- 1 Memes de internet são imagens estáticas ou vídeos com conteúdo humorístico que circulam nas redes s (...)
1Como desenvolver pesquisa de campo nas redes sociais? Fazemos prints da tela ou escrevemos diários como nos campos presenciais? Até onde a escrita consegue representar o que acontece nas mídias digitais? Como representar textualmente elementos tão imagéticos como publicações com fotos, vídeos e memes?1 A etnografia pode ser uma abordagem útil para descrever a infraestrutura das plataformas? Quais estratégias poderiam ser mobilizadas para que a escrita etnográfica conseguisse descrever, mesmo que parcialmente, a agência dessas mediações técnicas? A observação de publicações nas redes sociais caracteriza a perda da dimensão vivencial dos sujeitos?
2Esses e tantos outros questionamentos me acompanharam nos primeiros meses de desenvolvimento da minha tese de doutorado. Nessa pesquisa, observo o trabalho de um criador de conteúdo no Instagram buscando fazer aparecem algumas das diferentes agências que o atravessam. Foi na tentativa de traçar um caminho teórico-metodológico que me permitisse, ainda que parcialmente, operacionalizar meu trabalho de campo que cheguei às reflexões e ao exercício etnográfico que apresento neste artigo. Não pretendo responder e muito menos esgotar essas questões, apenas explorar alguns caminhos possíveis. Meu objetivo é sugerir experimentações interpretativas e metodológicas que podem ser úteis na investigação dos modos como nos relacionamos com as mídias digitais e seus efeitos.
3Com base na literatura, problematizo a centralidade da agência humana e o dualismo social-técnica presentes em produções sobre etnografia e internet. Aponto para a necessidade de levar em conta nas nossas narrativas antropológicas não só as perspectivas e as ações dos sujeitos, mas também a agência e a sistematicidade das mediações técnicas. Sugiro ainda que essas relações sociotécnicas tensionam e podem renovar a prática etnográfica. Em seguida, leituras nos campos dos science and technology studies, da “virada” ontológica e da antropologia da cibercultura me provocaram a buscar traçar análises menos lineares e antropocêntricas sobre o que acontece nas redes sociais. Inspirada nessas discussões, sugeri um olhar aos hibridismos, à distribuição de agência e às práticas-materiais para as etnografias no âmbito da antropologia digital. No texto, apresento minha tentativa, bastante limitada e inicial, de pôr essas recomendações em prática na pesquisa.
4A partir desses pressupostos, fui a campo na tentativa de rastrear algumas associações sociotécnicas presentes nas publicações de um criador de conteúdo chamado Lucas. Procurei deslocar o influenciador do centro da narrativa e fazer um esforço para não segmentar as descrições em aspectos sociais e técnicos. Para tanto, apresento o contexto da pesquisa e trago um relato de campo de um dia de publicações do interlocutor. Argumento que essas relações sociotécnicas, com suas agências humanas e maquínicas, constituem o trabalho de criadores de conteúdo. Ao fim, discuto os resultados apontando limitações, possibilidades e a necessidade de novos empreendimentos etnográficos.
5O relato trata-se, sobretudo, de uma experimentação, uma tentativa na construção de uma narrativa sociotécnica. Um esforço que, considerando seus desafios, não pode ser mais do que parcial e limitado. No fim, meu intuito é que comecemos a refletir sobre e testar formatos de pesquisas que visem agregar a agência dos objetos técnicos com as práticas e perspectivas particulares dos sujeitos, uma vez que esses comportamentos coemergem em associação.
6Enquanto abordagens que são sempre adaptativas, as etnografias para a internet – assim como qualquer empreendimento etnográfico – não seguem um modelo prescritivo preeexistente, mas são construídas através de motivações pragmáticas e teoricamente sensíveis, de modo a encontrar questões interessantes (Hine, 2020). Nesta seção, parto de discussões sobre etnografia e internet apontado alguns avanços e contribuições dessas perspectivas. Por fim, abordo como as relações sociotécnicas contemporâneas tensionam e impõem desafios à prática etnográfica.
7Em contraposição a pesquisas que tomavam a internet como um cenário à parte das interações face a face, Miller e Slater (2004) reconhecem o relacionamento complexo e nuançado entre os mundos online e offline. Para os autores advindos do campo da cultura material, há uma enorme diferença entre partir do pressuposto de que a internet produz relacionamentos “virtuais” e descobrir – durante a etnografia – que algumas pessoas tratam essas mídias como se fossem virtuais e as separam dos relacionamentos offline. Para pesquisar a internet, é preciso desagregá-la “[…] na profusão de processos, usos e ‘tecnologias’ sociais que ela pode compor em diferentes relações sociais” (Miller; Slater, 2004, p. 46).
8Os autores atualizam os estudos acerca das tecnologias digitais ao descontruírem a visão da internet como um objeto técnico reificado atuando em um dado contexto sociocultural que, por sua vez, era percebido isoladamente. Para eles, são os processos e as relações que produzem diferentes versões da internet. Ela é o que é feito dela e como ela é significada em cenários específicos por pessoas com interesses particulares. Ademais, tecnologia e contexto modificam um ao outro, o que torna impossível separar as relações online das offline. Ambos são múltiplos, situacionais e coproduzidos (Miller; Slater, 2004).
9Na área da sociologia da ciência e da tecnologia, Hine (2020) também levanta importantes discussões sobre como estudar a internet etnograficamente. De forma similar à Miller e Slater, a autora refuta a ideia de que haja uma distinção preexistente entre mundo real e virtual, online e offline, partindo do pressuposto de que a internet é, simultaneamente, um fenômeno contextual e criador de contexto. Conforme a autora, uma etnografia para – e não na – internet pode ter como objetivo seguir conexões, em vez de se concentrar em um lugar específico, e buscar “[…] entender a particularidade e a especificidade dos engajamentos com a Internet como um componente da vida cotidiana” (Hine, 2020, p. 12).
10Em sua perspectiva, essa etnografia exploraria o que as pessoas fazem da internet em situações particulares e o que elas pensam sobre o que fazem. Apesar de ter cunhado a expressão “etnografia virtual”, Hine argumenta que não se trata de um novo método específico para a internet, mas de como as especificidades dos contextos online renovam a prática etnográfica (Máximo et al., 2012).
11Em vez de compreender a internet como um (ciber)espaço dado e estável, com propriedades intrínsecas e distintas daquelas dos contextos “reais”, Hine, Miller e Slater apontam para os limites das separações entre real e virtual, online e offline, e de investigações que essencializam a internet e o digital. Seguindo o modus operandi das etnografias, eles propõem análises mais localizadas de como determinados grupos de pessoas experienciam e significam os dispositivos técnicos. Abordagens que reconhecem os aspectos particulares e situacionais das experiências com a internet avançam ao desmistificar suposições equivocadas de universalidade e uniformidade dessas experiências (Coleman, 2010).
