- 1 A forma “editores(as)” foi usada nos casos em que me refiro a perfis específicos que contribuem par (...)
1Em fevereiro de 2022, o mundo acompanhou em tempo real a invasão das forças armadas russas ao território ucraniano, o que marcou uma escalada no conflito que já se desenrolava desde 2014 entre os dois países. À medida que se materializava por meio de tropas e mísseis, a guerra russo-ucraniana também se desdobrava em outra guerra: uma chamada “guerra de edição” (edit war) no artigo sobre a Rússia na Wikipédia de língua inglesa. Enquanto alguns editores1 se preocupavam em atualizar o artigo sobre a Rússia para incluir informações recentes sobre a escalada do conflito, outros editavam incessantemente a informação sobre o status político do país, apresentando-o como uma “democracia iliberal”, “ditadura” e “regime nazista”, assim como ocasionalmente usando termos pouco enciclopédicos para mostrar insatisfação com relação ao projeto militarista do governo Putin.
2Em sua versão de língua portuguesa, a Wikipédia se apresenta como “um projeto de enciclopédia multilíngue de licença livre, baseado na web e escrito de maneira colaborativa” (Wikipédia, 2023). Propondo-se como uma coleção abrangente de artigos que abarque o máximo possível do conhecimento humano já produzido sobre os mais diversos temas, a Wikipédia se distingue dos almanaques, enciclopédias generalistas e enciclopédias especializadas ao se apresentar como um espaço online, permanentemente em construção e que é, acima de tudo, livre e colaborativo. Tal percepção de liberdade e colaboração – reafirmada pelo slogan “a enciclopédia livre que todos podem editar” – evidencia a ideologia de mídia (Gershon, 2010) que norteia esse projeto, no qual potencialmente qualquer usuário é bem-vindo para coconstruir essa obra de referência cuja existência e manutenção depende do esforço coletivo de editores voluntários.
3A Wikipédia se tornou emblemática no século XXI, entre outros motivos, por ilustrar de forma tão significativa a maneira como percebemos aquilo que está disponível online como sendo propriedade do coletivo, na medida em que a autoria individual supostamente se apaga diante de um projeto enciclopédico de documentação do conhecimento constituído colaborativamente a partir de um “ponto de vista neutro” (Wikipédia, 2023). Com a internet se consolidando como um espaço público virtual – no qual as redes sociais se sobressaem como ágoras –, muitos de seus usuários passam a perceber o que “cai na rede” como sendo automaticamente de domínio público e, enquanto propriedade coletiva, livre para ser usado, editado e compartilhado. Desde a sua criação, em 2001, a Wikipédia se tornou um dos espaços em que essas concepções de liberdade, colaboração e autonomia passaram a se manifestar de forma mais clara, levantando uma série de controvérsias sobre o significado assumido por esses termos nessa aparente coletividade.
4Diante disso, este artigo explora etnograficamente a Wikipédia (principalmente em suas versões de língua inglesa e portuguesa) a partir de suas affordances – ou seja, da maneira como as propriedades dessa enciclopédia permitem, encorajam e impedem certos usos, ações e interações (Keane, 2014). A partir disso, analiso as dinâmicas de algumas de suas épicas guerras de edição para abordar o que se entende por liberdade na internet e, principalmente, na percepção da Wikipédia enquanto uma enciclopédia livre. Como autonomia, colaboração – e, por vezes, conflito – se articulam na tentativa de se realizar o sonho moderno de arquivar e catalogar em rede todo o conhecimento humano? Até que ponto a prática de produção textual colaborativa subverte a autoria individual em prol de uma percepção coletiva de autoria e de propriedade do conhecimento? Para isso, este artigo parte de uma discussão metodológica sobre como incluir pessoas em uma etnografia que se baseia primordialmente em material textual.
5Em sequência, analisando o “faça você mesmo” que fundamenta as políticas emancipatórias da Wikipédia, argumento que conteúdos online são colaborativos e propriedade do coletivo desde que sejam, ao mesmo tempo, autorais e individualizantes. Enquanto a Wikipédia emerge como uma solução para o problema neoliberal da produção restrita e da circulação privada do conhecimento, tal legitimidade da produção coletiva que a coloca acima da autoria individual se torna possível não pelo apagamento do indivíduo, mas pela exaltação tecnoliberal do individualismo expressivo.
6Ao examinar uma ideologia de mídia que evidencia as tensões entre as culturas colaborativas e a participação tecnoliberal por trás da produção e circulação de conteúdos online, sugiro elementos para pensarmos comparativamente os múltiplos significados de liberdade vigentes em redes sociotécnicas. Da Wikipédia aos movimentos software livre e de código aberto, passando pelo empreendedorismo do Vale do Silício e pelas maratonas de programação (hackathons), liberdade emerge tanto como uma descentralização de poder quanto como uma celebração crescente de uma forma de participação tecnoliberal nos espaços online. Dessa maneira, este artigo toma a Wikipédia como ponto de partida para pensarmos o que a antropologia e os estudos de mídia têm a dizer sobre as concepções de liberdade e autoria vigentes no século XXI.
7A Wikipédia foi fundada em 2001 por Jimmy Wales e Larry Sanger como uma tentativa contemporânea de materializar a busca modernista pelo arquivo mais completo possível do conhecimento humano existente (Reagle Jr, 2010; Tkacz, 2015). O sonho de se criar uma obra geral de referência tem inúmeros antecedentes históricos. No Ocidente, uma experiência notória nesse sentido foi a Encyclopédie de Diderot e D’Alembert, produzida na segunda metade do século XVIII. Publicada em francês, essa obra foi um fruto direto do iluminismo, objetivando a secularização da educação e o esclarecimento dos povos (Burke, 2012). No mesmo século, o mundo anglófono testemunhou um projeto semelhante, a Encyclopaedia Britannica, ainda hoje em produção. Diversas enciclopédias em várias línguas se somaram a essas desde então.
8Séculos depois, as tecnologias e mídias digitais colocaram à disposição dos enciclopedistas o link e as páginas virtuais permanentemente editáveis (Lucchesi, 2012). Tais tecnologias atenderam às necessidades não só relativas às ambições enciclopédicas de coletar a totalidade do conhecimento, mas também às ambições catalográficas de organização e classificação precisas desse conhecimento.
- 2 Na Wikipédia lusófona, esse número é de 8.370, sendo editor ativo aquele que fez alguma edição ou p (...)
