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Dossier: A autodeterminação de Timor-Leste

Os bastidores da Lei de Descolonização de Timor. Interação entre Portugal e os movimentos nacionalistas timorenses

The Backstage to the Law on the Decolonisation of Timor. Interaction between Portugal and Timorese Nationalist Movements
Les coulisses de la Loi de Décolonisation de Timor. Interaction entre le Portugal et les mouvements nationalistes timorais
Rui Graça Feijó
p. 17-40

Resumos

A descolonização de Timor recebeu atenção tardia no contexto do processo iniciado a 25 de abril de 1974. A Lei de Descolonização de Timor só seria publicada em julho de 1975. Muitas vezes encarada como ato unilateral de Portugal, esta lei foi precedida de longas conversações entre o poder colonial e os movimentos nacionalistas formados em maio de 1974. Com base em extensa pesquisa em arquivos (públicos e privados) em Portugal e Timor-Leste, e em contactos pessoais com intervenientes no processo, este ensaio passa em revista a interação entre Portugal e os movimentos nacionalistas timorenses até à publicação da Lei 7/75, refletindo sobre as dificuldades em acertar um roteiro que satisfizesse todas as partes. A publicação tardia da lei é ela própria reflexo das dificuldades de cada um dos parceiros em formular com clareza uma linha que sofria frequentes variações táticas. Este artigo faz parte do dossier temático A Autodeterminação de Timor-Leste, organizado por Rui Graça Feijó.

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Notas do autor

Ensaio integrado no projeto “A autodeterminação de Timor: um estudo de História Transnacional” (PTDC/HAR-HIS/30670/2017). Agradeço a Zélia Pereira pela recolha de materiais em arquivos nacionais; a Madalena Salvação Barreto pelo apoio em Díli; a Rui Sá por disponibilizar a coleção do Avante!; a Silvério Jónatas, em Lisboa, e a José Ramos-Horta e Roque Rodrigues, em Díli, pelas trocas de impressões que ajudaram a esclarecer pontos-chave; aos participantes no IX Congresso da EuroSEAS, onde foi apresentado; aos revisores da revista Ler História pelos comentários construtivos. Todas as limitações, porém, são da responsabilidade do autor.

Texto integral

1A 17 de julho de 1975, após aprovação pelo Conselho da Revolução e promulgação pelo Presidente da República, foi publicada a Lei 7/75 sobre a descolonização de Timor. Evocando a necessidade de dar à Lei 7/74 (Lei da Descolonização) – a qual definira um quadro genérico para a autodeterminação das colónias portuguesas – um conteúdo adaptado ao caso específico deste território, e justificando a necessidade da promulgação de uma lei constitucional em virtude de não ter sido possível um acordo com as partes interessadas, este diploma representa uma iniciativa inédita no quadro da descolonização portuguesa, sendo geralmente entendido como uma manobra unilateral por parte da potência colonial. É certo que a descolonização dos territórios africanos teve precedência sobre a dos demais, e que entre os “territórios não autónomos sob administração portuguesa” reconhecidos pela ONU Timor foi deixado para último lugar. Tal não significa que o processo tenha esperado pela publicação da lei para dar passos significativos. O preâmbulo reconhece que foram “ouvidas as associações políticas de facto existentes em Timor que acederam a pronunciar-se sobre os pontos cardiais do esquema do processo de descolonização” no período que medeia entre a Revolução dos Cravos de 25 de Abril de 1974 e a data desta lei. É precisamente desse período que cura este ensaio. Que relações se estabeleceram entre Portugal e os timorenses? Quais os passos mais significativos desse percurso? Até que ponto foram as organizações políticas timorenses envolvidas na definição do roteiro para a autodeterminação? Poderemos assumir que a referência do preâmbulo da lei corresponde a um processo substantivo?

2Baseado em extensa pesquisa em arquivos portugueses (públicos e privados) e timorenses, e em contactos com atores do processo, pretende-se esclarecer as movimentações que viriam a ser plasmadas na Lei 7/75. O que se passou antes da promulgação deste diploma constitucional não é alheio ao que viria de seguida, nomeadamente a insistência de Portugal em manter esse roteiro como marco de referência para a sua atuação, mesmo quando as circunstâncias se alteraram e não foi possível levar à prática o estabelecido na lei. O texto será estruturado em duas partes. Na primeira, de carácter empírico e descritivo, passa-se em revista um filme dos acontecimentos, a partir de um foco em oito momentos marcantes; num segundo tempo procura-se articular uma visão de conjunto sobre as relações entre as autoridades portuguesas e os movimentos políticos timorenses na primeira fase da descolonização do território. Termina o ensaio com uma breve conclusão em que se sumariam os pontos-chave da investigação aqui condensada.

1. Um filme dos acontecimentos

  • 1 Apontamento de António Arnao Metello, Fundação Mário Soares (FMS), Fundo Arnao Metello (FAM), 110 (...)

3O primeiro momento importante tem lugar no início de maio de 1974 quando a Revolução dos Cravos chega ao “Timor Português”: o governador, coronel Fernando Alves Aldeia (reconduzido no cargo pela Junta de Salvação Nacional), seguindo instruções recebidas de Lisboa, proclama a liberdade de formação de associações políticas. O representante do Movimento das Forças Armadas (MFA) no território, major Arnao Metello, esclareceria na mesma ocasião que a “descolonização é uma obrigação oficial e não uma opinião particular”, e que Portugal e o seu exército respeitariam a vontade livremente expressa pelo povo de Timor que se deveria organizar no sentido de discutir as várias hipóteses,1 como efectivamente o fez ao longo do mês de maio quando surgem três organizações políticas que irão polarizar o debate e oferecer alternativas de desfecho para a autodeterminação.

4Logo a 11 cria-se a União Democrática de Timor (UDT), que começará por se rever nas teses spinolistas de pertença a um espaço federal português, admitindo uma independência a longo prazo, e rejeitando uma eventual integração na Indonésia (Magalhães 2007; Hicks 2015; Leach 2017). Desde o início havia várias correntes dentro deste partido:

Uma ala liberal [que] desejava levar a autonomia progressiva até à independência, dentro de uma comunidade de países de língua portuguesa; uma ala mais conservadora, integrada sobretudo por indivíduos oriundos do quadro administrativo [que] preferia manter o “status quo” apenas com alguns retoques; e uma ala ultraconservadora [que] via na intacta manutenção do “status quo” a melhor solução para Timor. (Carrascalão 2006, 27)

5A oscilação do peso relativo de cada uma dessas alas, e o evoluir dos acontecimentos, haveria de acarretar sensíveis mudanças de rumo. Após o colapso da opção spinolista, a UDT inclinar-se-á para a defesa da independência a médio prazo, após um período de transição sob administração portuguesa (Pires 2013). Será mesmo bastante enérgica na denúncia da eventual integração do território na Indonésia. Mais adiante, grandemente influenciada em Jacarta por ocasião de várias deslocações de responsáveis seus, haveria de vir a defender a integração na Indonésia, mas tal posição só teria expressão determinante após a cimeira de Macau.

  • 2 Depoimentos de José Ramos-Horta, Xanana Gusmão e Mari Alkatiri in Arquivo Nacional de Timor-Leste (...)

