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Reavaliando o Movimento Moçambique Livre: a construção sonora do assalto ao Rádio Clube (7 de Setembro de 1974)

Reassessing the Movimento Moçambique Livre: The Sonorous Construction of the Assault on Radio Clube (September 7, 1974)
Réévaluer le Movimento Moçambique Livre: la construction sonore de la prise d’assaut de la Radio-Club (7 septembre 1974)
Marco Roque de Freitas
p. 225-247

Resumos

Após o golpe militar de 25 de abril de 1974 iniciaram-se as negociações entre a FRELIMO e o governo português, culminando na assinatura dos Acordos de Lusaca no dia 7 de Setembro de 1974, que previam a transferência total de poder para a FRELIMO, sem eleições, e após um governo de transição de nove meses. Alguns colonos desagradados com esta solução decidiram tomar de assalto o Rádio Clube Moçambique em Lourenço Marques (agora Maputo), proclamando, aos seus microfones, uma outra independência para o território. Recorrendo a uma análise histórica e etnomusicológica das emissões da Rádio Moçambique Livre realizadas entre os dias 7 e 10 de setembro de 1974, este artigo pretende trazer uma nova perspetiva sobre esta insurreição. Analisarei a “construção sonora” desenvolvida durante este golpe, com particular foco no repertório musical usado para simbolizar noções de “revolução” e “independência”, contrapondo-o aos valores políticos promovidos pelos protagonistas do assalto.

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Notas do autor

Este estudo foi desenvolvido com apoio financeiro da FCT no âmbito do Concurso Nacional de Bolsas de Doutoramento com a referência SFRH/BD/101225/2014. Este trabalho também se enquadra na investigação desenvolvida no âmbito da Infraestrutura ROSSIO: Ciências Sociais, Artes e Humanidades, apoiada pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional (FEDER) e pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, I.P./MCTES, através de fundos nacionais (PIDDAC), com a referência nº 22139. O autor agradece aos funcionários do arquivo sonoro da Rádio Moçambique por terem facilitado a consulta da documentação em análise e a João Soeiro de Carvalho, São José Côrte-Real e Duarte Manuel de Freitas pelas sugestões. Agradeço ainda à historiadora Amélia Souto por ter partilhado informação fundamental para esta investigação e a Joël Bensoam pela tradução do abstract para francês. Este artigo é dedicado ao produtor radiofónico António Alves da Fonseca (1929-) e à memória do locutor João de Sousa (1947-2020).

Texto integral

  • 1 O RCM foi uma estação de rádio privada criada em 1934 em Lourenço Marques, tornando-se numa das m (...)
  • 2 A Frente de Libertação de Moçambique foi criada a 25 de junho de 1962 com o propósito de lutar co (...)
  • 3 Lourenço Marques estava dividida em duas secções: uma primeira, central, com traçado retilíneo e (...)

1Entre os dias 7 e 10 de setembro de 1974 as instalações do Rádio Clube de Moçambique (doravante RCM)1 foram ocupadas por um grupo autoproclamado Movimento Moçambique Livre, cujos integrantes se opunham aos Acordos de Lusaca realizados nesse mesmo dia na Zâmbia, e à consequente cedência dos destinos de Moçambique à FRELIMO.2 Os locutores e técnicos da estação emissora foram obrigados a ler diversos comunicados que, além de explicarem os objetivos do movimento, apelavam à intervenção de militares portugueses, rodesianos e sul-africanos, entre comentários misturados com palavras de ordem contra a FRELIMO (Belém 2015, 159). O discurso difundido pela rádio no decorrer dos quatro dias provocou uma significativa comoção por toda a cidade: foram vandalizados edifícios, em particular de órgãos de comunicação social; o aeroporto foi controlado por grupos afetos ao movimento e, entre muitas outras situações, foram libertados os agentes da PIDE-DGS que teriam sido presos após a revolução de abril. Simultaneamente, um grupo armado denominado Dragões da Morte iniciou uma autêntica chacina nos bairros do “caniço”,3 matando indiscriminadamente os negros que lhe aparecessem à frente (Cardoso 2014).

  • 4 A transcrição do discurso do Presidente Samora Machel, com o título “President Samora Machel’s Sp (...)
  • 5 Entrevistas a António Alves da Fonseca, diretor da Produções GOLO e ex-diretor da RM, realizadas (...)

2Ao terceiro dia, milhares de negros decidiram ripostar e avançar rumo à cidade de “cimento”, numa autêntica “marcha de catanas, azagaias e foices”, levando a enormes perdas humanas (Le Bon 2014). Enquanto Samora Machel desmascarava a rebelião e procurava acalmar a população,4 o exército português analisava as possíveis soluções para resolver o impasse, equacionando, entre outras medidas, granular a emissão ou destruir as antenas do Rádio Clube, localizadas na Matola. Porém, a iminência de uma insurreição dos subúrbios rumo à cidade obrigou à invasão imediata do Palácio da Rádio.5 Iniciou-se assim a primeira operação conjunta entre a FRELIMO e o exército português, criando condições para que Aurélio Le Bon, um ex-comando do exército português (1971-1974) que, entretanto, integrara uma base clandestina da FRELIMO, conseguisse entrar na rádio e transmitir a senha que viria a controlar as populações dos subúrbios em fúria. Segundo o então militar Ribeiro Cardoso (2014), “nos jornais da época falou-se de 1500 a 3000 mortos”, número nunca oficialmente aferido.

3O historiador Benedito Machava (2015) identificou quatro perspetivas na literatura que versa sobre este incidente: primeiro, a dos assaltantes que, na primeira pessoa, narram a sua experiência (Saavedra 1975; Mesquitela 1977; Passos 1997; Bernardo 2003); segundo, a perspetiva da FRELIMO perante aquela que foi momentaneamente tida como uma traição ao recém-assinado acordo (Couto 2011); terceiro, a perspetiva de alguns elementos do exército português que comandaram as operações (Cardoso 2014); e quarto, a perspetiva de um sector colonial progressista, que depois do 25 de Abril de 1974 passou para uma posição pró-FRELIMO, como aconteceu com os integrantes do grupo Democratas de Moçambique (Santos 2006; Souto 2011). Um artigo de Machava (2015) e o livro de memórias de Aurélio Le Bon (2015) introduziram a quinta perspetiva, referente à visão dos protagonistas da FRELIMO sediados em Lourenço Marques.

  • 6 Este trabalho enquadra-se, em particular, no âmbito da subárea de estudos Etnomusicologia Históri (...)
  • 7 Este artigo resulta de uma investigação desenvolvida para a minha tese de doutoramento em Etnomus (...)
  • 8 A análise aqui apresentada foi desenvolvida a partir de um ficheiro áudio, com duração aproximada (...)
  • 9 A expressão “construção” é aqui usada num sentido figurado, como referência à produção de algo in (...)

4Este artigo pretende trazer uma nova perspetiva a esta insurreição, através de uma análise histórica e etnomusicológica6 das emissões da Rádio Moçambique Livre realizadas entre os dias 7 e 10 de setembro, tendo como ponto de partida as gravações existentes no arquivo da Rádio Moçambique, em diálogo com a supracitada literatura e com entrevistas por mim realizadas a locutores e produtores radiofónicos, bem como a Aurélio Le Bon, o militar responsável pela senha que marcou o fim da insurreição.7 Ao privilegiar, nesta análise, os documentos áudio com as emissões de rádio (alguns dos quais inéditos)8 pretendo trazer novas perspetivas e clarificar alguns aspetos outrora ausentes da bibliografia que versa sobre esta insurreição, sobretudo no que concerne aos conteúdos radiodifundidos. Esta ausência torna-se ainda mais surpreendente se tivermos em conta que as emissões foram a força motriz para os tumultos verificados em toda a cidade entre os dias 7 e 10 de setembro de 1974. Neste sentido, terei particular atenção ao tipo de “construção sonora”9 desenvolvida no âmbito deste golpe, sobretudo no que diz respeito ao repertório musical usado nestas emissões para simbolizar noções de “revolução” e de “independência”, contrapondo-o aos valores promovidos pelos protagonistas do assalto. Uma contextualização histórica, que cobre alguns dos principais eventos que circundaram a queda do Estado Novo em Lisboa e do governo provincial de Moçambique, ajudará a esclarecer as razões que levaram a esta insurreição.