9Em formato online e influenciada principalmente pelos ideais liberais de Wales, a Wikipédia renuncia deliberadamente à exigência de expertise (Reagle Jr, 2010). Potencialmente qualquer usuário da internet pode editar artigos na Wikipédia, independentemente de suas credenciais e diplomas, o que tanto democratiza a produção, circulação e acesso ao conhecimento quanto levanta um questionamento sobre confiabilidade e amadorismo (Burke, 2012). Nesse sentido, enquanto a Encyclopédie contou com dois editores e com a colaboração de 140 especialistas, a Wikipédia de língua inglesa conta – em novembro de 2023, quando este artigo está sendo escrito – com 123.332 editores ativos (List […], 2023).2 Esse alto número de editores também motiva uma percepção mais ampla sobre quais tipos de conhecimento podem ser considerados enciclopédicos (Jenkins, 2006, p. 254). Enquanto as enciclopédias mencionadas anteriormente se concentram em conhecimentos ditos filosóficos/científicos, a Wikipédia abarca artigos extensos não só sobre Charles Darwin e a independência do Brasil, como também um artigo para cada modelo de carro usado como táxi na cidade de Nova York e um artigo para cada um dos 208 episódios do seriado How I met your mother.
10Enfatizar que me refiro ao número de editores no momento em que escrevo este artigo é relevante por conta do dinamismo dessa enciclopédia online. Adaptando-se à maneira como o conhecimento humano é intrinsecamente incompleto e volátil, o conteúdo da Wikipédia se apresenta como permanentemente editável. Isso se reflete no símbolo do projeto: um globo terrestre em forma de um quebra-cabeça incompleto, no qual as peças que faltam no topo do globo mostram como o conhecimento humano está em contínua construção. À medida que as peças são colocadas juntas, o mundo se torna uma unidade, forjada a partir do conhecimento plural e multilíngue produzido ao longo da história.
11Como há sempre novas peças a serem adicionadas ao quebra-cabeça, a coconstrução da Wikipédia é um projeto interminável. A falta de materialidade de uma enciclopédia que é digital, e não impressa, também contribui para esse dinamismo, de modo que fazer uma etnografia da Wikipédia significa tirar um retrato instantâneo de um artigo, estabilizar uma produção textual que é continuamente atualizada, editada, corrigida e ampliada.
12Aqueles que acessam a Wikipédia apenas para ler artigos tendem a não se dar conta de como ela é um meio intertextual (Hansen, 2016), com diversas metapáginas para cada artigo enciclopédico. Assim, por exemplo, ao consultarmos o artigo “Antropologia” na Wikipédia lusófona (Antropologia, 2023), encontramos, no canto superior esquerdo da tela, ao lado da aba Artigo, uma aba que nos direciona à página de discussão sobre o artigo. Ao lermos esta, ficamos cientes de que um(a) editor(a) constata que “falta escrever sobre antropologia contemporânea” (Discussão […], 2023), enquanto outro(a) convida os(as) demais editores(as) a reformularem esse artigo, o qual ele(a) considera “fraquíssimo” em comparação com os artigos de mesmo tema nas Wikipédias em inglês e espanhol. A barra superior de cada artigo também disponibiliza links para os artigos de mesmo tema em outras línguas. No canto superior direito da tela, a Wikipédia nos oferece as opções de ler, editar ou consultar o histórico do artigo. Essa aba contém o registro de todas as edições feitas no artigo desde sua criação, com uma breve descrição de cada edição, a data e a hora em que ela foi feita e o editor responsável.
13Tais metapáginas – principalmente as abas Discussão e Ver histórico – apresentam os artigos não como textos estáticos, mas como arenas dinâmicas de discussão, colaboração e, ocasionalmente, conflito. Frutos da multivocalidade e estilos de escrita dos diversos editores, os textos da Wikipédia são licenciados sob os termos da licença Creative Commons BY-SA 4.0. Isso significa que a reutilização desses conteúdos é permitida, contanto que a Wikipédia seja reconhecida como fonte, sem que a autoria dos artigos seja atribuída individualmente a um ou mais editores. No entanto, as metapáginas que acompanham cada artigo funcionam como um registro que identifica a colaboração de cada editor, de modo que, apesar de coletiva, a autoria desses artigos também é rastreável.
14Tomar a Wikipédia como campo de uma pesquisa etnográfica significa, em grande medida, fazer uma etnografia de textos e das práticas textuais que os sustentam. Para isso, no início de 2022, criei um perfil de editor na Wikipédia, por meio do qual editei artigos nas línguas em que sou capaz de escrever (português, inglês, francês, espanhol e esperanto), acompanhei ativamente discussões e edições de artigos polêmicos (principalmente nas Wikipédias anglófona e lusófona) e fui contatado por outros editores, desenvolvendo meu trabalho de campo online primordialmente a partir desses contatos.
15As associações que permitem a existência e atualização da Wikipédia se manifestam em torno de comunicação escrita, o que nos exige considerar um elemento fundamental dessa produção enciclopédica: língua. A Wikipédia está disponível em 339 línguas, mas concentrei minha pesquisa em suas versões anglófona e lusófona, com as quais desenvolvi mais proximidade como leitor e editor. Aqui é importante evitarmos a visão romântica que associa língua, território nacional e nacionalidade como um contínuo (Harvey, 1996) e notar que a English Wikipedia (como apresentada por Hansen, 2016; Jemielniak, 2014; O’Sullivan, 2009; Reagle Jr, 2010; entre outros) não é uma Wikipédia inglesa. Afinal, a maioria de seus editores não são cidadãos ingleses e não residem na Inglaterra. Uma das poucas pesquisas a dar atenção a tais aspectos é a de Telma Johnson (2010), que usa o termo lusófona para se referir à Wikipédia de língua portuguesa e analisar como algumas de suas guerras de edição se dão em torno das diferenças de grafia e vocabulário entre o português de Portugal e o do Brasil.
16Em geral, as Wikipédias com mais artigos, mais frequentemente atualizadas e com conteúdo mais detalhado são aquelas mais povoadas. Portanto, como a Wikipédia anglófona foi a primeira a ser criada e é a que conta com mais editores, mais acessos e um histórico de edições mais dinâmico, ela é a versão na qual mais controvérsias e guerras de edição se desenvolvem – razão pela qual ela constituiu o foco de minha pesquisa. Algumas dessas guerras giram em torno da própria língua: afinal, o artigo sobre lata de lixo na Wikipédia anglófona deve se chamar trash can (seguindo o padrão do inglês norte-americano) ou rubbish bin (em inglês britânico)? Ou, ainda, como habilidosamente analisado por Dariusz Jemielniak (2014, p. 64-76), o artigo em inglês sobre a cidade polonesa que, em polonês, se chama Gdańsk, deve se chamar Gdańsk ou, como mais conhecido em inglês, Danzig (de origem alemã)? Em uma enciclopédia livre, qualquer editor é livre para fazer, desfazer e refazer edições feitas por outros editores. Tais disputas – que, por vezes, giram em torno de questões aparentemente banais – nos desafiam a repensar a centralidade da palavra e do texto na constituição dessa enciclopédia e de uma etnografia realizada em um espaço de produção textual.