6A 20 de maio surge a Associação Social-Democrata Timorense (ASDT), cuja plataforma postulava a independência do território, após assegurar um período transitório para dotar Timor de condições que não se encontravam reunidas (Cabral 2002; Hill 2002; Hicks 2015; Leach 2017). O ideário da independência nunca foi posto em causa no seio desta organização, mas os aspetos práticos da transição foram objeto de um evoluir de posições. A ASDT abarcava diferentes sensibilidades, que a sua evolução para FRETILIN (Frente Revolucionária de Timor-Leste Independente), em setembro, haveria de acentuar, nomeadamente com a influência que passou a ter a dúzia de estudantes que regressaram de Lisboa socializados no radicalismo político – vários deles com ligações ao MRPP (Araújo 2012). Como afirmaria José Ramos-Horta, “dentro da ASDT/FRETILIN havia algumas pessoas sociais-democratas, havia alguns marxistas, havia algumas de extrema-direita. Isso é que é mesmo uma frente!”. Xanana Gusmão corroboraria: “Dentro da FRETILIN havia de tudo. Havia marxistas, havia sociais-democratas, talvez houvesse apenas democratas. Alguns de nós que nos dizíamos nacionalistas queríamos apenas a independência.” Taticamente, porém, as opções eram diversas, tendo mesmo havido quem defendesse (sem sucesso), na linha dos ensinamentos de Mao Zedong, que o “inimigo principal” era Portugal, sendo justificado um entendimento com os defensores da posição Indonésia – “porque a integração com a Indonésia também era uma forma de luta contra o colonialismo português”. Antes do 25 de Abril, uma individualidade que viria a ser fundadora da ASDT/FRETILIN (Mari Alkatiri) viajara até Jacarta em nome de um pequeno grupo nacionalista para procurar apoio (que não obteve) para a causa de uma futura independência.2

7Finalmente, a 27 de maio, e depois de um período de indefinição nas hostes que defendiam a integração do “Timor Português” na vizinha Indonésia – e que juntavam saudosos da Revolta de 1959 com uma elite autóctone –, surge a Associação Popular Democrática de Timor (APODETI) (Hicks 2015; Alexandre 2017). O programa deste movimento era o de incentivar as autoridades portuguesas a entabularem negociações diretas com o governo indonésio com vista a transformar o território na 27ª província desse país. Sem nunca abdicar desse objetivo, a APODETI manteve alguma flexibilidade tática. Várias vezes as autoridades portuguesas, que iam mantendo contactos com representantes de Jacarta, constatariam que nem sempre a APODETI alinhava pela linha defendida pelas autoridades indonésias e fazia questão de marcar a sua independência tática (Pires 1991, 109).

  • 3 Surgiria ainda outra associação – a ADITLA (Associação Democrática para a Integração de Timor-Les (...)

8O quadro completo das organizações políticas locais demoraria ainda algum tempo a consolidar-se e veria o surgimento de outras iniciativas, mas estas irão polarizar de facto o debate entre as três opções de fundo, cada qual com uma lógica definida e capacidade de manobra tática.3 Estava assim criado um quadro para o debate que condicionaria a posição de Portugal. De certa forma, emergia em Timor um quadro que se poderia aproximar do “modelo ideal” da descolonização pela via da consulta direta aos povos. A publicação da Lei 7/74 veio aclarar as dúvidas que subsistiam desde a noite de 25 de abril sobre o sentido e o alcance exatos das palavras proferidas pelo general Spínola. A nova lei criava as condições para que qualquer uma das opções abraçadas pelos timorenses em maio devesse ser considerada, porquanto estabelecia o seguinte:

Artº 1. O princípio de que a solução das guerras no ultramar é política e não militar, consagrado no nº 8, alínea a), do capítulo B do Programa do Movimento das Forças Armadas, implica, de acordo com a Carta das Nações Unidas, o reconhecimento por Portugal do direito dos povos à autodeterminação. Artº 2. O reconhecimento do direito à autodeterminação, com todas as suas consequências, inclui a aceitação da independência dos territórios ultramarinos.

9O segundo momento marcante do processo tem lugar com a primeira visita ministerial a Timor. Entre 19 e 21 de outubro de 1974, António de Almeida Santos, ministro da Coordenação Interterritorial (MCI), esteve em Baucau e Díli. Antecedendo a sua visita, haviam chegado ao território notícias de declarações suas que causaram viva comoção. A um jornal de Lisboa afirmara que “Timor, digamos que é um transatlântico imóvel que nos custa muito dinheiro”, acrescentando:

Em relação a Timor é um pouco ridículo estarmos a falar em termos de plebiscito uma vez que [...] as opções não são muitas. A independência total é inviável por razões de carácter financeiro; a ligação à Indonésia torna-se inviável por causa do desinteresse da Indonésia; e fica uma última alternativa, a ligação connosco. Estarmos a fazer um plebiscito para definir essa relação parece-me pouco realista. (Santos 2006-II, 293)

10Essas palavras tiveram o condão de juntar todas as forças timorenses na crítica ao ministro, acusado por uns de inclinações neocolonialistas por aceitar a hipótese de uma manutenção das relações com Portugal, por outros de querer alijar responsabilidades ou mesmo a soberania sem prevenir formas novas de dominação externa. A visita a Timor tinha, pois, um propósito: desfazer os equívocos provocados por essas declarações e apontar os termos genéricos que deveriam presidir ao processo de autodeterminação do território na linha do estipulado na Lei 7/74. Tratou-se de uma missão mais proclamatória do que de negociação com os representantes das várias forças timorenses. No entanto houve encontros separados com os três principais movimentos políticos locais.

  • 4 As relações entre Portugal e a Indonésia (1974-1975) foram analisadas em Pereira e Feijó (2021).
  • 5 Curiosamente, a Indonésia não objetou à independência da Papua-Nova Guiné, outra metade de uma il (...)

11Entretanto, tinha-se realizado uma visita do general indonésio Ali Murtopo a Lisboa, onde se encontrara com o Presidente da República, o primeiro-ministro, o ministro Melo Antunes e representantes dos ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Coordenação Interterritorial.4 Nesses encontros, a Indonésia fez saber que apenas contemplaria a continuação da relação de Timor com Portugal ou a sua integração no país vizinho, opondo-se, com base em argumentos de natureza securitária, a uma eventual independência.5 A delegação indonésia abandonou Lisboa convencida de que Portugal não só não tinha objeções de fundo a uma possível integração como estaria na disposição de entabular negociações bilaterais nesse sentido. Porém, o embaixador australiano em Portugal, Frank Bell Cooper, reportou para Canberra que “os portugueses estão convencidos exatamente do contrário” (Way 2000, 119). O mal-entendido terias as mais sérias consequências para ambas as partes (Alatas 2006, 3).

  • 6 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1974 Timor Secretos expedid (...)
  • 7 Discurso, Direcção de Arquivo e Biblioteca do Ministério dos Negócios Estrangeiros (DABMNE), PAA (...)

12Tendo em consideração o que fora abordado nesses encontros, Lisboa envia um telegrama “muito secreto” ao ministro no qual transmite o seguinte: “S. Ex.ª o Primeiro-Ministro considera conveniente que V. Ex.ª se abstenha, em declarações públicas, de dar ênfase ou mesmo referência expressa solução independência em igualdade outras duas soluções”.6 Almeida Santos tomou essa recomendação cum grano salis e reiterou que as três vias defendidas pelos movimentos políticos timorenses seriam adequadamente consideradas. E juntou um elemento que viria a ter importância crítica: a realização de uma consulta popular, em modalidades que poderiam ir de um plebiscito à eleição de uma assembleia, com adequadas garantias para todas as partes e fiscalização pela ONU. Disse o ministro: “Encontra-se reconhecido na Constituição vigente [sic] o direito de Timor a autodeterminar o seu destino. Esse direito não sofre limite. Timor, pela vontade dos seus habitantes, será aquilo que quiser ser” (Santos 2006-II, 298). Este entendimento sobre as linhas-mestras do processo viria a ser enfatizado pelo ministro no discurso proferido perante a Assembleia Geral da ONU e nos trabalhos do Comité Especial dos 24, em 3 de dezembro.7 Contudo, chegariam a Timor ecos desta ultima intervenção em que o ministro voltaria a um velho tema polémico: o carácter “fantástico do sonho de uma independência total e imediata”. Parecia assim desfeito o impacto positivo da visita, deixando de novo pairar fantasmas quanto a uma das três hipóteses, agora abraçada pela UDT e pela FRETILIN (Pires 1991, 103-104).

  • 8 Vide Comunicado, Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT)/Fundo Ernesto Melo Antunes (FEMA)/Cx. (...)