12Entretanto, por mais que esses trabalhos reconheçam a agência dos objetos técnicos no cotidiano das pessoas e nas dinâmicas culturais, o humano ainda é o agente predominante nessas discussões. Ao pensarem em termos de “usos, apropriações e representações” das tecnologias pelos sujeitos, esses estudos mantêm a tendência observada por Rifiotis (2012, 2016) no campo da “cibercultura” de separar o social da técnica. Desse modo, modulamos o nosso olhar sempre para um dos eixos – seja para a tecnologia como uma estrutura reificada ou para o particularismo da ação humana – em vez de tentar compreender as conexões entre ambos e seus efeitos sem predefinições de agência (Latour, 2012).
13Quando tratamos a internet como um contexto no qual as relações sociais acontecem e nos concentramos no que as pessoas fazem e nos sentidos que elas atribuem ao que fazem, perdemos de vista o que seria o outro lado da moeda: o que, por sua vez, a internet faz as pessoas fazerem. Obviamente, esse enquadre não é sem razão. Afinal, os objetos técnicos não conversam com a gente e criar estratégias para fazê-los “falarem” é um desafio. Além de ser difícil metodologicamente, moralmente talvez não gostemos da ideia de que nós, humanos, não somos tão independentes e donos das nossas ações como gostaríamos. Em síntese, a materialidade importa não só pelo que fazemos com ela, mas pelo que ela faz conosco, ou melhor, porque coemergimos com ela.
- 2 Faço uso das aspas porque, por mais que seja um jargão da literatura, o que os estudos sobre plataf (...)
14Em um artigo recente, Cesarino (2021) questiona em que medida abordagens que privilegiam o conteúdo, o “usuário”2 e o particular em detrimento da mecânica, da plataforma e do sistema contribuem para limitar a antropologia digital à etnografia. Ela demonstra como a insistência na excepcionalidade etnográfica em estudos de mídias digitais pode levar à redundância teórica ao negligenciar os aspectos sistêmicos que operam no design das plataformas. A autora sustenta que, ainda que exista uma circularidade entre agência humana e maquínica, essas relações não são simétricas e a apreensão antropológica desse processo não precisa se limitar à perspectiva particular do usuário.
15Contudo, essa proposta não retorna a um essencialismo técnico a cujos constrangimentos os sujeitos estão submetidos passivamente, ideia que foi duramente debatida pelas pesquisas de cunho etnográfico. Agenciada pela cibernética batesoniana, Cesarino (2021, p. 305) afirma que
o que o novo ambiente cibernético [das plataformas] faz não é e nem pode ser controlar diretamente os usuários, mas eles alteram profundamente, e de formas imprevisíveis, as mediações sociotécnicas por meio das quais as próprias pessoas e sociedades se fazem, propiciando novas “ressonâncias” entre forças sociais, políticas e epistêmicas.
- 3 Affordance é um conceito da psicologia da percepção que tem sido utilizado por desenvolvedores de s (...)
16A autora argumenta que, apesar da sistematicidade da arquitetura das plataformas, as agências sociotécnicas – que emergem dos loops recíprocos entre comportamento dos “usuários” e das affordances das plataformas3 – podem produzir efeitos imprevisíveis e até antiestruturais (Cesarino, 2021). Logo, fenômenos em torno da internet e, mais recentemente, das plataformas digitais não podem existir de forma homogênea, estável ou independente, pois resultam do dinamismo das associações entre sujeitos e mediações técnicas. Aqui o viés da infraestrutura sistematiza, faz diferença, mas ainda está sujeito aos imponderáveis dessas relações.
17A questão é: a etnografia pode ser uma abordagem útil para descrever essa infraestrutura? Até que ponto uma “descrição densa” (Geertz, 2008) que não privilegie a perspectiva dos sujeitos é possível? Quais estratégias poderiam ser mobilizadas para que a escrita etnográfica conseguisse descrever, mesmo que parcialmente, a agência desses objetos técnicos? O desafio seria pensar em possibilidades metodológicas e analíticas que reconheçam os padrões sistêmicos das plataformas de redes sociais ao mesmo tempo que mostrem como as pessoas reagem localmente a eles. Sem se limitar a um eixo ou outro, descrevendo como essas associações sociotécnicas acontecem na prática.
- 4 Print screen é uma funcionalidade presente nos computadores e smartphones que permite realizar uma (...)
18Obviamente, este artigo não tem a pretensão de resolver essas questões. O intuito aqui é apontar para esses impasses e sugerir experimentações que podem ser úteis na investigação dos modos como nos relacionamos com as mídias digitais e seus efeitos. Meu interesse é provocar o debate sobre como a etnografia, enquanto uma abordagem adaptativa, pode se reinventar a partir desses objetos de estudo (Hine, 2020). E, sobretudo, se é possível descrever a agência das mediações técnicas a partir de um viés que busque ser menos antropocêntrico, mas que também não se restrinja à coleta e à análise de prints4 retirados da internet. Já que, dessa forma, se perderia de vista o caráter interpretativo e a natureza pessoal que são constitutivos de toda experiência etnográfica (Máximo et al., 2012).
19No fim, meu objetivo é que comecemos a refletir sobre e testar formatos de pesquisas que visem agregar uma análise da máquina, do sistema, do viés algorítmico das plataformas com as práticas e perspectivas particulares dos sujeitos, uma vez que esses comportamentos são coemergentes. Como disse Cesarino (2021), ambos os esforços são antropológicos e sua relação não é de exclusão ou concorrência, mas de complementaridade. O problema é como realizar essa tarefa, novamente, sem se limitar ao excepcionalismo etnográfico (Cesarino, 2021), mas também sem renunciar ao caráter relacional que é intrínseco às etnografias. E, ainda, sem desintegrar a investigação em duas pesquisas diferentes, saindo do binarismo universal e particular, plataforma e usuário, social e técnica.
- 5 Grupo de Pesquisa em Ciberantropologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O GrupCibe (...)
20A sugestão de Cesarino (2021) é realizar esse movimento por meio da cibernética batesoniana, já os pesquisadores do GrupCiber5– coletivo de pesquisa do qual faço parte – propõem uma abordagem sociotécnica inspirada em Latour. Embora as duas propostas me pareçam igualmente válidas e instigantes, a segunda dá mais ênfase à etnografia como um caminho possível, de modo que a explorarei mais detalhadamente a seguir.
21Nesta seção, apresento algumas discussões que inspiraram a experimentação etnográfica que propus no presente artigo. Para isso, traço certas tendências e conexões entre os science and technology studies (STS), a “virada” ontológica e a antropologia da cibercultura. Essas abordagens não são novas e nem seguem uma linha teórica homogênea, mas são lentes conceituais interessantes para pensar as relações sociotécnicas nas plataformas de redes sociais e podem contribuir para a construção de estratégias etnográficas no campo da antropologia digital.