1. Do 25 de Abril ao 7 de Setembro de 1974: uma contextualização histórica

5No dia 25 de abril de 1974 deu-se um golpe de estado dirigido por militares portugueses descontentes com a situação política e colonial do país, principalmente no que respeita às precárias condições de vida, à falta de liberdade de expressão, à perseguição política e ao progressivo isolamento internacional de Portugal devido às guerras que opunham o estado português aos movimentos de libertação, cujo fim não estava à vista. Iniciou-se um processo revolucionário que teria como principal objetivo derrubar o Estado Novo e acabar com as guerras nos territórios ultramarinos. O dia 25 de abril de 1974 amanheceu calmo e tranquilo em Lourenço Marques. O RCM nada noticiava sobre a revolução em curso, estando proibido de o fazer por ordens superiores do então governador-geral Pimentel dos Santos. Só ao princípio da noite, por volta das 21 horas, é que o vespertino Tribuna quebrou o silêncio e publicou uma segunda edição do seu jornal, confirmando os boatos que se ouviam um pouco por toda a cidade: estava a desencadear-se uma revolução em Lisboa. Pouco tempo depois, nas palavras do militar Ribeiro Cardoso, “um locutor do Rádio Clube de Moçambique, por iniciativa própria – a redacção continuava silenciada – começou a ler aos microfones tudo o que o Tribuna tinha acabado de publicar [...]. E foi deste modo que, do Rovuma ao Maputo, Moçambique ficou a saber de ciência certa que em Lisboa algo importante acontecia e estava a mudar o país e as colónias” (Cardoso 2014, 135).

  • 10 Entrevistas a António Alves da Fonseca (cf. nota 5).

6Seguiram-se dias de indecisão, de manifestações da população contra o fascismo e a censura, algumas das quais em frente aos principais órgãos de comunicação; o Rádio Clube de Moçambique não foi exceção. António Alves da Fonseca, na época diretor dos serviços técnicos do RCM, relembra o ambiente por lá vivido nos dias que se seguiram à revolução: “os dirigentes não estavam a acreditar no que se estava a passar. Começaram logo os boatos e de repente surgiu uma grande incerteza. O governador-geral já nem dava indicações do que deveríamos ou não fazer, e foi assim que a direção do Rádio Clube decidiu retransmitir a emissão de Lisboa, da Emissora Nacional. Foi então que começámos a ouvir um novo discurso, aquele que viria a ser o novo discurso oficial. Nesse momento comecei a sentir a própria direção do Rádio Clube a diluir-se”.10

  • 11 “Direcção do RCM fiel ao antigo regime. Nove redactores suspendem a actividade como protesto”, Te (...)
  • 12 Além do Centro Emissor Matola-Lourenço Marques, o RCM tinha oito polos regionais: Emissor de Namp (...)

7Em Lourenço Marques, as mudanças políticas fizeram-se sentir imediatamente: foi nomeado um novo governo do Estado de Moçambique composto por militares, foi abolida oficialmente a censura e os agentes da PIDE-DGS que ainda não tinham fugido para os países vizinhos foram capturados e levados para o centro de detenção da Machava. As direções administrativas de todos os jornais e meios de comunicação moçambicanos foram demitidas e convenientemente substituídas. Persistia, porém, uma exceção: a direção do RCM. A 5 de maio de 1974, a revista Tempo noticiava que a direção do RCM ainda se mantinha fiel ao antigo regime e que, como forma de protesto, um grupo de redatores teria suspendido temporariamente a sua atividade.11 Após alguma pressão por parte de diversos órgãos de comunicação social em relação ao RCM, o general português Francisco da Costa Gomes, liderando uma delegação da Junta de Salvação Nacional e do Movimento das Forças Armadas (MFA) de Portugal, anunciou, numa conferência de imprensa realizada a 11 de maio no Palácio da Ponta Vermelha, que a direção do RCM teria sido despedida, nomeando imediatamente para o seu lugar uma Comissão Administrativa Militar encabeçada pelo major Eugénio Fernandes, que depois escolheu o capitão Oliveira, da Força Aérea, para a área técnica do RCM; Fernando Lopes Cardoso ficou responsável pela programação da emissora; João Barroso, responsável pelo pessoal; e Albino Ribeiro Cardoso, responsável pela informação (Cardoso 2014, 159-161). No dia 27 de maio foram também nomeados novos dirigentes para cada um dos oito emissores regionais,12 uma vez mais, todos militares (Barbosa 2000, 47).

  • 13 “FRELIMO: O que é?”, Tempo, 191, 12 de maio de 1974, pp. 18-24.
  • 14 “Samora Machel”, Tempo, 193, 2 de junho de 1974, pp. 45-49.
  • 15 “FRELIMO: de 25 de setembro à morte de Mondlane”, Tempo, 201, 28 de julho de 1974, pp. 2-15.

8No que diz respeito aos meios de comunicação impressos, Pereira Coutinho assumiu a direção do Notícias (com o auxílio de Luís Cabaço, militante da FRELIMO), enquanto Rui Knopfli ficou à frente do Tribuna e Rui Baltasar no comando do semanário Tempo. Todos eles teriam particular afeto pela FRELIMO; Baltasar, em particular, chegou mesmo a desempenhar, a posteriori, o cargo de ministro da Justiça do primeiro governo após a independência. Por conseguinte, a revista Tempo tornou-se num poderoso e privilegiado meio de propaganda oficial para a independência, isto ainda antes de a libertação ter sido anunciada, em parte por influência do grupo pró-frelimista Democratas de Moçambique que, entretanto, teria assumido o controlo de grande parte da imprensa laurentina (Machava 2015, 62-63). Surgiram, então, extensos artigos jornalísticos sobre a história da FRELIMO, onde os seus princípios e valores foram apontados.13 Começou a aparecer iconografia, em capas de livros, periódicos, discos, entre outros tais como cartazes, que procuravam dar a conhecer algumas das personalidades do movimento de libertação, entre as quais Samora Machel.14 Outro detalhe de informação foi o enfatizar de datas importantes tais como o aniversário da morte de Eduardo Mondlane, a 3 de fevereiro, e o início da “luta armada de libertação do poder popular”, a 25 de setembro.15 Aos poucos, a FRELIMO começava a entrar no discurso quotidiano, sem os cuidados ou filtros a que os tempos de outrora obrigavam.

  • 16 Para uma lista completa, vide Souto (2011).

9Paralelamente, e tal como notou a historiadora Amélia Souto (2011), “entre maio e julho, foram criados cerca de 27 partidos e organizações políticas”, que defendiam, por sua vez, diferentes soluções para o impasse político que se vivia em Moçambique: desde a criação de um estado federado independente, passando por grupos que defendiam exclusivamente os interesses dos negros ou dos brancos.16 Existiam ainda alguns que estariam associados a antigas estruturas do Estado Novo, tais como a Frente Comum de Moçambique (FRECOMO) de Joana Simeão; outros, por sua vez, olhariam para os casos rodesiano e sul-africano como modelos para uma possível “independência branca à Ian Smith”, como parece ter sido o caso da Frente Independente de Convergência Ocidental (FICO), conotada com a “extrema-direita”. O seu líder – Manuel Gomes dos Santos – veio a ter um papel de destaque no assalto ao RCM do dia 7 de setembro, o denominado “locutor Manuel” (Cardoso 2014, 182). Entre os vários partidos e movimentos pré-existentes ou recém-criados, os Democratas de Moçambique assumiram o seu apoio inequívoco à FRELIMO, apesar de, como notou Machava (2015, 64), desconhecerem, à época, o “projeto de transformação social que a FRELIMO já vinha experimentando nas chamadas zonas libertadas e que seria uma das bases da sua política exclusivista e vanguardista”.