13Na sequência dessa visita tem lugar o terceiro momento que merece destaque. Por acordo entre vários organismos em Lisboa, foi nomeado um novo governador. O encargo recaiu no coronel Mário Lemos Pires, que chegou a Díli a 18 de novembro levando de Lisboa “uma indefinição [...] quanto à opção de uma política de descolonização para Timor”, que em seu entender não podia prescindir de ter sempre presente a hipótese de uma permanente ligação a Portugal (Pires 1991, 68 e 71). Uma vez em Díli, o governador elaboraria um “Conceito de política de descolonização de Timor” que tentaria aplicar (Pires 1991, 72-74). Poucos dias mais tarde, chegaria o desembargador Valadas Preto com a missão de “trocar ideias quanto ao futuro Estatuto” do território. A primeira iniciativa de vulto do novel governador foi a proposta endereçada aos três principais movimentos para a constituição de um Conselho de Governo no qual estes teriam representação paritária (Pires 1991, 77-78) sem, no entanto, definir prazos para a sua vigência nem abordar a solução final para a autodeterminação. Esta possibilidade esteve em cima da mesa ao longo do mês de dezembro, e no início do novo ano concluiu-se que não havia condições para se efetivar.8

  • 9 Telegrama 5 Sec. de MCI para governador, AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1975 Timor secretos exp (...)

14A APODETI argumentou que o futuro do território deveria ser negociado diretamente entre Lisboa e Jacarta, não vendo interesse em nada que desviasse as atenções quer da responsabilidade portuguesa, quer de um plebiscito que desejava que se realizasse em outubro de 1975. A FRETILIN condicionava a sua participação à realização de um “saneamento” do aparelho administrativo, incluindo elementos que poderiam representar outras forças políticas, na medida em que tais personalidades haviam colaborado com o regime colonial. A UDT entendeu que assumir sozinha o ónus de uma associação à governação não era também do seu interesse, embora concordasse com o princípio enunciado. Neste quadro, o governador decidiu não prosseguir com as nomeações para o Conselho de Governo, e disso deu conhecimento ao MCI. Em resposta, Almeida Santos telegrafou que “o Conselho de Governo é organismo de momento dispensável”, insistindo que se desse seguimento às conversações sobre o futuro estatuto do território, tendo o cuidado de não se comprometer com nenhum calendário concreto antes de receber luz verde de Lisboa. A Comissão Nacional de Descolonização (CND) considerava preferível apontar para “meados do ano” a realização da “consulta popular”, e instruía o governador para evitar os termos referendo, “visto até hoje ter sido afastado em todos os acordos”, e independência, “palavra que causa preocupações e possíveis reações por parte da Indonésia”.9

  • 10 Comunicado, ANTT/FEMA/Cx. 122.
  • 11 Ver também telegramas 9 Sec. e 23 Sec., governador para MCI, AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/197 (...)

15Pouco depois assiste-se ao quarto momento relevante: a 20 de janeiro de 1975, Francisco Xavier do Amaral (em nome da FRETILIN) e Francisco Lopes da Cruz (pela UDT) assinam um comunicado conjunto anunciando a constituição de uma coligação.10 Dias mais tarde, o governador é informado da proposta conjunta para resolver a questão da autodeterminação do território. O objetivo comum seria a obtenção da independência. Para tal, ambos os movimentos rejeitavam veementemente a APODETI e o que ela representava; reconheciam Portugal como o único interlocutor válido (podendo ser coadjuvado pela ONU), e desejavam negociações diretas entre o governo de Lisboa e a coligação; preconizavam a manutenção do esquema governativo vigente e a constituição de um conselho integrado por ambos com um mandato de dois anos; após esse período, preconizavam a nomeação de um Alto-Comissário para a Transição, com um conselho de governo, que poderia durar três anos, sendo este período renovável por tempo idêntico, seguindo-se a eleição de uma Assembleia Constituinte dentro de oito anos para decidir sobre o futuro de Timor; e manutenção de uma política de paz e boa vizinhança com a Indonésia baseada nos princípios da não-agressão e não-ingerência (Pires 1991, 129).11

  • 12 Telegramas 7, 8 e 15 Sec., MCI para governador, AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1975 Timor secre (...)
  • 13 Telegramas 14, 15, 16 e 21 Sec., AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1975 Timor secretos recebidos; (...)

16Perante as notícias que chegavam de Díli, Almeida Santos reage com otimismo: a proposta da coligação tem “uma maleabilidade que desde já me cativa”, e endereça felicitações aos presidentes da UDT e da FRETILIN. O governador não deixará de notar que estas palavras pareciam contraditórias com as que proferira havia pouco perante o Comité dos 24 (Pires 1991, 105). O ministro não deixa de frisar que seria de “resolver prioritariamente” a questão da existência de um terceiro movimento e envia instruções para o governador não aceitar nenhum processo negocial que excluísse a APODETI; que informasse o cônsul indonésio que “o governo português não tomará decisões definitivas sobre o esquema de descolonização de Timor sem previamente contactar o governo da Indonésia”; e que “desfizesse ideias de identificação do governo português com a coligação UDT/FRETILIN sem embargo da satisfação que esta lhe deu”.12 Lisboa pretendia ganhar tempo e esperar pelo resultado de um encontro com representantes da Indonésia, que acabou por decorrer em Londres a 9 de março. O governador, por seu lado, sentia uma forte pressão local para uma resposta à proposta da coligação, pedindo insistentemente que o governo lhe enviasse instruções e/ou autorizasse uma deslocação sua a Portugal para discutir de viva voz a questão, eventualmente no seio da CND.13 Essa situação haveria de perdurar ainda algumas semanas, até que no início de abril de 1975 ocorre um novo momento crítico no processo.

  • 14 Decreto Provincial 15/75, de 10 de maio; Telegrama 50 Sec., governador para MCI, AHU/MU/MCI/Dossi (...)
  • 15 Telegrama 28 Sec. MCI para governador, AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1975 Timor secretos exped (...)
  • 16 Apontamentos (vários) de Silvério Jónatas, e Apontamento da Comissão de Descolonização de Timor, (...)

17Em abril, Lisboa havia já fechado todos os acordos de descolonização dos seus territórios africanos. No encontro de Londres, as autoridades nacionais apresentaram um esboço de roteiro para a autodeterminação de Timor e ouviram os indonésios reiterar as posições já conhecidas (Pereira e Feijó 2021). Estavam agora reunidas condições para que o processo pudesse avançar no terreno, e o governador não deixou escapar a ocasião, patrocinando a criação da Comissão de Descolonização de Timor (CDT), e encetando “contactos preliminares” com os três movimentos com vista a “ulteriores conversações com o governo português” (Pires 1991, 165).14 Almeida Santos deu aval a essa iniciativa, ressaltando todavia que “todo o esquema e calendário deve ser discutido nível ministerial próximo encontro. De outro modo podem criar-se posições prejudiciais”.15 Na primeira quinzena de abril, os contactos entre o governador e a CDT, por um lado, e os três movimentos timorenses foram intensos. A partir da leitura de um conjunto de documentos da época,16 vejamos de forma sumária as posições assumidas pelas forças timorenses.

18A APODETI centrou a sua posição na reivindicação de eleições, com fiscalização internacional (ASEAN preferível à ONU), “o mais cedo possível”, de preferência em outubro de 1975. Ao longo das sessões foi assumindo posições erráticas, mas acabou por apresentar um documento formal com a sua visão, que passava por: (a) declaração por parte de Portugal do direito do povo de Timor à autodeterminação (e não à independência) – ponto que condicionaria a sua disponibilidade para a cimeira; (b) garantia de que os três movimentos teriam iguais direitos e deveres em termos eleitorais; (c) criação de uma Assembleia Consultiva a funcionar até às eleições, composta por 50% de elementos pró-independência e 50% pró-integração; (d) recusa de constituição de um Governo de Transição, devendo o poder ser exercido pelo governador coadjuvado pela assembleia; (e) eleição de uma Assembleia Constituinte que determinaria o futuro do território. Caso vencesse as eleições, a APODETI receberia o poder e não proclamaria a independência mas negociaria a integração na Indonésia. A CDT haveria de notar que a APODETI “ainda não sabe o que quer” – “apenas quer saber quando e como serão as eleições”.