22Em um sentido mais restrito, os STS seriam aqueles trabalhos que investigam os processos por meio dos quais o conhecimento científico e os artefatos tecnológicos são construídos, assim como as mudanças nos mundos sociais e materiais mais amplos que ocorrem como parte da coprodução entre ciência, tecnologia, natureza e sociedade (Hess; Sovacool, 2020). O desenvolvimento desse campo remonta a discussões nos estudos da ciência dos anos 1970 e 1980 que atentavam para a influência dos “fatores sociais” na constituição do conhecimento científico (Bloor, 2009; Kuhn, 2003).
23Anos mais tarde, cientistas sociais começaram a realizar trabalho de campo em laboratórios se direcionando também para as práticas materiais da ciência (Jensen et al., 2017). Nesse contexto, Latour e Woolgar (1997) demonstram como a produção dos “fatos” científicos depende de diversos fatores materiais, além daqueles conceituais. Em trabalho posterior, Latour (2013, p. 12) argumenta que, apesar dos esforços da epistemologia ocidental para distinguir as disciplinas e seus respectivos âmbitos de atuação, os fenômenos investigados se desdobram em redes que são “[…] ao mesmo tempo reais como a natureza, narradas como o discurso, coletivas como a sociedade”.
24Desse modo, além de reconhecer a importância da materialidade e das habilidades incorporadas na fabricação dos fatos científicos, Latour aponta para os limites de se manter ora a natureza, ora a sociedade, como eixos explicativos dos fenômenos. A partir desses argumentos, o autor desenvolveu, ao lado de Callon e Law, a teoria ator-rede (TAR), na qual o social é compreendido como o efeito de associações entre humanos e não humanos, de modo que a TAR se concentraria em rastrear esses movimentos (Latour, 2012). Nesse sentido, “ator” e “rede” representariam duas faces do mesmo fenômeno, sendo micro e macroefeitos locais da associação a entidades circulantes e não o reflexo de interações locais e estruturas globais (Latour, 1999).
- 6 Depois, Latour (2012) passou a adotar o termo “actante”, que são tudo aquilo que age, deixa traço, (...)
25Com influência da etnometodologia, a TAR tem base empírica e busca aprender com os atores6 sem impor agências ou definições a priori. Ao assumir uma postura antiessencialista, Latour (1999) defende que é possível obter mais seguindo circulações do que definindo entidades, essências e províncias. Portanto, a TAR não pretende dar explicações sobre o comportamento ou as razões dos atores, mas encontrar os procedimentos que os tornam aptos a negociar caminhos por meio de suas atividades de construção de mundo (Latour, 1999).
26Como mencionei, essa abordagem não é nova e tem seus limites, como qualquer esquema interpretativo. A ideia não seria se restringir à TAR, mas aproveitar alguns de seus argumentos para colocar no mesmo plano de agência “usuários” comuns, influenciadores, publicações, infraestruturas tecnológicas, interesses das big techs, entre outros actantes, para descrever o que acontece nas plataformas de redes sociais. Sugiro que, nessas associações, as barreiras entre materialidade, discurso e coletividade são difíceis de sustentar. A TAR abre portas para que se busque visibilizar essas relações sem caracterizá-las em “reinos” do real e do virtual, do social e da técnica, da subjetividade e da objetividade. Por essa razão, ela pode ser útil, nos conduzindo a análises menos lineares, causais e antropocêntricas.
27A proposta teórico-metodológica da TAR levanta reflexões importantes como a agência dos objetos, a coemergência de entidades humanas e não humanas, o social como um movimento de associação e, principalmente, a apreensão de uma realidade que não é só representacional, mas também concreta. Essa tendência de retorno à prática e à materialidade, geralmente conhecida como “virada ontológica”, é influenciada por Latour, mas vai além dos estudos sobre ciência e aparece em distintas formas nos STS, na antropologia e na filosofia (Jensen et al., 2017).
28Nesse contexto, autoras como Mol (1999, 2002), Haraway (2000) e Verran (2001), cada uma com suas particularidades, discutem como relações práticas-materiais transformam a natureza dos agentes envolvidos e produzem realidades concretas. Na antropologia, essas discussões aparecem alinhadas com as críticas pós-coloniais da representação e as preocupações sobre como lidar com a alteridade de forma mais simétrica (Jensen et al., 2017; Strathern, 2006; Viveiros de Castro, 1996; Wagner, 2018). Em todos esses trabalhos, as descrições empíricas extrapolam uma epistemologia ocidental que separa sociedade e cultura de técnica e natureza. Quanto mais nos ativermos às práticas-materiais que compõem as realidades concretas, mais difícil fica sustentar essas divisões e identificar quais são os seus limites.
29Nos estudos das “novas tecnologias”, esse também é o caso. A tarefa de isolar analiticamente as intervenções entre capital, ciência, técnica e cultura é demasiadamente complicada quando se fala em tecnologias de computação e de informação e em biotecnologias. A chamada “cibercultura” refere-se a esses dois campos sociobiotécnicos: o primeiro está associado ao regime de tecnossocialidade – processo de construção sociocultural a partir das novas tecnologias de computação e de informação – e o segundo, ao de biossocialidade – nova ordem de produção da vida, da natureza e do corpo através de intervenções tecnológicas fundamentadas na biologia (Escobar, 2016).
30Os esforços antropológicos para explorar a relação entre cultura e os desenvolvimentos técnico-científicos se iniciaram na década de 1960 com a cibernética e ampliaram-se na década de 1990 a partir de noções como “ciberespaço” e “ciborgue”. Essas reflexões levaram (mais uma vez) ao questionamento das categorias modernas que definem o natural, o orgânico, o técnico e o textual (Escobar, 2016). No âmbito nacional, há uma variada e crescente produção em torno da antropologia da ciência e da tecnologia (ACT) com forte presença da TAR e dos empreendimentos etnográficos (Rohden; Monteiro, 2019). Nesse contexto, os STS e, principalmente, a obra de Latour levaram os pesquisadores do GrupCiber a sugerirem que as etnografias no campo da “cibercultura” fossem realizadas em termos de rastreamento e descrição de associações entre humanos e não humanos. Para eles,
[…] a etnografia posiciona e situa a cibercultura para o lugar onde ela é produzida e significada cotidianamente, ou seja, nas práticas, experiências e sensibilidades da vida vivida e não daquela imaginada. Ali, onde pessoas, artefatos e outros seres são cruzados e coproduzidos com e pelas tecnologias digitais (Segata; Rifiotis, 2016, p. 10).
31Contudo, seja sob o rótulo de “cibercultura” ou da categoria mais geral de antropologia digital, como tem-se preferido denominar nos últimos anos (Rohden; Monteiro, 2019), não cabe aos estudos da tecnociência reivindicar uma “nova ordem social”: mais complexa, híbrida e pós-humana. Um argumento crucial defendido por Strathern (1994) é que nunca houve uma “pré-cibercultura”. Não há vida social que não seja complexa se analisada em termos do concreto e do heterogêneo, como tem sido feito com as tecnologias. Portanto, as relações sociais são, por si só, fenômenos híbridos desde que se esteja disposto a percebê-las em detalhe (Strathern, 1994). Como atesta a literatura, o hibridismo e a distribuição da agência não são uma novidade da contemporaneidade e do “digital” (Rifiotis, 2012).