  • 17 “Não se pergunta a um escravo se quer ser livre”, Voz da Revolução, 22, maio-junho de 1974, pp. 2 (...)

10Referendar a independência e realizar eleições seriam, por sua vez, as soluções defendidas pelo então Presidente da República de Portugal, o general António de Spínola. Todas estas opções foram, no entanto, liminarmente recusadas pela Frente de Libertação, argumentando, primeiramente, que “não se pergunta a um escravo se quer ser livre”, clarificando em seguida que ir a votos com os partidos recém-formados seria um desrespeito para com dez anos de luta armada, lembrando que o engajamento da população na guerra era um sinal inequívoco da sua vontade de independência. Para a FRELIMO o objetivo era claro: a independência total e completa de Moçambique e o reconhecimento do seu movimento como o “representante legítimo (e único) do povo moçambicano”.17

11A partir de junho de 1974 iniciaram-se negociações entre a FRELIMO e o governo português em Lusaca. A Frente de Libertação, que acabara de abrir novas frentes de guerrilha em Manica e Sofala, deixou claro que o cessar-fogo só aconteceria quando fosse definida uma data para a independência. Para os representantes portugueses, continuar a guerra não era uma opção viável, já que esta poria em causa as razões e os valores da Revolução de Abril. A assinatura dos acordos ficou então marcada para o dia 7 de setembro de 1974, abrindo porta à transferência total de poder para a FRELIMO, sem eleições, e após um curto governo de transição de nove meses. Esta solução não agradou a uma parte significativa da população, principalmente (mas não exclusivamente) branca. Enquanto alguns residentes arrumavam os seus pertences para abandonarem definitivamente Moçambique, outros, ainda inspirados pelo golpe do dia 25 de abril decidiram prosseguir a sua própria revolução e tomar de assalto o Rádio Clube Moçambique, numa derradeira tentativa de fazer abortar a assinatura dos Acordos de Lusaca.

12Relativamente à memória acerca do que sucedeu a 7 de setembro, os seus protagonistas usaram como razão para o golpe uma situação que teria acontecido no dia anterior, quando uma carrinha que ostentava uma bandeira da FRELIMO fazia arrastar a bandeira portuguesa pelo asfalto. Segundo o livro de uma das participantes no golpe – Clotilde Mesquitela –, os objetivos do movimento poderiam ser resumidos a três pontos centrais, que nunca chegaram a ser enunciados nas emissões da rádio, durante os três dias que durou a invasão: “1º Considerar a independência como irreversível; 2º Formação de um governo de Moçambique com a participação de todas as correntes políticas sem qualquer distinção de cor e garantindo desde logo a maioria aos grupos pretos, incluindo neles a própria FRELIMO em igualdade com os outros; 3º Preparação de eleições, desde logo, no esquema anterior” (Mesquitela 1977). A análise de alguns excertos sonoros desta “revolução” não sustentam estas premissas.

2. Alguns excertos da emissão

13No dia 7 de setembro, o Rádio Clube de Moçambique tinha como principal prioridade informativa a cobertura dos Acordos de Lusaca. Tudo parecia normal até ao momento em que um standard de Jazz é abruptamente interrompido por uma voz desconhecida do público, que se fez ouvir com a seguinte declaração:

  • 18 Documento sonoro dos arquivos digitais da Rádio Moçambique. Nome do ficheiro: “D.13.74 Movimento (...)

Daqui fala-vos o Rádio Clube [momentaneamente interrompido por música] neste momento uma emissora livre, tomada pelo povo, senhoras e senhores ouvintes. Nós proclamamos a nossa independência. O povo português, moçambicanos como eu, um ex-combatente do exército que combateu contra os assassinos da FRELIMO que conhece tão bem como todos nós moçambicanos conhecemos... quem é a FRELIMO, quem é o seu chefe, que inteligência pode ter [...] senhores ouvintes estamos a transmitir de uma emissora completamente livre, desoprimida, que estava oprimida pelas forças que a chamavam, portanto, livres, mas que eram mais fascistas do que o fascismo de Marcelo Caetano. Senhoras e senhores ouvintes, nós neste momento proclamamos a nossa independência. Pedimos a vossa comparência junto do Rádio Clube de Moçambique para mostrar a vossa adesão, a vossa adesão, portanto, a este movimento. Forçámos a entrada no Rádio Clube Moçambique, destruímos... procuramos não destruir, não foi porque nós queremos, tentamos, portanto, enfrentar os nossos irmãos moçambicanos que à porta de armas defendiam, portanto, cumprindo as ordens de traidores como Mário Soares [...].18

  • 19 Entrevistas a António Alves da Fonseca (cf. nota 5).
  • 20 Documento sonoro dos arquivos digitais da Rádio Moçambique. Nome do ficheiro: “D.13.74 Movimento (...)

14Foi com estas palavras, proferidas por uma voz enérgica e ofegante, que se deu início ao movimento. Assim se soube que o RCM estaria sob o controlo de um grupo que repudiava os Acordos de Lusaca e a entrega de Moçambique à FRELIMO. Sob a mira de armas de fogo, os locutores foram obrigados a ler comunicados e a agradecer as manifestações de apoio que, entretanto, chegavam via telex, muitas delas por parte da Rodésia e da África do Sul.19 Os locutores fizeram apelos para que os militares garantissem a normal circulação nas estradas que ligavam a fronteira da Rodésia e a cidade da Beira, e a fronteira da África do Sul em Ressano Garcia e a cidade de Lourenço Marques: “Atenção camaradas de Joanesburgo, atenção camaradas de Pretória, atenção camaradas de Salisbúria, chegou a hora da liberdade. Entrem na vossa casa. Venham ajudar a liberdade em Moçambique”.20 Este discurso foi particularmente esclarecedor em relação aos objetivos políticos dos organizadores do golpe: tudo indiciava que pretendiam uma espécie de “independência branca” em Moçambique, tendo como modelos os casos rodesianos e sul-africanos. Perante a conjuntura política que se aproximava era expectável que os dirigentes do apartheid estivessem satisfeitos com o que se passava em Lourenço Marques – afinal, a iminente entrega de Moçambique a um movimento revolucionário com ideologias políticas marxistas e com um discurso marcadamente antirracista não seria, de todo, uma conjuntura ideal para a manutenção da segregação racial promovida nos países vizinhos.

15Quem foram, pois, os dirigentes deste golpe? Gonçalo Mesquitela era um alto representante do Estado Novo em Moçambique; Velez Grilo era um ex-dirigente do PCP que, após ter sido expulso do partido, assumiu funções na Câmara Municipal de Lourenço Marques; Daniel Roxo era um caçador da região do Niassa que, com o início da guerra, criou e comandou um grupo de milícias de contraguerrilha; Manuel Gomes dos Santos, mais conhecido como “locutor Manuel”, era um vendedor de carros que fundou a Frente Independente de Convergência Ocidental (FICO), conotado com a extrema-direita; alguns conhecidos dissidentes da FRELIMO também manifestaram o seu apoio ao golpe, entre os quais Uria Simango, o padre Mateus Gwenjere e Joana Simeão, esta última fundadora de vários partidos (entre os quais a FRECOMO), e que, segundo as narrativas oficiais da FRELIMO, terá alegadamente colaborado com a PIDE-DGS (Cardoso 2014, 255-256; Souto 2011, 201). Em suma, tratou-se de pessoas que estariam de alguma forma associadas à política e a instituições do Estado Novo.

