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Da reflexão na ação ao conhecimento ilusório nas Unidades de Polícia Técnica Forense em Portugal

From reflection in action to illusory knowledge at Forensic Technical Police Units in Portugal
Susana Costa

Resumos

As últimas décadas têm testemunhado o desenvolvimento e a expansão dos usos da ciência e da tecnologia em muitas áreas da vida social. Para a justiça criminal essa expansão pode constituir uma oportunidade para incorporar e testar o poder das novas ferramentas forenses. Contudo, tratando-se de instituições tradicionais, as forças policiais e o sistema de justiça em geral podem necessitar de períodos de adaptação para que as novas tecnologias sejam incorporadas nas maneiras de pensar e de fazer. Com base em grupos focais realizados em Unidades de Polícia Técnica Forense (UPT) em Portugal e adotando metodologias qualitativas e interpretativas, este artigo procura perceber como é que as tecnologias de ADN são incorporadas no trabalho de investigação policial. Ao fazê-lo explora a “reflexão na ação” feita pelas UPT e o “conhecimento problemático” associado ao seu trabalho: conhecimento tácito, inerte, ritual, alien e ainda um novo tipo de conhecimento a que aqui chamamos de ilusório.

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Notas da redação

Recebido: 19/01/2023
Aceito: 16/11/2023

Texto integral

Introdução1, 2, 3

  • 1 Gostaríamos de agradecer a todos os agentes das UPT que concordaram em participar neste estudo e a (...)
  • 2 Declaro que não há qualquer conflito de interesses.
  • 3 Esta investigação foi cofinanciada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e fundos europeus (COM (...)
  • 4 Pode dizer-se ADN ou DNA. Em Portugal utiliza-se a sigla ADN para referir o ácido desoxirribonuclei (...)

1Na “era genética” da investigação criminal as tecnologias de ADN4 são utilizadas pelas forças policiais em todo o mundo, conjugadas com representações culturais e populares de que constituem uma arma poderosa na identificação dos autores de crimes. Dos inúmeros desafios que se colocam atualmente à investigação criminal, destaca-se a possibilidade de recolher e analisar vestígios biológicos na cena do crime para serem comparados com perfis genéticos previamente armazenados em ficheiros policiais ou em bases de dados de perfis de ADN (Bond, 2007; Dahl; Sætnan, 2009; Hindmarsh; Prainsack, 2010).

2Um vasto número de estudiosos das ciências sociais e dos estudos sociojurídicos focaram-se nos usos da prova genética em tribunal, salientando o papel dos peritos, os desafios éticos e jurídicos que emergem da incorporação da genética forense no sistema de justiça criminal (Kruse, 2016; Lynch et al., 2008), enfatizando que a prova de ADN pode alcançar o “padrão-ouro” entre os vários tipos de prova admissíveis em tribunal. Outros autores exploraram o “efeito CSI” (Cole; Dioso-Villa, 2007; Huey, 2010; Podlas, 2006) e a relação entre o consumo de dramas televisivos, como a série Crime Scene Investigation (CSI) e os vereditos dos jurados em contextos de sistemas jurídicos adversariais. Ou, de forma mais lata, pode ainda falar-se no tech effect que o seu uso produz (Shelton; Kim; Barak, 2006). Tal significa que embora um “efeito CSI” direto não possa ser encontrado, um efeito que assenta nas transformações societais e desenvolvimento tecnológico pode, contudo, ser observado (Shelton; Kim; Barak, 2006). O efeito cultural produzido pelos rápidos desenvolvimentos científicos levou ao aumento das expetativas acerca das possibilidades e potencial da ciência e da tecnologia. Outros autores dedicaram-se ao estudo dos usos históricos e sociais do genetic profiling, apresentando análises detalhadas sobre o desenvolvimento dessas tecnologias e as suas trajetórias (Cole, 2001; Jasanoff, 1995, 2004; Lynch et al., 2008; Williams; Johnson, 2008), nomeadamente o uso crescente das tecnologias de ADN pelas forças policiais (Cole, 2007), a cientifização do trabalho policial (Ericson; Shearing, 1986) e a capacidade de as polícias integrarem as tecnologias de ADN no seu trabalho (Cole, 2007; Ericson; Shearing, 1986; Kruse, 2016; Williams; Johnson, 2008; Willliams; Johnson; Martin, 2004; Wyatt, 2014a).

3Ao permitir a identificação a partir de amostras biológicas, as tecnologias de ADN tornaram-se um suporte decisivo no entendimento das cenas de crime. Porém, podem também criar tensões se não usadas com o rigor que a ciência impõe com vista a obter resultados precisos e robustos.

  • 5 Todas as traduções são da responsabilidade da autora.

4Assim, para entender a importância da prova forense em tribunal deveremos recuar “[…] às práticas de interpretação e montagem da prova”5 (Kruse, 2012, p. 300) e olhar para os entendimentos socioculturais que os atores intervenientes fazem das situações em concreto. Enquanto o ADN se apresenta como uma tecnologia “neutra” e objetiva, a forma como os dados são produzidos pela polícia não são uma representação neutra de uma realidade externa, mas são socialmente construídos (Leese, 2023) e mediados por fatores tecnológicos, assim como por fatores culturais, organizacionais e ainda considerações políticas. A polícia ajuda a ciência forense a trilhar entre diferentes locais e é responsável pela mediação entre diferentes comunidades do sistema de justiça criminal (Wyatt; Wilson-Kovacs, 2019). Desse modo, é importante perceber a forma como a polícia molda as suas práticas e conhecimento, atendendo a esse processo de cientifização da atividade policial (Ericson; Shearing, 1986; Williams; Johnson, 2008) e como é que a introdução da identificação por perfis de ADN no trabalho quotidiano da investigação criminal pode contribuir para a eficiência do seu trabalho. Para além disso, embora as tecnologias de ADN se tenham globalizado, é essencial saber como são aplicadas em contextos particulares. Se as tecnologias de ADN podem contribuir para melhorar a qualidade e os resultados da investigação criminal, também dependem dos usos particulares que as autoridades policiais lhes conferem em situações concretas e como constroem a narrativa sobre a produção de prova forense, podendo ser identificadas resistências ao seu uso com base numa tecnologia que se globalizou, mas que apresenta especificidades locais (Costa, 2003). Os vestígios biológicos na cena de crime, em particular, podem ser bastante desafiantes em termos da sua interpretação e significado para a construção de uma narrativa criminal que ajude a edificar uma história com valor jurídico (Kruse, 2010, 2012, 2016). Essas histórias começam a ser contadas pelos first attenders na cena de crime – os polícias que primeiro se deslocam ao local. Eles têm um papel crucial em toda a cadeia de custódia da prova e, embora possam existir diretrizes orientadoras do seu trabalho (Lawless; Williams, 2010), pouco é ainda conhecido sobre as suas práticas formais e, menos ainda, acerca das suas práticas informais. Para além disso, esses estudos dão um contributo relevante aos desafios e dilemas que emergem em áreas onde a ciência e o direito se intersetam. Contudo, tendem a limitar o seu enfoque aos Estados Unidos da América e ao Reino Unido, cujos ordenamentos jurídicos se encontram organizados de acordo com os princípios adversariais.