19A UDT e a FRETILIN ora se apresentaram de modo individual, ora apareceram sob a forma da coligação que mantinham. A UDT, intervindo de modo individual, defendeu a via da independência para o território. Esta devia comportar duas fases: uma, “o mais cedo possível”, passaria pela constituição de um governo transitório com um governador e três secretários portugueses, cada um dos quais teria um adjunto de cada movimento; este conjunto de governantes, a que se juntariam quatro representantes de cada movimento, constituiria uma assembleia, consultiva e legislativa, pelo período de um ano; seguir-se-ia uma eleição para a Assembleia Constituinte em outubro de 1976 que haveria de deliberar sobre o futuro de Timor, admitindo que pudesse prolongar a ligação com Portugal. A UDT também aceitaria participar numa cimeira com Portugal, e admitia a presença da APODETI caso esta conviesse que a integração não poderia anteceder a independência. Finalmente, declarou aceitar o resultado de uma consulta eleitoral, mesmo que tal viesse a determinar a integração. O governador viria a notar que este movimento parecia ter uma posição flexível e “não oferecerá problemas” nas negociações.

20A FRETILIN colocou como condição para aceitar a APODETI, quer em negociações quer em órgãos de poder transitório, a declaração daquela que admitiria a hipótese de Timor se tornar independente. No entanto, caso tal não viesse a suceder, a FRETILIN requeria a dissolução da APODETI. Qualquer decisão quanto ao futuro do território só deveria ser tomada por um estado independente, que teria liberdade para procurar formas de associação com a Indonésia, e daí derivava que a eleição da Assembleia Constituinte deveria conduzir à independência. O governo transitório deveria ser composto por 1/3 de portugueses, 1/3 de membros da UDT e 1/3 de membros da FRETILIN. Quanto a prazos para essa independência, admitiu que dois anos eram uma hipótese razoável, articulada com possível presença mais dilatada da administração portuguesa. A posição da FRETILIN viria a ser caracterizada por Lemos Pires como “a mais dura”, sem no entanto hipotecar a esperança de que os três movimentos viessem a participar na cimeira.

  • 17 Apontamento de Silvério Jonatas sobre a “Reunião da CDT com os partidos políticos – Coligação” a (...)
  • 18 Telegrama 29 Sec., MCI para governador, AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1975 Timor secretos expe (...)

21Apesar das diferenças que se podiam constatar, estes dois movimentos apresentaram-se juntos, por várias vezes, nas conversas com o governador e a CDT. O tópico que mais atenção prendia era o do destino da APODETI (e da eventual integração), e o radicalismo parecia imperar e dominar as sessões. Mário Carrascalão (UDT) afirmaria que “a coligação não aceita a existência política da APODETI”, e que esse movimento não deveria poder apresentar-se a eleições no mesmo pé que os outros. Mari Alkatiri (FRETILIN) acusaria Portugal de proteger a APODETI “para agradar a 125 milhões de indonésios”.17 Em conjunto, apresentaram uma sequência de eventos que contrapunham ao que parecia ser a posição portuguesa: em vez de eleições-assembleia-independência (ou integração), deveria haver independência-eleições-assembleia. Almeida Santos solicitava ao governador que insistisse na presença dos três movimentos nos órgãos de administração do território. Como novidade de relevo, afirmava que “poderemos reconhecer desde já direito à independência ou mesmo, se tal não se puder evitar, de independência de jure”. E acrescentava: as eleições deveriam ser apontadas para um prazo entre 6 a 8 anos “de acordo com as propostas da coligação” e “em eventual integração na Indonésia não deve oficialmente falar-se”.18

22Entretanto, ecos das conversações que decorriam em Díli chegaram à imprensa em Lisboa, que, no início de maio, assumiu estarem a desenrolar-se com vista a selar um acordo entre o governador de Timor e os movimentos políticos locais, adiantando-se em relação à cimeira que o governo português pretendia organizar de acordo com as conversações de Londres. As notícias publicadas levaram a uma reação por parte do Presidente da República que se dirigiu ao governador em termos duros:

  • 19 Telegrama s/nº, secreto. PR para governador. Arquivo de Defesa Nacional (ADN), Gabinete do CEMGFA (...)

Imprensa diária anuncia abertura de negociações para descolonização nível Comissão Local de Descolonização e partidos. Refere inclusivamente todo um esquema e calendário que não coincidem com a orientação definida ao nível da Comissão Nacional de Descolonização não respeita anteriores posições de que V. Ex.ª tem perfeito conhecimento. Tem que V. Ex.ª impedir que Comissão Local de Descolonização se exceda tomadas concretas de posição que excedam a preparação de uma cimeira com representantes dos três partidos e representantes governo português.19

23O ministro Almeida Santos não lhe ficaria atrás, e enviaria também uma diretiva muito crítica ao governador. Lemos Pires responderia pouco depois, defendendo-se e argumentando que “a minha ideia não era a de conseguir um processo acelerado de descolonização, por ser perigoso, mas sim ter pressa de definir o programa de descolonização”, uma vez que “todos estes impasses, indefinições e adiamentos eram altamente prejudiciais ao clima político em Timor” (Pires 1991, 129-130).

  • 20 Ata da reunião (19.2.1975) do III Governo Provisório, Centro de Documentação 25 de Abril (CD25A) (...)

24Neste quadro, que representa um efetivo travão ao alcance das conversações que decorriam em Díli, emerge a possibilidade de deslocação a Timor, em maio, de um alto representante das autoridades de Lisboa – no caso, o major Vítor Alves, que já havia chefiado a delegação nacional nas conversações de Londres, e que, em fevereiro, fora encarregado, na qualidade de ministro militar, de fazer a ponte entre o Governo Provisório e a Comissão Nacional de Descolonização.20 O governador havia discretamente sugerido que não se enviasse Almeida Santos, “dada a pouca recetividade dos partidos que consideravam demasiado polémicas e contraditórias as suas comunicações ao longo do processo” (Pires 1991, 166). Será esse o sexto momento que iremos considerar. Entre 16 e 19 de maio, o major Vítor Alves visitou Díli, onde se encontrou com o governador, os membros da CDT, responsáveis pelo sector militar, o cônsul da Indonésia e representantes dos três movimentos políticos. Esta visita saldar-se-ia por uma vitória diplomática dado que foi possível obter o apoio dos três movimentos políticos para o teor do comunicado final, no qual se afirmava:

  • 21 Comunicado do Chefe de Gabinete de Comunicação Social do Governo de Timor, APSJ/Dossier Documento (...)

Nos termos do artº 2º da Lei 7/74 foi acordada a realização em Macau, no decorrer da primeira quinzena de Junho, de uma cimeira de alto nível entre o Governo de Portugal e os representantes da APODETI e da coligação FRETILIN/UDT, com o objectivo de estabelecer a forma de concretização do processo de descolonização.21

  • 22 Telegrama do Chefe Militar de Timor para Defesa Nacional, AHPR/GB0102/3569. Apontamento, Silvério (...)

25Este consenso, no qual pesou a pressão posta pela UDT sobre o seu parceiro FRETILIN, foi possível na medida em que a APODETI admitia que uma das saídas aceitáveis de um processo de autodeterminação seria a independência, e que Portugal não colocava a independência como único desfecho. Também haveria acordo sobre a não realização de sessões de conversações conjuntas. Em relação ao que havia sido discutido em Londres, havia agora abertura para constituir um governo transitório em outubro de 1975, seguindo-se eleições um ano depois. A coligação avançaria também uma data indicativa para uma possível independência: outubro de 1985. Pareciam estar lançadas bases suficientes para a realização da cimeira, e para que dela saísse um documento capaz de ser aceite por todas as partes.22

  • 23 Telegrama 67 Sec., governador para MCI, AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1975 Timor secretos rece (...)
  • 24 Ata da CND, AHPR/GB0205/3562.
  • 25 Telegrama 41 Sec, MCI para governador, AHU/MU/MCI/ Dossier de telegramas/1975 Timor secretos expe (...)