- 7 Segundo Jensen et al. (2017), alguns antropólogos veem a teoria ator-rede como uma metateoria, na q (...)
32Como foi visto, um retorno às práticas-materiais em estudos fundamentados empiricamente, um olhar sobre a natureza sociotécnica das coisas e das pessoas e a crítica às categorias de análise ocidentais são temas que atravessam as perspectivas teórico-metodológicas mencionadas nesta seção – cada uma com seus limites7 e suas particularidades. Obviamente, os problemas da representação do outro, do reconhecimento da agência dos objetos e da descrição das associações entre humanos e não humanos não são resolvidos por essas abordagens, mas são evidenciados e debatidos criticamente, o que é sempre potente e produtivo.
33Desde Latour, passando por autores mais contemporâneos da antropologia e dos STS, até as pesquisas no âmbito das “novas tecnologias”, estamos pensando em como fazer avançar essas questões. Como operacionalizar nossos trabalhos de campo visando proposições tão desafiadoras? Como incluir a agência dos objetos nas nossas narrativas antropo-lógicas? Como descrever associações sociotécnicas que, muitas vezes, sequer conseguimos visualizar? Como reconhecer a importância da materialidade quando, quase sempre, nossas pesquisas se voltam para compreensão dos significados das coisas para os sujeitos? Como ir além da nossa própria epistemologia ocidental e não dividir o mundo em social e técnico nas nossas pesquisas? Por fim, como uma abordagem sociotécnica pode contribuir para os estudos da antropologia digital?
34Sugiro que os argumentos apresentados até aqui podem nos conduzir a estratégias etnográficas orientadas aos hibridismos, às associações e às práticas-materiais, repovoando as narrativas do digital com outros entes que também o compõem (Rifiotis, 2012). A seguir, apresento minha tentativa, bastante limitada e inicial, de pôr essas recomendações em prática no trabalho de campo.
35Em outro momento, sugeri, com base em especulações teóricas, que descrever o fluxo de acontecimentos permitiria rastrear a rede sociotécnica da qual emerge o trabalho de influenciadores digitais (Ribeiro, 2021). Agora, para o exercício que proponho neste artigo, me debruço sobre o desafio que é operacionalizar os pressupostos discutidos anteriormente na prática etnográfica desse campo. Para tanto, apresento o contexto da pesquisa e analiso publicações no perfil de um influenciador no Instagram. Projeto que se trata, sobretudo, de uma experimentação, um esforço na construção de uma análise sociotécnica.
- 8 A pesquisa nas redes sociais envolve dilemas éticos que ainda não sei como resolver. O perfil de Lu (...)
36Ao longo do desenvolvimento da minha tese de doutorado, que está em andamento, acompanho o trabalho de um criador de conteúdo no Instagram – que chamarei aqui de Lucas8 – desde o primeiro semestre de 2020. Nessa pesquisa, parto da ideia de que a produção de um influenciador nas plataformas de redes sociais não resulta somente da ação de um sujeito ou mesmo de sujeitos. Em uma perspectiva sociotécnica, ele é o efeito de uma vasta rede de relações entre textos, imagens, pessoas, mediações técnicas, mercado, etc.
- 9 Embora, no texto, eu utilize “influenciador digital” e “criador de conteúdo” como sinônimos, eles n (...)
- 10 Além do Instagram, Lucas tem mais de 160 mil seguidores no Twitter, mais de 96 mil na Twitch e mais (...)
37Lucas, paranaense de 36 anos, é criador de conteúdo há mais de 15 anos.9 Iniciou sua carreira produzindo conteúdo em sites e blogs. Atualmente, ele se dedica à produção do seu podcast, faz transmissões ao vivo diariamente na Twitch e cria conteúdo no Instagram, YouTube e Twitter. Ele também tem uma comunidade com conteúdo exclusivo para assinantes na plataforma Hotmart. Seu perfil no Instagram tem mais de duas mil e quinhentas publicações e é seguido por mais de 101 mil pessoas.10 Já o conteúdo compreende temáticas das mais diversas: alimentação, política, cultura pop, humor, paternidade, vestuário, relacionamentos, criação de conteúdo, publicidade para marcas patrocinadoras, etc.
- 11 Conforme Duffy (2020), os influenciadores digitais se caracterizam por uma quantidade significante (...)
38Como pode-se ver, Lucas circula por muitos ambientes nas mídias digitais, produzindo conteúdo em diferentes formatos e sobre os mais diversos domínios. No entanto, a escolha de acompanhar seu trabalho não segue uma justificativa metodológica. Não existem predeterminações que façam de Lucas um modelo generalizável de influenciador digital. Apesar das semelhanças,11 cada criador de conteúdo o é de uma forma específica e em um contexto relacional único, o que fica claro nas descrições de campo.
39A decisão de observar o trabalho de um criador de conteúdo se deu pelo fato de eles lidarem de forma mais ativa e reflexiva com as mediações técnicas presentes nas plataformas e em razão da intensa atividade interacional que ocorre em seus perfis – já que eles costumam ter muito mais seguidores e publicações do que o usuário comum. Desse modo, o “campo” da pesquisa compreende as práticas, as narrativas e as relações observadas no perfil de Lucas no Instagram e nos vídeos da sua assinatura na Hotmart, em que o influenciador trata da criação de conteúdo. O objetivo foi seguir o trabalho de um criador de conteúdo, buscando descrever a coprodução entre seguidores, influenciador e affordances do Instagram.
40O Instagram foi desenvolvido por Kevin Systrom e Mike Krieger em 2010 e foi adquirido pela empresa Facebook em 2012. Gradualmente, os interesses comerciais da big tech no mercado de dados ocasionaram em uma série de transformações na plataforma visando o aumento do tempo de tela, como a incorporação de novos formatos de conteúdo, mudanças na infraestrutura algorítmica e inserção de anúncios (Leaver; Highfield; Abidin, 2020). As motivações para realizar as observações no Instagram se deram: a) pela minha familiaridade com a plataforma, facilitando a compreensão de seus recursos e funcionamento; e b) pela necessidade de um recorte de campo, dado o extenso volume das publicações de Lucas.
- 12 O feed de notícias é onde os “usuários” de uma rede social podem visualizar e interagir com o conte (...)