16As gravações sonoras da emissão radiofónica deixam perceber a ambiguidade da situação. O conceito de “independência” aqui aplicado ganha nuances peculiarmente complexas perante a repetição exaustiva do hino nacional português, intercalado com discursos e comunicados que apresentam ideários aparentemente contraditórios: ora referem querer uma “independência”, ora fazem referências identitárias que misturam noções de “português” e “moçambicano”, sempre com particulares “vivas” a Portugal, com claras alusões à Revolução de 25 de Abril pela difusão repetida da canção ‘Grândola, Vila Morena’, do cantautor português José Afonso, que serviu de código para a ação revolucionária em Portugal. A declaração seguinte é representativa da contradição discursiva divulgada:

  • 21 Idem, 02m:24s.

Queremos as forças armadas a tomar conta do governo central, totalmente independente de Portugal, para podermos mostrar que somos portugueses, que damos a alma de Portugal para fazer que Moçambique seja grande em português, um Moçambique moçambicano de todos os moçambicanos. [...]. Ontem a bandeira portuguesa foi arrastada. Não podemos consentir. Moçambicanos somos, temos aqui as nossas raízes, temos aqui os nossos filhos, queremos continuar em Moçambique como país multirracional [multirracial?] [...] Viva Portugal. Viva o Moçambique Novo.21

17Um outro momento particularmente revelador aconteceu quando José dos Santos Gil, um sexagenário a viver em Moçambique há mais de três décadas, como se autoidentificou, falou em direto na antena do RCM, acompanhado pela ‘Grândola, Vila Morena’ que como canção de fundo se fundia, e até se confundia, com a sua voz, repetida até à exaustação durante os dez minutos em que durou a sua declaração. A interessante justaposição sonora era propositada, já que a repetição da mesma canção implicava recuar manualmente o braço do gira-discos, contribuindo, como veremos adiante, para a aposição de significados líricos e semânticos aparentemente contrastantes:

  • 22 Idem, 06m:50s.

Todas as raças e nacionalidades devem estranhar a voz habitual do Rádio Clube Português [quereria dizer Moçambique?] neste momento transformado em Rádio Nacional de Portugal... de Moçambique [corrigiu imediatamente]. Está ao microfone um velho de 66 anos de idade e de 33 de permanência contínua em Moçambique. Povo moçambicano, o povo unido, o povo oprimido, tomou hoje, por volta das dezoito horas uma decisão extraordinariamente bela e digna dos mais belos momentos da história portuguesa. O Rádio Clube de Moçambique acaba de ser tomado pelo povo, resistindo a todas as forças militares e policiais que se contam às centenas [ouvem-se em simultâneo os passos iniciais de ‘Grândola, Vila Morena’]. Essas briosas forças do exército e da polícia compreenderam bem os anseios do povo, e sem cobrar a sua dignidade, permitiram que nós tomássemos de assalto, [ouve-se ‘Grândola, Vila Morena’] mas depois de ter sido recusada a nossa colaboração franca, honesta, e verdadeiramente portuguesa. [ouve-se Terra da fraternidade] [...].22

  • 23 Idem, 16m:30s.

18As declarações que se seguiram continuam, de um modo geral, a enfatizar a ideia de uma “independência” e de “liberdade”, ainda que ostentando, à semelhança dos supracitados excertos, um discurso que se aproximaria simultaneamente de uma noção de “nacionalismo português”, por sua vez contrária a uma ideia de independência, sobretudo aquela preconizada nos Acordos de Lusaca. São feitos vários apelos aos militares que estavam estacionados em todo o território moçambicano – pedindo aos marinheiros, fuzileiros e polícias que garantissem a segurança da cidade de Lourenço Marques, sem esquecer a segurança das antenas de transmissão que se encontravam na Matola e que, por sua vez, garantiam a radiodifusão daquelas mesmas palavras por todo o território. Um ponto interessante a reter é o apelo de Gomes dos Santos (também ao som da ‘Grândola’), para que se “respeite a bandeira nacional. Que toda gente respeite o Presidente da República. [...] Não falem mais em Mário Soares e Almeida dos Santos e a restante camarilha”.23 Esta mensagem confirma a ideia de que esta não seria necessariamente uma operação de “independência”, aparentando muito mais ser um exercício de lealdade para com o presidente Spínola e o patriotismo português.

19Um outro comunicado, desta vez do grupo autodenominado Dragões da Morte, a quem, posteriormente, foi atribuída grande parte das mortes registadas no decorrer dos tumultos, divulgava, como 1º boletim informativo, o seguinte:

  • 24 Documento sonoro dos arquivos digitais da Rádio Moçambique. Nome do ficheiro: “D.13.74 Movimento (...)

Os Dragões da Morte de Moçambique vêm por este meio informar o povo de Moçambique o seguinte: somos uma organização clandestina de todas as raças e credos naturais de Moçambique e espalhados por todo o território com o fim de pôr termo às guerrilhas dentro do nosso território, venham elas de onde vierem e pôr termo às conversações com a FRELIMO, nem que tenhamos de começar a fazer terrorismo urbano, e para fazer calar os inconscientes que dão vivas à FRELIMO. Qual é o nosso ativo? Presentemente é de 29 500 homens armados de todas as raças e credos, por todo o Moçambique e fora dele, e ainda temos do nosso lado sete milhões e meio de moçambicanos de todas as raças que não querem dentro de Moçambique os assassinos da FRELIMO. O que nós queremos: 1º Paz para os moçambicanos e para aqueles que aqui vivem; 2º Não autorizar a entrada dos assassinos da FRELIMO no governo de Moçambique; 3º Que todos os jornais de Moçambique cessem por completo de falar da FRELIMO; 4º Que os jornais de Moçambique publiquem nas primeiras páginas as atrocidades que a FRELIMO tem vindo a praticar em Moçambique; 5º Que os estudantes inconscientes de Lourenço Marques cessem de dar vivas à FRELIMO. Aos pais dos mesmos avisamos que não nos responsabilizamos pelo que possa acontecer aos vossos filhos; 6º Que os senhores democratas de Moçambique cessem definitivamente com as parvoíces, a dizer que a FRELIMO é que representa o povo; 7º Que todos aqueles que têm compartilhado com a FRELIMO em almoços, e que andem a fornecer medicamentos e entrar em conversações com os assassinos, que cessem imediatamente essa atividade, pois não nos responsabilizamos com o que poderá acontecer. Em nosso poder temos uma lista completa de todos aqueles que andam a auxiliar a FRELIMO e não fazemos represálias a essas pessoas desde que as mesmas a partir desta publicação deixem essa atividade; 8º Que seja dada a independência de Moçambique, mas apenas aos moçambicanos; 9º Que as Forças Armadas em Moçambique façam recuar os assassinos da FRELIMO até fora das fronteiras de Moçambique; 10º Que sejam tomadas as providências necessárias contra as greves em Moçambique porque as mesmas estão a arruinar a economia de Moçambique; 11º Que o comando chefe das Forças Armadas de Moçambique mande reforçar as tropas e milícias ao longo dos caminhos de ferro de Tete, entre Beira-Tete e Beira-Rodésia e as respetivas instalações portuárias.24

20Proferido com um tom intimidatório, este comunicado pode ajudar-nos a compreender os valores que norteavam um dos grupos responsáveis por esta insurreição e pela escalada de violência na cidade: sobressai um discurso ameaçador contra a FRELIMO e todos aqueles que comungassem dos valores marxistas e comunistas da Frente de Libertação, tendo sido feitas ameaças diretas ao grupo Democratas de Moçambique e à Associação Académica. Importa salientar que as sedes de ambas as instituições foram atacadas e saqueadas no decorrer dos tumultos. Tal como o anterior, este discurso foi também acompanhado de mais uma canção pertencente ao cancioneiro da Revolução de Abril: a ‘Cantata da Paz’, de Francisco Fanhais. Uma vez mais, uma situação semântica paradoxal entre os valores apregoados na canção e os que são proferidos no supracitado discurso. Que relação apontaremos, pois, entre as palavras de ordem e as músicas radiodifundidas pelo Movimento Moçambique Livre? Apresentarei em seguida uma análise do som discursivo e musical das emissões.