26Pouco depois da partida de Vítor Alves, e evocando diferenças sensíveis sobre o processo de autodeterminação e de preparação da cimeira de Macau, a UDT rompe a coligação com a FRETILIN – o que pôs em questão a realização da mesma, dada a “relativa intranquilidade e ansiedade” que esse desfecho provocou em Díli.23 Em Lisboa, uma reunião alargada da CND toma nota do resultado da visita de Vítor Alves, nomeadamente do equilíbrio instável entre o que foi conseguido (marcar a cimeira com acordo de todos) e as divergências que subsistiam (como a questão da independência versus integração). Admitindo que a FRETILIN pudesse regressar a uma posição de boicote à cimeira, a CND deliberou que a mesma se realizaria de qualquer forma, variando apenas a natureza do documento que dela viesse a sair.24 Almeida Santos comunica ao governador que, em caso de recusa de qualquer partido, “não negociaremos só com os restantes e o Governo Português anunciará publicamente o seu propósito de definir unilateralmente o processo de descolonização de Timor no respeito pela verdade da maioria da sua população”, rematando que “[n]esse caso não haverá qualquer acordo a assinar, havendo que optar por uma definição direta por via de lei constitucional que só aqui pode ser promulgada”.25

  • 26 Telegrama 36 Sec. MCI para governador, AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1975 Timor secretos exped (...)

27Almeida Santos desdobrou-se em iniciativas. A 16 de junho discursa perante o “Comité dos 24” da ONU, onde afirmaria: “[s]obretudo depois de definido o esquema descolonizante, Timor-Díli passará a ser património moral e fonte de obrigações para todas as nações e não apenas para o meu país” (Santos 1975, 379). Insinuava-se a hipótese de internacionalizar a questão, ponto que a Indonésia sempre havia recusado em virtude de temer não ver reconhecidas as suas pretensões pela lei internacional – e dando alento ao governador que vinha pugnando por esse passo (Pires 1991, 170-171). Para dar corpo a discussões mais orientadas para uma conclusão, Almeida Santos elaborou um documento de trabalho que o major Mota transportaria para Díli, onde seria distribuído aos três movimentos.26 Essa será a base de discussão em cima da mesa de conversações de Macau.

  • 27 Apontamento, Silvério Jónatas, APSJ/Dossier Documentos 1975.
  • 28 Carta, APSJ/Dossier Documentos 1975.
  • 29 Telegrama, APODETI para PR, AHPR/GB0205/3567/002.
  • 30 Apontamento, Silvério Jónatas, APSJ/Dossier Documentos 1975; Telegrama, Chefe Militar de Timor pa (...)
  • 31 Telegrama 40 Sec., MCI para governador, AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1975 Timor secretos expe (...)

28Com esse documento em mãos, o governador e a CDT promovem novas rondas de conversações, mas pouco ou nada se avançou na substância das propostas. A UDT reafirma a sua disposição para comparecer em Macau, mesmo com a APODETI.27 Francisco Xavier do Amaral, em nome da FRETILIN, escreve uma carta à CDT onde repudia a participação do “partido fantoche” na discussão do futuro de Timor, cuja dissolução reivindica, e rejeita Macau como local da cimeira.28 Não há registo de qualquer encontro ou documento referente à APODETI, salvo que este movimento enviou ao Comité dos 24, na ONU, uma carta expondo a sua posição conducente à integração na Indonésia.29 A CDT, por seu lado, insiste em que havia um acordo obtido por Vítor Alves e que não seria adequado estar a reabrir o processo em vésperas da realização da cimeira.30 Este facto é reforçado num telegrama do ministro em que se refere: “Muito estranho afirmações produzidas porquanto comunicado final visita Díli foi aceite três associações”.31 As consequências de uma eventual falta da FRETILIN ao encontro estavam, elas também, estabelecidas por parte de Portugal.

  • 32 AHU/MU/MCI/Pasta 5 – Assuntos de Timor.

29A Cimeira de Macau seria o penúltimo momento crítico neste processo. Teve lugar entre os dias 26 e 28 de junho de 1975, com a presença de delegações das autoridades portuguesas (Vítor Alves, Almeida Santos, Jorge Campinos e majores Coelho e Mota), da APODETI (José Araújo, Osório Soares, Albuquerque Borges, Hermenegildo Martins, Casimiro Araújo, Pinto Soares e Guilherme Gonçalves) e da UDT (Costa Mouzinho, João Carrascalão, Mário Carrascalão, A. S. Nascimento e Jacinto Reis). À chegada, em cima da mesa, estava o rascunho de um “Acordo para a descolonização de Timor”, redigido por Almeida Santos, e de todos conhecido.32 Esse documento estruturava-se em 25 pontos, que podem ser agrupados da seguinte forma:

  • 33 Projeto de agenda para negociações, CDT, ANTT/FEMA/Cx. 122. Os comentários ao texto de Almeida Sa (...)

30(a) O governo português reafirmava o direito do povo timorense à autodeterminação e independência em conformidade com a Lei 7/74 e as resoluções pertinentes da ONU. Segundo a CDT, e em função do processo de conversações dos últimos meses, essa formulação seria aceitável tanto pela APODETI (direito à autodeterminação) como pela UDT e FRETILIN (direito à independência), deixando em aberto a solução que viesse a ser definida.33

31(b) O futuro do território deveria ser decidido por uma Assembleia Popular eleita no terceiro domingo de outubro de 1976. A APODETI pretendia eleições um ano mais cedo, mas conformava-se com este calendário; FRETILIN e UDT não levantavam objeções.

32(c) A lei eleitoral asseguraria igualdade de oportunidades e plena liberdade de atuação a todas as partes. Tratava-se de um ponto-chave para as pretensões da APODETI que UDT e FRETILIN pretendiam contornar.

33(d)  A Assembleia Popular teria como horizonte dos seus trabalhos o terceiro domingo de outubro de 1978, data em que cessariam “todas e quaisquer prerrogativas de soberania e administração da República Portuguesa” (a não ser que uma extensão fosse negociada). A data de outubro de 1978 era considerada muito distante pela APODETI, que desejava acelerar o processo de integração; e era aceitável para as outras forças, que admitiam mesmo um prazo mais alargado, sugerindo que fosse a assembleia a marcar tal data e manifestando interesse em manter laços com Portugal.

34(e) Dentro de 90 dias seria instalado um Alto-Comissário coadjuvado por um governo de transição composto por dois elementos nomeados por Portugal e por um de cada uma das forças locais, bem como um Conselho Consultivo sem poderes executivos. Este seria o ponto mais difícil de aceitar pela APODETI, embora admitisse que viesse a ser constituído e não contasse com a sua participação. Por parte dos outros movimentos, havia objecção à participação da APODETI (a menos que esta aceitasse a hipótese da independência), mas desejavam a sua constituição logo que possível.

  • 34 Esta secção do artigo baseia-se na leitura das seis atas da Cimeira de Macau, ANTT/FEMA/Cx. 122.

35A cimeira iniciou-se com uma sessão formal na qual Vítor Alves afirmou que ela tinha por objeto a “troca de impressões para recolher elementos que permitam ao governo português elaborar a lei reguladora da descolonização de Timor”; e que a ausência da FRETILIN não implicava “afastamento dos princípios constantes no projeto de acordo”. Foi acordado que se seguiriam sessões de trabalho independentes com cada um dos movimentos presentes e que no final haveria uma sessão conjunta.34 Na primeira reunião com a APODETI, Osório Soares insiste em marcar eleições em outubro de 1975; discorda da constituição de um governo de transição, que no caso de vir a ser criado não contaria com a sua participação, preferindo manter o status quo até às eleições; sugere que o esquema apresentado prefigurava o caminho da independência e não o da integração, que deveria ser mais simples e derivar diretamente do voto popular. Por sua parte, a UDT admite um acordo de princípio em relação ao documento proposto, embora ressalte a “pouca ênfase dada à independência”; a necessidade de cometer ao povo timorense a elaboração da lei eleitoral; a vontade de ver cessar o conselho de governo por alturas da eleição da Assembleia Popular; a vantagem em ampliar pelo menos para 1980 a data de cessação das relações com Portugal, opondo-se a todas as tentativas de a antecipar; e a necessidade de assegurar que todos os movimentos – ou nenhum – participem no governo transitório.