5Começaremos então por fazer um breve enquadramento legislativo sobre as competências de investigação criminal em Portugal para, num momento subsequente, com base nas narrativas produzidas nos grupos focais podermos identificar os maiores contributos do ADN para o seu trabalho. Daqui, surgem os dois conceitos-chave mobilizados para este artigo: “reflexão na ação” e “conhecimento problemático” A “reflexão na ação” mobilizada pelos agentes permite-nos apreender a forma como pensam o crime. Desse exercício emerge o conceito proposto por Perkins de “conhecimento problemático”, sendo possível, com base nas narrativas produzidas pelos agentes das Unidades de Polícia Técnica Forense (UPT), identificar os diferentes tipos de “conhecimento problemático” enunciados pelo autor (Perkins, 2006). Partindo dos posicionamentos desses agentes, que compõem os grupos focais, exploramos a aplicação das tecnologias de ADN discutindo, por um lado, a “reflexão na ação” mobilizada por eles no seu trabalho quotidiano e, por outro lado, de que modo essa reflexão permite observar o “conhecimento problemático” identificado por Perkins e, concomitantemente, permitindo ainda introduzir à tipologia criada por Perkins um novo “conhecimento problemático” a que designamos de “conhecimento ilusório”. Esse “conhecimento ilusório” não se trata de um conhecimento autónomo, mas, antes, mais um tipo de conhecimento que podemos adicionar aos identificados por Perkins, e que se ajusta às racionalidades próprias no contexto da investigação criminal em Portugal. Ao designá-lo como ilusório não é pretensão afirmar o seu carácter irreal ou fictício, mas tão só que os investimentos feitos na área da investigação criminal pela PSP ao nível das chefias podem contribuir para a ilusão de que todos os conhecimentos, ferramentas, recursos materiais e recursos humanos estarão à disposição das polícias no seu trabalho quotidiano gerando sentimentos de frustração nos agentes e ideias erróneas do contributo da tecnologia de ADN ao seu trabalho. Pretendemos mostrar de que forma a “reflexão na ação” adotada pelos agentes das UPT é fruto dos diferentes tipos de “conhecimento problemático” mobilizados no terreno. Trata-se, assim, de um tipo de conhecimento que é também ele um “conhecimento problemático”, mas que permite explicar a forma de pensar e de atuar na cena de crime por esses agentes e de que modo a tecnologia de ADN contribui para esse saber e fazer.

Investigação criminal em Portugal

6A lei 49/2008, de 27 de agosto (Lei de Organização e Investigação Criminal), também conhecida por LOIC, regula a investigação criminal em Portugal. Estão identificados três órgãos de polícia criminal: a Polícia Judiciária (PJ), a Polícia de Segurança Pública (PSP) e a Guarda Nacional Republicana (GNR) (Portugal, 2008). A PJ é responsável pela investigação criminal, a PSP tem um caráter securitário e civilista e uma forte implementação nas áreas urbanas e a GNR tem um perfil militarizado com atuação nas áreas rurais (Durão; Darck, 2012; Silva, 2020).

7De acordo com a LOIC (Portugal, 2008), o primeiro passo a ser tomado pela polícia após um crime ser reportado é informar o Ministério Público. Contudo, mesmo antes de receber ordem da autoridade judiciária, as forças policiais de proximidade (PSP e GNR) podem realizar as medidas urgentes requeridas para preservar a cena de crime (artigo 2º, nº 3). Para além de poderem realizar os atos urgentes em crimes que são da competência da PJ, a PSP e a GNR são igualmente responsáveis por realizar as diligências nos crimes que são da sua competência. Os crimes de homicídio, agressão sexual e furto qualificado (artigo 7º), por exemplo, são especificamente da competência da PJ, que é a entidade que gere a cena de crime, assistida pela PSP ou GNR, em função da força policial de maior proximidade. A GNR e a PSP, para além de conduzirem os atos urgentes para salvaguardar a prova em crimes que são da competência da PJ, também são responsáveis por desenvolver as diligências nos crimes que são da sua competência (como, por exemplo: furto simples ou roubo – sem arma de fogo) e pela recolha de vestígios biológicos. Já as impressões digitais são da competência da PSP ou GNR. Desse modo, quando a polícia de proximidade (PSP ou GNR) se desloca a uma cena de crime que é da competência da PJ, apenas deve realizar as diligências necessárias para preservar a cena de crime, acionando e aguardando a chegada da PJ (Portugal, 2008).

8Assim, cabe sempre às polícias de proximidade num primeiro momento avaliar a cena de crime, o cenário encontrado e a sua competência para intervir ou não.

  • 6 Essa distribuição consta das Normas de Execução Permanente (NEP) da PSP. Trata-se de um documento i (...)

9No que respeita à PSP, aquela que será alvo de análise neste artigo, é composta por três valências: polícia genérica, investigação criminal e Unidade de Polícia Técnica Forense (UPT).6 Estas três valências encontram-se presentes nos 20 distritos portugueses (Portugal, 2007). Após serem informados da ocorrência de um crime, a polícia genérica é chamada; em caso de ser da competência da PSP, é acionado o seu departamento de investigação criminal e, se houver possibilidade de recolha de vestígios no local (biológicos ou lofoscópicos), é acionada a UPT. Se o crime não for da competência da PSP, depois de avaliarem a situação e/ou preservarem a cena de crime devem acionar a PJ.

10O que está estabelecido na lei baseia-se na assunção prévia de que todas as polícias são capazes de fazer uma intervenção eficiente na cena de crime, preservando a cena, desenvolvendo as diligências iniciais da investigação, com vista a garantir que as subsequentes diligências se realizarão de forma adequada. No entanto, estudos anteriores conduzidos em Portugal revelaram ambiguidades dessa lei, bem como dificuldades associadas à sua aplicação: a falta de uma clara definição das responsabilidades atribuídas ao trabalho de investigação criminal, a falta de formação técnica e científica dos agentes da PSP e da GNR, a escassez de recursos materiais e humanos que poderiam permitir a essas polícias de proximidade recolher vestígios de forma eficiente se tal fosse necessário (Costa, 2015, 2017), a competição negativa que por vezes existe nas diferentes polícias e a formação dada a esses agentes (Ademar, 2020; Silva, 2020). Esses estudos também revelaram que as práticas policiais são fortemente marcadas por uma atitude proativa por parte dessas polícias, mesmo em crimes que não são da sua competência (Costa, 2015, 2017). Tal significa que, embora cientes das suas responsabilidades e conseguindo identificar as fronteiras do seu trabalho, a sua atuação tende a ir mais além, realizando outras diligências para as quais não lhes foi atribuída competência (Costa, 2015). Concomitantemente, um “pragmatismo evidenciário” (Santos, 2014) das atividades policiais e um uso reativo e utilitário da tecnologia de ADN como forma de legitimar as narrativas estabelecidas foi encontrado em Costa e Santos (2019) e Santos (2021). Esses dados podem conduzir a um entendimento discricionário e situacional, ancorado nos diferentes entendimentos socioculturais (Costa, 2017) e com impacto nas decisões jurídicas, o que leva a que se possam identificar diferentes formas de saber e diferentes práticas de fazer entre os diferentes órgãos de polícia criminal a operarem em Portugal.

A “reflexão na ação” e o “conhecimento problemático”

11Ainda que Portugal tenha iniciado o seu processo de cientifização da atividade policial nos finais do século XX, Santos Cabral (2020, p. XVI) considera que ainda não se passou a “‘fase de adolescência’ cujo desenvolvimento é essencial”. As atividades de investigação criminal têm de lidar com circunstâncias particulares tentando encontrar um equilíbrio entre os requisitos jurídicos, os avanços científicos e tecnológicos e os inerentes entendimentos socioculturais. À semelhança do que aconteceu nos sistemas adversariais, como nos Estados Unidos da América ou no Reino Unido, a tecnologia de ADN gradualmente foi entrando no trabalho de rotina da polícia – primeiro na PJ, depois na PSP e na GNR.

12Assim, a “reflexão na ação” (reflection in action) (Schön, 1983) será usada com vista a apreender “como os profissionais pensam a ação” (Wyatt, 2014a, p. 30), os processos de raciocínio dos agentes das UPT e como eles usam a tecnologia de ADN no terreno. Com vista a explicar esses processos, um outro conceito emerge – o de “conhecimento problemático” (troublesome knowledge) (Perkins, 2006), que, se articulado ainda com o conceito de tech effect proposto por Shelton, Kim e Barak (2006), nos proporcionam dados interessantes.

