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Recensões

José Luís Cardoso, O Banco de Lisboa e a Revolução Liberal de 1820. Lisboa: Banco de Portugal, 2021, 366 pp. ISBN 9789896787806

Maria Eugénia Mata

Texto integral

1O Banco de Lisboa foi fundado em 31 de Dezembro de 1821. Passaram 200 anos e, por isso, o livro evoca e celebra a data. Por decisão das Cortes Constituintes reunidas após a revolução liberal de 1820, foi “uma inovação institucional que abalou as estruturas económicas, sociais e políticas da sociedade portuguesa, e que mostra a fragilidade do mercado de crédito em Lisboa nos finais do século XVIII e inícios do século XIX” (p. 11). São apenas 200 anos. E este foi o primeiro banco português. Esta é a origem da banca em Portugal. Pode citar-se D. João VI e a data anterior da criação do Banco do Brasil em 1808, no contexto da ida da família real e de toda a corte portuguesa para o Brasil, na sequência das invasões francesas. O banco teria vida breve: foi veículo de aceleração de despesas da corte e expediente para a construção de obras públicas. Estas dificuldades endémicas e o endividamento crescente explicam a sua insolvência. Foi extinto em 1829. Mas em Portugal, a data da criação do primeiro banco é a de 1821, e o Banco de Portugal é seu herdeiro.

2O país não tinha acompanhado o ritmo da criação de instituições bancárias que se verificou nas principais praças comerciais europeias. “Fabricantes, comerciantes e consumidores (…) tinham de recorrer a créditos junto de particulares para pagamento de salários, para compra de matérias-primas ou de géneros para venda a retalho, (…) para a realização das suas despesas, ou para pagarem dívidas anteriores” (p. 19). O endividamento individual e a concessão de crédito pessoal a juros faziam-se na base de relações de confiança com empréstimos avulsos na base de garantias ou laços contratuais sujeitos a imprevisibilidade e a risco. Casas nobres, membros da aristocracia, grandes negociantes, instituições religiosas, misericórdias, confrarias, irmandades e conventos faziam também o desconto de letras de câmbio, enquanto a Junta do Depósito Público se dedicava a operações de crédito recorrendo aos rendimentos de bens penhorados e sequestrados.

  • 1 Maria Eugénia Mata, José Rodrigues Costa, David Justino, “Darwinian Natural Selection or Political (...)
  • 2 David Justino, Origens da Bolsa de Lisboa (Lisboa: BVL, 1993) e História da Bolsa de Lisboa (Lisboa (...)

3Esta prática prestamista continuou por todo o século XIX: basta pensar no Conde de Farrobo. Eu acrescentaria que o caráter tardio do nascimento da banca em Portugal contrasta com o pioneirismo do nascimento da Bolsa de Lisboa.1 Era grande a consideração social de que gozavam os corretores: o alvará de 11.11.1491 estipulou que teriam posição na dianteira da procissão do Corpo de Cristo. As suas operações multiplicaram-se com a rota do Cabo e a necessidade do envio de frotas, a contratação da respetiva mão de obra, o apresto dos navios (com equipamentos, víveres e biscoito para as tripulações, e com as mercadorias que iriam trocar pelos apetecidos e exóticos produtos dos outros continentes). Contratos de futuros, operações de câmbio e companhias por ações (século XVIII) foram instrumentos financeiros que alimentaram as relações com as costas do Atlântico, a Índia e a Ásia em geral, e com o Brasil, em negócios ousados, sempre masculinos, claro, e envolvendo risco.2

  • 3 Maria Eugénia Mata, José Rodrigues Costa, David Justino, The Lisbon Stock Exchange in the Twentieth (...)