36Depois de ter considerado as sugestões apresentadas pelos dois movimentos, a delegação portuguesa apresentou a ambos uma nova versão. Propôs manter as datas de outubro de 1976 (eleição) e 1978 (cessação do vinculo a Portugal) pois representaria um meio-termo entre as posições contraditórias; mudou a designação dos membros do governo; e fez mais uns ligeiros acertos de redação. Ambos os movimentos reconheceram ter havido um esforço positivo e declaram-se prontos a subscrever o documento final. Assim, na sessão final, “feita a leitura em voz alta pelo major Mota do projeto inicial reformulado em harmonia com sugestões para que houve acordo nas sessões anteriores”, foi o mesmo aprovado por todos os intervenientes. Na sua substância, o texto de Almeida Santos não foi adulterado: o princípio que a autodeterminação de Timor passava por um processo eleitoral, com igualdade de oportunidades para todas as correntes políticas, e que os três movimentos locais deveriam ter assento na governação transitória, foi sufragado pelos presentes.

  • 35 Telegrama 74 Cif. Governador para MCI, AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1975 cifrados.
  • 36 Acta, reunião do Conselho da Revolução (09.07.1975), ANTT/CR/Reuniões-Actas vol 1, nº 1.

37Regressemos a Lisboa para o último momento crítico deste processo. A delegação nacional teve ocasião de apresentar os resultados da Cimeira de Macau, e ainda umas breves sugestões enviadas pelo governador em seu nome e da CDT,35 ao Conselho da Revolução na reunião de 9 de julho.36 Analisado o documento, o CR deu-lhe o seu assentimento e o Presidente da República promulgaria a 11 de julho essa peça de legislação constitucional como Lei 7/75. Chegava ao fim um longo processo de auscultação da sociedade timorense e de mobilização das autoridades portuguesas para encararem seriamente a necessidade de definir um quadro político concreto para Timor. Portugal assumia a responsabilidade de publicar com força de lei um roteiro que deveria conduzir à autodeterminação desta sua colónia. Contingências do destino ditaram que a Lei 7/75 fosse de escasso êxito e que o território viesse a viver tempos muito conturbados, poucas semanas após a definição legal desse roteiro. Coincidindo com a crise do IV Governo Provisório, as diligências para levar à prática o estipulado na lei não puderam ser contempladas antes de a situação no terreno ter ultrapassado os limites do que se imaginava em Macau. Não chegou a ser nomeado qualquer Alto-Comissário (apesar de ter havido um convite ao governador para esse efeito – o que não contaria com apoio no território) nem constituído o governo provisório do território (Pires 1991, 174 e 181). Timor mergulhou, em agosto, numa guerra civil que haveria de conduzir, por um lado, a uma declaração unilateral de independência, e, por outro, à invasão do território pelas forças armadas da Indonésia. O processo de autodeterminação ficaria assim posto de lado até 1999.

2. Uma via sinuosa entre Lisboa e Díli

38Visto o filme dos acontecimentos atinentes à definição de um roteiro para a autodeterminação do “Timor Português” que se desenrolaram entre abril de 1974 e julho de 1975, que ilações se podem tirar? Falar genericamente da posição de Portugal é um exercício difícil. Portugal é uma sinédoque no sentido de totum pro parte. As entidades – individualidades e instituições – que em Portugal estiveram envolvidas no processo de descolonização são inúmeras, e nem sempre a sua intervenção foi coordenada ou convergente. Lembremos que sobre o processo de descolonização se podiam pronunciar a Junta de Salvação Nacional (de 25 de abril de 1974 a 11 de março de 1975), o Presidente da República (nomeadamente a partir da publicação da Lei 7/74, de 27 de julho, que lhe aumentou os poderes), o Conselho de Estado (na fase que terminou também a 11 de março de 1975, quando detinha poderes constitucionais), os Governos Provisórios (com especial relevo para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, do I ao VI, do Ministério da Coordenação Interterritorial, do I ao IV, e do Ministério da Cooperação, no VI), a Comissão Nacional de Descolonização (criada em setembro de 1974 e em funcionamento pleno a partir do início de 1975 – vide Pereira 2021), a Comissão Coordenadora do MFA e seus sucedâneos, o Conselho de Revolução (a partir de 11 de março de 1975). Ao nível dos territórios coloniais intervinham os governadores, encarregados de governo ou altos-comissários, a par das estruturas próprias do MFA. Difícil é encontrar uma fonte única de legitimidade para justificar a presença de qualquer destes atores no tabuleiro das conversas que iriam decorrer ao longo de quase ano e meio. É com extrema cautela, pois, que podemos usar a expressão “Portugal”.

39É sabido que a descolonização de Timor não teve honras de primeira atenção. Os problemas em África ocupavam, pela sua premência, a primeira linha das preocupações. A existência de três teatros de guerra impunha a necessidade de encontrar maneira de pôr um fim ao conflito armado. Os movimentos de libertação das colónias portuguesas em África possuíam não só a legitimidade das armas como dispunham de meios organizativos significativos. Para além da guerra de guerrilha em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, uma organização comum – a Conferência das Organizações Nacionalistas das Colónias Portugueses (CONCP) – levava a que também Cabo Verde e São Tomé e Príncipe dispusessem de argumentos para reivindicar um tratamento semelhante ao das restantes possessões portuguesas em África, e apressassem o processo negocial. Apenas em Angola, e porque a força das armas assim ditou, é que Portugal negociou com mais do que um movimento de libertação, em todos os restantes reconhecendo os seus parceiros como “únicos e legítimos representantes” dos respetivos povos, mesmo quando – como foi o caso de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe – se desenharam movimentos distintos que viriam a soçobrar. Acresce que os movimentos de libertação africanos dispunham de importantes apoios internacionais, especialmente relevantes no quadro da Guerra Fria, e que, a nível interno de Portugal, possuíam importantes relações com partidos políticos, sobretudo no quadrante esquerdo da vida institucional.

40Tal não se passava em Timor, onde à data da Revolução dos Cravos não existia nenhum movimento nacionalista estruturado com presença no território, nem contactos internacionais de relevo – apesar da autodenominada “União da República Timor” (Fernandes 2005) – nem tampouco articulações com partidos portugueses, exceto as relações que alguns estudantes timorenses possuíam com movimentos de extrema-esquerda, nomeadamente o MRPP. Timor tinha, pelo contrário, semelhanças com as restantes possessões na Ásia: o chamado “Estado Português da Índia” e Macau. Em todos estes casos, tratava-se de territórios pequenos junto a vizinhos poderosos que reivindicavam direitos de soberania. A questão de Goa havia sido resolvida de facto com a intervenção militar de dezembro de 1961 que procedera à sua integração como estado autónomo na União Indiana. Após a revolução, Portugal haveria de reconhecer de jure tal situação através de céleres negociações que Mário Soares terminou com a assinatura de um tratado em dezembro de 1974 (Saldanha 2000). Quanto a Macau, a República Popular da China manifestou cedo a ideia de que se tratava de um território chinês sob administração portuguesa, pelo que não se tratava de reconhecer o direito à autodeterminação, mas sim o de proceder a uma negociação com vista a pôr termo a tal estatuto (Fernandes 2006). Aliás, a situação era peculiar desde meados da década de 1960, levando Boaventura Sousa Santos (1991) a considerar existir uma “soberania repartida” e Moisés Silva Fernandes (2017) a falar de uma “relação assimétrica”.