13Enquanto praticantes reflexivos (Schön, 1983; Williams, 2007; Wyatt, 2014a, 2014b) o trabalho da polícia é baseado num processo constante de aprendizagem, que pode ser desenvolvido na prática antes, depois e durante um crime. Implica pensar e aprender sobre o evento, durante o evento e vendo-o tal como alguém o viu no passado, mas, simultaneamente, vendo-o também como algo novo, com as suas incertezas e formas de ver e de fazer.

14A “reflexão na ação” aplicada com velhas e novas estratégias, conhecimento tácito (Polanyi, 1958) e conhecimento formal no trabalho diário (Wyatt, 2014a, 2014b) conduz-nos a um segundo conceito – o de “conhecimento problemático” (Perkins, 2006), que permite problematizar os constrangimentos identificados no trabalho. Perkins mobilizou-o para perceber as formas de aprendizagem no processo educacional. Ele distingue entre “conhecimento tácito”, “conhecimento inerte”, “conhecimento ritual” e “conhecimento alien”.

15O “conhecimento tácito” é partilhado com uma comunidade específica e é maioritariamente um tipo de conhecimento pessoal e implícito. O “conhecimento inerte” respeita às várias peças que têm que ser integradas. O “conhecimento ritual” assenta nas rotinas e experiências do dia a dia e que podem levar a entendimentos erróneos. Consequentemente, pode levar a que as dificuldades sejam exacerbadas, devido a crenças erróneas que podem afetar a forma como as polícias veem e analisam as respostas rituais aos problemas com que são confrontadas. E o “conhecimento alien” é baseado em abordagens conflituantes, por vezes fazendo uso de uma linguagem hermética, impenetrável que parece estranha (Hill, 2010) e diferente da “nossa”.

  • 7 A esse propósito ver Silva (2020) e Ademar (2020).

16De acordo com Daeid (2010, p. 75) o “conhecimento problemático” pode “introduzir barreiras para a transferência de informação entre fases de um inquérito”, uma vez que os agentes da polícia têm de lidar com conhecimento que provém de diferentes fontes e atores (polícia genérica, investigação criminal, testemunhas, etc.), bem como conhecimento que é adquirido no momento que precede o crime, durante o evento criminal e/ou em fase posterior ao evento criminal.7 O “conhecimento problemático” pode ainda introduzir barreiras devido ao uso da ciência e às representações culturais e expetativas que são depositadas na tecnologia (Huey, 2010).

17Pretende-se assim dar um contributo para a análise da aplicação das tecnologias de ADN pelos agentes das UPT, discutindo a “reflexão na ação” que norteia o seu trabalho, mas, de igual modo, o “conhecimento problemático” que emerge da introdução dos usos da tecnologia de ADN nas polícias de proximidade em Portugal.

Materiais e métodos

18Este artigo faz parte da investigação “Entendimentos socioculturais da tecnologia de ADN na cena de crime”. Foi usada uma metodologia qualitativa e análise de conteúdo de grupos focais baseada nos princípios da teoria fundamentada (Charmaz, 2006) com vista a analisar a forma como os agentes das UPT avaliam a prova recolhida e o impacto percebido na investigação criminal. Partimos de uma abordagem construtivista, procurando apreender a realidade social através dos significados que os participantes conferem aos objetos, as suas ações e interações com os outros. Não partir de um quadro teórico estabelecido permite que novos conceitos e teorias emerjam, apelando à criatividade da investigação (Strauss; Corbin, 1990).

19Os principais objetivos deste estudo foram entender, na perspetiva dos agentes das UPT: o contributo da tecnologia de ADN para o seu trabalho; o raciocínio feito acerca do uso da tecnologia de ADN; a importância do seu uso na sua atividade de rotina; o raciocínio feito na cena de crime com vista a recolher vestígios biológicos e a decisão de recolher determinados vestígios em detrimento de outros; a lógica subjacente à construção da narrativa; e os desafios e obstáculos enfrentados na sua atividade.

  • 8 Tal situação, por si só, pode revelar a importância atribuída ao trabalho de investigação criminal (...)
  • 9 Numa esquadra de polícia genérica os grupos focais acabariam por não se realizar por as chefias ter (...)

20Nesse sentido, foram enviados pedidos formais à Direção Nacional da PSP e da GNR com vista a obter aprovação para conduzir os grupos focais. Apenas a PSP concedeu autorização para conduzir o estudo. Foi acordado com a Direção Nacional da PSP que o estudo envolveria duas esquadras de polícia genérica, duas esquadras de investigação criminal e duas UPT, no intuito de alcançar diferentes níveis de investigação, diversidade geográfica (norte, centro e sul do país, litoral e interior, zonas urbanas e zonas rurais). Uma das esquadras de investigação criminal acabaria por ser substituída por uma UPT por não existir, na prática, naquela localidade pessoal afeto à investigação criminal.8 E uma das esquadras de polícia genérica inicialmente selecionada acabaria por não participar no estudo.9 Desse modo, foram estudadas: uma esquadra de polícia genérica, uma esquadra de investigação criminal e três UPT.

  • 10 Uma vez que no decurso do estudo deflagrou a pandemia de COVID-19, foi adicionada uma questão acerc (...)

21No âmbito deste artigo apenas será contemplada a análise dos grupos focais desenvolvidos em três UPT. Com vista a salvaguardar a identidade dos participantes foram atribuídos nomes de planetas às UPT: UPT_Júpiter, UPT_Neptuno e UPT_Plutão. Foram realizados dez grupos focais com a participação de 33 agentes dessas UPT entre junho de 2019 e junho de 2021. Após obtida a permissão, um formulário de consentimento informado foi aplicado e assinado por todos os participantes, assegurando a anonimização e confidencialidade dos dados recolhidos. Todos eles concordaram com a gravação em áudio dos grupos focais, que têm um total de 17 horas de conversação e foram transcritos verbatim. Os excertos foram codificados e renomeados com vista a salvaguardar a identidade dos participantes. Das 16 questões10 do guião previamente elaborado, as questões 1, 2 e 5 permitiram perceber os maiores contributos que o ADN traz à UPT (1. Os vestígios biológicos são mais ou menos importantes que os vestígios lofoscópicos?; 2. O ADN veio alterar a forma como os crimes são investigados?; 5. Na vossa opinião qual o maior contributo que o ADN traz à vossa investigação?). As questões 3, 4 e 6 permitiram analisar o raciocínio feito pelos agentes das UPT para recolher vestígios (3. Quais os critérios para recolher vestígios na cena de crime?; 4. Em que medida é que a existência de vestígios biológicos auxilia na construção da história de um evento criminal?; 6. Qual o raciocínio que fazem para recolher um vestígio e não outro?). A questão 7 permitiu perceber os constrangimentos que enfrentam e que leva ao “conhecimento problemático” (7. Que aspetos consideram mais importantes com vista a tornar o vosso trabalho eficiente?). Uma limitação deste estudo deve-se ao facto de a Direção Nacional da GNR não ter permitido a investigação. O facto de a opção metodológica ter recaído em grupos focais em vez de entrevistas individuais, por um lado, pode ter constituído um constrangimento para eles, que poderão ter-se sentido desconfortáveis em falar na presença de outros colegas. Para outros, o facto de estarem em grupo e um deles começar a falar sobre determinado tópico pode ter constituído a alavanca para se desinibirem e falarem. Outra limitação deve-se ao facto de este artigo apenas refletir os dados obtidos com os grupos focais realizados nas três UPT. Uma análise mais robusta incluindo todas as valências da PSP está já em curso. Essas limitações não permitem extrapolações para além das UPT e do contexto inquisitorial português.

