1Temos muito orgulho em apresentar este dossier temático sobre o trabalho animal. Trata-se de um número especial e atípico da Laboreal, dado que a revista se dedica ao estudo do trabalho humano desde as suas origens. Assim, o presente número transgride a exclusividade da análise do trabalho humano para abrir um debate sobre o lugar dos animais, simultaneamente no campo científico e no campo social - e político - do trabalho.
2O processo de preparação do número salientou esta transgressão. As avaliações dos artigos apresentados neste dossier revelaram diferentes olhares e reações no que concerne esta questão: curiosidade e interesse... resistência e crítica, evidenciando também as dificuldades que podem ser encontradas por quem se aventura a salientar a experiência dos animais no espaço exclusivamente humano que o trabalho habitualmente revela.
3Porquê fazer um número sobre o trabalho animal numa revista sobre o trabalho humano? A pergunta sobre o “trabalho animal” surgiu apenas há alguns anos e é ainda amplamente negligenciada pelas ciências sociais e humanas centradas no trabalho. Tal inclui tanto a ergonomia como a psicologia e inscreve-se no que Dujarier denomina um “transtorno no trabalho” (Dujarier, 2021). O lugar dos animais nas investigações dedicadas ao trabalho real não foi desenvolvido até este momento. Esta é, então, a ocasião para que a revista possa alertar e questionar a nossa comunidade científica, particularmente a de fala portuguesa e castelhana, sobre a importância não só científica, como também ética e política desta questão.
4No plano epistemológico, a questão do “trabalho animal” procura influenciar, ou inclusivamente dissolver, a dualidade caduca entre a Cultura e a Natureza, na qual o trabalho funciona como um marcador histórico e fundamental. Não se trata de naturalizar o trabalho, como os sociobiólogos tentaram fazê-lo através da divisão do trabalho entre as formigas, por exemplo. Não. O movimento proposto aqui é o oposto: trata-se de repatriar os animais no domínio do trabalho, do qual foram excluídos pela referida dualidade (Porcher, 2014). Esta exclusão tornou os especialistas do trabalho cegos em relação aos animais na sua qualidade de atores do trabalho na produção de bens e de serviços.
5As ciências humanas e sociais construídas com base no estudo do trabalho humano podem contribuir para o esclarecimento e a mudança das condições de vida no trabalho dos animais. E também as dos seus companheiros de trabalho humanos, devido à relação que estabelecem. Não podemos pensar o sofrimento no trabalho dos criadores de gado e dos trabalhadores dos sistemas industriais de produção, como por exemplo os chamados feedlots ou os matadouros industriais, sem compreender o sofrimento animal no trabalho (Porcher, 2011). E vice-versa. Não podemos igualmente compreender a violência no trabalho dos cães-polícia, por exemplo, sem compreender a violência no trabalho dos polícias (Mouret, 2018).
6Os artigos deste número não propõem uma “sociologia dos animais”. Ou seja, os textos não se baseiam numa abordagem que isolaria as relações humano-animal como se se tratasse de uma espécie de etologia que não inclui a análise do trabalho real. Os artigos deste dossier inscrevem-se numa sociologia com os animais (Mondémé, Doré, & Michalon, 2016), e propõem uma sociologia das relações de trabalho entre humanos e animais, na qual se procura estudar a dupla ambivalência de cada uma das partes (objeto-sujeito, meio-fim) e as formas de trabalharem juntas. Neste sentido, explora-se a riqueza e a complexidade das diversas racionalidades relacionais do trabalho - e, por conseguinte, a racionalidade moral-prática - mas incluindo os animais. Trata-se, então, de observar o trabalho dos humanos com os animais - uma questão que já foi tratada pela sócio-antropologia (Salmona, 1994) - mas também - e essa é a novidade - de nos interessarmos pelo trabalho dos animais em si mesmo, no seu compromisso nas relações de trabalho. “Com” implica estar atento à maneira como os humanos e os animais mobilizam a sua própria subjetividade no trabalho e ao modo como se cria uma intersubjetividade que possibilita e enriquece o trabalho coletivo. A intersubjetividade apenas é possível se os animais forem reconhecidos como sujeitos de trabalho (Porcher, 2002; Porcher & Estebanez, 2019).
- 1 A categoria de animais domésticos não se resume aos chamados “animais de companhia”. Entre os anima (...)