41A Indonésia, protestando a sua satisfação pelo processo descolonizador português e refreando a reivindicação territorial direta, não deixou de estar muito atenta ao que se passava em Lisboa e Díli, fazendo-se ouvir a partir do início de maio de 1974. Independentemente dos termos exatos em que a questão de Timor se viesse a pôr, era evidente para as autoridades portuguesas que a Indonésia seria um ator a ter em conta, contribuindo para emprestar uma especificidade ao caso desta colónia. As opções para a longínqua colónia no Sudeste Asiático foram emergindo devagar e com alguns solavancos e falsas partidas. A rápida resposta dos timorenses às novas condições criadas pela Revolução dos Cravos, formando logo três organizações a que correspondiam outras tantas opções estruturais, veio balizar o processo. A publicação da Lei 7/74 deu um passo em frente ao legitimar tal quadro de opções. Portugal começou por apresentar os traços globais a que deveria obedecer o processo de descolonização. Cedo compreendeu que a Indonésia não se iria contentar com um papel passivo, mas recusou a hipótese de considerar Timor como um caso idêntico ao do Estado Português da Índia ou de Macau que devesse ser resolvido através de negociações bilaterais. Pelo contrário, era em alguns territórios africanos, como Cabo Verde ou São Tomé e Príncipe, que Portugal via um paralelismo com a situação de Timor, se bem que a ideia de que a independência era irrealista estivesse arreigada em muitos espíritos do novo regime de Lisboa.

  • 37 Veja-se o Relatório de uma reunião da CND (28.02.1975), APSJ/Dossier Documentos 1975, no qual o P (...)
  • 38 Consulta da série completa do jornal Avante! entre maio de 1974 e dezembro de 1975.

42Devemos a Nuno Canas Mendes (2014) um estudo da “genealogia do debate em torno da viabilidade do estado em Timor-Leste”. Antes do 25 de Abril, Mário Soares escrevera no livro Portugal Amordaçado que “Timor é uma ilha indonésia que tem pouco a ver com Portugal”, cujo destino “depende exclusivamente da evolução da política mundial” (2017, 44 e 84). O general Costa Gomes assumiria que a independência de Timor era “irrealista” (Taylor 1999, 36) dado que “era uma terra muito pobre onde o número de analfabetos ascendia a 90 e tal por cento e os serviços de saúde eram maus” (Cruzeiro 2014, 321-322), e que o território se integraria facilmente na Indonésia, à semelhança do caso de Goa (Anderson 1993), dizendo numa reunião da CND que a integração se consumaria “dentro de cinco a seis anos”.37 O primeiro-ministro terá dito ao general Ali Murtopo, quando este visitou Lisboa, que a independência de Timor seria “um disparate” (Taylor 1999, 36). Quanto a Almeida Santos, vimos como as suas posições foram oscilando até se cristalizarem na proposta de um roteiro que poderia desembocar na independência ou na integração, assente numa consulta popular de que ao princípio pareceu escarnecer. Mesmo um partido do arco institucional comprometido com soluções radicais para as colónias africanas – o Partido Comunista Português – não incluía Timor nas suas proclamações sobre a descolonização, pouco ou nada referiu sobre o processo de autodeterminação em marcha e não saudou a proclamação unilateral de independência, reservando porém uma nota crítica para a invasão indonésia.38 O apoio incondicional a uma solução de independência estava acantonado nas organizações políticas de extrema-esquerda, com eco na opinião pública mas escasso impacto institucional.

43Uma das especificidades deste caso era, de facto, a presença de um poderoso vizinho, e Portugal acedeu desde os primeiros encontros a facilitar a intervenção – sobretudo de modo indireto via APODETI – de Jacarta no processo que estava a desenhar. No entanto, recusou sempre a proposta de resolução da questão de Timor pela via de negociações bilaterais com a Indonésia. A resposta ao dilema expresso por uma frase pintada numa parede em Díli – Descolonizar não é abandonar, mas também não é ficar (António 1982, 184) tardou em chegar. Quando finalmente conseguiu ser formulada, teve de passar pelo crivo do debate com os atores locais, processo que não foi fácil na medida em que estes, para além de um punhado de ideias básicas que ajudavam a definir o seu lugar no xadrez político do território, navegavam num território inexplorado onde a tática tendia a sobrepor-se a uma visão de conjunto. O que nenhum dos interlocutores sabia então é que, no início dos anos 1960, quatro países com projeção mundial e regional – o Reino Unido, os Estados Unidos da América, a Austrália e a Nova Zelândia – haviam mantido negociações secretas quanto ao futuro do “Timor Português” quando o colonialismo português chegasse ao fim, e haviam acordado, mesmo numa altura em que as relações entre eles e a Indonésia passavam por um período de turbulência, que a integração da colónia no seu vizinho era a solução desejável (Fernandes 2016)

  • 39 Ver “Os partidos políticos de Timor – sua caracterização no período 18/Nov a 25/Jun” (Anexos 4.29 (...)

44Socorrendo-nos de documentação coeva da autoria do governo de Timor podemos fazer um balanço da experiência de cada um dos movimentos nacionalistas neste período crítico.39 Assim, a APODETI, que as autoridades portuguesas admitiam ter reduzida expressão junto das populações, entendia que a integração era a solução ideal e que esse processo deveria ser conduzido diretamente entre os governos de Lisboa e Jacarta, negando-se a qualquer colaboração com o governo de Díli (Pires 1991, 81). Apesar do alinhamento estratégico com a Indonésia, e apoiada pelo cônsul em Timor, nem sempre as suas posições coincidiam com as que eram expressas por este país. Um desses desencontros girava em torno da realização de uma consulta popular, que a APODETI defendia que fosse o mais cedo possível, e da qual poderia vir a resultar uma decisão de pedir a integração. A APODETI manifestara-se disponível para participar na Cimeira de Macau, mas na sequência das suas conclusões insistia em não querer participar nos órgãos de poder a serem criados.

45A UDT era vista como tendo sofrido uma séria evolução no seu posicionamento quanto ao futuro do território, com posições muito oscilantes. Os autores dos documentos notariam que havia “falta de coesão na cúpula dirigente com a ala conservadora radical a preponderar” de início, mas a perder influência com o avançar do tempo, o que seria evidenciado pela coligação que fez em janeiro com a FRETILIN. Como que a confirmar essa análise, a ruptura de maio seria assacada à perda de peso de sectores moderados ou mesmo progressistas no seu seio. A UDT concitava apoios vários, entre os quais o do clero e do quadro administrativo herdado do regime anterior. Daí não ser de estranhar que manifestasse hostilidade em relação ao MFA local e fosse crítica do governador. Este partido manifestara disponibilidade para participar na Cimeira de Macau e regressara a Timor na disposição de colaborar ativamente no desenvolvimento da solução encontrada.

46Quanto à FRETILIN, procurava aparecer cada vez mais como a encarnação timorense dos movimentos de libertação das colónias africanas, aproximando-se sobretudo da FRELIMO. Este movimento fazia valer o “chefe carismático de que dispunha” para alargar o seu campo de influência, que era considerado como “significativo”, incluindo em sectores-chave como as forças armadas ou os movimentos de juventude. Para os observadores portugueses, também aqui seria sensível a dinâmica dos grupos internos, havendo uma ala mais articulada com os estudantes timorenses que regressavam de Lisboa. Aceitando em janeiro uma coligação com a UDT tendo em vista um processo longo de transição conducente a uma independência negociada, irá endurecer a sua posição. Desfeita a coligação com a UDT em maio, a FRETILIN passa a hostilizar a Cimeira de Macau, que acaba por boicotar.

3. Conclusão

47Os 15 meses que medeiam entre a Revolução dos Cravos e a publicação da Lei 7/75 sobre a Descolonização de Timor foram preenchidos por uma intensa troca de ideias entre as autoridades portuguesas – elas próprias a braços com a necessidade de definir uma posição concreta aplicada a um caso original no contexto da descolonização do seu império – e os três movimentos nacionalistas que se afirmaram a partir de maio de 1974, corporizando outras tantas opções estratégicas. Sem preocupações quanto a conflitos armados e a pressões externas para reconhecer movimentos de libertação com implantação local antes da revolução, Portugal levou bastante tempo a consolidar uma visão se não consensual pelo menos maioritária quanto ao roteiro a propor às organizações timorenses, o que só viria a conseguir nas vésperas da Cimeira de Macau, tendo navegado num mar de hesitações entre divergências internas e pressões provindas tanto de Timor como da Indonésia (Pereira 2021).