17Enquanto o campo é texto, os interlocutores são primordialmente editores voluntários. No entanto, é importante reconhecer que o funcionamento da Wikipédia não elimina hierarquias: administrada pela Wikimedia Foundation e regida por políticas de edição e normas de conduta, essa enciclopédia online conta com uma diretoria e com uma série de relações verticais entre os editores voluntários. Mesmo sendo uma “enciclopédia livre que todos podem editar”, nem todos podem editar tudo: na Wikipédia lusófona, apenas usuários registrados (cadastrados com nome de usuário e senha) podem editar artigos. Nas Wikipédias em inglês, francês e esperanto, por sua vez, usuários não registrados (isto é, qualquer visitante do site) podem fazer apenas edições básicas em certos textos.
18Nas versões da enciclopédia nas quatro línguas em questão, apenas usuários autoconfirmados (que atingiram um tempo mínimo de registro e certo número de edições) podem criar artigos novos e editar artigos protegidos. Além disso, há também bots programados para exercer edições básicas, como conferir o funcionamento de links externos que editores humanos adicionam aos artigos (Ford, 2022). Tendo a contagem de edições (edit count) como uma unidade de medida da experiência e dedicação de cada editor, aqueles com um número alto de edições e uma boa reputação podem se candidatar aos cargos voluntários de administrador, revisor, eliminador e verificador – os quais se responsabilizam por lidar com casos de vandalismo, bloquear editores que desrespeitam as regras da enciclopédia e lidar com problemas de direitos autorais. Tal estrutura burocrática e o dinamismo das discussões nas metapáginas de artigos exprimem como essa enciclopédia é povoada, o que nos convida a pensar as associações e redes formadas pelos rastros deixados por esses atores-editores no curso de suas ações (Latour, 2012; Segata, 2014).
- 3 O endereço IP (do inglês, internet protocol address) é a sequência numérica usada para identificar (...)
- 4 O mesmo vale para usuários de redes sociais.
19Uma questão metodológica e ética a se considerar em uma etnografia na Wikipédia se refere à identificação dos interlocutores. O histórico de edições identifica aqueles que editaram cada artigo por seus nomes de usuário – ou, no caso de usuários não registrados, por seu endereço IP.3 Portanto, revelar os nomes de usuário de editores da Wikipédia4 não significa pseudonimizar os interlocutores, mas, de fato, nominá-los. Ainda que os nomes de usuário muitas vezes não correspondam ao nome civil de quem está por trás desses perfis, outros editores poderão facilmente identificar o usuário de quem estou falando. No entanto, como todo o conteúdo disponível na Wikipédia é regido pela licença Creative Commons BY-SA 4.0, a análise e reutilização – desde que citadas as fontes – desses conteúdos, assim como dos registros de edições, estão isentos da necessidade de se pedir consentimento esclarecido (Ethically […], 2023; Pentzold, 2017). Nos casos de conversas de acesso restrito ou de entrevistas com editores, só reproduzo os nomes de usuário e o conteúdo das conversas com a permissão dos interlocutores.
20Além disso, como discutido por Tom Boellstorff (2008), uma pesquisa feita inteiramente online trata usuários como atores plenos. Afinal, muitas vezes há dissonâncias entre um perfil de usuário e o ator humano por trás dele, assim como há atores com mais de um cadastro como usuário ou de perfis usados por mais de um usuário. Uma etnografia de perfis não é necessariamente uma etnografia de gente, o que, no entanto, não invalida a gente presente online. Pelo contrário, a não necessidade de correspondência entre perfil de usuário e ator humano é um aspecto inerente a tais redes sociotécnicas que nos leva a questionar a dicotomia moderna humanos/não humanos (Rifiotis, 2016) e que, portanto, constitui um dado etnográfico a ser considerado.
- 5 A título de ilustração, consideremos o livro/projeto artístico The Iraq War: a history of Wikipedia (...)
21Por fim, tal etnografia online também toma a forma de pesquisa em arquivos. Como apresentado acima, as metapáginas contendo discussão e histórico de edições narram a biografia de cada artigo em detalhes, nos permitindo remontar a história de cada texto a partir de documentos em formato digital. Nessas ocasiões em que a antropologia se encontra com as humanidades digitais e o big data, a questão principal com a qual o pesquisador se depara não é a falta de dados, mas, pelo contrário, seu excesso (Leonelli, 2014):5 com 6.749.178 artigos enciclopédicos e 123.332 editores ativos na Wikipédia anglófona (List […], 2023), cortar a rede (Strathern, 1996) se torna um desafio. Por outro lado, esse excesso de dados evidencia o dinamismo dessa enciclopédia, na qual as assim chamadas comunidade (Jemielniak, 2014; Pentzold, 2010) e culturas colaborativas (Reagle Jr, 2010) se desenvolvem e nas quais meus interlocutores se expressam. É aqui que somos levados de volta ao artigo da Wikipédia anglófona sobre a Rússia; ao campo de batalha online no qual a guerra russo-ucraniana toma a forma de palavras e bytes.
22Como argumentado por Erik Borra et al. (2015), controvérsias em artigos na Wikipédia tendem a refletir controvérsias sociais e políticas mais amplas. Diante disso, não é surpresa que os artigos “Russia”, “Ukraine”, “Vladimir Putin”, “Volodymyr Zelenskyy” e “2022 Russian invasion of Ukraine” tenham ganhado destaque entre os mais conflituosos da Wikipédia anglófona em 2022.
- 6 Os trechos em inglês foram retirados das diversas versões do artigo e mantidos na língua original p (...)
- 7 “A Rússia ostenta a segunda força militar mais poderosa do mundo.”
- 8 “2ª força militar mais poderosa? globalfirepower com certeza não é uma fonte confiável.”
- 9 “Força terrestre mais poderosa do mundo – duvidoso.”
23Enquanto a Rússia no Leste Europeu continuava intacta, a Rússia na Wikipédia anglófona era invadida por edições disruptivas. No dia 3 de março de 2022, um trecho do artigo online “Russia” exaltava o poderio militar do país:6 “Russia boasts the world’s second-most powerful military”7 (Russia, 2022), citando como fonte da informação o site globalfirepower.com. Percebendo esse dado como sendo impreciso, o(a) editor(a) Chidgk1 sinalizou essa fonte no texto com a etiqueta “unreliable source?” entre colchetes, como um convite para que outros editores reformulassem aquele trecho do artigo ou adicionassem uma referência bibliográfica mais confiável. Após editar o artigo, Chidgk1 comentou no histórico de edições: “2nd most powerful military? globalfirepower surely unreliable source”8 (Russia: revision […], 2022). Ainda sobre as forças armadas, Chidgk1 adicionou outro comentário no histórico no mesmo dia, com o questionamento: “World’s most powerful ground force – dubious”9 (Russia: revision […], 2022).
- 10 “Requer uma fonte melhor.”