41Em 2016, foram lançados os stories no Instagram, que são publicações de imagens estáticas ou vídeos curtos verticais e que se autodeletam em 24 horas. Enquanto no feed de notícias12 os conteúdos costumam ser mais elaborados, nos stories eles são mais espontâneos e despretensiosos (Bentes, 2021). O interesse pelos stories se baseia no fato de que, por ser um conteúdo temporário, os influenciadores tendem a publicar diariamente e várias vezes ao longo do dia nesse formato, tornando-o um bom “lugar” para observar o que acontece nas redes socais. No caso de Lucas, além de compartilhar seus interesses e rotina, os stories são também um espaço de constante diálogo com os seguidores.
42A seguir, apresento um relato de campo baseado na observação de publicações no perfil de Lucas no Instagram em um período de 24 horas. No texto, descrevi os conteúdos e tracei reflexões com base na literatura e nas falas do interlocutor sobre criação de conteúdo. Como foi dito, na narrativa, busquei pôr em prática os pressupostos teórico-metodológicos apresentados ao longo do artigo.
43Na terça-feira pela manhã, dia 27 de abril de 2021, peguei meu smartphone e abri o Instagram. Na parte superior da interface, a primeira imagem que aparecia era o avatar do perfil de Lucas. Como se sabe, os algoritmos de recomendação das plataformas de redes sociais organizam os conteúdos de forma personalizada com base na relevância da publicação e nas preferências de cada usuário (Mosseri, 2021). Assim, o próprio design do Instagram já me direciona a olhar para o que há de novidade nos perfis que eu acompanho. Lucas é o primeiro da lista, pois, além de publicar muito, o que é uma estratégia dos criadores de conteúdo para ganhar visibilidade algorítmica (Bishop, 2019; Cotter, 2019), seu perfil é um dos mais acessados por mim.
44Ao clicar no avatar de Lucas, se abre a aba de stories, na qual é possível observar todas as publicações desse tipo que ele fez no dia anterior, segunda-feira. Eu precisava ser rápida porque, em uma hora, os primeiros stories – que têm duração de 24 horas – desapareceriam. Para acompanhar seu conteúdo, preciso acessar a plataforma todos os dias em um horário anterior àquele do primeiro story do dia antecedente. A temporalidade efêmera dos stories induz as pessoas a voltarem ao aplicativo para não perderem nenhuma publicação, aumentando o tempo de tela e, consequentemente, a produção de dados (Leaver; Highfield; Abidin, 2020).
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45De volta ao perfil, em torno das nove horas da manhã da segunda-feira, Lucas postou o seu primeiro story do dia: uma foto sua na frente de um grande espelho, vestindo uma camiseta azul clara, uma calça de moletom também azul e meias pretas. Na legenda, em fontes diferentes, a frase: “Bom dia, cacete.” Em seguida, outro story: o compartilhamento de uma nova publicação no feed do perfil com a legenda “Café amargo no feed, compartilhe a desgraça”, sendo a palavra “café” substituída pela imagem de um emoji13 na forma de uma xícara de café.
46O “café amargo” a que Lucas se refere consiste em uma série de fotos de xícaras de café com frases “desmotivacionais”. Saindo da aba dos stories e indo para o feed do perfil, vejo que se trata de três fotografias dessas xícaras, cada uma com as seguintes legendas: “É a pandemia ou você é realmente solitário?”; “Evite ser desagradável. Evite ser você”; “Frio. Ela se aquece com outro.” Diferentemente dos stories, que têm duração de 24 horas, as publicações no feed ficam salvas no perfil. Entretanto, nesse caso, a publicação no feed era um copilado dos “cafés amargos” que receberam mais interação dos seguidores na semana anterior.
- 14 Lucas tem um serviço de assinatura paga no qual disponibiliza semanalmente aulas sobre criação de c (...)
47Em suas aulas,14 Lucas explica que, para gerar conexão com a audiência, é preciso criar conteúdo com personalidade, que esteja atrelado à figura do influenciador. Para isso, pode-se desenvolver uma linguagem própria, padrões estéticos, memes e piadas internas. Ele diz que esses “gatilhos de identidade” fazem com que as pessoas o reconheçam no “meio de multidão”. Afirma que as pessoas não acompanham um perfil pelo conteúdo em si, mas pela personalidade do criador e pelo modo com que ele transmite valores e informações. Muitos influenciadores criam memes ironizando momentos da vida, mas só Lucas o faz no formato e com a linguagem do “café amargo”.
48Todos os dias, Lucas posta stories com bom dia, café amargo, uma foto na academia, uma lista de “atividades do dia” e a ferramenta “perguntas”. Conteúdos que mostram a rotina ou que sejam recorrentes são bastante comuns nos perfis de influenciadores, sobretudo em publicações temporárias como os stories, e a repetição não parece ser um problema para os seguidores. Na verdade, o acesso aos “bastidores” ou à vida cotidiana dos criadores de conteúdo é apontado pela literatura como estratégia para aumentar a relacionalidade com os seguidores (Abidin, 2016, 2017; 2021b; Marwick; boyd, 2011).
49Criar uma rotina de publicações também é uma forma de manter a constância na produção de conteúdo. Postar todos os dias, em diferentes horários e em grande quantidade agrada não só aos seguidores, mas também à arquitetura algorítmica da plataforma. Criadores de conteúdo estão o tempo todo negociando estrategicamente com algoritmos e com as normas e diretrizes de uso das plataformas no intuito de ganhar mais visibilidade, melhorando sua posição no ranking de publicações (Bishop, 2019; Cotter, 2019).
50Nas aulas, Lucas fala que criar conteúdo na internet é colocar o seguidor dentro de uma rotina, acostumar a audiência. Para ele, todos os criadores têm um padrão que repetem todo santo dia, porque os seguidores gostam de entrar nos perfis e saber o que vão encontrar. A repetição cria um hábito, gera previsibilidade. Os seguidores começaram a esperar pelo café amargo. Em suas palavras, ele criou “uma forma das pessoas não serem surpreendidas no Instagram”. Além disso, o criador afirma que a frequência das publicações é um dos pilares da criação de conteúdo, pois é preciso “jogar o jogo do algoritmo”. O volume de postagens e as interações com o conteúdo são importantes para a plataforma “te mostrar para as pessoas”.
51Voltando aos stories, Lucas responde a mensagens enviadas pelos seguidores sobre um story do dia anterior. O tema é solidão e eles falam sobre viajar, ir a festas ou a bares sozinhos. No canto inferior de cada story, há ferramentas para envio de mensagens e compartilhamento, o que possibilita essa interação. Contudo, essas mensagens não são compartilháveis pelo Instagram. Lucas precisou utilizar uma ferramenta externa à plataforma – a função print, que fotografa a tela do smartphone – para poder exibi-las em novos stories, mas cobrindo a identidade do seguidor com emojis ou desenhos.
52Ao invés da ideia de um usuário passivo que age apenas nos moldes previstos e permitidos pelos desenvolvedores das plataformas, práticas como essas mostram que as pessoas estão o tempo todo buscando meios de fazer o que desejam ou precisam nesses ambientes. Seja utilizando as ferramentas da própria rede social de modos inesperados ou através de aplicativos externos, elas conseguem driblar alguns dos constrangimentos da infraestrutura da plataforma e criar outras possibilidades de ação. Por sua vez, essa mesma infraestrutura pode reagir punindo certos comportamentos – se perde visibilidade quando se utiliza aplicativos externos, por exemplo – ou construindo novas funcionalidades que atendam às demandas dos usuários.