48Os movimentos nacionalistas, por seu turno, não dispunham de uma espessura histórica no terreno, e na sua constituição convergiram sectores distintos que se mantiveram ativos e condicionaram a emergência de posições taticamente consistentes. Foi assim um período em que todos os atores se debateram com problemas para apresentar um posicionamento consistente e em que a dialética entre eles contribuiu para afinar posições. A Cimeira de Macau, onde a FRETILIN esteve ausente por decisão própria, foi um momento de convergência em torno de um roteiro que permitia aos movimentos nacionalistas expressarem livremente as suas opiniões e lutarem pelo voto popular, e a Portugal resolver um problema pendente em consonância com as práticas recomendadas pela ONU, oferecendo as melhores garantias contra uma eventual intervenção externa no processo de descolonização de Timor. Essa convergência, se bem que não se tenha saldado na assinatura de um protocolo de acordo, resultou dos intensos contactos e conversações entre as partes que animaram todo esse período. As semanas que se seguiram à promulgação da Lei 7/75, porém, trouxeram novidades de monta – e de sinal negativo. Perante o agravar da situação no território, Portugal não logrou dar seguimento à Lei, embora tenha diligenciado nesse sentido. A descolonização de Timor haveria de seguir uma via bem diferente, envolta em tragédia.

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Notas

1 Apontamento de António Arnao Metello, Fundação Mário Soares (FMS), Fundo Arnao Metello (FAM), 11012.058. Sobre a controversa ação deste oficial, ver Pereira (2020).

2 Depoimentos de José Ramos-Horta, Xanana Gusmão e Mari Alkatiri in Arquivo Nacional de Timor-Leste (ANTL), Fundo Administração Portuguesa (FAP), ANTL/FAP/F4-176/Chega!.

3 Surgiria ainda outra associação – a ADITLA (Associação Democrática para a Integração de Timor-Leste na Austrália) – a qual, perante a recusa do governo australiano em contemplar a hipótese do seu programa, depressa deixou a cena política. Organizações mais pequenas e sem intervenção de relevo nesta fase seriam o KOTA e o Partido Trabalhista.

4 As relações entre Portugal e a Indonésia (1974-1975) foram analisadas em Pereira e Feijó (2021).

5 Curiosamente, a Indonésia não objetou à independência da Papua-Nova Guiné, outra metade de uma ilha partilhada, e que ocorreria em 1975, muito embora esse caso fosse de muito maior dimensão e potencialmente mais impactante.

6 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1974 Timor Secretos expedidos.

7 Discurso, Direcção de Arquivo e Biblioteca do Ministério dos Negócios Estrangeiros (DABMNE), PAA Prov. 10.

8 Vide Comunicado, Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT)/Fundo Ernesto Melo Antunes (FEMA)/Cx. 122; Telegrama 108 Sec., governador para MCI, AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1975 Timor secretos recebidos.

9 Telegrama 5 Sec. de MCI para governador, AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1975 Timor secretos expedidos.

10 Comunicado, ANTT/FEMA/Cx. 122.

11 Ver também telegramas 9 Sec. e 23 Sec., governador para MCI, AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1975 Timor Adm. Recebidos.

12 Telegramas 7, 8 e 15 Sec., MCI para governador, AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1975 Timor secretos expedidos.

13 Telegramas 14, 15, 16 e 21 Sec., AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1975 Timor secretos recebidos; Carta do governador ao PR e CEMGFA, Arquivo Histórico da Presidência da República (AHPR) GB0205/3567/007.

14 Decreto Provincial 15/75, de 10 de maio; Telegrama 50 Sec., governador para MCI, AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1975 Timor secretos recebidos.

15 Telegrama 28 Sec. MCI para governador, AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1975 Timor secretos expedidos.

16 Apontamentos (vários) de Silvério Jónatas, e Apontamento da Comissão de Descolonização de Timor, Arquivo Particular Silvério Jónatas (APSJ)/ Dossier Documentos 1975; Telegramas do governador para MCI 50 Sec., 52 Sec., 55 Sec., 59 Sec., AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1975 Timor secretos recebidos; Acta/Muito secreto, Comissão de Descolonização de Timor, ANTT/FEMA/Cx. 122; Ata/Muito secreto, Comissão de Descolonização de Timor, APSJ/Dossier Documentos 1975; Proposta da APODETI, APSJ/Dossier Documentos 1975.

17 Apontamento de Silvério Jonatas sobre a “Reunião da CDT com os partidos políticos – Coligação” a 7 de maio. APSJ, Dossier Documentos 1975.

18 Telegrama 29 Sec., MCI para governador, AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1975 Timor secretos expedidos.

19 Telegrama s/nº, secreto. PR para governador. Arquivo de Defesa Nacional (ADN), Gabinete do CEMGFA, PT/ADN/CEMGFA/022/0051/002.

20 Ata da reunião (19.2.1975) do III Governo Provisório, Centro de Documentação 25 de Abril (CD25A) Fundo Vítor Alves, SC2GovProv/Conselho de Ministros/Súmulas.

21 Comunicado do Chefe de Gabinete de Comunicação Social do Governo de Timor, APSJ/Dossier Documentos 1975.

22 Telegrama do Chefe Militar de Timor para Defesa Nacional, AHPR/GB0102/3569. Apontamento, Silvério Jónatas, APSJ/Dossier Documentos 1975.

23 Telegrama 67 Sec., governador para MCI, AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1975 Timor secretos recebidos.

24 Ata da CND, AHPR/GB0205/3562.

25 Telegrama 41 Sec, MCI para governador, AHU/MU/MCI/ Dossier de telegramas/1975 Timor secretos expedidos.

26 Telegrama 36 Sec. MCI para governador, AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1975 Timor secretos expedidos.

27 Apontamento, Silvério Jónatas, APSJ/Dossier Documentos 1975.

28 Carta, APSJ/Dossier Documentos 1975.

29 Telegrama, APODETI para PR, AHPR/GB0205/3567/002.

30 Apontamento, Silvério Jónatas, APSJ/Dossier Documentos 1975; Telegrama, Chefe Militar de Timor para Defesa Nacional, AHPR/GB0102/3569.

31 Telegrama 40 Sec., MCI para governador, AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1975 Timor secretos expedidos.

32 AHU/MU/MCI/Pasta 5 – Assuntos de Timor.

33 Projeto de agenda para negociações, CDT, ANTT/FEMA/Cx. 122. Os comentários ao texto de Almeida Santos que se seguem têm base fundamental neste documento.

34 Esta secção do artigo baseia-se na leitura das seis atas da Cimeira de Macau, ANTT/FEMA/Cx. 122.

35 Telegrama 74 Cif. Governador para MCI, AHU/MU/MCI/Dossier de telegramas/1975 cifrados.

36 Acta, reunião do Conselho da Revolução (09.07.1975), ANTT/CR/Reuniões-Actas vol 1, nº 1.

37 Veja-se o Relatório de uma reunião da CND (28.02.1975), APSJ/Dossier Documentos 1975, no qual o PR aparece com uma posição favorável a uma “integração a médio prazo”.

38 Consulta da série completa do jornal Avante! entre maio de 1974 e dezembro de 1975.

39 Ver “Os partidos políticos de Timor – sua caracterização no período 18/Nov a 25/Jun” (Anexos 4.29 e 5.25 do relatório de Lemos Pires em ANTT, FEMA, Cx. 122).

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Para citar este artigo

Referência do documento impresso

Rui Graça Feijó, «Os bastidores da Lei de Descolonização de Timor. Interação entre Portugal e os movimentos nacionalistas timorenses»Ler História, 80 | 2022, 17-40.

Referência eletrónica

Rui Graça Feijó, «Os bastidores da Lei de Descolonização de Timor. Interação entre Portugal e os movimentos nacionalistas timorenses»Ler História [Online], 80 | 2022, posto online no dia 14 junho 2022, consultado no dia 14 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/10120; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.10120

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Rui Graça Feijó

Centro de Estudos Sociais, Universidade de Coimbra; Instituto de História Contemporânea, NOVA FCSH, Portugal

ruifeijo@gmail.com

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