24No dia 12 de março, em resposta aos convites de Chidgk1, outro(a) editor(a) – Moxy – modificou o referido trecho, deletando globalfirepower.com e adicionando duas novas fontes: uma reportagem do site de notícias Business Insider e um livro acadêmico sobre política global publicado em 2017. No entanto, no dia seguinte, Chidgk1 levantou dúvidas sobre essas fontes, sinalizando Business Insider com a etiqueta “[unreliable source?]” e adicionando a etiqueta “[better source needed]”10 ao lado da recém-adicionada referência acadêmica. Além de duvidar da legitimidade de se usar um site de negócios como fonte enciclopédica, Chidgk1 questionou a atualidade de uma fonte publicada em 2017 para explicar a situação das forças armadas russas em 2022. Ao usar o verbo no tempo presente no texto do artigo (em “Russia boasts the world’s second-most powerful military”), Moxy corrobora que o poderio militar russo continuava sendo o segundo maior do mundo – o que, para Chidgk1, provavelmente não era mais o caso, considerando-se os investimentos militares dos EUA e da China entre 2017 e 2022.
25Como mostra o histórico de edições do artigo (Figura 1), a discussão entre os(as) dois(duas) editores(as) continuou ao longo das semanas seguintes:
- 11 “13 de março de 2022 Chidgk1 (Força militar: ainda precisa de fontes melhores para ‘segunda mais po (...)
11:44, 13 March 2022 Chidgk1 +127 (Military: still need better sources for “second most powerful”)11
13:37, 13 March 2022 Moxy +109 (Military: stop fucking around..do you have a sources that says differnt…present it ….stop your guess work)
17:21, 13 March 2022 Chidgk1 −63 (Please see Talk:Russian_Armed_Forces#Most_powerful_according_to_who?)
17:34, 13 March 2022 Chidgk1 +236 (I doubt globalfirepower is a reliable source)
07:35, 9 April 2022 Chidgk1 −148 (obviously no longer world’s second most powerful military – cited an article about how the Chinese military is learning from Russian mistakes)
Figura 1. Captura de tela do histórico de edições feitas entre os dias 12 e 13 de março de 2022 no artigo “Russia” da Wikipédia anglófona (Russia: revision […], 2022) (CC BY-SA 4.0).
26Enquanto, para leitores ordinários, os artigos da Wikipédia parecem estáveis e relativamente consolidados, muitas edições acontecem em alguns deles diariamente. As metapáginas que acompanham cada artigo revelam tal processo de coconstrução, o qual envolve tanto edições e negociações quanto acalorados desentendimentos – vide, na parte superior da imagem acima, como a guerra de edição entre Chidgk1 e Moxy resultou na abertura do debate “Most powerful according to who?” na página de discussão “Russian armed forces”.
27Na captura de tela acima, os links cur e prev no início de cada linha permitem comparar as versões anteriores (previous) e atual (current) de cada artigo. Os números antecedidos por + e – se referem à quantidade de palavras adicionadas ou excluídas do artigo a cada edição. Entre parênteses, os editores descrevem as alterações feitas. O link thank, ao final da linha, dá a outros editores a possibilidade de enviar uma notificação de agradecimento ao editor em questão. Assim, além de acréscimos e reduções de conteúdo, edições envolvem também reversões (quando um editor discorda do que outro fez, anula uma série de edições e retorna a uma versão anterior do artigo), convites para edição, respostas a tais convites e notificações de agradecimento. Com um registro detalhado com o dia e horário de cada edição, o histórico contém ainda o nome de usuário do editor – que funciona como um link para sua página de usuário –, assim como links para se iniciar uma discussão por texto ou para ver o histórico de contribuições de cada editor.
28Outro aspecto relevante da edição de artigos enciclopédicos diz respeito à temporalidade: usuários registrados podem adicionar artigos de seu interesse à sua lista pessoal de páginas vigiadas, o que implica receber uma notificação quando tais páginas são editadas. Essa é uma das affordances do site que faz com que as guerras de edição se caracterizem por edições em ritmo acelerado – como visto no caso acima, em que diversas alterações do mesmo conteúdo são feitas no mesmo dia, por editores que talvez estejam até mesmo em fusos horários diferentes.
29Além do ritmo acelerado de edições, tais guerras tendem a ser caracterizadas não por revisões substanciais do conteúdo de um artigo, mas por inclusões, exclusões e reversões contínuas de determinado detalhe que incomoda pessoalmente um número limitado de editores (Chhabra; Kaur; Yvengar, 2020; Yasseri et al., 2012). Assim como a narrativa etnográfica acima apresentou uma guerra de edição que se arrastou por pouco mais de dois meses entre Chidgk1 e Moxy em torno de uma referência bibliográfica, esse artigo foi palco de outras controvérsias análogas ao longo do ano.
- 12 “Por que a Rússia não está classificada como ‘sob uma ditadura’?”
- 13 “Belarus está classificado [na Wikipédia] dessa maneira, então por que a Rússia não?”
- 14 “República federalista semipresidencialista sob um governo autoritário centralizado.”
30Os argumentos que justificam outra dessas guerras estão registrados na página de discussão do artigo, na qual uma das questões mais debatidas em 2022 se refere à pergunta “Why is Russia not marked as ‘under a dictatorship’? (Talk […], 2022)”.12 O(a) proponente dessa questão – um(a) editor(a) não registrado(a), que foi, portanto, identificado(a) por seu endereço IP – perguntou: “Belarus is marked like this, but why not Russia?”13 Enquanto a discussão girava em torno de como a Wikipédia deveria classificar o sistema de governo russo, alguns argumentavam que Putin havia sido eleito e que a Rússia continuava a ser, pelo menos de jure, uma democracia. No entanto, o argumento mais recorrente se referiu à falta de fontes confiáveis que rotulassem a Rússia como uma ditadura. Enquanto a discussão se desenrolava, três editores(as) guerreavam – entre eles(as), nossos(as) já conhecidos(as) Chidgk1 e Moxy –, editando constantemente o regime político russo de “democracia” a “ditadura”, de “ditadura” a “anocracia”, de “anocracia” a “democracia iliberal” e, depois, de volta a “democracia”. Essa guerra de edição foi encerrada pela busca de um consenso entre tais editores(as): em agosto de 2022, eles(as) concordaram em descrever o sistema de governo russo como “federal semi-presidential republic under a centralised authoritarian government”.14
31Embora 2022 pareça ter sido um ano mais estável para esse artigo do que o ano anterior em termos de número de edições (Figura 2), o que de fato aconteceu foi o oposto. Por conta do constante vandalismo e das reversões que estavam ocupando o tempo de revisores voluntários, no dia 26 de fevereiro de 2022, o Comitê de Arbitragem da Wikipédia anglófona estabeleceu que, por tempo indeterminado, apenas editores registrados há mais um de mês e com mais de 500 edições em artigos teriam o direito de fazer alterações no artigo “Russia”. Ainda assim, mesmo esses editores se envolveram em guerras de edição.
Figura 2. Gráfico mostrando o número de edições e o tamanho (em bytes) do artigo “Russia” na Wikipédia anglófona por ano, entre 2001 (quando o artigo foi criado) e 2022. Fonte: gráfico produzido por XTools (https://xtools.wmflabs.org/) usando dados do artigo.