7Colocam-se, então, as perguntas relativas ao modo como os recursos teóricos e conceptuais específicos do trabalho humano (como a coordenação, a subjetividade, o sofrimento, etc.) podem ser mobilizados para estudar o trabalho animal. Os artigos propostos neste número mostram claramente a contribuição da análise da atividade animal para a compreensão do compromisso dos animais domésticos [1] - cavalos, cães, touros - no cumprimento de tarefas e do seu lugar central nas instituições humanas de produção de bens e de serviços.
8Desde há vários anos, as relações das nossas sociedades com os animais domésticos, historicamente fundamentadas no trabalho, têm sido profundamente questionadas do ponto de vista ético, sob a crescente influência dos movimentos de defesa dos animais. “Violência”, “dominação”, “exploração”, “escravidão”: foi à volta desta retórica crítica, veiculada por universitários (Singer, 1975) e militantes da causa animal, que foram estruturados os denominados Animal Studies, arraigados nas sociedades ocidentais de forma duradoura, chegando inclusivamente a questionar radicalmente a domesticação dos animais.
9O trabalho animal (Porcher, 2021) é uma proposta científica, moral e política para pensar a “questão animal”. Esta procura mudar a perspetiva prescritiva e abolicionista e, por conseguinte, moralista. Esta abordagem salienta as condições de sofrimento dos animais no trabalho, bem como a sua gratificação. Assim, permite também repensar e reinventar a nossa relação de trabalho com os animais domésticos. Esta proposta encontra a sua réplica animalista (Blattner et al., 2019) no seio dos Animal Studies, mostrando assim a endogenização da crítica pelos intelectuais da causa animal. Porém, esta réplica não consegue descrever a riqueza e a complexidade das nossas relações de trabalho com os animais domésticos. Poucos elementos são explorados empiricamente sobre a natureza das relações que se tecem graças ao trabalho e, ainda menos, sobre o que o trabalho realmente é. Não restringir o trabalho animal aos Animal Studies e inscrevê-lo num debate com os especialistas do trabalho, introduz não só a possibilidade de reconhecer a sua condição ontológica e social de “trabalhador”, como permite igualmente pôr em evidência o carácter intersubjetivo do trabalho interespecífico, amplamente ignorado pela causa animal.
10A análise do trabalho animal abre também perguntas relativas ao lugar dos animais no capitalismo. Os animais domésticos continuam a ser uma mão de obra invisibilizada, e não simplesmente uma mercadoria, que participa na produção de bens e de riqueza. De facto, o trabalho animal rompe com a ideia do “dom gratuito” da natureza (Porcher, 2013). Como compreender então a produção e a acumulação no capitalismo sem considerar as forças animais - incluindo o trabalho animal - nas nossas diversas instituições e organizações?
11Por outro lado, o trabalho animal suscita interrogações sobre as relações de dominação entre os humanos e os animais na organização do trabalho em diferentes países. A primazia da racionalidade instrumental no trabalho, mediante a aceleração do ritmo de produção, é causa de sofrimento (Porcher, 2002; Mouret, 2012), do aumento das doenças profissionais e da degradação dos resultados do trabalho, não só para os humanos como também para os animais. O desafio é pensar na saúde no trabalho dos animais e dos humanos, e propor uma alternativa às abordagens dominantes sobre o “bem-estar animal”, ou o “bem-estar” no trabalho dos humanos que trabalham com animais.
12Uma particularidade do trabalho animal, em relação ao trabalho humano, é a morte animal. A organização de corridas de animais em diversos setores de produção de bens e de serviços repousa sobre a centralidade do trabalho (Porcher, 2002; Mouret, 2017, 2018; Mouret et al., 2019; Deneux, 2021) desde o nascimento e até ao fim de vida dos animais.
13Qual é a “pergunta do trabalho animal”? Podemos formulá-la da seguinte maneira: os animais trabalham? As investigações sobre o trabalho animal foram iniciadas há quinze anos em França por Jocelyne Porcher, a partir da hipótese da colaboração das vacas no trabalho de produção de leite (Porcher & Schmitt, 2010), apoiando-se sobretudo nos contributos teóricos da psicodinâmica do trabalho (Dejours, 2013a, 2013b). Os resultados dos primeiros trabalhos neste campo de investigação inédito, conduziram à interrogação não apenas sobre a colaboração, mas também sobre a cooperação dos animais no trabalho, bem como sobre o que significa trabalhar para um animal.