Maior contributo do ADN para as UPT

22Os maiores contributos do ADN para as UPT identificados a partir das suas narrativas foram: a possibilidade de identificar o autor do crime, fazer os corpos produzir a verdade, uma forma de emprestar credibilidade ao trabalho de polícia e uma nova forma de “caçar criminosos”.

Possibilidade de identificar o autor do crime

23O maior contributo que o ADN traz à investigação criminal nas narrativas produzidas pelos agentes das UPT é a possibilidade de identificar o autor do crime. “Identifica-nos aquele indivíduo uma vez que não há outro ADN igual?” (UPT_Júpiter). A identificação emerge como uma forma de obter a certeza. “O maior contributo é mesmo dar-nos a certeza de que foi aquele indivíduo” (UPT_Júpiter). Ou, como outro agente refere: “ […] é muito mais fácil a gente chegar, se calhar, a um resultado positivo com uma amostra de ADN do que atualmente com um vestígio lofoscópico” (UPT_Neptuno).

Fazer os corpos produzir a verdade

24Ao identificar os vestígios e as marcas deixadas na cena de crime, permite-lhes chegar aos corpos que originaram esses vestígios (Santos, 2014). O corpo emerge como uma forma de produzir a verdade, permitindo que os indivíduos sejam diferenciados (Wyatt, 2014a, 2014b) de acordo com os artefactos forenses (Williams, 2007) encontrados na cena de crime. O ADN emerge como uma forma de levar os corpos a produzir e a reproduzir a “verdade” do crime (Foucault, 1991), representando uma imagem ficcional da infalibilidade do ADN. “Aquilo [ADN] não engana” (UPT_Júpiter). Ou, nas palavras de outro agente, “[…] é inequívoco, mesmo” (UPT_Plutão).

Forma de emprestar credibilidade ao trabalho de polícia

25Para essa confiança contribui o facto de assentar numa prova científica e que contribui para a segurança de quem tem de ponderar a prova. “Para fazer mais peso na prova, sim. É fundamental. Não quer dizer que tenha alterado, mas pelo menos é uma prova, digamos, mais científica, no fundo” (UPT_Plutão).

26Nesse sentido, o ADN emerge como uma forma de dar credibilidade ao trabalho desenvolvido numa cena de crime e apresentado em tribunal. O valor atribuído ao ADN parece estar associado ao peso epistémico percebido e à objetividade que pode trazer à investigação, proporcionando garantias que outra prova possivelmente não traz.

27Nas narrativas produzidas pelos agentes das UPT, comparando com outras provas, enquanto as impressões digitais estão fora do corpo, o ADN está sob a pele (Lyon, 2001; Williams; Johnson, 2008; Wyatt, 2014b) e fora do controlo dos indivíduos (Lyon, 2001; Williams; Johnson, 2008; Wyatt, 2014b). Se a prova testemunhal e as impressões digitais tinham primazia há alguns anos, atualmente os agentes das UPT consideram que a prova biológica adquiriu uma relevância particular. “Hoje em dia dá-se mais valor a uma prova recolhida no local, ADN […] do que à prova testemunhal, porque facilmente uma prova testemunhal […] em tribunal pode ser contradita” (UPT_Júpiter). A prova testemunhal tende a ser vista como mais subjetiva e difícil de avaliar de forma adequada. “Eu também sei que ela hoje diz-me que só ela é que apanhou, e se for preciso amanhã até diz que não apanhou” (UPT_Neptuno). Como tal, a prova de ADN adquire a reputação do tipo de prova que não mente, enquanto as testemunhas são mais falíveis (Lynch et al., 2008) e o seu testemunho, volátil (Ademar, 2020).

28Nas suas narrativas as impressões digitais são cada vez mais raras e mais difíceis de encontrar e recolher. “Os [vestígios] lofoscópicos são cada vez mais difíceis de recolher, por isso o ADN é o futuro!” (UPT_Júpiter). Essa perceção é baseada na crescente “consciência forense” dos indivíduos (Beauregard; Bouchard, 2010), em que os autores se protegem mais. “Os suspeitos estão cada vez mais inteligentes, na questão dos [vestígios] lofoscópicos cada vez são menos. E daí também a importância do ADN. […] e já usam luvas, usam […] gorros…” (UPT_Plutão). O ADN representa assim um veículo educacional para os autores de crimes, aprendendo a como não deixar vestígios na cena de crime.

É muito mais fácil […] evitar que sejam deixados vestígios de natureza lofoscópica do que evitar que sejam deixados vestígios de natureza do ADN, não é? Porque com umas simples luvas o indivíduo vai por aí, faz o que quer e a gente anda ali só […] a apanhar o pó social (UPT_Neptuno).

Nova forma de “caçar criminosos”

29Adicionalmente à consciência forense de não deixar impressões digitais na cena de crime e o uso regular de luvas, os vestígios biológicos também são vistos como uma forma de revelar as falhas dos autores de crimes. Assim, para os agentes das UPT os vestígios biológicos são vistos como a nova forma de “caçar criminosos” menos cautelosos. “Cada vez vamos tendo menos recolha, e nós temos que começar […] a apostar mais na parte dos biológicos, que é aquela parte que […] os indivíduos suspeitos ainda vão tendo, digamos, se calhar, mais algumas falhas” (UPT_Júpiter). Usando a sua perícia profissional, os agentes das UPT conseguem dar valor a algo que o autor do crime não valorizou.

Basta ver que agora o gatuno, por exemplo, quase todos eles vão ao local com luvas, não é? Impressões digitais vão à vida! Mas se o indivíduo se corta, deixa lá uma gotinha de sangue, se cai o lenço […] se são apanhados cabelos, já temos algo para investigar. Se fossemos só pelas impressões digitais acabava ali (UPT_Júpiter).

  • 11 Embora mais presente nas outras valências estudadas.

30Os contributos principais identificados podem estar associados a um certo “imaginário forense” (Williams, 2010) que as séries televisivas como o CSI transportam do mundo ficcional para o mundo real (Podlas, 2006), nomeadamente que o ADN irá trazer eficiência à investigação criminal. Esse é um imaginário ficcional que retrata uma forma idealizada de como a investigação criminal pode ser objetiva, rápida e produzir resultados, podendo criar expetativas de transformação do mundo real (Cole e Dioso-Villa, 2007). Embora a menção a séries televisivas como o CSI tenha sido rara nas narrativas produzidas pelos elementos das UPT,11 as suas expetativas relativamente às tecnologias de ADN podem levar não apenas a um tech effect (Shelton; Kim; Barak, 2006) mas também a um “efeito de autoridade moral” (Cavender; Deutsch, 2007; Jackson; Bradford, 2009) associado ao aumento da perceção pública em geral da fiabilidade da prova científica (Costa, no prelo).

Estratégias e modos de reflexão na ação

31Para entender o lugar ocupado pela prova biológica no trabalho de rotina, era importante olhar para as estratégias usadas e os modos de reflexão (Schön, 1983) usados pelos agentes das UPT. Três estratégias na construção do evento criminal foram identificadas na análise das narrativas produzidas pelos agentes das UPT: reconstituição, modus operandi e colocar-se nos sapatos do criminoso.

Reconstituição

32A reconstituição é salientada como uma forma de construir a história do evento criminal. Embora não constitua uma novidade, as novas práticas de gravar os vestígios estão associadas a novas exigências com vista a adquirir valor em tribunal.

Chegamos [UPT] ao local, ouvimos os colegas [first attenders], ouvimos a parte do […] lesado, fazemos um apanhado daquilo que achamos que é importante […] tento mais ou menos idealizar as coisas e vou colocar marcadores por aí fora e depois […] se vejo os [vestígios] biológicos, começar também a fotografar tudo e a recolher os [vestígios] biológicos, depois ir para [vestígios] lofoscópicos e depois dar uma olhadela mais ou menos geral daquilo que eu estou a ver (UPT_Júpiter).