53Sobre o tema, Abidin (2021a) usa a noção de públicos refratados para se referir ao modo como as pessoas se adaptam e contornam de forma agentiva o que as plataformas lhes oferecem. Cotter (2019) mostra como os algoritmos afetam, mas não determinam o comportamento dos sujeitos. Já Cesarino (2021) afirma que o ambiente cibernético das mídias digitais não controla diretamente os usuários, mas altera profundamente as mediações sociotécnicas que os constituem. Nesse sentido, um olhar sobre como criadores de conteúdo, como Lucas, têm lidado com as affordances do Instagram pode revelar as tendências, os limites, as adaptações e os improvisos que caracterizam as relações usuário-plataforma naquele contexto.
54O story seguinte trata-se de um meme com a legenda “Lucas sad, coach em solidão”. A imagem mostra um homem de terno e braços cruzados e uma fotografia do rosto do Lucas por cima do rosto original. As montagens, as imitações e diferentes manipulações de imagem fazem parte da própria lógica de construção de conteúdo e, em boa parte, são viabilizadas pelas próprias ferramentas das plataformas que permitem a adição de filtros, colagens, recortes, legendas, animações, músicas, áudios, etc. Autoras destacam o caráter mais imagético do Instagram em comparação com outras plataformas (Abidin, 2017; Marwick, 2015).
55Em seguida, Lucas faz um anúncio de um episódio de podcast sobre dieta lowcarb exclusivo para assinantes. Uma das principais características dos influenciadores é a habilidade de usar os conteúdos para inserir anúncios e informes publicitários, gerando a venda de produtos e serviços de empresas patrocinadoras ou próprios (Abidin, 2016, 2018; Duffy, 2017; Karhawi, 2016, 2017). Essa prática viabiliza o trabalho de criação de conteúdo financeiramente, garantindo remuneração aos influenciadores. No caso, Lucas gera receita por meio da venda de espaço publicitário para empresas, da monetização das plataformas Twitch e YouTube e da venda de conteúdo exclusivo para assinantes. Ele comenta que gosta desse trabalho, mas, sem um retorno financeiro, faria de qualquer forma, sem estratégia ou consistência; não iria “ficar em uma cadeira seis ou sete horas por dia” criando conteúdo.
56Depois, Lucas publica uma foto sua de máscara com a ferramenta “perguntas” do Instagram e a legenda “Segunda-feira, 26/04. Pergunte”. Por meio desse recurso, os seguidores enviam perguntas ou comentários e o influenciador responde. Apenas o criador de conteúdo tem acesso à identidade do seguidor, quando ele compartilha o conteúdo, o usuário permanece anônimo. A seguir, cito algumas das perguntas e respostas daquela segunda-feira:
“Mas qual o problema de fazer coisas sozinho”, um seguidor.
“A insegurança de vocês em relação aos próprios gostos é assustador[a]. Vocês precisam que um terceiro valide suas ações para se sentirem realizados? A quantidade de pessoas tiltadas nas mensagens porque eu prefiro fazer coisas acompanhado e acho os bares de São Paulo parecidos com balada me deixou triste”, respondeu Lucas.
“Como foi participar do Podpah?”, outro seguidor, sobre a participação de Lucas em um programa de podcast.
“Uma das coisas mais legais da minha carreira. Uma honra ter sido convidado. Eu estava muito tenso e com medo de não ter muito o que conversar e pluf: 4 horas de programa.”
“Como você consegue mexer tanto com os sentimentos dos outros, mas ainda estar solteiro?”
“Esse é meu segredo: Abri mão da minha própria vida para servi-los!”
“Como faz para ter uma agenda de tristeza organizada igual a sua?”
“HAHAHAHHAH [sic]. Obrigado, eu ri”.
“Caixinhas de perguntas aumentam o engajamento?”
“Nem aumenta, nem diminui. A questão é que estou direcionando quase 100% de mim à Twitch e, por isso, o Instagram poderia ficar meio abandonado. Para isso não acontecer, as caixinhas me ajudam a manter o story movimentado até meu projeto de dar um up forte nas lives acabar (a meta é 2k ao vivo de média).”
57Acompanho o perfil de Lucas desde o ano de 2020 e, como o seguidor observou, esse é um novo formato de conteúdo. Antes ele raramente utilizava a ferramenta “perguntas” e, recentemente, passou a fazê-lo todos os dias. A partir da última resposta, pode-se compreender essa mudança como uma estratégia para dar continuidade às publicações no Instagram apesar do foco nas lives da Twitch. Através da ferramenta, ele consegue publicar vários stories e manter a interação com os seguidores, o que agrada aos mesmos e à infraestrutura algorítmica. Na resposta, percebe-se ainda uma preocupação com as métricas, estabelecendo inclusive metas de visualizações ao vivo na Twitch.
58Nos diálogos citados, os stories resultam da interação entre criador, seguidores e as affordances do Instagram e giram em torno das vivências de Lucas. Como foi mencionado anteriormente, pesquisas mostram como influenciadores mobilizam informações pessoais de diferentes formas para dar a impressão de intimidade, o que, com efeito, aumenta a relacionalidade entre eles e o público (Abidin, 2015, 2021b; Marwick; boyd, 2011). Dado o nível de profissionalização dos influenciadores (Ferreira; Grangeiro; Pereira, 2019), faz sentido pensar na construção de estratégias que visem aumentar a conexão com os seguidores. Meu intuito não é negar essa dimensão ou negligenciar os efeitos do mercado de influência nessas relações, mas complexificá-la adicionando outros elementos, humanos e não humanos, que não ficam tão evidentes quando se foca apenas nos criadores.
59Lucas não nega seus interesses comerciais enquanto criador de conteúdo, mas, nas aulas, fala que se deve compartilhar algo legítimo com as pessoas. “As pessoas querem coisas reais.” Em muitas falas, ele trata esse trabalho como uma forma de fazer companhia para as outras pessoas, de fazer com que elas se sintam menos sozinhas e de compartilhar fragilidades que ajudem ambos. “Pessoas desenvolvem uma relação de carinho, de afeto, com o criador de conteúdo.” Lucas também comenta que usar a ferramenta “perguntas” é um modo de fazer as pessoas ajudarem na criação de conteúdo. “Pessoas te ajudam a criar.”
