos pela nova geração de pesquisadores, entre os quais Roquinaldo Ferreira, Mariana Candido e Daniel Gonçalves, na edição americana do livro, publicada graças à dedicação e à generosidade de Dale Tomich.
13A recepção da primeira edição do livro foi boa, num contexto em se comemorava o quinto centenário do Descobrimento, com muitas reedições e publicações de obras sobre o Brasil colonial. No desdobramento destas comemorações foi editada a Lei de 2003, tornando obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas brasileiras, completada pela Lei de 2008, incluindo a história das nações indígenas na mesma obrigatoriedade. Creio que boa parte das 2350 citações da primeira edição do livro, registadas no Google Acadêmico, decorrem dos estudos africanos e afro-brasileiros incentivados por essa legislação, assim como pelo maior conhecimento que se tem no Brasil dos PALOP, e particularmente de Angola. Acessoriamente, o programa de cotas étnicas e sociais nas universidades brasileiras – uma das mais amplas e bem-sucedidas políticas afirmativas do mundo, em cujo debate participei – pode também ter atraído a atenção para o meu livro.
14Quando saiu a edição brasileira, Milton Ohata (2001), Fernanda Bicalho (2001), Ângela Domingues (2004) redigiram resenhas generosas apontando partes em que não fui claro. Uma questão levantada na resenha de João Pedro Marques (2002), na revista Africana Studia, sugerindo uma organização menos sincrônica dos assuntos, surgiu também num parecer anônimo de uma editora universitária americana. António Manuel Hespanha (2001) publicou um ensaio sobre Luis de Molina e a escravização dos negros que me proporcionou uma boa discussão com ele e me levou a ler as partes de De Justitia et Jure (1593-1597) sobre o tráfico de escravizados. No final das contas, pude estabelecer a diferença entre os autores que escreviam antes e, como Molina, depois da União Ibérica, marcando o impacto da institucionalização dos asientos de negros pela coroa espanhola na Escola de Salamanca. Em Paris e em Lisboa, as conversas com Francisco Bethencourt, Serge Gruzinski e Diogo Ramada Curto me ajudaram bastante a situar o livro no debate historiográfico. Com o apoio de Norman Fiering, fui duas vezes Andrew W. Mellon Senior Research Fellow na John Carter Brown Library, em Providence (Rhode Island), quando pude incorporar a maior parte das sugestões e críticas dirigidas à edição brasileira na edição americana.
15Richard Candida Smith, da University of California, Berkeley, publicou comentário extenso e aprofundado sobre The Trade in the Living, associando o livro a Braudel e à historiografia americana sobre o escravismo e a economia-mundo (Smith 2020). Christopher Ebert (2020) fez uma resenha igualmente interessante, lamentando, entretanto, que o livro se dirigisse somente a especialistas. Ele se referia aos eventuais leitores da edição americana. Porém, minha impressão é que no Brasil o livro circula entre especialistas e não especialistas. Stuart B. Schwartz (2020) comentou o livro favoravelmente, embora tenha observado que, na narrativa, deixo por vezes de distinguir o necessário do secundário. Considero a crítica benevolente, na medida em que contém a subjetividade relacionada ao leitor imaginário que cada historiador tem em mente quando escreve seu livro. Sua resenha me foi particularmente gratificante ao concordar com a pertinência de situar eventos já conhecidos na perspectiva sul-atlântica, melhorando sua compreensão e, sobretudo, ao considerar que o livro pode mudar a interpretação da história do Brasil e de Angola.
16Schwartz estima ainda que minha argumentação sobre a complementaridade entre o Brasil e Angola é mais convincente para o período 1640-1700. Outros comentadores expressaram a mesma opinião. Discordo, e trabalho atualmente nos capítulos que mostram a continuidade e a intensidade desta complementaridade até meados do século XIX, quando se inicia a imigração europeia, levantina e asiática. Numa perspectiva mais longa, redigi um texto propondo uma periodização para história do Atlântico Sul do século XVI até o século XXI (Alencastro 2019). Noutro texto mais recente, abordei o contexto de outra mudança estrutural do mercado de trabalho, marcada pelo declínio da imigracão e o deslanche das migrações internas do Nordeste do Brasil para São Paulo (Alencastro 2021). Este enfoque global sobre as metamorfoses da questão do trabalho na América portuguesa e no Brasil do século XIX e XX, com impacto direto no debate econômico, político e cultural, ficará mais explicito com a publicação do segundo volume.
17Devo ainda lembrar que a concepção de um espaço sul-atlântico unindo as áreas de produção de escravos na América portuguesa e as áreas de reprodução mercantil de escravizados nas feitorias e colônias da África portuguesa estava longe de ser uma novidade quando meu livro foi publicado. Sem falar nas reflexões que pontuam os textos do padre Antônio Vieira, já Charles Boxer (1952), Pierre Verger (1968) e sobretudo Joseph Miller (1988), cujo livro lamentavelmente ainda não foi traduzido em português, haviam escrito obras marcantes sobre este tema. Minha contribuição tenha talvez consistido em articular mais sistematicamente, na escala da América portuguesa, os eventos transcorridos nas duas margens do Atlântico Sul nos séculos XVI e XVII, como assinalei acima. Embora a leitura do livro possa ter influenciado autores da nova geração de especialistas do tráfico de escravizados e da história atlântica, filio-me a uma visão de história mais abrangente, e eventualmente global, que predominou na Franca no pós-guerra. Tal interpretação se tornou minoritária e foi substituída, no que concerne o escravismo e as relações sul-atlânticas, por estudos de microhistória, continuidades culturais, etnicidade, e por análises centradas nas comunidades subsaarianas impactadas pela pilhagem euroamericana.
18Entretanto, continuo persuadido que não há oposição entre macrohistória e microhistória e que é mais pertinente estudar no Brasil a história sul-atlântica do que a história latino-americana. Assim, o conceito de latino-americanidade só se concretiza no Brasil após a proclamação da Republica (1889) e é hoje evanescente, subsistindo apenas no âmbito do Mercosul. Mas o Mercosul é o Rio da Prata, interligado ao Rio de Janeiro e à Bahia desde o final do século XVI no espaço sul-atlântico. Do outro lado do mar, as novas nações lusófonas da África intensificam as relações com o Brasil na altura em que a maioria da população brasileira se declara afrodescendente, conforme registrou o Censo Nacional de 2010. No horizonte do século XXI surgem os primeiros fluxos migratórios da África para o Brasil, onde há uma acentuada queda da taxa de fecundidade. No fim do século XXI, segundo as projeções demográficas da ONU, haverá mais lusófonos em Angola e Moçambique do que na soma da população de Portugal e do Brasil. O Brasil era e voltou a ser, cada vez mais, uma nação majoritariamente afrodescendente.