33Os relatórios não apenas demarcam o seu trabalho do trabalho realizado pelos first attenders na cena de crime, como ainda salvaguardam o seu trabalho quando são chamados a tribunal para prestar esclarecimentos adicionais. “Eu retrato aquilo que eu vejo quando chego ao local. É, isto é a minha experiência. Porquê? Porque já me sentei várias vezes no tribunal e temos que retratar o que lá está. Eu não vou pôr e supor que… não, eu retrato factos concretos” (UPT_Júpiter).

34A documentação da cena de crime é feita, de acordo com Corina Kruse (2020, p. 100), “de uma forma que seja aceite como fiável e legalmente segura”, adquirindo assim um novo significado, uma vez que o seu trabalho será escrutinado pelo juiz.

[…] independentemente da interpretação que possamos fazer [UPT], ou que possamos chegar e em conversa com os colegas (ou não) [first attenders], acabamos sempre por recolher. […] Está aqui, preservem. O titular do inquérito [MP], se achar pertinente, manda fazer os exames tidos por convenientes. E depois o senhor da bata preta [juiz] decide. […] Eu não estou em cheque, o investigador [criminal] não está em cheque e ninguém está em cheque no meio disto tudo (UPT_Neptuno).

35Esse excerto revela o distanciamento epistémico (Santos, 2014) que é adotado por esses agentes, que foi encontrado igualmente no trabalho dos cientistas forenses (Costa; Santos, 2019), tentando com essa postura manter a neutralidade e objetividade.

Modus operandi

36As narrativas dos agentes apontam para que o modus operandi surja associado ao sangue encontrado e como um elemento novo que ajuda na construção da narrativa criminal. “Houve aí situações que […] nós [UPT] íamos a determinados sítios, e, mediante o modus operandi, […] em certas situações, encontrávamos sempre sangue” (UPT_Júpiter).

Nós [UPT] quando chegamos a um cenário de crime em que, à partida… ou vemos sangue […] um vestígio biológico mais visível, ou suspeitamos que há ali outro tipo de vestígios, é lógico que temos muito mais cuidado […] temos aquelas partes onde são visíveis os vestígios; temos mais cuidado em recolhê-los […] do que se não virmos sangue, se não suspeitarmos da existência de fluidos que possam conduzir a recolha de ADN […] (UPT_Plutão).

  • 12 A “master narrative” tal como é usada por Innes (2007, p. 266) significa que “dado um conjunto part (...)

37O sangue emerge como uma forma de verificar o raciocínio feito por eles na cena de crime. Porém, embora o sangue tenha entrado na equação, a forma pela qual é dado significado a uma cena de crime pode estar associada à experiência de casos passados, podendo constituir aquilo a que Innes (2007) chamou “master narrative”.12 São também os repertórios socioprofissionais e o conhecimento do contexto sociogeográfico e pelo modus operandi que lhes permite, através de uma “cultura de faro” (Costa; Santos, 2019), saber se os autores provêm de locais próximos ou se são indivíduos (nacionais ou estrangeiros) que trazem métodos novos.

  • 13 O mesmo que suabe.

Há um suspeito e o suspeito deixou lá vestígios hemáticos e depois veio-se a constatar […] com a zaragatoa [bucal]13 que se fez para comparação que foi o mesmo […] Ele cada assalto que fazia cortava-se o gajo! [risos] Uma pessoa recolhia e dava sempre com o mesmo! (UPT_Júpiter).

38Ou, como outro agente refere: “Tentamos basear-nos um bocado na experiência que já temos, na forma como os vestígios às vezes também estão demonstrados. Também nos indicam a direção que vamos tomar” (UPT_Plutão). Desse modo, os processos sociais de reprodução de mecanismos de desigualdade e de diferenciação social surgem mediados pelo controlo que estas tecnologias aportam (Rose, 2000).

  • 14 Nas situações em que o suspeito já é conhecido e há outras provas, o ADN é utilizado para credibili (...)

39Nesse sentido, embora um tech effect (Shelton; Kim; Barak, 2006) possa ser encontrado na reflexão mobilizada, um uso reativo e utilitário das tecnologias de ADN pode ser descortinado como uma forma de legitimar a narrativa previamente construída (Costa; Santos, 2019). As tecnologias de ADN são usadas não por os agentes das UPT as considerarem mais fidedignas, mas porque o seu uso tende a dar maior credibilidade ao seu trabalho.14 No entanto, essas práticas podem conduzir àquilo que Ribaux et al. (2010, p. 67) denominam como os “efeitos indesejáveis do conhecimento a priori”.

Colocar-se nos sapatos do criminoso

40Outra forma encontrada pelos agentes das UPT para construir a narrativa criminal é “pensar criminoso” (UPT_Júpiter) ou “tentar imaginar mais ou menos o que pode ter acontecido […] [e] tentar vestir um bocadinho a pele do lobo” (UPT_Plutão). Ou, nas palavras de outro agente: “Pôr-me na pele do autor […] Se me cortar, o que é que eu teria que fazer para não deixar vestígios [biológicos] ou, tendo algum descuido, como é que os vestígios ficavam aqui produzidos” (UPT_Neptuno).

41A importância do raciocínio feito por esses atores na cena de crime e na seleção e produção de artefactos forenses é crucial para a prova que será produzida. Eles assumem uma posição ativa na “construção social de significado” da prova (Innes, 2007, p. 6), definindo que vestígios devem ser recolhidos.

42Embora a existência de sangue (ou outros vestígios biológicos) assuma uma nova importância na construção do evento, o raciocínio feito, contudo, não parece ser substancialmente diferente do que era feito no passado. Desse modo, novos instrumentos são acionados, baseados no conhecimento e raciocínio adotado na recolha de impressões digitais e nas suas experiências diárias (presentes e passadas) para explicar o encontro de velhas e novas racionalidades (Costa, no prelo) no seu trabalho de rotina, patente no seguinte excerto: “[…] quando nós temos conhecimento do meio e das localidades onde trabalhamos temos quase a identificação direta” (UPT_Plutão). Ou ainda: “Aquele […] que fomos direitinhos buscar o indivíduo ao hospital a pingar e aquele [em que] […] fomos logo praticamente buscar os autores [do crime]. Quase não foi preciso teste de ADN” (UPT_Plutão).

43Essa análise contribuiu para revelar as formas de atuar e de pensar das UPT relativamente ao ADN, ao seu contributo, às estratégias usadas e à forma de raciocínio adotado. Porém, para entendermos as razões dessa forma de atuação e de reflexão, a mobilização do conceito de “conhecimento problemático” parece-nos útil no sentido de permitir fazer uma contribuição para a explicação da forma como os agentes das UPT se envolvem no processo forense.

Conhecimento problemático

44Chegados aqui e identificados os principais contributos do ADN para os agentes das UPT e a “reflexão na ação” mobilizada, importa encontrar uma explicação para a forma como pensam o crime. Das narrativas produzidas pelos agentes das UPT, assim como da análise feita, parece-nos que o conceito de “conhecimento problemático” enunciado por Perkins não só nos permite identificar os diversos tipos de “conhecimento problemático” que podem ser associados ao trabalho destes agentes das UPT, como ainda nos permite propor um tipo de conhecimento problemático adicional que é característico desta atividade em concreto – o “conhecimento ilusório”.

Conhecimento tácito

45Alguns agentes das UPT salientaram o princípio das trocas de Edmond Locard (1920) não apenas para demonstrar que o “criminoso deixa sempre alguma coisa no local do crime” (UPT_Júpiter) mas também para salientar que a própria PSP pode igualmente deixar a sua marca quando entra na cena de crime. “Ai, isso acontece. Eles põem lá as mãos, ou assim, às vezes, os colegas [polícia]” (UPT_Júpiter).