32Como um dos princípios básicos da Wikipédia é a verificabilidade, ganhar uma guerra de edição exige persistência e provas de que os dados adicionados a um artigo podem ser verificados em fontes confiáveis. Por isso, mais de um terço do comprimento do artigo “Russia” é dedicado a uma lista com 658 referências que permitem aos leitores – e, principalmente, aos demais editores – confirmar as informações contidas no artigo. Em relação ao frequente questionamento sobre a confiabilidade de uma enciclopédia colaborativa, a Wikipédia não disputa o que é verdade, se atendo à verificabilidade das informações que veicula. Por isso, as referências de artigos como “Russia” incluem de ISBNs e DOIs de publicações acadêmicas a links para sites de notícias – apesar de a confiabilidade de tais referências ser frequentemente disputada, como mostrou o debate acima.
33Tais guerras de edição, discussões e reversões mostram que, apesar de artigos da Wikipédia não serem formalmente atribuídos a autores/editores individuais, estes desfrutam de uma considerável pretensão autoral. Enquanto leitores ordinários se limitam ao conteúdo dos artigos, os editores mais atuantes passam mais tempo nas metapáginas do que nos artigos, conhecem uns aos outros por seus nomes de usuário e sabem o posicionamento de cada um deles em tais guerras.
34Embora editores da Wikipédia se dediquem mais a reproduzir conhecimento do que a produzir conhecimento original, existe autoria nos artigos em questão. Tal noção de autoria não é a mesma vigente desde o século XIX e que atualmente caracteriza a escrita acadêmica, na qual autores são considerados responsáveis pelo conteúdo de seus escritos (Foucault, 1977, p. 131-32). Autoria na Wikipédia se expressa na seleção de conteúdos e na redação multivocal dos textos, as quais emergem em uma detalhada prestação de contas e são registradas em históricos que indicam quem é responsável por quais trechos de cada artigo. Assim, essa enciclopédia é povoada por aqueles que reconhecem e que lidam criativamente com tal noção de autoria. Ao mesmo tempo que Wikipédia emerge como o rótulo que identifica a fonte do conteúdo produzido colaborativa e anonimamente, tal colaboração depende de editores que, muitas vezes, também buscam deixar sua marca individual enquanto contribuem para o todo.
35De edições substanciais de conteúdo a reversões em detalhes de nota de rodapé, as guerras de edição desconstroem a aparente unidade da Wikipédia ao evidenciar sua multivocalidade. Enquanto valoriza a iniciativa individual de seus editores voluntários, a Wikipédia também desenvolve affordances para suprimir os dissensos que ocasionalmente surgem entre tais individualidades. Dessa maneira, no dia 7 de julho de 2022, quando o primeiro-ministro britânico Boris Johnson formalizou sua renúncia ao cargo, seu artigo na Wikipédia anglófona se tornou palco de uma guerra de edição. Enquanto diversos editores ávidos mantinham o artigo atualizado em tempo real, um administrador da enciclopédia atribuiu ao artigo o status de página semiprotegida, impedindo editores registrados recentemente de editarem o artigo e interrompendo o vandalismo que também se intensificou em torno da polêmica figura de Boris Johnson.
36Enquanto isso, na Wikipédia lusófona, uma controvérsia análoga se desenvolveu no artigo sobre Luiz Inácio Lula da Silva em março de 2021. Uma vez que o Supremo Tribunal Federal anulou as condenações feitas pelas investigações da Lava Jato ao então ex-presidente brasileiro, qual centralidade dar às acusações de corrupção nesse artigo enciclopédico? O conteúdo sobre acusações de corrupção deveria ser reduzido? Caso fosse mantida uma seção inteira do artigo dedicada a essas acusações, qual deveria ser o título da seção, de modo que o artigo soasse neutro? Apesar de, em geral, as guerras de edição na Wikipédia lusófona serem menos intensas do que na anglófona, os casos de vandalismo enciclopédico motivados pela soltura de Lula fizeram com que o nível de proteção do artigo também fosse elevado.
37Pesquisando conflitos nas Wikipédias de línguas inglesa e polonesa, Dariusz Jemielniak (2014) analisa como a Wikipédia consegue ter um conteúdo confiável apesar de ser desenvolvida por editores ocasionais que, em geral, não são especialistas nos assuntos sobre os quais escrevem. Nesse sentido, ele se pergunta: se editores frequentemente reconhecem a Wikipédia como uma comunidade colaborativa aberta (Pentzold, 2010), até que ponto essa comunidade realmente funciona a partir da colaboração? Ou, em outras palavras, seria o funcionamento da Wikipédia motivado por colaboração ou por conflito? Jemielniak argumenta que considerar essa enciclopédia como primordialmente colaborativa pode ser um equívoco: seus editores não necessariamente trabalham juntos e não costumam coordenar suas ações ou dividir tarefas de modo a focar seus esforços em edições produtivas e substanciais. Conflitos, pelo contrário, de fato motivam editores a aprimorarem artigos, buscarem fontes mais confiáveis e tornarem o conteúdo mais preciso.
38Dessa forma, o que existe de colaborativo na Wikipédia é feito de maneira individualizada, em sintonia com o que Barry Wellman (2002) denomina individualismo em rede. Na medida em que editores são voluntários, não especialistas, não remunerados e sem vínculo empregatício, a participação deles no projeto enciclopédico pode ser ocasional, sem compromisso, sem responsabilidades, pensada de forma individualizada e condicionada pela escolha de temas e artigos que lhes interessam.
39Uma visão mais otimista sobre colaboração online é apresentada por Joseph Reagle Jr (2010), que analisa etnograficamente a cultura colaborativa de boa-fé da Wikipédia. Para garantir a qualidade de seu conteúdo, a Wikipédia encoraja seus editores a assumir que os demais editores agem de boa-fé, o que promove a percepção generalizada de que colaboração é o que norteia a coconstrução do conhecimento humano. Para Reagle Jr, é razoável supor que nem toda edição disruptiva é vandalismo: alguns editores de fato buscam desestabilizar um artigo ou editar conteúdo para exprimir visões de mundo particulares e “não enciclopédicas”, mas muitos outros são novatos que não estão familiarizados com as regras de edição ou que adicionam informações falsas por engano. Assim, como Reagle Jr enfatiza, fazer um projeto dessa magnitude funcionar exige que a cultura colaborativa compartilhada pelos editores parta do pressuposto básico de que a boa-fé alheia é latente.
- 15 Nesse sentido, Sorin Adam Matei e Brian Britt (2017, p. 1-6) mostram que, ao menos na primeira déca (...)