4Por documentação do Arquivo Municipal de Lisboa, foi identificada a existência de operações de bolsa ao ar livre, ainda no século XVI, na chamada “zona dos ferros” da Rua Nova dos Mercadores, um espaço cosmopolita que fervilhava de vida económica e de transações, com a presença de mercadores estrangeiros com negócios na praça de Lisboa (florentinos, genoveses, venezianos e milaneses) em virtude da deslocação para o Atlântico do eixo comercial do Mediterrâneo. No livro, a “zona dos ferros” está reproduzida nas páginas 16-17. Depois do terramoto, os comerciantes da praça de Lisboa escreveram uma petição ao Marquês de Pombal queixando-se da destruição da casa onde se reuniam, pedindo uma subscrição pública para um novo espaço. Pombal decretou as regras de funcionamento do mercado bolsista e o seu horário diário. Foi lançado para o efeito um imposto disfarçado, e o decreto de 16.01.1758 ordenou a reconstrução de instalações para a bolsa, que passou a funcionar no torreão sudeste do Terreiro do Paço.3

5Havia bolsa e não havia banca. Em 1796-97 Domingos Vandelli, cientista-naturalista italiano radicado em Portugal, redigiu pareceres sobre dois modelos de banco. Um era o dos bancos de depósito ou desconto, ou montes de piedade, locais ou regionais, com a missão de concentrar fundos disponíveis de irmandades, misericórdias e fundos públicos. Outro era o dos bancos de circulação e de hipoteca, privados, independentes do governo, para acudir às necessidades do estado (uma substituição do Erário Régio); seria banco de emissão de notas, com capitais estrangeiros, para adiantar ao estado rendimentos correspondentes às receitas. Não conseguiu interessados estrangeiros, e o assunto importante era a concessão de um empréstimo ao estado do montante necessário à amortização do empréstimo de 4000 contos em novembro de 1796 (gasto nas campanhas dos Pirenéus de 1793-95). Nenhum dos modelos foi avante. Também não teve sucesso uma tentativa de amortização do papel-moeda, de 1800. A desconfiança no papel-moeda, que inundava o mercado, trouxe a sua depreciação, com graves custos para a fazenda pública: o estado tinha de o aceitar nos pagamentos de impostos (e outros pagamentos ao estado) pelo valor nominal (facial), quando o seu valor de mercado era muito inferior.

6Houve três planos propostos para a criação de um banco, explica o livro: um de 1801, apresentado por Feliciano António Nogueira ao ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho; outro de 1803, de João Henriques Sequeira, um oficial da Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros e da Guerra, o Banco de Empréstimos sobre Penhores, para crédito do curto prazo a grupos sociais desfavorecidos; e outro de 1802, de Henrique Palyart de Clamouse, a chamar-se Banco de Portugal, com capital social de 4800 contos em 10 000 ações a subscrever por dez negociantes promotores, da oligarquia financeira portuguesa, para desconto de letras, depósitos, cobranças, pagamentos, transferências e emissão e circulação de notas, mas o capital inicial era só 1/10. Era um grupo que pretendia ganhar dinheiro e no projeto não referia o financiamento ao estado. Era por isso inatendível para D. Rodrigo de Sousa Coutinho.

7Enfim, a revolução liberal de 1820 foi o grande cenário para a redação de uma constituição e para um primeiro parlamento português, que quis resolver os problemas nacionais, nomeadamente a amortização do papel-moeda, uma emergência nacional. Todos estes aspetos são muito interessantes para a história monetária e financeira, e acrescentam muito à história do pensamento económico, de que José Luís Cardoso é um especialista. O pensamento de Adam Smith sobre a dívida pública e a forma de a financiar, a circulação monetária e as teses de David Hume são contributos que apresenta com muita elegância analítica para contextualizar o pensamento de autores portugueses conhecidos, como José Acúrcio das Neves, Carlos Morato Roma, Mouzinho da Silveira, Manuel Fernandes Tomás, Cláudio Adriano da Costa, José Ferreira Borges ou Borges Carneiro.

  • 4 Maria Eugénia Mata, The Portuguese Escudo Monetary Zone: Its Impact in Colonial and Post-Colonial A (...)