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60Para além da ideia da criação de conteúdo como um produto do influenciador visando manipular a audiência, o que observo no perfil de Lucas está mais próximo de uma conversa entre conhecidos. Seja nos comentários, nas trocas de mensagens ou nas respostas às ferramentas, percebe-se um diálogo sobre solidão, política, relacionamentos, trocas de experiências, o trabalho dos influenciadores. Observando os stories, a criação de conteúdo parece ser efeito dessa relacionalidade entre os diferentes sujeitos e mediações técnicas ali presentes. Sugiro que performar, nesse caso, não é sinônimo de encenação ou manipulação mesmo quando se visa o lucro.15 Destaco também o caráter coproduzido desses conteúdos.
61Outro aspecto que chama atenção na última resposta de Lucas são as estratégias para gerar visibilidade algorítmica, como a recente utilização da ferramenta “pergunta” para deixar o Instagram “movimentado”. É preciso “jogar o jogo do algoritmo”, diz Lucas. Para ele, o criador de conteúdo deve publicar bastante, testar diferentes conteúdos e analisar os dados nas métricas da plataforma. Enquanto nós pesquisadores ainda estamos aprendendo a lidar com a agência dos objetos, os criadores de conteúdo já compreenderam o caráter sociotécnico das relações, integrando em suas práticas preocupações com seguidores, métricas, algoritmos e ferramentas.
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62Outro exemplo dessa questão é que, no feed, além da publicação com os “cafés amargos” já citada, o influenciador publicou também um vídeo no formato reels16 sobre política. Entre os criadores, supõe-se que o Instagram recompensa o uso de ferramentas novas, como o reels, aumentando a visibilidade algorítmica (Pignati, 2022). Atento a isso, Lucas tem produzido mais vídeos nesse formato. Seu reels atingiu quase 53 mil reproduções, teve mais de 5 mil curtidas e 71 comentários em apenas sete horas.
63Após mais stories sobre política e imagens do influenciador na academia, Lucas responde mais uma pergunta:
“Você sente que a militância nas lives atrapalha o crescimento?”
“Não me vejo como militante, apenas um sujeito que passou a entender o básico: tudo é política, tudo é sobre política. Então decidi não me abster dessa responsabilidade. Não dá para fingir para 1.4k de pessoas ao vivo todos os dias que está tudo bem. Ser isento é compactuar com a política atual. Fim. Mas respondendo sua pergunta: atrapalha para um caralho. Mas tarde demais para mim. Esse trem já partiu”, respondeu Lucas.
64Junto ao texto, uma foto sua vestindo uma camiseta vermelha. Depois, ele mostra o gráfico de audiência da live na Twitch naquela segunda-feira – máximo de 1.765 expectadores presentes – e escreve: “E mesmo com a escolha de não se isentar (hoje falamos sobre meritocracia e o mito do empreendedorismo) batemos 1.8k ao vivo.”
65As negociações entre visibilidade algorítmica e autenticidade são dimensões importantes da criação de conteúdo, fazendo com que influenciadores levem em conta os custos de expor determinada informação. É preciso “ser real” e ainda preocupar-se com os danos que essa autenticidade pode causar às métricas de engajamento que tornam o trabalho possível. No caso de Lucas, ele opta por se posicionar politicamente mesmo sabendo que isso fará com que perca seguidores.
66Finalmente, depois de 22 stories e duas publicações no feed, Lucas encerra sua produção de conteúdo no Instagram daquele dia. Na manhã dessa terça-feira, enquanto eu descrevo os stories do dia anterior, ele publica uma foto de pijamas na frente do espelho – “Bom dia, cacete” – uma nova frase no café amargo – “continue cutucando onde você sabe que dói” – e começa tudo outra vez…
67Ao longo da descrição, busquei demonstrar como seguidores, métricas, algoritmos, ferramentas, publicações, entre outros, compõem as interações no perfil de Lucas no Instagram. Por mais que ele seja o criador de conteúdo e proprietário do perfil, muitas publicações são construídas a partir de comentários, de mensagens e de respostas dos seguidores na ferramenta “perguntas”. Essas associações são ainda fortemente moduladas pela infraestrutura do Instagram e pelas preocupações acerca da visibilidade algorítmica.
68Argumento que, mais do que um esforço performático por parte dos influenciadores para simular acesso e intimidade visando o lucro, as publicações resultam dessas conversas sobre solidão e política, das piadas sobre a vida amorosa, dos risos com as frases do café amargo, dos contatos e trocas diárias com o outro e, ainda, das affordances das plataformas. Destaco, assim, o caráter de coprodução da criação de conteúdo; o que não significa dizer que essas relações sejam simétricas. Sugiro que uma abordagem sociotécnica possibilitaria deslocar a proeminência dos sujeitos nas pesquisas sobre influenciadores para as relações como elas acontecem na prática, mediadas por diferentes agências. No entanto, operacionalizar esse formato de pesquisa é um desafio, principalmente quando se propõe visibilizar entidades não humanas. Em seguida, discuto alguns desafios e contribuições desse esforço.
69Como foi apontado, as relações usuário-plataforma tensionam narrativas etnográficas centradas nas ações e perspectivas dos sujeitos. Inspirada em discussões sociotécnicas, sugeri um olhar aos hibridismos, à distribuição de agência e às práticas-materiais para as etnografias no âmbito da antropologia digital. A partir desses pressupostos teórico-metodológicos, fui a campo na tentativa de: a) descrever algumas relações sociotécnicas presentes nas publicações de um criador de conteúdo no Instagram, especialmente através dos stories; b) deslocar o criador de conteúdo do centro da narrativa e visibilizar os diferentes agenciamentos que ali coemergem; c) fazer um esforço para não segmentar as descrições em aspectos sociais, de um lado, e técnicos, de outro. A seguir, analiso criticamente o resultado dessa experimentação.
70No relato de campo, apresentei, ainda que brevemente, o funcionamento das ferramentas e os tipos de publicações (feed, stories, reels) do Instagram à medida que apareciam no fluxo dos acontecimentos. Também busquei descrever a construção e o teor dos conteúdos observados no perfil de Lucas. O intuito era passar de uma narrativa do que os influenciadores fazem e pensam sobre o que fazem nas plataformas para uma que inclua, na medida do possível, também as mediações técnicas que modulam e possibilitam essas ações.
71Entretanto, representar textualmente elementos tão imagéticos como as affordances do Instagram – com seus inúmeros recursos, caminhos e possibilidades de uso – e as publicações – compostas por montagens, emojis, efeitos de som e de imagens, ferramentas comunicacionais – foi desafiador. Até que ponto a descrição de um meme ou mesmo de um story é realmente inteligível? Minha impressão é que, em muitos momentos, a escrita impôs limites à compreensão, principalmente para leitores não familiarizados com a plataforma. Certamente, o uso de imagens poderia ter elucidado melhor esses elementos, mas entraria em outra questão em que nós pesquisadores ainda precisamos nos aprofundar: a ética no trabalho de campo online.
