1A 20 de maio de 2002 teve lugar a proclamação da restauração da independência da República Democrática de Timor-Leste, passo final de um processo que no quadro da descolonização portuguesa foi tão longo quanto conturbado. A noção de funu (luta ou guerra) implícita no processo que conduziu à independência, bem como a sua valorização, é parte do movimento de construção de uma identidade nacional (Leach 2017), encontrando-se plasmada na própria Constituição do país: “A República Democrática de Timor-Leste reconhece e valoriza a resistência secular do Povo Maubere contra a dominação estrangeira e o contributo de todos os que lutaram pela independência nacional” (RDTL 2002, artigo 11º, ponto 1). O contributo que a academia pode dar neste contexto é o de aprofundar o conhecimento sobre a autodeterminação de Timor-Leste, começando por reconhecer que, no âmbito da descolonização levada a cabo por Portugal, se tratou de um caso muito particular, em grande parte original e repleto de singularidades, permanecendo ainda como o “parente pobre” na historiografia atinente ao assunto. Obras publicadas quer por ocasião dos 30 anos decorridos sobre a descolonização portuguesa (Lloyd-Jones e Pinto 2003), quer uma década mais tarde (Rosas, Machaqueiro e Oliveira 2015; Smith et al. 2016), evidenciam que, em termos comparativos, a longa e complexa descolonização de Timor-Leste, que se estende de 1974 a 2002, recebera uma reduzida atenção.
- 1 Projeto “A autodeterminação de Timor-Leste: um estudo de História transnacional” (FCT PTDC/HARHIS (...)
2Passado que foi o período de elevado envolvimento emocional que rodeou a questão timorense em 1999 e nos anos mais próximos (Almeida 1999), persiste ainda uma visão idealizada desse processo, parcialmente ditada pelo facto de se ter acabado por obter uma solução que parece responder a critérios exigentes de sucesso. Em certo sentido, estamos perante um exemplo do que se designa como whig interpretation of history: a procura no passado das origens de ideias vencedoras que subestima os contextos e as veredas tortuosas por que tiveram de passar. Neste quadro, e por forma a tentar ir para além das noções de senso comum, que se foram afirmando com grande força e não correspondem à realidade de uma história atravessada por hesitações, contradições e significativas mudanças de atitude por parte de importantes atores do processo, foi apresentado à Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) um projeto de investigação destinado a fazer o ponto da situação e a explorar novos caminhos de pesquisa, considerando que o processo assumiu um caráter transnacional e envolveu atores em vários países e pertencentes a diferentes instituições (como a Organização das Nações Unidas).1
- 2 Como produtos do projeto paralelos a este dossier, estão neste momento no prelo números especiais (...)
3O desenvolvimento do projeto contemplou a realização de uma conferência internacional, em março de 2021, com o apoio do Museu do Oriente em Lisboa e utilizando uma plataforma online que permitiu a presença de investigadores dos quatro cantos do mundo, sob o tema “A autodeterminação de Timor-Leste: resistência, diplomacia, solidariedade”. Os ensaios que agora se publicam foram originalmente apresentados no âmbito dessa conferência, e devem ser entendidos como contributos para a construção de uma refrescada imagem do processo de autodeterminação de Timor-Leste. Não é ainda o momento para uma visão de síntese, mas antes para trabalhar cada uma das pedras que irão constituir um mosaico final. Assim, a par de outras publicações, entendemos ser pertinente apresentar um dossier temático sobre a incidência em Portugal do processo de autodeterminação timorense.2
4À data da Revolução de 25 de Abril de 1974, o “Timor Português” estava inscrito na lista de “territórios não autónomos” aos quais a ONU reconhecia o direito à autodeterminação (Santos 2017). A sua situação era paralela à das colónias portuguesas em África. No entanto, outras características singularizavam este caso e aproximavam-no das restantes possessões portuguesas na Ásia: tratava-se de um pequeno território (meia ilha, com cerca de 15 mil quilómetros quadrados e uma população na casa dos 650 mil habitantes), rodeado de uma nação de grandes dimensões (a Indonésia, o maior país muçulmano do mundo, então com mais de 130 milhões de habitantes) e com ambições relativas ao seu futuro. Se é certo que a União Indiana havia anexado o “Estado Português da Índia” em dezembro de 1961, com a aquiescência da ONU (vindo a anexação a ser reconhecida por Portugal em dezembro de 1974), e que a República Popular da China havia conseguido remover Macau dessa listagem em 1972, assumindo desejar negociar com Portugal o futuro do que passara a “território chinês sob administração portuguesa”, ambos colocando o problema da descolonização desses dois territórios numa base diferente, as semelhanças entre os três casos eram evidentes e levavam a considerar que a Indonésia seria um parceiro importante no processo timorense – circunstância que não se verificou em nenhuma das colónias africanas.