40Apesar de suas análises divergentes quanto ao caráter colaborativo da Wikipédia, Jemielniak e Reagle Jr estão entre os muitos pesquisadores (assim como Ciffolilli, 2003; Johnson, 2010; O’Sullivan, 2009; Pentzold, 2010) que analisam a Wikipédia a partir da perspectiva da organização social, da colaboração e do conflito – ou seja, a partir de seus aspectos comunitários. Tais abordagens enfatizam – de maneira acertada – as complexidades em torno da comunidade ou cultura existente por trás dessa forma de coautoria enciclopédica. Por outro lado, esses pesquisadores também reconhecem que a maioria dos editores não fazem edições substanciais ou frequentes em artigos,15 o que nos leva a uma importante consideração sobre essa “comunidade” e “cultura”: em termos quantitativos, a maioria dos editores da Wikipédia nunca interagem com outros e muitos sequer se registram como editores. O tipo ideal de editor, por assim dizer, faz um número limitado de edições em artigos sobre temas muito especializados (por exemplo, espécies raras de pássaros, cidades do interior do Mato Grosso ou conceitos teóricos de antropologia) e, depois, nunca mais acessa seu perfil. Outros, por sua vez, começam a se dedicar entusiasticamente à edição de artigos, mas abandonam o projeto ao se depararem com a primeira reversão de edição ou com o primeiro conflito (Wikimedia Foundation, 2011).
41Tal tendência pode ser facilmente visualizada nas estatísticas da Wikipédia anglófona (List […], 2023): em novembro de 2023, havia 46.527.187 editores registrados, dentre os quais 123.332 ativos (com pelo menos uma edição nos últimos 30 dias). Dentre estes, apenas 38.080 fizeram mais de cinco edições desde seu cadastro. Portanto, apesar do alto número de editores registrados que, em algum momento, participaram minimamente da coconstrução da Wikipédia, o número daqueles que a editam frequentemente (e que têm mais chances de se envolver de fato com essa comunidade e cultura colaborativas) é significativamente menor.
42Dessa maneira, as pesquisas qualitativas (parcialmente baseadas em trabalho de campo) sobre cultura e colaboração na Wikipédia anglófona desconsideram a maioria absoluta dos editores, os quais fazem edições sem jamais ter contato com outros editores, sem se envolverem em guerras de edição e sem se familiarizarem com os jargões e piadas internas da enciclopédia. Para além da comunidade, portanto, resta a participação típico-ideal, que envolve corrigir um detalhe, adicionar uma referência ou reformular uma frase em um artigo que interessa ao editor no momento que lhe convém, o que raramente culmina em contribuições substanciais de conteúdo. Editar essa enciclopédia online na prática significa adicionar ou retirar uma pequena peça do quebra-cabeça – uma peça que, na maioria das vezes, mal é percebida por outros editores.
43Voltando à questão levantada por Jemielniak (2014), a Wikipédia é movida por colaboração ou conflito? Talvez a resposta mais ponderada seja: por um, por outro e por nenhum dos dois, dado que nem mesmo a interação com demais editores – seja colaborativa, seja conflituosa – ocorre na experiência da maioria dos editores.
44Além de trabalhar em artigos, alguns editores também usam espaços fora da Wikipédia para promover a enciclopédia e atrair colaboradores para o projeto. Um desses editores entusiasmados é Yvesn, que frequentemente organiza eventos online e offline para congregar editores e não editores. Ativo nas Wikipédias em inglês, holandês e esperanto, Yvesn se dedica a editar principalmente artigos relacionados a geografia e política da Bélgica, mobilidade sustentável, literatura em esperanto e terminologia ligada a computação. Um belga de 50 anos de idade, Yvesn usa seu trabalho com editoração gráfica e seu interesse por divulgação científica como motivações para sua dedicação de mais de 15 anos à Wikipédia. Nesse sentido, uma de suas ações para encorajar outras pessoas a se tornarem editoras foi uma conversa em inglês e esperanto via Zoom, organizada por ele em março de 2022, sobre o funcionamento voluntário da Wikipédia e a ambição de disponibilizar o conhecimento humano da forma mais integral e acessível possível.
45Ao narrar sua experiência como editor, Yvesn ressaltou que cada versão da Wikipédia tem seus próprios focos e especificidades. Por exemplo, a Wikipédia francófona tem um artigo detalhado e frequentemente atualizado sobre os bondes de Luxemburgo, enquanto os artigos sobre o mesmo tema nas Wikipédias de línguas inglesa e alemã são consideravelmente mais curtos. Na versão em holandês, havia apenas uma menção a esses bondes no artigo sobre Luxemburgo enquanto, na Wikipédia em esperanto, não havia informações sobre isso. Como Yvesn conhece Luxemburgo e se interessa por mobilidade sustentável, ele mesmo decidiu criar o artigo em esperanto sobre o tema:
- 16 Citações originalmente em esperanto, transcritas a partir da gravação feita por Yvesn da conversa p (...)
A gente pode se perguntar até que ponto isso é realmente útil. Com certeza esse artigo não vai causar prejuízos a ninguém. Mas, ao criar um artigo sobre o sistema de bondes de Luxemburgo, eu não tenho tempo de criar um artigo sobre um escritor importante da literatura em esperanto, por exemplo. Eu sei que tem vários escritores bons que ainda não estão catalogados na Wikipédia e seria importante criar artigos sobre eles, com links para informações sobre os livros deles, etc. Então eu me pergunto, já que o número de editores da Wikipédia é limitado, se não seria mais importante criar ou atualizar artigos sobre outros temas. Mas, logicamente, cada um tem uma opinião sobre o que priorizar. Algumas pessoas vão preferir expandir o artigo sobre Marilyn Monroe ou adicionar mais fotos ao artigo sobre Bruce Springsteen. Tudo é possível, cada editor faz o que quiser.16
46Pouco depois, AnnA – uma das participantes da conversa, uma britânica de 70 anos de idade, que já fez contribuições esporádicas às Wikipédias anglófona e esperantófona – voltou à questão das especificidades de cada versão da enciclopédia:
Eu costumo usar bastante a Wikipédia, mas não para pesquisar sobre bondes em Luxemburgo. E confesso que, se um dia eu quiser informações sobre isso, vou consultar a versão em inglês, que provavelmente vai ter um artigo mais detalhado sobre esse assunto. Quando eu uso a Wikipédia em esperanto, é para ler sobre temas diretamente relacionados ao esperanto. Quando eu uso a versão em italiano, é para ler coisas relacionadas à Itália. Então, acho que editar artigos em esperanto sobre esperanto seria mais útil.
47Concordando com AnnA, Yvesn respondeu:
Sim, com certeza. Eu encorajo outros editores da Wikipédia em esperanto a escreverem artigos sobre temas ligados ao esperanto, e eu mesmo edito esses artigos com frequência. Mas, como o tema do transporte coletivo me interessa, eu decidi escrever sobre os bondes. Assim como eu quis fazer isso e fiz, você também pode fazer o que quiser e editar artigos que você considerar que são mais importantes ou que merecem mais atenção.
48Posteriormente, Yvesn complementou: “Quando vocês acharem um erro ou inconsistência na Wikipédia, não reclamem: corrijam!”