72O perfil de Lucas é público, qualquer usuário pode ter acesso a ele. Contudo, isso não significa que os conteúdos estão ali para serem pesquisados. Não é com esse intuito que ele posta. É público por um propósito muito específico, para influenciar, compartilhar publicações e vender produtos e serviços. Desse modo, sem uma autorização prévia do interlocutor – se é que posso considerá-lo assim – devo fazer uso de seu nome e de sua imagem? Mesmo que Lucas seja uma “figura pública” com milhares de seguidores – o que justamente torna o acesso a ele complicado – não posso deixar de me questionar sobre quais seriam as suas preferências.
73Outro ponto é que a narrativa ficou carregada de “termos nativos”, como feed, meme, stories, reels, emoji, live, perfil, alcance, entre outros, demandando constantemente o uso de notas explicativas. Além disso, inúmeras outras lacunas foram sendo preenchidas ao longo do relato de campo, desde os termos e o funcionamento da plataforma até as publicações e práticas de Lucas. Para tanto, complementei as descrições com falas do interlocutor, discussões da literatura e minha própria experiência.
74Ainda que essa estratégia vá contra as recomendações etnometodológicas da TAR de não dar explicações, minha intenção foi tanto contextualizar o leitor quanto tornar visíveis algumas agências não humanas. Deduzi que, ao conhecer mais sobre a infraestrutura do Instagram e a metodologia do criador de conteúdo, se teria uma maior dimensão de um trabalho de fabricação que se faz em rede. Afinal, para descrever mediações técnicas é preciso, antes de tudo, ser capaz reconhecê-las. Portanto, pretendi que essas interrupções no fluxo dos acontecimentos fossem uma forma de esclarecer e enriquecer as descrições sociotécnicas mais do que de atribuir uma causalidade macroestrutural à análise, algo tão criticado por Latour (2012).
75Embora muito do “campo” tenha se convertido em um considerável volume de capturas de tela dos stories, ao longo da pesquisa, me dei conta de que existiam certas especificidades do Instagram e da rotina do meu interlocutor que extrapolavam o conteúdo dos prints e de suas falas nas aulas. Esse tipo de “conhecimento prévio”, resultante da minha familiaridade com a plataforma e com as publicações de Lucas, foi fundamental na compreensão de muitas práticas e associações ali presentes. Desse modo, argumento que a imersão no campo, característica tão inerente às etnografias, é importante para acompanhar a experiência vivida do interlocutor e como ele agencia e é agenciado pela infraestrutura das plataformas. Por essa razão, sugiro que se trata de um esforço etnográfico, ainda que não o seja nos moldes tradicionais.
76É necessário ressaltar também que, apesar de a pesquisa ter se inspirado epistemológica e metodologicamente nas discussões sociotécnicas apresentadas, a análise certamente não precisa se restringir a essa base teórica. Existe a literatura que sustenta o método e podem existir literaturas mais próximas do fenômeno observado desde que elas não sejam extremamente inconciliáveis. No relato de campo, faço uso de estudos sobre influenciadores e plataformas também na expectativa de rastrear associações. Considero que as perspectivas podem se complementar, até porque a TAR nada diz sobre a forma daquilo que ela permite descrever (Latour, 2006). Outro ponto é que a abordagem sociotécnica pode problematizar e fazer avançar alguns pressupostos da literatura temática.
77Pensando em como desenvolver pesquisas de campo nas redes sociais, propus que os stories seriam um bom “lugar” para acompanhar as vivências dos sujeitos em associação com as affordances das plataformas, propiciando, assim, a descrição dos diferentes agenciamentos que ali coemergem. Contudo, acionar uma perspectiva sociotécnica na descrição foi, sem dúvidas, a ambição mais desafiadora. Apesar dos meus esforços, as ações e percepções dos sujeitos, influenciador e seguidores, ainda são predominantes, dado que é difícil visibilizar as agências não humanas.
78Lidar com a distribuição da agência também se mostrou uma tarefa complexa. A narrativa ainda conserva muito da epistemologia tradicional, na qual sujeitos agenciam objetos técnicos e vice-versa, resultando na permanência de um esquema dual. Em uma abordagem sociotécnica, não faz muito sentido falar em “pessoas” e “plataformas”, enquanto entidades separadas, e o próprio uso dessas noções expressa apenas os meus limites em representar em termos mais adequados esses hibridismos. Afinal, onde acaba um polo e começa o outro?
79Tendo em vista essas restrições, etnografar stories, aqui, é muito mais uma convocação para a experimentação do que a proposição de um protocolo metodológico. Reafirmo a natureza experimental e provisória do relato de campo apresentado e a necessidade de futuros esforços etnográficos para fazer avançar o rastreamento dessas associações.
80Inspirada em discussões dos STS, busquei descrever como se dão algumas associações sociotécnicas nas mídias digitais. A partir da observação de um dia de publicações no perfil de um influenciador no Instagram e de suas falas sobre criação de conteúdo, tentei incluir na narrativa não só as ações dos sujeitos, mas como diferentes materialidades atravessam essas práticas. Mais especificamente, busquei entender como o trabalho de criadores de conteúdo se constitui por meio dessas mediações sociotécnicas. No entanto, como foi apontado, fazer etnografia em contextos online ainda é um desafio, principalmente quando se propõe visibilizar agências não humanas.
81Dessa forma, apesar de meus esforços, no relato de campo, o protagonismo ainda está fortemente atrelado aos sujeitos, dado que o acesso às mediações técnicas é sempre pelo humano. A representação escrita das affordances do Instagram e das publicações, elementos tão imagéticos, deixa o texto caótico ou pouco compreensível em alguns momentos. Além disso, a descrição ainda preserva muito de uma dualidade na qual sujeitos agenciam objetos técnicos e vice-versa, quando não existe agência humana de um lado e maquínica de outro, mas um agenciamento sociotécnico. Na perspectiva teórica que mobilizo, pessoas e sociedades coemergem em associações que são simultaneamente sociais e técnicas. Entretanto, tive dificuldades em transpor essa epistemologia para o relato etnográfico.
82Por outro lado, as publicações no formato stories parecem ser um ambiente interessante para observar essas relações. Nos stories, aparecem a rotina, as conversas entre criador de conteúdo e seguidores, as preocupações com métricas e algoritmos, o design e as ferramentas do Instagram, etc. É possível que eles constituam um campo fértil para explorar as vivências dos sujeitos em interação com as affordances das plataformas, propiciando talvez a descrição da dimensão experiencial e dos aspectos sistêmicos das mídias digitais. A minha tese é que observar essas e outras publicações requer que o etnógrafo se insira no ambiente das redes sociais, indo além da posição – supostamente imparcial – do voyeur ou analista de prints de conteúdo.
83Obviamente, o que apresentei no relato de campo é muito pouco perto de todos os dilemas abordados no artigo. Reafirmo que se trata apenas de um começo, uma tentativa inicial de etnografar essas relações sociotécnicas. Minha expectativa é que outros pesquisadores continuem experimentando formas de fazer pesquisa que nos ajudem a visualizar essas associações. Ainda há muitos caminhos a serem percorridos.