3. A construção sonora do Movimento Moçambique Livre

[Ouvia] através do RCM assaltado e ocupado apelos à intervenção de sul-africanos, rodesianos e comandos de Montepuez. E tinha registado a lengalenga das intervenções dos cavalheiros que em primeiro lugar deitaram a mão aos microfones, exibindo sem-cerimónia o desvario que ia dentro da casa da rádio, onde não havia rei nem roque e muito menos um fio de intervenção política coerente. A própria escolha das músicas, que a partir de certa altura começaram a intervalar a torrente de palavras ocas, disso foi prova: a “Grândola Vila Morena” cantada pelo Zeca Afonso, o “Avante, Camaradas” interpretado pela Luísa Bastos, o “Vemos, Ouvimos e Lemos”, do Francisco Fanhais, e, repetido até à exaustão, o instrumental da Winchester Cathedral... Salvas as devidas distâncias, quase parecia o PREC, misturado embora, de quando em vez, com batuques africanos e canções da FRELIMO – o que lhe dava o toque chique de uma África branca do reviralho... Mas era apenas a bagunça e a facilidade do que estivesse mais à mão. (Cardoso 2014, 246)

21Esta citação de Ribeiro Cardoso é particularmente elucidativa da confusa relação dos conteúdos programáticos radiodifundidos durante os quatro dias em que o Palácio da Rádio se tornou no “estado-maior” do Movimento Moçambique Livre. A “construção sonora” desenvolvida durante a ocupação, em particular no que se reporta às canções usadas, parece estar em manifesta dissonância com as ideologias políticas anunciadas pelos protagonistas deste golpe. A canção ‘Grândola, Vila Morena’, de José Afonso, seria naquela época indissociável da Revolução de Abril, por ter sido usada pela Rádio Renascença, em Portugal, como segunda senha para a ação dos militares, emitida na madrugada de 25 de abril de 1974 às 00:30h. Instituiu-se assim enquanto símbolo máximo da liberdade de expressão e da eclosão de um Portugal novo e livre do fascismo (Côrte-Real 1996; 2010, 10-18). Por sua vez, ‘A Cantata da Paz’ interpretada por Francisco Fanhais, com texto de Sophia de Mello Breyner, foca-se nas atrocidades cometidas em Hiroxima, no Vietname e em África, definidas como se se tratasse de um “pecado organizado” pela humanidade (Raposo e Nunes 2010, 455-457). Não deixa de ser curioso que uma canção que critica fortemente as atrocidades de guerra, inclusivamente com referência às guerras de libertação em África, tenha sido propositadamente radiodifundida como som de fundo para um comunicado proferido com tom ameaçador e nada pacificador pelo grupo Dragões da Morte. É ainda pertinente salientar que ambos os artistas – Francisco Fanhais e José Afonso – foram fortemente perseguidos pela PIDE. José Afonso tinha fortes ligações com Moçambique, onde vivera e ensinara na cidade da Beira.

22A intensidade emocional do momento revolucionário, acrescida da função de divulgação radiofónica noticiária e da complexidade política da situação, envolvendo libertação dupla, de estado ditatorial num caso e colonial no outro, à distância de poucos meses, contribuiu para a aparente falta de senso relacional dos conteúdos sonoros divulgados, partilhando referências musicais. Neste sentido, é interessante notar a versatilidade do repertório empregue, usando as mesmas músicas que foram instrumentais para as mudanças políticas ocorridas em Portugal a 25 de abril para, em Lourenço Marques, simbolizar uma mudança de regime governamental a 7 de setembro de 1974. Esta mudança preconizaria, aparentemente, um grau de liberdade apenas intermédio, já que à total independência potencialmente ligada ao simbolismo de ‘Grândola, Vila Morena’ se associou, na situação ambígua da tomada do RCM em Lourenço Marques, o som do hino de Portugal, e os vivas ao país que era afinal a potência colonizadora da qual a colónia se queria libertar. Importa também argumentar que os insurretos estariam receosos de um eventual regime de partido único totalitário, de teor marxista-leninista e comunista, que os perseguisse com base em premissas raciais. Contudo, não obstante a perspetiva adotada, tratou-se de uma construção sonora ambígua, quase paradoxal, como terei a oportunidade de demonstrar nos parágrafos seguintes.

23A julgar pelo historial dos assaltantes, bem como pelas suas conexões com as estruturas de poder do Estado Novo, é interessante notar que estes acabariam por se apropriar do cancioneiro revolucionário que teria sido usado contra eles próprios há menos de quatro meses, bem como a rapidez da metamorfose de significado associada a um repertório que até ao 25 de Abril estaria proibido, mas que depois acabaria por integrar um imaginário musical coletivo conotado com valores de luta, revolução e liberdade. O próprio RCM teria contribuído para reforçar esta relação após o 25 de abril de 1974, ao reproduzir livremente as canções que teriam sido expressamente proibidas durante o período colonial, e trazendo a público algumas das situações em que a censura foi particularmente vigorosa no plano radiofónico. Alves da Fonseca, na época responsável pelos programas da empresa Produções GOLO, explica um desses casos:

  • 25 Entrevistas a António Alves da Fonseca (cf. nota 5). A relação entre os conceitos “moral” e “trau (...)

Em 1973 nós tínhamos na rádio muitos dos discos que estavam proibidos pela censura. Um dos nossos produtores do programa das 22 horas tocou um determinado disco, de um determinado cantor português... e no dia seguinte vim a saber que o programa “Extensão 10” tinha sido proibido de ir ao ar, mas que ninguém me conseguia explicar a razão. Pedi uma audiência com o governador, que me foi concedida. Ele leva-me para um gabinete e eu expliquei que nós apenas montávamos os programas e que enviávamos a bobine para a Rádio, e que depois era da responsabilidade da Rádio decidir se passava ou não. Nesse momento entra o diretor da PIDE e ele disse-me “Olha lá… então tu não sabes porque é que o programa foi retirado?” E eu respondi “não, sinceramente não”. “Ah, mas tu tás a brincar, vocês andam a pôr aquela canção que tira a moral aos soldados”.25

  • 26 Tudo indica que a censura musical nas colónias funcionava de forma diferente que na metrópole: po (...)

24Tratava-se de ‘Menina dos Olhos Tristes’ por Adriano Correia de Oliveira, uma canção com um poema de Reinaldo Ferreira musicado por José Afonso, cuja letra fala no “soldadinho” que vem “numa caixa de pinho do outro lado mar”, numa clara alusão crítica às guerras coloniais. Como consequência, o programa foi cancelado e expurgado da grelha do RCM, obrigando a empresa GOLO a criar um novo programa com um novo nome. Mais tarde, “quando se deu o 25 de Abril, naqueles meses que antecederam a independência, o programa voltou ao esquema e ao nome anterior – Extensão 10 –, e aí contámos esta história da censura na rádio e explicámos a razão para o programa ter acabado. A partir dessa época passou a tocar-se não só esse como muitos outros discos proibidos” – asseverou-me Fonseca.26 Seria, portanto, do conhecimento público que todas as supracitadas canções usadas pelo Movimento Moçambique Livre pertenciam ao cancioneiro de resistência ao Estado Novo – nem que seja porque estas eram desde abril diariamente repetidas nas emissões do Rádio Clube, enquanto sinal inequívoco de uma mudança política e, sobretudo, de liberdade de expressão. Uma outra incongruência diz respeito à radiodifusão de hinos revolucionários da FRELIMO, pelo menos nas horas iniciais do movimento, quando ainda não existiam diretrizes bem definidas, entrando assim em manifesta contradição com as palavras de ordem entoadas contra o movimento de libertação; afinal, foi contra os pressupostos dos Acordos de Lusaca e a FRELIMO que esta insurreição se deu.

  • 27 Entrevistas a António Alves da Fonseca (cf. nota 5).
  • 28 “A definição de «Acção Psicológica» que consta no manual «O Exército na Guerra Subversiva» consis (...)