46Esse comportamento é incorporado num conjunto mais vasto de entendimentos socioculturais que, à luz deste artigo, poderemos considerar de “conhecimento problemático”. “[…] quando temos situações para recolha de vestígios de ADN, esses próprios [first attenders]são os que muitas vezes estão ali a contaminar a cena do crime” (UPT_Júpiter).

47A falta de conhecimento forense (Ludwig; Fraser, 2014) presente nas forças policiais de proximidade (McCartney, 2006) pode levá-las a negligenciar a cena de crime e respetiva preservação. Por exemplo, o manuseamento de objetos na cena de crime.

  • 15 A esse propósito ver Silva (2020, p. 4), que refere que “o polícia não entende o serviço de ronda c (...)

Eles [first attenders] são capazes de fazer um pedido de inspeção a um galinheiro, não é? […] e, no entanto, num crime em que há vestígios biológicos são capazes de andar lá a passarinhar em vez de porem lá uma fita de polícia só porque a pessoa quer abrir o estabelecimento. A pessoa não tem quereres! Senão, para isso não chama a polícia. A polícia [vai] lá, isola o local do crime e mais nada! E não faz isso. Quando chegamos [UPT] lá está tudo alterado! Alterado, mexido, arrumado, limpo (UPT_Júpiter).15

48Para além disso, o entendimento do ADN como uma “máquina da verdade” (Lynch et al., 2008) assenta no “pragmatismo evidenciário” (Santos, 2014) que permitirá descobrir o ofensor, independentemente do cuidado tido na abordagem à cena de crime.

  • 16 O mesmo que bituca.
  • 17 Eis uma das situações em que a competência de atuação cabe à PJ. No entanto, as primeiras diligênci (...)

Eu já fui a uma situação de um homicídio, um disparo de arma de fogo, em que cheguei lá e o colega [PSP] estava a deitar as pontas de cigarro16 ao chão. E eu disse: “Oh, pá, estás a contaminar isto tudo!” “Ah, o gajo já está morto!” [respondeu o first atender] (UPT_Júpiter).17

49Esses excertos parecem corroborar Costa (2015, 2017) quando considera que os first attenders adotam uma atitude pró-ativa na cena de crime. Eles atendem as cenas de crime e desenvolvem outras atividades, tentando mostrar que estão a realizar o seu trabalho, e permitindo valorizar os “sucessos” obtidos (Silva, 2020).

50As expetativas exageradas no potencial das tecnologias (Huey, 2010) baseadas na crença da infalibilidade da ciência e da construção da verdade (Jasanoff, 2004) é visível na expressão “Ah, o gajo já está morto!”. Também revela os diferentes significados que um vestígio pode adquirir para a polícia genérica ou para os agentes das UPT e o que pode ser considerado conhecimento válido e como deve ser produzido (Costa, 2017; Kruse, 2016).

Conhecimento inerte

51Quando os agentes das UPT chegam à cena de crime eles têm de refletir não apenas acerca do trabalho que têm que fazer, mas igualmente de considerar o trabalho feito pelos outros, integrando diferentes peças. Desse modo, é importante saber tudo o que foi feito.

52Enquanto “recolher e etiquetar” (Wyatt, 2014b, p. 446) parece ser a tarefa mais importante para a polícia genérica, usando o “conhecimento tácito”, as narrativas produzidas pelos agentes das UPT revelam ser importante conferir significado aos vestígios e entender o seu potencial para a investigação, isto é, “conhecimento inerte”.

53A recolha de vestígios é uma parte importante do seu trabalho e o que os distingue dos outros agentes da PSP (polícia genérica e polícia de investigação criminal). A intervenção especializada das UPT com um registo minucioso dos procedimentos é crucial com vista a reclamar aquele espaço de cena de crime como seu, para demarcar o seu trabalho do trabalho feito pelos outros e para definir a sua autoridade epistémica (Gieryn, 1983).

Nós [UPT] não sabemos, e devíamos saber pelos elementos policiais, que os objetos foram colocados num determinado sítio, mediante estas condições: com luvas, sem luvas, desta forma… […] porque nós vamo-nos basear é na perspetiva do funcionário ou da pessoa que lá está, que pode estar a dizer aquilo de uma forma correta, como pode estar a dizer que é de uma determinada forma e até nem foi, e estamos a deturpar […] (UPT_Júpiter).

54Se os agentes das UPT parecem ter uma maior sensibilidade para os problemas de contaminação que podem emergir numa cena de crime, na sua perspetiva, essa sensibilidade não parece ser extensível aos first attenders. A título exemplificativo, um agente considera que “[…] [n]ão há, se calhar, uma primeira boa abordagem por parte do pessoal que lá vai no início” (UPT_Plutão). Outro menciona que “[…] a abordagem que é feita, muitas das vezes, […] não é a mais correta na questão da gestão do local do crime […]” (UPT_Plutão). E outro, ainda, destaca as contaminações que podem ser produzidas pelos primeiros intervenientes: “No [vestígio] lofoscópico não há contaminação, no ADN quando chega às nossas mãos 90% das vezes já… [está contaminado]” (UPT_Neptuno). Essa ideia é ainda reforçada na narrativa de outro agente que ironicamente diz: “[…] nós [UPT] fizemos a nossa parte […] tentando não contaminar mais do que já sei que está contaminado, […] não há importância nenhuma em estar aqui a fumar, estar aqui a rir-me, estar aqui à gargalhada para cima disto e daquilo e não sei das quantas” (UPT_Neptuno).

55Outros agentes elaboram sobre os diferentes entendimentos por parte dos first attenders:

Agora nem tanto, mas no início, quando começamos em 2001/2002, era natural chegar ao local e terem a pedra com que partiram a montra muito bem preservada e os vidros já varridos e os vidros até tinham sangue. Ora, os vidros varreram, meteram no lixo … já está contaminado, a prova já foi! (UPT_Plutão).

  • 18 O mesmo pode ser referido relativamente ao trabalho realizado pelas polícia de proximidade e pela P (...)

56Embora pertençam todos à mesma força policial – PSP – e não obstante a complementaridade do seu trabalho, a forma como cada um deles interpreta a cena de crime pode ser distinta, com uma lógica funcional distinta,18 mostrando a integração problemática do trabalho desenvolvido por diferentes agentes pertencentes à mesma instituição.

Conhecimento ritual

57Como referido anteriormente, as novas tecnologias requerem períodos de adaptação em que elas são incorporadas nas formas existentes de pensar e de fazer. Uma vez que os agentes das UPT referem estar familiarizados com a rotina das impressões digitais, consideram que embora a recolha de ADN seja mais metódica, envolve procedimentos e passos mais complexos.

  • 19 Papel pardo.

A […] nossa rotina [UPT] também é mais rápida nos [vestígios] lofoscópicos, mas o cuidado com um [vestígio] lofoscópico, única e simplesmente, passa por a aplicação do reagente correto e na medida certa, e com a pressão certa, para que tenhamos a melhor qualidade. No âmbito do [vestígio] biológico há sempre o percalço e o cuidado da contaminação que vamos exercer sob o mesmo […] ir buscar a mala, abrir, tem que se ter um recipiente certo com a água […] destilada […] o cotonete […] aquele cuidado, vai com umas luvas […] fechar […] pegou no cotonete, papel de cebola,19 vai buscar, temos outro [vestígio] noutro sítio, temos que fazer… (UPT_Júpiter).

58É a consciência do “conhecimento tácito” e “conhecimento inerte” adotado pela PSP que os leva a favorecer a recolha de impressões digitais em vez da recolha de vestígios biológicos.

Conhecimento alien

59Adicionalmente, o último excerto também mostra que estão menos familiarizados com a metodologia associada à recolha de ADN e para a qual têm menos experiência, em comparação com a metodologia usada para as impressões digitais, o que pode revelar que esse novo método ainda é estranho (alien) para eles: “Nós ainda […] andamos um bocado a apalpar no terreno e a ver a melhor forma de recolher” (UPT_Neptuno).