5Outro traço distintivo de Timor-Leste era a inexistência de qualquer movimento nacionalista enraizado no terreno e com reconhecimento internacional. Só em maio de 1974 surgem três organizações que irão corporizar outras tantas opções de fundo: a manutenção de laços com um novo Portugal descentralizado (UDT), a integração na Indonésia (APODETI) e a independência a médio prazo (ASDT, depois FRETILIN). Tem sido referido que a participação de elementos do Movimento das Forças Armadas (MFA) residentes em Díli terá sido importante na formação deste quadro de opções (Pereira 2020; Hicks 2015). Certo é que o processo de descolonização de Timor não partiu da colónia para a metrópole (como em África ou mesmo no caso de Goa), mas sim da metrópole para a colónia – foi a Revolução dos Cravos que pôs em marcha tal processo que até então não se tinha manifestado senão de forma residual. No entanto, nenhum dos movimentos que se formaram em maio de 1974 tinha relações políticas com os principais partidos políticos portugueses, nem com o movimento anticolonialista dos anos finais do Estado Novo (salvo o caso pontual de alguns estudantes timorenses que em Lisboa simpatizavam com o MRPP e em Díli integraram a FRETILIN).
6A relação entre Portugal e Timor-Leste viria a configurar ainda outra singularidade. Anos mais tarde, quando se travava uma luta diplomática a propósito da “questão de Timor” e Portugal se tinha empenhado em obter garantias de que um genuíno ato de autodeterminação se viesse a realizar, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Jaime Gama, terá dito: “É raro a potência colonial fazer parte do movimento de libertação” (apud Neves 2019, 55). Portugal tinha inscrito na Constituição de 1976 o dever de lutar pela independência de Timor-Leste (artigo 307º) – caso eventualmente único nos anais da descolonização europeia. São conhecidos os contornos gerais do processo de autodeterminação de Timor logo após a Revolução dos Cravos: primeiro, Portugal procura definir uma posição genérica quanto à descolonização do seu império ultramarino, o que se traduzirá na publicação da Lei da Descolonização (Lei 7/74, de 27 de julho). Em relação ao caso de Timor, ao qual reconhecia singularidade, e por não estar sob a pressão da guerra como nos casos africanos, tratou sem pressa de desenvolver um roteiro específico. Para tal, não só estabeleceu contactos, por vezes referidos como de natureza “secreta”, com as autoridades indonésias (Pereira e Feijó 2022a), como procurou discutir com os movimentos nacionalistas os termos de um roteiro pacífico.
7Partindo da constatação que a independência do “Timor Português” seria inviável a curto prazo e que não havia condições para resolver a questão em termos idênticos aos que eram forçados a reconhecer nos teatros de operações africanos, os agentes políticos portugueses foram ensaiando várias soluções. As múltiplas vozes que se pronunciaram evidenciaram a falta de uma opção inicial suficientemente consensualizada, acabando por se fixarem num modelo que passava pela realização de uma consulta popular – em termos capazes de satisfazer os mais rigorosos critérios da comunidade internacional – na qual a população seria chamada a decidir, podendo optar pela integração na Indonésia ou a proclamação da independência (a possibilidade de uma continuidade de relações com Portugal cedo se desvaneceria). Estes termos, que procuravam seguir as orientações da ONU em matéria de descolonização, não agradavam aos indonésios, mas pareciam serem capazes de acolher, se não o apoio entusiástico de todos os movimentos nacionalistas, pelo menos uma tácita aceitação. A lei 7/75, de 17 de julho, que dava forma às posições que haviam sido apresentadas na preparação da Cimeira de Macau, plasmava o roteiro elaborado por Portugal com contributos dos movimentos nacionalistas timorenses. No entanto acabou por não poder ser levada à prática, apesar dos esforços de a reanimar em face das dificuldades supervenientes (Pereira e Feijó 2022b).