25Qual será a explicação para esta peculiar seleção musical? Ribeiro Cardoso resume as músicas radiodifundidas como uma “bagunça e a facilidade do que estivesse mais à mão”. Será assim tão simples ou haverá uma justificação mais sofisticada? Segundo o produtor radiofónico António Alves da Fonseca, “eles ficaram com a discoteca à sua mercê e passaram o que lhes apetecia. Em princípio seria o operador que escolheria as músicas. Passaram música normal, de emissão, e notei que passaram muitas músicas que teriam sido proibidas no passado. Não me parece que estivessem particularmente preocupados com o conteúdo da música, mas sim se ela era, ou não, portuguesa”.27 Aurélio Le Bon, o “comandante Galo” responsável pela senha que marcou o fim da insurreição, apresentou-me uma outra perspetiva, que pode ser enquadrada numa matriz de “ação psicológica” ou de “acção psicossocial” que teria apreendido na sua formação militar no exército português:28

  • 29 Entrevista a Aurélio Le Bon, empresário e agente cultural, realizada no restaurante “Taverna Doce (...)

De meia em meia hora passavam o hino nacional e o ‘Grândola, Vila Morena’. Depois passavam aquelas músicas da revolução de Portugal e eu não percebia o porquê. Fazia-me confusão. Porque passariam aquelas músicas quando nitidamente o que eles queriam era uma independência diferente, à Ian Smith, como tudo de resto indicava? Mais tarde percebi que o objetivo daquelas canções era o de iludir a população para que ficasse a pensar algo do tipo “estamos juntos”; não como eles querem, mas sim como nós queremos. Ou seja, quiseram associar as músicas a uma ideia de revolução e libertação – aquela em particular que eles defendiam.29

26João de Sousa, na época locutor ao serviço da empresa Produções GOLO que se encontrava no dia 7 de setembro no RCM, confirmou-me que a música difundida nesses dias era fundamentalmente portuguesa e “de artistas associados à esquerda e que tinham sido proibidos antes do 25 de Abril. Por incrível que possa parecer, um movimento daquela natureza a tocar Zeca Afonso, Padre Fanhais e coisas do género, fez-me alguma confusão. Eu pensei imediatamente… ‘isto é estranho, não faz sentido’, quer dizer, um movimento de extrema-direita não vai utilizar estas músicas”. Transcrevo seguidamente o diálogo que trocámos sobre este assunto:

  • 30 ‘África à Noite’ foi uma rubrica do RCM da iniciativa de José Mendonça, chefe de produção do RCM, (...)
  • 31 Entrevista a João de Sousa, jornalista na RM, realizada no Centro Social da RM, na Rua da Rádio, (...)

Autor: Eles é que escolhiam as músicas ou simplesmente passaram o que estaria “à mão”? João de Sousa: Bom, isso já não sei. A mim deram-me as músicas que eu teria de tocar. Deram-me os discos [...]. Autor: Então possivelmente houve um processo de escolha… JS: Deve ter havido, sim, um processo de escolha, deve ter havido entre eles alguém que teria definido o tipo de música que haveriam de passar... Não posso deixar de assinalar, contudo, que eles também passaram alguma música moçambicana. Autor: Passaram? JS: Sim, passaram música moçambicana, de grupos mais conhecidos… Autor: Djambo, João Domingos? JS: Sim, fundamentalmente isso. Autor: Gravações do programa ‘África à Noite’,30 portanto… JS: Exatamente, do programa ‘África à Noite’. Num ou noutro caso passaram também o Fanny Pfumo, que também era uma referência na altura, mas maioritariamente, no que diz respeito a música moçambicana, era o Djambo e João Domingos. Ainda assim convém referir que foi numa percentagem extremamente reduzida comparativamente à música portuguesa que passaram. Autor: E o hino nacional português? JS: Esse era tocado de 10 em 10 minutos. Eu nunca toquei tantas vezes o hino nacional português na minha vida de profissional como naquele dia. Porque liam-se três, quatro, cinco, seis mensagens, e ao fim de 10 mensagens lá ia para o ar o hino nacional português. Autor: Então, mas não queriam eles a independência? JS: Pois, há coisas que para mim não batem muito certo. Eles não estavam nada bem organizados. Eu senti isso por uma razão muito simples, num determinado momento quando eu fui à direção do movimento para saber se no dia seguinte iria fazer o relato de futebol [...] eles divergiam de opinião: uns diziam que o relato arrastava muita gente e assim aproveitam para passar a mensagem a mais pessoas, outros diziam que não valia a pena fazer o relato. E acabou por não se fazer o relato. [...] Autor: Onde param as bobines das gravações? JS: A polícia fez aqui um rastreio das pessoas que teriam participado e então todo o tipo de material da emissão foi recolhido para a investigação. Autor: Entretanto nunca entregaram, venderam ou talvez gravaram por cima... JS: Naquele tempo em que as dificuldades de aquisição de material eram grandes, às vezes perdia-se a noção do histórico que é uma bobine daquelas e, não havendo bobines, gravava-se por cima.31

27Os “grupos moçambicanos” referidos por João de Sousa estavam associados à categoria Marrabenta que, como Freitas (2020, 55-58) demonstrou, foi fortemente promovida nas emissões do RCM durante o período colonial enquanto produto de uma alegada relação harmónica e sinérgica entre os portugueses e as populações nativas. Neste sentido, e no contexto do supracitado ideário, a Marrabenta estava enquadrada na categoria “folclore” da província portuguesa de Moçambique que, num contexto de ambiguidade identitária, acabou por ser instrumentalizada pelos assaltantes enquanto símbolo cultural comum às populações colonas e autóctones. Assim, e à luz da supracitada ação psicossocial subversiva (aludida por Le Bon em relação ao amplo uso de ‘Grândola’), a Marrabenta pode ter sido usada para promover a ideia de que o movimento seria “inclusivo” e que não serviria apenas os interesses da população “branca”.

28Perspetivas à parte, e sendo difícil recolher as visões dos protagonistas do golpe, sobretudo no que se reporta à tipologia de “construção sonora” pretendida para o seu projeto de nação – os livros por eles editados não desenvolvem este assunto –, a única certeza que temos a este respeito foi a decisão de que o hino nacional ‘A Portuguesa’ e a canção ‘Grândola, Vila Morena’, de José Afonso, fossem repetidos a cada meia hora. Esta decisão é duplamente contraditória: primeiro, pelo facto de recorrer a um símbolo musical inequivocamente associado à esquerda revolucionária, isto quando o movimento era maioritariamente composto por elementos afetos à extrema-direita; e, por fim, pelo facto de o hino nacional ‘A Portuguesa’ ser repetido até à exaustão enquanto seria reclamada uma “independência” para o território, não obstante a variante defendida.

4. As sequelas de um golpe e algumas considerações finais

29Após a infiltração no RCM de um comando do exército português que, entretanto, se aliara à FRELIMO, foi difundida a senha que faria parar as multidões enfuriadas que avançavam dos subúrbios rumo ao centro da cidade, evitando assim um autêntico massacre. Apesar de Lourenço Marques ter retomado uma aparente normalidade nos dias seguintes, estes acontecimentos contribuíram para que as relações entre a FRELIMO e o governo português se mantivessem tensas ao longo de todo o processo de transição. Por outro lado, este e outros conflitos fizeram com que a fuga em massa de portugueses se intensificasse, marcando determinantemente o soundscape “que a partir de certa altura começou a dominar as emotivas e desesperadas noites de Lourenço Marques”, refere Cardoso (2014, 183-184), “onde muitos brancos, alguns ali radicados há muito tempo, de martelo em punho iam fechando, com raiva, tristeza e pregos, caixotes e caixotes prenhes de bens pessoais e intransmissíveis que iriam começar a zarpar por via marítima para a metrópole”.

30António Alves da Fonseca foi dos primeiros funcionários e dirigentes a regressarem à sede do Rádio Clube após ter sido neutralizado o golpe, encontrando no Palácio da Rádio um verdadeiro cenário de guerra. Nas suas palavras:

  • 32 Entrevistas a António Alves da Fonseca (cf. nota 5).