49Ao explicar o funcionamento dessa enciclopédia, Yvesn ressalta a autonomia que cada editor tem para pôr a mão na massa e contribuir da forma como preferir. Nesse sentido, o senso de agência que nutre tal política emancipatória aproxima essa enciclopédia online de outros projetos digitais colaborativos, como os movimentos a favor de software livre e de código aberto. Como argumentado por Christine Dunbar-Hester (2020, p. 2) em seu estudo sobre inclusão e justiça social entre ativistas de software livre, a ideia de que “todos podem editar” pressupõe que aqueles que não editam não o fazem não porque não podem, mas porque não querem. Portanto, tal ênfase pragmática no individualismo expressivo (Dunbar-Hester, 2020, p. 7) subestima obstáculos concretos (como falta de tempo, dificuldade de acesso regular a uma boa conexão de internet e dificuldades financeiras que impedem muitos de se dedicarem a projetos voluntários) e dá centralidade à escolha individual de se empenhar ou não em dado projeto.
50Nesses termos, a computação vai sendo gradativamente associada a liberdades, especialmente quando ligadas a noções de autonomia, autoatualização e individualidade (Kelty, 2014, p. 214). Tal percepção vincula a internet a uma determinada ideologia de mídia.
51Trazendo as discussões sobre ideologia linguística (Silverstein, 1985) para os estudos de mídia, Ilana Gershon (2010) propõe a noção de ideologia de mídia como ponto de partida teórico para explicar por que associamos determinadas ideias, atitudes e usos a dadas tecnologias e por que usamos uma mídia ao invés de outras para certas atividades. Ao analisar conversas sobre término de relacionamentos amorosos entre estudantes de uma universidade norte-americana, Gershon percebeu como a mídia usada nessas ocasiões constituía um elemento metadiscursivo fundamental nas narrativas de separação. Ao enviar mensagens de texto frequentes para seu namorado, uma das estudantes entrevistadas ressaltava o quanto ela gostava de conversar com ele pessoalmente, mas se sentia frustrada pelo fato de que as trocas de mensagens com ele eram superficiais e monossilábicas – o que se tornou um problema quando eles precisaram continuar o namoro à distância durante as férias da universidade.
52De forma análoga, quando o namorado de uma das entrevistadas decidiu terminar o relacionamento de longa data por telefone, ela não aceitou, argumentando que uma ligação telefônica era impessoal demais e que esse assunto deveria ser tratado presencialmente. Ou, ainda, ao receber uma mensagem de texto dizendo “precisamos conversar. Podemos nos encontrar mais tarde?”, o convite de se passar da mensagem escrita para a conversa presencial – ou seja, a preferência por uma troca presencial por voz em detrimento de uma troca escrita mediada por telefones celulares – diz algo sobre como determinadas mídias são percebidas como mais ou menos adequadas, formais ou “frias” para determinadas práticas.
53De forma análoga, a ideologia de mídia predominante em contextos ocidentais nas primeiras décadas do século XXI tende a retratar os espaços da web 2.0 como mais individualizantes do que a maioria dos demais espaços online e offline. O slogan da Wikipédia reforça essa imagem: “A enciclopédia livre que todos podem editar” (ênfase minha). O slogan da Wikipédia anglófona, por conta do sujeito da frase em questão, parece deixar ainda mais clara a forma como os espaços colaborativos e interativos da internet dão voz e empoderam indivíduos ordinários (Shirky, 2012): “The free encyclopedia that anyone can edit” (qualquer um; ênfase minha).
54Tais noções de um todo coletivo formado por partes individuais – tanto o “todos” do slogan em português quanto o “qualquer um” (anyone) da versão em inglês – reforçam a maneira como a web 2.0 (formada por blogs, redes sociais, plataformas de vídeo como YouTube e projetos colaborativos como a Wikipédia) é focada em conteúdos gerados pelos seus usuários, o que nos leva a uma ambivalência notável. Por um lado, emerge nesses espaços uma assim chamada inteligência coletiva, formada pela soma das inteligências individuais conectadas, compartilhadas e, dessa forma, amplificadas com a ajuda das mídias e tecnologias digitais (Lévy, 2003). Por outro lado, esses espaços coletivos não apagam o indivíduo. Pelo contrário, as mídias e tecnologias digitais dão voz e visibilidade até mesmo ao “qualquer um”, ao fulano de tal que, fora da internet, é constantemente silenciado e marginalizado como um cidadão ordinário.
55Tanto na Wikipédia quanto em outros espaços da web 2.0, usuários publicam o conteúdo que querem, quando querem, sem compromissos ou obrigações com os demais usuários desses espaços – sejam eles amigos, seguidores ou demais editores. Isso está intimamente ligado à ideologia de mídia predominante, segundo a qual a internet é constituída por espaços igualitários e fundados na liberdade individual, nos quais potencialmente qualquer usuário pode se manifestar da forma como preferir, sem precisar ter um título de especialista em determinado tema para se tornar um editor de enciclopédia ou um influenciador digital.
56Em sua etnografia com empresários do Vale do Silício, Thomas Malaby (2009) descreve como as big techs na costa oeste dos EUA são dominadas por uma disposição tecnoliberal forjada a partir da desconfiança em relações verticais de autoridade e da crença no poder transformador da tecnologia. Assim como participação e colaboração emergem como palavras de ordem na economia digital (Malaby, 2009; Pfister; Yang, 2018), tais valores também ganham destaque nas contraculturas que se opõem parcialmente à economia digital. Referindo-se a isso como ética hacker, Gabriella Coleman (2013) narra como hackers e participantes dos movimentos software livre e de código aberto são motivados por um compromisso com liberdade de informação, uma desconfiança em relação a figuras autoritárias, uma dedicação exacerbada à meritocracia e a crença de que a computação pode servir de base para se construir um mundo melhor. Tal forma de participação tecnoliberal – conceito que proponho a partir da terminologia de Malaby – também está presente na coconstrução de um projeto enciclopédico online sem fins lucrativos.
- 17 Maratonas de programação na qual programadores e desenvolvedores (que, muitas vezes, não se conhece (...)
57Tanto a Wikipédia quanto os movimentos software livre e de código aberto se apresentam como espaços que absorvem tais entusiastas das tecnologias (geeks ou, na terminologia de Coleman, hackers) que se opõem à existência de relações verticais de autoridade. Como argumentado por Graham Jones, Beth Semel e Audrey Le (2015) com relação a hackathons,17 tais projetos e espaços dão vazão à busca por liberdade de expressão e de associação, permitindo a seus participantes colaborar intensivamente em torno de um mesmo projeto, mas sem estabelecer com ele uma extensa responsabilidade interpessoal.
58A forma de participação tecnoliberal predominante nesses espaços consiste em uma ideologia de mídia que tanto flerta com uma percepção liberal dos sujeitos quanto depende da confiança no poder transformador das mídias e tecnologias digitais para se expressar em pleno direito. Assim, tais mídias servem de base para uma série de projetos abertos à participação de “todos” e de “qualquer um” e que dão a seus participantes a oportunidade de se inserirem em uma comunidade ou cultura colaborativa. Ao mesmo tempo, tais projetos não exigem de seus participantes um senso de responsabilidade ou um compromisso de longo prazo.