8A Constituição de 1976 cometia – caso especial, e com nuances que singularizavam cada uma das situações – as questões de Macau e de Timor à ação conjunta do Presidente da República, coadjuvado pelo Conselho da Revolução antes da sua extinção, e do governo. O caso de Timor haveria de emergir como um pomo de discórdia entre os principais responsáveis políticos, pelo menos na fase anterior à adesão de Portugal à então Comunidade Económica Europeia. Pedro Emanuel Mendes, no artigo aqui publicado, guia-nos pela via crucis da questão de Timor no mar encapelado da política nacional, mostrando como era patente o desacordo estratégico protagonizado pelas mais altas figuras do novo regime. A necessidade de “salvar a face” era um fator ponderoso, e daí derivavam alguns a vontade de encontrar uma saída airosa que não pusesse em causa o statu quo decorrente da invasão, alicerçando uma realpolitik que sublinhasse questões de caráter humanitário, sem reivindicar abertamente o exercício do direito à autodeterminação. Contra eles erguiam-se vozes com peso significativo, para quem “os princípios não se negoceiam”, e que pretendiam que Portugal adotasse posições mais firmes. Não sendo um assunto de primeiro plano – como viria a ser em anos posteriores, sobretudo na década de 1990 –, a questão de Timor vivia numa espécie de limbo da diplomacia portuguesa.
9Um dos aspetos centrais da posição portuguesa após a invasão consistiu na internacionalização do problema, apresentando uma queixa no Conselho de Segurança das Nações Unidas. E foi no palco das Nações Unidas e nas suas estruturas próprias – Assembleia Geral, Conselho de Segurança, Secretário-Geral, Comissão de Descolonização, Comissão de Direitos Humanos – que muito se jogou entre 1975 e 1999. Aurora Almada e Santos e Zélia Pereira trazem-nos uma análise do modo como a questão do “Timor Português” foi sendo sucessivamente tratada em sede da Assembleia Geral entre 1974 e 1982, tornando este artigo num companheiro privilegiado da análise que Peter Carey (2008) fez sobre a (in)ação do Conselho de Segurança antes de 1999, e cruzando-se com outros estudos já disponíveis (v.g. Silva 1995; Gunn 1997; Teles 2000; Reis 2013; Santos 2017).
10É sabido que a posição de Portugal mudou radicalmente entre o momento em que foram aprovadas as Resoluções 1541 (XV) e 1542 (XV), de 15 de dezembro de 1960, e posteriormente a Resolução 1699 (XVI), de 19 de dezembro de 1961, e os dias que se seguiram à Revolução de 25 de Abril de 1974. Se no princípio dos anos 60 Portugal se esforçou por contrariar por todos os meios ao seu alcance o estipulado nessas resoluções e conservar intocado o seu império colonial, a partir do momento em que a descolonização foi assumida como um desígnio nacional, Portugal passou a procurar respaldar as suas decisões no cumprimento dos preceitos das Nações Unidas. Quando a Indonésia se colocou fora do cumprimento de novas resoluções, Portugal procurou mobilizar os seus aliados para inverter o rumo dos acontecimentos. Foi um processo que não correu especialmente bem, uma vez que a cada ano que passava, e as atrocidades no território se avolumavam, os apoios à causa de Timor-Leste iam diminuindo, ao ponto de levar a uma mudança estratégica: colocar a questão nas mãos do Secretário-Geral da ONU (o que sucederia em 1982). Esse seria um novo capítulo que carece ainda de mais investigação (mas veja-se Pereira e Feijó 2022c).
11Pode parecer excessivo centrar a atenção sobre Portugal e as suas vicissitudes num domínio em que a agência própria de Timor-Leste poderia bem ser o íman que organizasse este dossier. Mas a condição de potência colonial, as responsabilidades assumidas no sentido de pugnar pela conclusão de um processo que, bem ou mal, tinha sido posto em marcha pela Revolução dos Cravos (e respaldado, ora timidamente ora de forma mais expressiva, pela opinião pública nacional e internacional), e a manutenção até 1999 de Timor-Leste na lista de “territórios não autónomos” sob responsabilidade portuguesa, justificam que nos tenhamos dedicado a fazer emergir uma imagem mais complexa, mais modulada e próxima dos dramas internos que este processo gerou em Portugal ou nas instâncias em que o país se envolveu. Sem subestimar o facto de que a solução que veio a ser encontrada em 1999 com a realização de um genuíno ato de autodeterminação se fica a dever antes de mais à têmpera de uma Resistência plurifacetada, o papel de Portugal nunca se afastou da primeira linha, mesmo que essa seja uma história marcada por uma polifonia de vozes nem sempre bem afinadas.