14Depois destes trabalhos fundadores, as investigações do Animal’s Lab (UMR Inovação em Montpellier), evidenciaram as especificidades da cooperação entre humanos e animais, esclarecendo as particularidades do trabalho animal e permitindo instituir um campo de investigação sobre o trabalho animal (Porcher & Estebanez, 2019). Estas investigações mostram como os humanos e os animais trabalham juntos em diversas atividades socioprofissionais (agricultura, polícia, exército, saúde, investigação, arte, ambiente, etc.). Sabemos agora que as regras de trabalho são construídas de modo intra e interespecífico: entre humanos, entre animais e humanos e entre animais (Porcher & Lécrivain, 2012; Mouret, 2017; Mulier & Porcher, 2022). Podemos também compreender como o trabalho animal, tal como o trabalho humano, pode conhecer diferentes destinos: o sofrimento e o prazer.
15O número que elaborámos aborda as dimensões mencionadas anteriormente. Com efeito, este dossier pretende descrever e restituir a centralidade e a complexidade do envolvimento dos animais no mundo do trabalho, com base em investigações no domínio das ciências sociais.
16Começamos com o artigo de Sophie Barreau, Jocelyne Porcher e Aurélie Verdon. As autoras propõem uma análise da atividade de um cavalo de corrida chamado The Revenant, que acompanharam durante a sua formação e ao longo do seu trajeto profissional. As autoras atualizam os debates sobre os desafios nas relações de trabalho dos cavalos de corrida, ou seja, as consequências do sucesso ou fracasso nas corridas na saúde e no futuro de um cavalo em relação à organização geral das corridas.
17Seguidamente, Vanina Deneux procura mostrar de que modo os cavalos adquirem uma segunda natureza através do trabalho. No âmbito dos grupos de trabalho humano-cavalo que competem a alto nível na disciplina do concurso completo de equitação, foi realizada uma investigação com oito cavaleiros de alto nível. Os resultados evidenciam toda a complexidade e riqueza das relações de trabalho entre humanos e cavalos. Procede-se à análise de uma relação ambivalente e desigual, na qual o humano procura realçar as qualidades físicas e mentais do atleta equino que se torna um indivíduo extraordinário.
18Charlène Dray propõe também um trabalho de campo sobre cavalos. Neste caso, com cavalos em cena. Artista e investigadora, a autora propõem-nos pensar o lugar da cenografia no âmbito de um processo de criação interespécie. Este artigo desenvolve a ideia de que a conceção de ferramentas digitais adaptadas à utilização de cavalos em cena lhes permite participar ativamente na representação teatral e produzir formas inéditas. A autora apresenta diferentes dispositivos cenográficos e a forma como estes induzem modificações comportamentais ou compromissos no trabalho dos cavalos em cena.
19Maria Fernanda de Torres, propõe entrar na Course Camarguesa através da análise do trabalho animal. Em particular, pretende prestar atenção à corrida do touro Biou ou Cocardier, que possui um conhecimento profissional próprio, que se encarna no corpo. A investigadora interessa-se pela estética do desporto, um modo de ser entre a arte e a competição, entre o instrumentalismo e a reciprocidade. Os jogadores podem confrontar-se e esforçar-se por vencer, ou podem procurar algo mais na relação de trabalho, abrindo assim uma busca estética do encontro. A autora interessa-se igualmente pelas condições de trabalho nos campos, bem como noutros possíveis empregos dos bovinos de pecuária da raça camarguesa.
- 2 Para descobrir um pouco mais:
20Os animais são dotados de moral? No encerramento deste dossier, Sébastien Mouret convida-nos a pensar na agência moral dos animais a partir do trabalho animal. Realizada em França, a sua etnografia compara o adestramento de cães-patrulha e a educação de cães-guia de pessoas invisuais. Estas análises esclarecem a relação dos animais com a violência e a benevolência para com os seres humanos através do trabalho animal. O autor presta particular atenção ao papel do treinador. Durante o adestramento, condenam-se os cães à agressividade (morder e golpear), o que lhes provoca sofrimento. Pelo contrário, com os cães-guia, o treinador participa em dois dos pilares da sua educação: o trabalho (inteligência prática) e o amor (laços afetivos) [2].
21Desejamos-lhes boas leituras!