- 18 De acordo com um levantamento da Wikimedia Foundation (2011, p. 11) abrangendo versões da Wikipédia (...)
59Ao se sentirem livres para editar os artigos que preferirem, editores da Wikipédia podem, por exemplo, escolher editar apenas esporadicamente sobre um tema extremamente específico que pouquíssimas pessoas virão a ler. Em última instância, essa forma de participação tecnoliberal pressupõe que contribuições à Wikipédia podem ser motivadas tanto pelo compromisso de dado editor com o bem comum18 quanto, e não menos importante, pelo interesse do editor em “fazer o que quer”.
60Voltando à narrativa de Yvesn, este não se reconhece como especialista em nenhum dos temas que lhe interessa editar. Na visão de Yvesn, seu círculo de convívio offline não o percebe como uma figura de autoridade em nenhum desses temas, e a Wikipédia dá a ele uma oportunidade única de compartilhar seu conhecimento leigo, ser lido e ser levado a sério. Escrever em esperanto amplifica essa percepção: sem Yvesn, muitos temas jamais seriam cobertos pela Wikipédia em esperanto, uma língua muito menos usada que o inglês ou português. Como artigos da Wikipédia não são atribuídos a autores individuais, quem ler sobre os bondes de Luxemburgo em esperanto ou sobre um determinado político belga na Wikipédia anglófona pode não saber que Yvesn está por trás da confecção desses artigos. No entanto, ele sabe, e os demais editores podem ver sua assinatura digital no histórico de edições. Caso suas edições não sejam questionadas ou desfeitas, seu conhecimento terá passado no controle de qualidade por pares dessa enciclopédia (Stvilia et al., 2008). Essa aprovação é suficiente para mostrar que sua missão foi cumprida e que ele tem algo de significativo a comunicar ao mundo e a contribuir para a disseminação do conhecimento.
61Usada neste artigo para analisar práticas de colaboração, conflito e liberdade na coconstrução da Wikipédia, a noção que proponho de participação tecnoliberal nos ajuda a entender controvérsias em torno de formas de conhecimento e autoria de conteúdo em espaços online. Na medida em que potencialmente qualquer um pode ser percebido como um especialista em epidemiologia ou em guerra russo-ucraniana ao tuitar ou postar sobre isso em redes sociais, a figura do influenciador digital desponta para designar não os maiores especialistas em determinado tema, mas aqueles cujos conteúdos online alcançam e impactam mais usuários. Os resultados dessa reconfiguração da autoridade e da produção do conhecimento já foram amplamente debatidos – entre outros, pelas discussões de Leticia Cesarino (2020, 2021) sobre pós-verdade e a crise do sistema de peritos, a qual democratiza o conhecimento (ao dar voz a, potencialmente, qualquer um) ao mesmo tempo que abre espaço para formas contra-hegemônicas de conhecimento (como as fake news).
- 19 Esses princípios também constituem a base dos movimentos software livre e de código aberto (Coleman (...)
62Alicerçada na liberdade (“a enciclopédia livre”), na autonomia (“que todos [anyone] podem editar”) e na participação (afinal, um projeto voluntário de dimensões enciclopédicas requer inúmeros participantes), a Wikipédia se consolida como um projeto colaborativo voltado para o bem comum. No entanto, seus editores “colaboram” sobretudo isoladamente, com pouco contato direto entre si, cada um dando uma contribuição que, por vezes, pouco dialoga com outras. Tal forma de colaboração se baseia no princípio de que o que está disponível online sem indicação de autoria pertence ao coletivo e, portanto, pode ser usado, modificado, aprimorado e codesenvolvido por qualquer usuário.19 O que nos traz de volta a uma das questões que abriram este artigo: até que ponto o modelo de produção textual coletiva que sustenta a Wikipédia favorece uma percepção coletiva de autoria e de propriedade do conhecimento?
63De diversas maneiras, a Wikipédia anda lado a lado com projetos como Pirate Bay, Sci-Hub, Library Genesis e Z-Library na busca da democratização do acesso ao conhecimento. Apesar de os demais projetos aqui listados se desenvolverem às margens da lei no que tange a questões de pirataria e direitos autorais, tanto eles quanto a Wikipédia prefiguram uma abertura e informalização da coprodução e disseminação do conhecimento. Para isso, enquanto os demais projetos reconhecem autoria sem necessariamente reconhecerem a legitimidade dos direitos autorais, a Wikipédia propõe uma reflexão sobre autoria coletiva a partir do seu funcionamento baseado no “faça você mesmo”.
- 20 Para além da Wikipédia, a questão da autoria na internet tem ganhado visibilidade com as controvérs (...)
64Ao se sobressair como uma proposta de solução aos problemas neoliberais da autoridade cientifica restrita e da privatização do conhecimento, a Wikipédia emerge como um espaço de produção do conhecimento, por assim dizer, do povo para o povo. No entanto, tal solução a esses problemas neoliberais é também ela própria uma solução com um toque neoliberal (Tkacz, 2015). Questionar quem tem autoridade para (re)produzir conhecimento não implica questionar autoria. Como consequência, as guerras de edição ilustram como colaboração muitas vezes assume a forma de competição. Ainda que os leitores da Wikipédia tendam a atribuir genericamente a autoria dos artigos à enciclopédia, os editores reconhecem quem deu cada contribuição para cada artigo. Participar de uma guerra de edição, portanto, significa se negar a aceitar uma coautoria que transforme determinado artigo em um produto com o qual um dos editores envolvidos não se identifica,20 como mostrou o conflito entre Moxy e Chidgk1 no artigo sobre a Rússia.
65À medida que o histórico de edições de artigos revela como a autoria coletiva é um emaranhado de contribuições individuais, essa enciclopédia online emerge na interseção de culturas colaborativas e participação tecnoliberal. Como discutido, apesar dos argumentos que defendem a existência de uma “comunidade” ou “cultura colaborativa” entre os editores, muitos destes colaboram com a Wikipédia sem participarem desses espaços. No entanto, ao reescrever uma frase imprecisa, corrigir a formatação de um parágrafo ou criar um artigo sobre um tema de interesse secundário, tais editores se veem como colaborando para o todo (conceptualizado como o bem comum) ao mesmo tempo que ganham voz enquanto indivíduos.
66Assim, quando a guerra russo-ucraniana toma a forma de palavras e bytes, o “faça você mesmo” da Wikipédia permite que editores tanto colaborem para manter a enciclopédia atualizada quanto expandam a guerra entre os dois países para um espaço online. Ao usarem o artigo sobre a Rússia como um campo de batalha para marcarem seu território, os editores que confeccionam um bem comum – o artigo enciclopédico – não se apagam enquanto indivíduos diante do aspecto colaborativo do texto. Pelo contrário, ganham terreno para a exaltação tecnoliberal do individualismo expressivo que legitima que cada um deixe sua marca no texto.
67Nesse meio-tempo, o artigo sobre a Rússia experimenta um período de trégua. Vamos ver quando o mesmo acontecerá com o território ucraniano.