A rádio parecia uma casa fantasma. As casas de banho estavam cheias de papel higiénico espalhado por todo o lado. Eles partiram tudo. O auditório tinha muitas balas, armas, e muito boas bebidas alcoólicas. Ao que parece eles embebedavam-se para ganharem forças e aguentarem aquela situação. Depois entrei nas cabines e li aqueles telex todos que eles tinham recebido, da África do Sul por exemplo, em que manifestavam o seu apoio ao movimento. Eles tinham mesmo muito apoio. Lembro-me que fiquei realmente impressionado. Em termos técnicos a rádio estava também num caos. Na época existiam cinco canais de emissão e eles juntaram tudo. Ou seja, deixou de haver a emissão nacional, a Voz de Moçambique e a LM Rádio; era tudo uma emissão única. No fundo, eles acabaram por criar ali uma potentíssima estação de rádio com cinco emissores a transmitir 24 sobre 24 horas para todo o lado. Eu tive de separar as ligações e reorganizar as emissões. Tive de chamar os locutores todos, um por um, da emissão A, da Voz de Moçambique, tudo... Naqueles dias, os telefones da rádio não paravam: toda a gente telefonava para saber do pai, da mãe, do irmão... porque efetivamente morreu muita gente e a rádio era o único sítio onde se podia dar informação em tempo real.32

31Este discurso exemplifica o quadro catastrófico da queda do Rádio Clube de Moçambique e do seu Palácio da Rádio – um dos símbolos coloniais que mais orgulhou os colonos – que acabaria por sucumbir ali, numa espécie de metáfora para a iminente queda do Império. Porque escolheram o Rádio Clube de Moçambique e não outros edifícios com aparente maior significado político, tais como a Câmara Municipal de Lourenço Marques ou o Palácio da Ponta Vermelha onde residia o governador provincial? O RCM era visto como um dos mais importantes símbolos da colonização portuguesa em Moçambique. Além de ser uma obra monumental, com o seu Palácio da Rádio e os seus retransmissores que cobriam todo o território moçambicano, foi sobretudo um importante instrumento de propaganda para a edificação e manutenção do sistema colonial. Perante o papel determinante que a rádio teve para o 25 de Abril de 1974 na metrópole, seria natural que os protagonistas deste golpe quisessem mimetizar esse evento, reproduzindo, inclusivamente, o repertório que ficou associado a essa revolução, mesmo que os propósitos políticos fossem antagónicos ao seu significado. Por outro lado, não podemos esquecer que, além do referido simbolismo inerente à escolha do RCM, existia também uma razão material, já que este seria o único edifício que teria a capacidade de informar e radiodifundir por todo o território as diretrizes do Movimento Moçambique Livre. Por conseguinte, controlar o mais importante e abrangente meio de comunicação de Moçambique seria meio caminho andado para o sucesso do movimento.

  • 33 Para a transcrição do discurso do Presidente Samora Machel, veja-se nota 4 deste artigo.
  • 34 Sobre a “cultura de denúncia” em Moçambique independente, vide Meneses (2015).

32Todavia, o golpe fracassou: os Acordos de Lusaca não foram evitados, e no processo lamentaram-se milhares de mortes. Em cumplicidade com polícias e militares portugueses, os protagonistas do golpe conseguiram fugir para os países vizinhos, em particular para a África do Sul. As marcas do 7 de Setembro permaneceram fortes nos anos seguintes, com os invasores a serem referidos por Machel como “brancos reaccionários”, “imperialistas”, “criminosos de guerra” e “agentes da PIDE”,33 sendo usados como exemplos de “inimigos” da revolução, que poderiam ainda estar infiltrados nas estruturas governamentais e que ao serem descobertos deveriam ser denunciados.34 Nos meses seguintes a “fúria” do 7 de Setembro serviu de inspiração para que alguns artistas, entre os quais Fanny Pfumo e Gabriel Chiau, criassem canções inspiradas nestes eventos. A canção de Pfumo incluía, no seu texto, a seguinte frase “Avalandi va Machel va karata! Va hisi mimovha hi masiku mabidri....”, que, segundo a tradução livre de Samuel Matusse (2009), significa “os pretos de Machel são maus! Queimaram carros em dois dias”, referindo-se aos vários distúrbios que aconteceram na capital moçambicana. Segundo Matusse, o disco que incluía a canção, produzido pela Produções 1001, foi banido e retirado das discotecas “onde já estava a ter sucesso de venda”, acrescentando ainda que “o banimento do disco se devia ao cunho racista do tema ‘Valandi va Machel’ (pretos de Machel), e ao facto de que os desacatos do 7 de Setembro era caso para esquecer e não para ser vangloriado”.

33As buscas continuaram nos meses seguintes. Numa reunião realizada a 29 de agosto de 1975, dois meses após formalizada a independência, com trabalhadores do sector de informação do RCM, Samora Machel, presidente da então República Popular de Moçambique, deixou clara a necessidade de detetar e expulsar quaisquer elementos que tenham participado diretamente na insurreição:

  • 35 Documento sonoro dos arquivos digitais da Rádio Moçambique. Nome do ficheiro: “D.111 e 112.75 Reu (...)

Samora Machel: Foram para onde aqueles que tomaram a rádio no 7 de setembro? Sansão Mutemba: Bem, alguns fugiram, alguns devem continuar… Samora Machel: Aonde? Lá na rádio? Vocês os conhecem? Não os detetam? Porque é que não fazem uma busca... uma perseguição-busca? [risos na audiência] Voz na audiência: Eram presos e soltá-los? Samora Machel: Deviam ser expulsos, esses. Prendê-los e expulsá-los daqui. Pô-los nas fronteiras... na fronteira da Rodésia e na fronteira da África do Sul. Podem fazer essa campanha? Denúncia na rádio [...] podem fazer? [ouvem-se vozes na audiência, impercetíveis] Samora Machel: Bem, vamo-nos organizar para os denunciar… senão há uma desenfreada busca… [risos] Voz na audiência: Porque não fazemos o que fizeram os pides? Samora Machel: Dispará-los na rua? Não queremos sujar a nossa terra a matar pessoas, não é a política da FRELIMO; só expulsá-los, pô-los na fronteira, depois vão fazer a vida deles”.35

34Depois da independência, o dia 7 de Setembro passou a ser celebrado com estatuto de feriado nacional que assinala o Dia da Vitória, marcando o fim de uma longa e extenuante guerra. Foi o dia do assalto à sede do Rádio Clube de Moçambique, numa derradeira investida de alguns portugueses contra a entrega do território à FRELIMO. Marcou, por fim, o dia em que o império colonial português colapsou definitivamente, para nunca mais se levantar. Além de trazer novos dados para compreender a história da insurreição ao RCM, este artigo pretendeu demonstrar a importância que os documentos sonoros podem ter para descortinar e clarificar, por um lado, posicionamentos ideológicos de cariz nacional e nacionalista e explorar, por outro, as conceções, por vezes semanticamente opostas, entre o som musical e o discurso político e ideológico.

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Notas

1 O RCM foi uma estação de rádio privada criada em 1934 em Lourenço Marques, tornando-se numa das mais importantes empresas de radiodifusão em África. Em 1974, o RCM transmitia mais de 60 mil horas por ano, em 14 línguas. Predominava música Pop e Rock internacional e outros repertórios relacionados com a categoria “música ligeira”. Existiam ainda emissões em línguas locais que teriam como objetivo exercer ação psicológica sobre as populações durante a guerra de libertação (Freitas 2021).

2 A Frente de Libertação de Moçambique foi criada a 25 de junho de 1962 com o propósito de lutar contra o colonialismo português. A partir de 25 de junho de 1975 a FRELIMO encabeçou o primeiro governo de Moçambique independente com base num regime de partido único.