60Cabe-lhes fazer uma correta colheita dos vestígios, bem como tomar decisões num período curto de tempo acerca do que deve ou não ser recolhido, de acordo com o potencial significado que os vestígios aportam à investigação. Desse modo, se os vestígios são recolhidos de acordo com aqueles que podem trazer mais garantias à investigação, os vestígios biológicos podem ser ignorados.

Vamos [UPT] a um sítio que temos [vestígios] lofoscópicos bons. Chegamos lá e dizemos, assim: “Isto é do autor, do local de entrada […] Aquilo é mesmo, dificilmente não é do autor. E temos os [vestígios] biológicos de origem duvidosa, se calhar, uma pessoa olha, aquilo é uma gotita de nada de sangue que, se calhar, já foi contaminada, já foi calcado… (UPT_Júpiter).

61O vestígio biológico pode trazer mais certeza, mas pode estar contaminado e, consequentemente, não trazer respostas à investigação; as impressões digitais, embora tendo um menor poder identificativo, podem constituir uma prova mais certa com vista a colocar o autor na cena de crime.

Conhecimento ilusório

62Para além do trabalho realizado antes da sua chegada à cena de crime, ou o trabalho que eles têm que desenvolver na cena de crime, os agentes das UPT mencionaram as circunstâncias em que o seu trabalho é realizado dentro das paredes da unidade e durante as viagens, com impacto na produção de artefactos forenses e na incorporação da tecnologia de ADN no seu trabalho.

63No que respeita ao equipamento específico para processar vestígios biológicos e atender uma cena de crime, são apontadas algumas falhas nas condições para realizar o seu trabalho e que podem conduzir a um desfasamento entre as promessas e expetativas associadas ao uso dessa tecnologia, podendo impactar as suas decisões, práticas, e formas de improviso adotadas (Wyatt, 2014a). “Aquilo que o pessoal leva que foi dado é os pincéis, […] os reagentes, a fita-cola, as lamelas, isso fornece [tutela/PSP]. Mas, por exemplo, lanternas, os recipientes para pôr os reagentes isso já fomos nós [agentes da UPT] a arranjar” (UPT_Júpiter).

64Outros agentes realçam alguns instrumentos necessários à execução do seu trabalho, como as zaragatoas bucais disponíveis “[…] que terminaram a validade no ano passado” (UPT_Neptuno), ou as pinças que compõem o material na mala: “[…] estão soltas, não sei se o outro elemento a[s] usou e voltou a colocar ou não, vou usá-la[s] novamente, não sei se estou a fazer bem ou se vou contaminar tudo” (UPT_Neptuno). Outros salientam os sacos de prova porque, na sua perspetiva, não têm qualidade, ou porque os selos dos sacos de prova deviam colar. Tal leva a que assumam as tarefas que têm de improvisar com vista a desenvolverem o seu trabalho: “[…] algumas vezes improvisamos com um cotonete normal e depois metemos num envelopezinho […] temos que ser nós [UPT] a inventar os saquinhos e cortar” (UPT_Plutão).

  • 20 Os serviços forenses estão adstritos ao LPC, que é responsável pelas análises de ADN de vestígios r (...)

65Para além das lacunas identificadas em termos do material necessário para a recolha de vestígios, também mencionam as condições de trabalho dentro das unidades. Alguns mencionam o facto de existir um frigorífico doado por uma colega que, para além de ser para uso pessoal dos agentes, é também onde armazenam os vestígios até serem transportados para o Laboratório de Polícia Científica (LPC).20 Para além disso, lamentam não terem uma mala refrigeradora, quer para o transporte da cena do crime para a UPT, quer para o transporte da UPT para o LPC. “Vai daqui para o LPC, vai em quê? No carro, aí, a 30 graus […]?” (UPT_Júpiter). E, embora tenham as suas próprias carrinhas, apresentam uma visão muito crítica relativamente ao seu uso: “Você viu, ali, as carrinhas? Muito bonitas por fora, com autocolantes, não sei quê, e dentro, para pôr as malas, anda ali às turras, para trás e para a frente” (UPT_Júpiter). Na sua perspetiva, embora esse seja um tipo de trabalho que requer discrição, o uso de carrinhas com logótipos atrai mais pessoas à cena de crime (Huey, 2010).

A nível de deslocação para os locais, estamos constantemente a ser abordados na rua. Ou seja, o que é que pretendem, afinal? É que nós façamos o serviço, o chamado ADN, a qualidade, ou querem fazer publicidade? Querem eficácia ou querem show off? (UPT_Júpiter).

66No mesmo sentido se posiciona outro agente de outra UPT: “Vende-se uma imagem que dois autocolantes por 20 ou 30 euros resolvem uma imagem que depois só quem anda cá dentro é que sabe” (UPT_Neptuno).

67Finalmente, salientam a falta de formação que recebem, já identificada por vários autores em Portugal (Ademar, 2020; Costa, 2015, 2017). “A mim resume-se a uma tarde na escola [Escola da Polícia Judiciária]. Foram três horas no máximo. E vim de lá com um certificado. Essa é que é! Foi em 2003 […]” (UPT_Júpiter).

Os miúdos saem da escola agora, se calhar deviam ter mais formação como eu disse há bocado da parte de investigação criminal, preservação de locais de crime, e não têm. Depois quando vão aos locais é: “Eu não sei, vocês é que sabem, a mim disseram-me para eu fazer isto.” “Mas então, tu estás aí, o que é que tu vês?” “Não sei, vocês é que sabem” (UPT_Neptuno).

68Nesse sentido, a tecnologia de ADN contribui para o surgimento de um novo “conhecimento problemático”: aquilo a que chamamos “conhecimento ilusório”, isto é, o conhecimento que provém da imagem percebida da certeza que as tecnologias de ADN trazem ao seu trabalho, porém, baseado em velhas racionalidades.

Conclusão

69Neste artigo foi possível identificar os maiores contributos do ADN para as UPT: a possibilidade de identificar o autor do crime, fazer os corpos produzir a verdade, uma forma de emprestar credibilidade ao trabalho de polícia e uma nova forma de “caçar criminosos”. Concomitantemente, identificaram-se três estratégias na construção do evento criminal: reconstituição, modus operandi e colocar-se nos sapatos do criminoso. Desta análise foi possível constatar que a “reflexão na ação” usada pelos agentes das UPT na era do ADN mostra que, embora haja uma preocupação com a incorporação das tecnologias de ADN no seu trabalho, as disciplinas forenses tradicionais ainda ocupam um lugar primordial na investigação criminal (Garrett; Neufeld, 2009). As velhas estratégias ainda prevalecem, quer na forma de fazer e ver a cena de crime, quer na forma de pensar o evento criminal. A forma de ver e de documentar a cena de crime é ajustada à tecnologia de ADN com vista a adquirir significado jurídico em tribunal. Contudo, o “conhecimento problemático” parece não ter permitido que o ADN tenha o impacto desejado na investigação criminal na UPT. Essas situações mostram como os agentes das UPT, como a “face of forensics” (Wyatt; Wilson-Kovacs, 2019, p. 5), têm que negociar o seu espaço ocupacional e as racionalidades inerentes a cada caso criminal, os diferentes entendimentos e práticas de cientifização do trabalho policial, as assimetrias de poder que as tecnologias de ADN acarretam, as formas de produzir conhecimento e os imaginários que conferem diferentes valores simbólicos e sociais à tecnologia de ADN. A consciência da complexidade da tecnologia de ADN e o “conhecimento problemático” identificado leva a que a tecnologia de ADN seja integrada numa retórica de cientifização do trabalho policial (Ericson; Shearing, 1986; Williams; Johnson, 2008). Se o valor acrescido da prova de ADN assenta na sua credibilidade, parece que, de acordo com as suas narrativas, os recursos disponíveis podem afetar a forma de atender a cena de crime e o que é recolhido (Wyatt, 2014a, 2014b). As carrinhas à sua disposição incorporam um certo tech effect (Shelton; Kim; Barak, 2006) presente no trabalho da polícia (Costa, no prelo). Essas trazem uma imagem de cientificidade e credibilidade ao seu trabalho e reforçam a “autoridade moral do trabalho de polícia” (Cavender; Deutsch, 2007). Porém, os modos tradicionais de pensar e de fazer ainda povoam a sua atividade, levando a que as tecnologias de ADN aportem um pequeno contributo à sua investigação. Por esse motivo, as tecnologias de ADN trazem um “conhecimento ilusório” do seu uso que pode ser interligado com o tech effect, embora com diferentes manifestações na cultura popular dos first attenders e dos agentes das UPT. Nas narrativas produzidas pelos agentes das UPT sobre o trabalho realizado pelos first attenders, o “conhecimento ilusório” baseia-se na cultura popular de que o ADN irá resolver o caso, independentemente do cuidado com a preservação, recolha e armazenamento dos vestígios; e nas narrativas produzidas pelos agentes das UPT esse “conhecimento ilusório” pode revelar expetativas exageradas relativamente ao ADN (Huey, 2010). Ele emerge da construção pública de uma imagem de eficiência, certeza, credibilidade e objetividade que advém de uma amálgama de significados, símbolos e entendimentos socioculturais projetados no imaginário coletivo, seja por via do trabalho de promoção institucional, de que o show off mencionado constitui apenas um exemplo, seja pela fusão simbólica entre a realidade e a ficção científica forense.