8Outro contributo do livro é o de desvendar o pensamento monetário de outros autores menos conhecidos: José Joaquim Freire, João Loureiro, João Carlos de Vam, Diogo Maria Gallard, João Lineu Jordão, José Inácio da Costa, Faustino José da Madre Deus, António José Pedroso de Almeida, Francisco Gomes Veloso de Azevedo, Filipe Arnaud de Medeiros, Diogo Ratton, Ezequiel da Costa Ricci, José Joaquim Bordalo, Manuel Rodrigues Lucas de Sena, Vicente Cardoso da Costa, Pedro Alexandre Cravo, António Maria Couto, José Liberato Freire de Carvalho, Nuno Pato Moniz, Paulo Midosi ou uma Comissão da Fazenda com Francisco Xavier Monteiro, Francisco de Paula Travassos, Francisco Barroso Pereira, Manuel Alves do Rio e ainda Ferreira Borges. Tendo publicado em jornais e em folhetos soltos, são agora aqui divulgados como contribuintes relevantes para estas matérias (para além dos debates parlamentares com os nomes dos respetivos deputados, que são fontes diretamente acessíveis). A antologia de textos que integra este livro (páginas 117-366) demonstra como a história do pensamento económico se tem focado apenas nos autores dos países ricos da época, sobretudo de língua inglesa e francesa, sendo afinal tão significantes, tão eruditas e tão criativas as elites culturais nos outros países, pequenos e menos desenvolvidos, como Portugal no século XIX. A política de preservação e divulgação de fontes, que o Banco de Portugal tem prosseguido, merece o maior aplauso e louvor: é um importante contributo para a academia e para a investigação historiográfica. Assim aconteceu também com o projeto sobre a Zona Monetária do Escudo, cujas fontes estão online no site da biblioteca do Banco de Portugal.4

  • 5 Nuno Valério, “A Companhia Confiança Nacional (1844-1846)”, Revista de História Económica e Social, (...)

9Sobre a atividade do Banco de Lisboa, este livro tem o essencial, desde a estrutura acionista, que veio a registar nomes femininos (por viuvez ou herança), aos seus diretores, dos depósitos no banco aos empréstimos ao estado, dos resultados operacionais dos relatórios anuais do banco às crises e suas interpretações (nomeadamente a de 1827, com suspensão da convertibilidade do papel-moeda), da contração da atividade do banco na guerra civil de 1832-34 ao nascimento do Banco Comercial do Porto em 1835 (também com direitos de emissão), da cooperação com os governos de Costa Cabral à crise de 1846. Nesta crise, o Banco de Lisboa viria a fundir-se com a Companhia Confiança Nacional para dar origem ao Banco de Portugal, que se tornou único banco emissor em 1891, e que desde 1931 é o banco central da economia portuguesa.5 O livro oferece muita reflexão sobre o papel dos bancos, a sua cooperação com o estado e com os governos, e sobre o seu papel para o crescimento económico. É um excelente livro. Está muito bem escrito e ilustrado.

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Notas

1 Maria Eugénia Mata, José Rodrigues Costa, David Justino, “Darwinian Natural Selection or Political Interference? A Political Economic History of the Lisbon Stock Exchange”, Journal of Private Enterprise, 30.1 (2015): 89-105.

2 David Justino, Origens da Bolsa de Lisboa (Lisboa: BVL, 1993) e História da Bolsa de Lisboa (Lisboa: Inapa, 1994).

3 Maria Eugénia Mata, José Rodrigues Costa, David Justino, The Lisbon Stock Exchange in the Twentieth Century (Coimbra: IUC, 2017).

4 Maria Eugénia Mata, The Portuguese Escudo Monetary Zone: Its Impact in Colonial and Post-Colonial Africa (London: Palgrave MacMillan, 2020).

5 Nuno Valério, “A Companhia Confiança Nacional (1844-1846)”, Revista de História Económica e Social, 13 (1984): 67-92; Maria Eugénia Mata e Nuno Valério, “O Banco de Portugal, único banco emissor 1891-1931”, Revista de História Económica e Social, 10 (1982): 49-69.

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Maria Eugénia Mata, «José Luís Cardoso, O Banco de Lisboa e a Revolução Liberal de 1820. Lisboa: Banco de Portugal, 2021, 366 pp. ISBN 9789896787806»Ler História [Online], 80 | 2022, posto online no dia 14 junho 2022, consultado no dia 17 janeiro 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/lerhistoria/10048; DOI: https://0-doi-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/10.4000/lerhistoria.10048

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Autor

Maria Eugénia Mata

Faculdade de Economia, Universidade Nova de Lisboa, Portugal

memata@novasbe.pt

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