3 Lourenço Marques estava dividida em duas secções: uma primeira, central, com traçado retilíneo e com organização geométrica – chamavam-lhe a “cidade de cimento”; enquanto a segunda, expandindo-se além do centro, teria construções com formato circular, de cana, madeira e zinco – chamavam-lhe a “cidade de caniço”. No “cimento” vivia sobretudo a população branca colona de origem europeia; enquanto no “caniço” vivia sobretudo a população “indígena” (Zamparoni 1998; Sopa 2013; Freitas 2020).

4 A transcrição do discurso do Presidente Samora Machel, com o título “President Samora Machel’s Speech about the Events in Lourenço Marques (08/09/1974)”, encontra-se em Mozambique History Net. Sítio na internet: http://www.mozambiquehistory.net/people/samora_speeches/1974/19740908_speech_about_lm_events.pdf (consultado a 11 de maio de 2021).

5 Entrevistas a António Alves da Fonseca, diretor da Produções GOLO e ex-diretor da RM, realizadas no Edifício GOLO na Avenida Mao Tsé-Tung, 488, Maputo, nos dias 11-10-2016; 14-10-2016; 18-10-2016; 10-04-2017.

6 Este trabalho enquadra-se, em particular, no âmbito da subárea de estudos Etnomusicologia Histórica. Sobre esta última, veja-se Bohlman (2008) e McCollum e Herbert (2014).

7 Este artigo resulta de uma investigação desenvolvida para a minha tese de doutoramento em Etnomusicologia sobre a “construção sonora de Moçambique” após a independência, a partir da análise política e cultural da radiodifusão e das indústrias da música. Além da consulta de documentos áudio conservados nos arquivos da Rádio Moçambique, realizei entrevistas estruturadas e semiestruturadas a 25 agentes-chave, entre músicos, produtores radiofónicos e fonográficos e políticos (Freitas 2020).

8 A análise aqui apresentada foi desenvolvida a partir de um ficheiro áudio, com duração aproximada de uma hora, conservado no arquivo digital da Rádio Moçambique. Este ficheiro reporta-se à compilação de discursos feitos no decorrer da ocupação. Segundo os funcionários e produtores da rádio, as bobines originais encontram-se em lugar incerto. Nome do ficheiro: “D.13.74 Movimento Livre de Moçambique - Ocupação do RCM 07 Set 1974”.

9 A expressão “construção” é aqui usada num sentido figurado, como referência à produção de algo intangível, no qual se enquadra uma ideia de “nação”. Esta construção é “sonora” porque teve na experiência auditiva e performativa um elemento central para a significação deste evento. É “sonora”, e não exclusivamente “musical”, porque o conceito “música” exclui outras dimensões “sonoras” centrais para este processo, tais como a retórica das palavras de ordem e dos discursos políticos (Freitas 2020).

10 Entrevistas a António Alves da Fonseca (cf. nota 5).

11 “Direcção do RCM fiel ao antigo regime. Nove redactores suspendem a actividade como protesto”, Tempo, 190, 5 de maio de 1974, p. 25.

12 Além do Centro Emissor Matola-Lourenço Marques, o RCM tinha oito polos regionais: Emissor de Nampula (1953), Emissor de Quelimane (1958), Emissor de Cabo Delgado (1960), Centro Emissor Beira-Dondo (1970), Emissor de Tete (1972), Emissor de Vila Cabral (1972), Emissor de Inhambane (1973) e Emissor de Manica (1974) (Freitas 2021).

13 “FRELIMO: O que é?”, Tempo, 191, 12 de maio de 1974, pp. 18-24.

14 “Samora Machel”, Tempo, 193, 2 de junho de 1974, pp. 45-49.

15 “FRELIMO: de 25 de setembro à morte de Mondlane”, Tempo, 201, 28 de julho de 1974, pp. 2-15.

16 Para uma lista completa, vide Souto (2011).

17 “Não se pergunta a um escravo se quer ser livre”, Voz da Revolução, 22, maio-junho de 1974, pp. 2-3.

18 Documento sonoro dos arquivos digitais da Rádio Moçambique. Nome do ficheiro: “D.13.74 Movimento Livre de Moçambique - Ocupação do RCM 07 Set 1974”. 00m:00s-1m:20s.

19 Entrevistas a António Alves da Fonseca (cf. nota 5).

20 Documento sonoro dos arquivos digitais da Rádio Moçambique. Nome do ficheiro: “D.13.74 Movimento Livre de Moçambique - Ocupação do RCM 07 Set 1974”. 25m:10s.

21 Idem, 02m:24s.

22 Idem, 06m:50s.

23 Idem, 16m:30s.

24 Documento sonoro dos arquivos digitais da Rádio Moçambique. Nome do ficheiro: “D.13.74 Movimento Livre de Moçambique - Ocupação do RCM 07 Set 1974”. 22m:41s.

25 Entrevistas a António Alves da Fonseca (cf. nota 5). A relação entre os conceitos “moral” e “trauma” é explorada por Alexandra Urbano (2017) na sua dissertação de mestrado sobre o papel da música durante a guerra colonial no enclave de Cabinda, Angola.

26 Tudo indica que a censura musical nas colónias funcionava de forma diferente que na metrópole: poderia haver casos em que uma canção proibida na metrópole seria livremente radiodifundida nas colónias. Em Moçambique havia, contudo, um maior interesse em controlar o conteúdo lírico das canções em línguas locais radiodifundias na programação de “A voz de Moçambique”; era sobretudo nesse âmbito que trabalhavam os responsáveis pelo controlo e censura das emissões radiofónicas.

27 Entrevistas a António Alves da Fonseca (cf. nota 5).

28 “A definição de «Acção Psicológica» que consta no manual «O Exército na Guerra Subversiva» consistia na aplicação de um conjunto de diversas medidas, devidamente coordenadas, destinadas a influenciar as opiniões, sentimentos e crenças [...] e assentava, como as doutrinas francesa e inglesa, no princípio da «conquista das populações»” (Afonso 2017).

29 Entrevista a Aurélio Le Bon, empresário e agente cultural, realizada no restaurante “Taverna Doce” na Avenida Mao Tsé-Tung, 57, Maputo, no dia 01-11-2016.

30 ‘África à Noite’ foi uma rubrica do RCM da iniciativa de José Mendonça, chefe de produção do RCM, e da qual viria a ser apresentador. Era composta por atuações ao vivo de grupos de música local, com assistência, perfazendo um total de 20 programas radiodifundidos entre junho e dezembro de 1963. Os grupos convidados, todos associados à categoria Marrabenta, foram Djambo (5 programas), Xicuembo (5 programas), Harmonia (7 programas) e João Domingos (3 programas) (Freitas 2020).

31 Entrevista a João de Sousa, jornalista na RM, realizada no Centro Social da RM, na Rua da Rádio, Maputo, no dia 04-04-2017.

32 Entrevistas a António Alves da Fonseca (cf. nota 5).

33 Para a transcrição do discurso do Presidente Samora Machel, veja-se nota 4 deste artigo.

34 Sobre a “cultura de denúncia” em Moçambique independente, vide Meneses (2015).

35 Documento sonoro dos arquivos digitais da Rádio Moçambique. Nome do ficheiro: “D.111 e 112.75 Reunião da Informação com S. Machel – 29 de Ag 1975”. 15m:00s.

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Marco Roque de Freitas, «Reavaliando o Movimento Moçambique Livre: a construção sonora do assalto ao Rádio Clube (7 de Setembro de 1974)»Ler História, 80 | 2022, 225-247.

Referência eletrónica

Marco Roque de Freitas, «Reavaliando o Movimento Moçambique Livre: a construção sonora do assalto ao Rádio Clube (7 de Setembro de 1974)»Ler História [Online], 80 | 2022, posto online no dia 14 junho 2022, consultado no dia 21 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/10479; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.10479

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Marco Roque de Freitas

Instituto de Etnomusicologia – Centro de Estudos em Música e Dança, NOVA FCSH, Portugal

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