70Embora não se possa considerar que os agentes das UPT sejam ingénuos ou que não possuam conhecimento suficiente sobre as potencialidades da tecnologia de ADN, são vulneráveis àquilo que é projetado com práticas e recursos ideais. A tecnologia de ADN emerge assim como uma panaceia tecnocrática para a resolução dos crimes através da criação de uma promessa ilusória de maior credibilidade e certeza ao trabalho policial que permite aumentar a autoridade moral do seu trabalho, criando “um novo realismo forense para fundir a polícia com a ciência com uma autoridade moral convergente” (Cavender; Deutsch, 2007, p. 68). Esses agentes das UPT emergem assim como uma espécie de híbrido (polícia/técnico) a quem é solicitado um trabalho altamente especializado, mas para o qual não têm formação, nem dispõem de recursos, acabando por adotar as lógicas tradicionais assentes nas velhas racionalidades.

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Notas

1 Gostaríamos de agradecer a todos os agentes das UPT que concordaram em participar neste estudo e a sua enorme generosidade em partilhar as suas perspetivas pessoais e práticas profissionais e agradecer à Direção Nacional da PSP por ter autorizado o estudo. Um agradecimento especial a Filipe Santos pela leitura atenta, crítica e cuidada ao artigo e ao informante privilegiado. Um último agradecimento é devido igualmente aos(às) revisores(as) deste artigo e os contributos dados para a sua melhoria.

2 Declaro que não há qualquer conflito de interesses.

3 Esta investigação foi cofinanciada pela Fundação para a Ciência e Tecnologia e fundos europeus (COMPETE e POCH) no âmbito do Financiamento Plurianual da Unidade de I&D (UIDP/50012/2020) e o contrato individual DL57/2016/CP1341/CT0004.

4 Pode dizer-se ADN ou DNA. Em Portugal utiliza-se a sigla ADN para referir o ácido desoxirribonucleico, embora a designação internacionalmente conhecida seja DNA. Por esse motivo, pode surgir das duas formas.

5 Todas as traduções são da responsabilidade da autora.

6 Essa distribuição consta das Normas de Execução Permanente (NEP) da PSP. Trata-se de um documento interno, classificado, pelo que apenas é possível fazer essa distinção com base no que os vários comandantes e agentes ao longo do estudo foram explicando em conversas formais e informais. Essa informação foi também confirmada por um informante privilegiado.

7 A esse propósito ver Silva (2020) e Ademar (2020).

8 Tal situação, por si só, pode revelar a importância atribuída ao trabalho de investigação criminal e a escassez de recursos humanos.

9 Numa esquadra de polícia genérica os grupos focais acabariam por não se realizar por as chefias terem oferecido resistência à sua realização, Nesse sentido, foi entendido que, caso se viessem a concretizar esses grupos focais poderiam trazer dados enviesados por interferências superiores. Assim, no total o estudo contemplou 16 grupos focais envolvendo 51 agentes das diversas valências identificadas.

10 Uma vez que no decurso do estudo deflagrou a pandemia de COVID-19, foi adicionada uma questão acerca do seu impacto no trabalho dos agentes, mas que não foi alvo de análise neste artigo. Essa questão foi introduzida em todos os grupos focais realizados nas diferentes UPT e esquadras genéricas e de investigação criminal, à exceção dos que foram realizados na primeira UPT, uma vez que esse trabalho foi realizado antes de deflagrar a pandemia de COVID-19. Um grupo focal ficaria por realizar por à data acordada para a sua realização esses agentes se encontrarem infetados com COVID-19, segundo informação prestada.

11 Embora mais presente nas outras valências estudadas.

12 A “master narrative” tal como é usada por Innes (2007, p. 266) significa que “dado um conjunto particular de circunstâncias essas narrativas funcionam como um repositório de ‘receitas de conhecimento’, direcionando uma investigação e quais os aspetos mais prováveis de serem encontrados ao investigar um tipo particular de crime”.

13 O mesmo que suabe.

14 Nas situações em que o suspeito já é conhecido e há outras provas, o ADN é utilizado para credibilizar o trabalho efetuado. Tal foi verificado por Santos (2014, 2021) ao analisar as funções simbólicas do ADN em diferentes casos judiciais ocorridos em Portugal ao longo das últimas décadas. A essa função o autor designou como “função assertiva”.

15 A esse propósito ver Silva (2020, p. 4), que refere que “o polícia não entende o serviço de ronda como ‘verdadeiro trabalho policial’, valorizando uma visão confrontacional ‘polícia/ladrão’, valorizando a gravidade do crime e o resultado imediato da sua ação”.

16 O mesmo que bituca.

17 Eis uma das situações em que a competência de atuação cabe à PJ. No entanto, as primeiras diligências ficam ao cuidado da polícia de proximidade, como estipulado na LOIC.

18 O mesmo pode ser referido relativamente ao trabalho realizado pelas polícia de proximidade e pela PJ. Embora seja um trabalho que exige complementaridade, nem sempre isso acontece. A esse propósito, ver Ademar (2020).

19 Papel pardo.

20 Os serviços forenses estão adstritos ao LPC, que é responsável pelas análises de ADN de vestígios recolhidos na cena de crime, quer pelos próprios técnicos do LPC, nos casos de competência da PJ, quer dos vestígios recolhidos pelos outros órgãos de polícia criminal. Todas as UPT do país devem transportar os vestígios para o LPC. Em função da sua localização, tal pode ser uma curta distância, como uma distância grande, dependendo da sua localização de partida até à capital – Lisboa. Nesse sentido, tanto pode falar-se de uma distância de cerca de alguns minutos, como uma hora ou mais de quatro horas.

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Susana Costa, «Da reflexão na ação ao conhecimento ilusório nas Unidades de Polícia Técnica Forense em Portugal»Horizontes Antropológicos [Online], 68 | 2024, posto online no dia 30 abril 2024, consultado o 13 dezembro 2024. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/horizontes/8892

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Autor

Susana Costa

Universidade de Coimbra – Coimbra, Portugal
susanacosta[at]ces.uc.pt
https://orcid.org/0000-0002-5786-5764

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