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Tecnologia e educação: reflexões a partir de uma etnografia sobre experiências com o ensino remoto na pandemia

Technology and education: reflections by an ethnography on experiences with remote teaching in the pandemic
Maria Elisa Máximo

Resumos

Este artigo apresenta as análises decorrentes de uma pesquisa realizada com estudantes de ensino superior acerca das suas experiências com o ensino remoto e as modalidades híbridas na pandemia da Covid-19. O trabalho de campo constituiu-se de entrevistas individuais e coletivas, apoiando-se na perspectiva relacional e participativa da etnografia. Participaram da pesquisa 44 estudantes, em encontros presenciais e online realizados em 2022. O estudo também contempla uma dimensão autoetnográfica, pois teve como ponto de partida situações vivenciadas pela própria pesquisadora como docente no período da pandemia. Considerando os dados relativos à expansão do EaD, bem como os relatos que indicam a aceleração e precarização da vida para além do isolamento social, a pesquisa teve como objetivo promover a reflexão sobre uma inserção das tecnologias digitais nos fazeres educacionais que não atenda a demandas produtivistas e mercadológicas, e que efetivamente situe as práticas pedagógicas nas linguagens e modos de existir contemporâneos.

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Notas da redação

Recebido: 28/02/2023
Aceito: 04/09/2023

Texto integral

Introdução1

  • 1 O presente artigo é resultado da pesquisa Percepções, sentidos e significados sobre o ensino remoto (...)

1“‘Liberar ensino à distância para faculdade presencial é ruim’, diz presidente do Conselho Nacional de Educação (CNE), Luiz Curi”: assim se apresentava a manchete de alguns jornais de circulação nacional no dia 23 de fevereiro de 2023. Sob nova presidência desde novembro de 2022, o CNE propôs uma resolução para o uso das tecnologias da informação e comunicação no ensino superior que, na prática, estabelece limites e define conceitos para a condução da carga horária de ensino à distância (EaD) em instituições presenciais, ampliadas em 2019 para 40%. Segundo reportagem de Laura Mattos (2023) para a Folha de S. Paulo, o texto da nova resolução busca evitar o “mix de faculdade presencial com EaD” autorizado em 2019 definindo que as “modalidades híbridas”, que combinam ensino presencial e remoto, sejam conduzidas a partir das instalações físicas das instituições, mantendo a interação entre docentes e estudantes sem serem reduzidas a meros percentuais de EaD. Em suma, para o Conselho Nacional de Educação, o ensino superior deve, sim, se valer da flexibilidade e diversidade de práticas pedagógicas possibilitadas pelas tecnologias digitais mantendo, contudo, as características e condições singulares que qualificam o ensino presencial.

2A nova resolução ainda aguarda a homologação pelo Ministério da Educação, mas, nesse momento, ela desponta como um sinal de que o governo recém-empossado começa a operar ajustes nas políticas do ensino superior, superando uma perspectiva utilitarista e mercadológica que, no governo anterior, atendia especialmente aos interesses do ensino superior privado. A ampliação do percentual de EaD autorizado para as instituições presenciais, de 20% para 40% entre 2018 e 2019, somada ao crescimento exponencial do EaD nos últimos cinco anos, abriu espaço para um novo nicho de mercado, as chamadas faculdades semipresenciais, que podem ser tanto presenciais com parte da carga horária à distância quanto EaD com algumas atividades presenciais. Como consequência, os critérios que distinguem cada modalidade específica – presencial, EaD, híbrida – tornam-se indefinidos e à mercê das estratégias de marketing acionadas por cada instituição, dificultando estratégias de avaliação que assegurem a qualidade do ensino (Mattos, 2023).

3Abrindo-se com essa notícia, esta introdução tem um caráter contextual e visa desenhar, ainda que muito rapidamente, a conjuntura mais ampla em que o objeto deste artigo se situa: as experiências e os desafios do ensino remoto na pandemia, especificamente nas instituições de ensino superior. A premissa é a de que a adoção do ensino remoto emergencial durante a pandemia da Covid-19 potencializou um cenário que já estava configurado.

4Entre 2011 e 2021, o número de ingressantes em cursos de graduação na modalidade EaD aumentou 474%, segundo estimativa do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (2022). Se, em 2011, o ingresso em cursos EaD correspondia a 18,4% do total, em 2021 esse percentual chegou a 62,8%. Segundo o Censo da Educação Superior 2021, no período mais crítico da pandemia da Covid-19 (entre 2020 e 2021) o número de ingressos na modalidade EaD aumentou em 23,3%, enquanto que os ingressos em cursos de graduação presenciais reduziram em 16,5%. Esse cenário seria circunstancial, decorrente das orientações de segurança sanitária, se a tendência não estivesse apontada desde 2019, quando pela primeira vez na história o número de estudantes que iniciaram uma graduação EaD foi superior ao número de estudantes que optaram pela graduação presencial, considerando-se apenas as instituições privadas.

5O Censo 2021 registrou, ainda, que 96,4% das vagas no ensino superior são ofertadas pela rede privada, que circunscreve, hoje, 87,68% das instituições de educação superior no Brasil. Do total de estudantes matriculados em cursos de graduação no Brasil, 77% estão em instituições privadas, enquanto 23% estão matriculados em instituições públicas. Quanto à modalidade de ensino, enquanto o percentual de matriculados nos cursos EaD aumentou 274,3% – correspondendo a 41,4% do total –, o número de matriculados em cursos presenciais caiu 8,3%.

6Considerando-se, por fim, que nos últimos dez anos o percentual de estudantes matriculados na educação superior aumentou 32,8%, o que corresponde a uma média de 2,9% ao ano, pode-se dizer que esse aumento se deve quase que inteiramente às modalidades à distância. Enquanto as instituições públicas perdem estudantes, pela predominância do modelo presencial, as instituições privadas acumulam os números positivos sobretudo pelas modalidades de ensino à distância (Santos, 2022).

7Ou seja, a pandemia parece intensificar um processo que, como os dados apontam, já vinha se desdobrando no horizonte da educação superior no Brasil, desnudando os vários aspectos de uma crise anunciada: o arrefecimento global das matrículas contrasta com a expansão indiscutível do ensino à distância, visto, pelo mercado educacional, como uma modalidade melhor aceita pela sociedade pela flexibilidade, mensalidades mais baixas e facilidade de acesso (Educa Mais Brasil, 2022). Assim, esse período se configurou como uma espécie de “laboratório”, onde a adoção generalizada do ensino remoto possibilitava, em uma dimensão mercadológica, projeções sobre o futuro da educação superior no pós-pandemia que reforçavam tendências apontadas desde antes da Covid-19.

8Enquanto as instituições públicas, situadas quase que exclusivamente no modelo presencial, enfrentaram dificuldades de todas as ordens para a manutenção das atividades letivas na pandemia – muitas delas decorrentes das desigualdades sociais entre estudantes –, as instituições privadas, na sua maioria, adotaram rapidamente o ensino remoto, adequando recursos e tecnologias já existentes e utilizadas em experiências EaD, semipresenciais e híbridas. Essa rápida adaptação atendeu principalmente a uma demanda de mercado, dado o grande risco de evasão nesse período, revelando lacunas importantes do ponto de vista operacional, didático e pedagógico.

9É nesse ponto que a experiência com o ensino remoto na pandemia pode ser traduzida como uma “tragédia anunciada”, na medida em que as instituições educacionais – em especial aquelas centradas na modalidade presencial – mostram-se alheias às linguagens, temporalidades e dinâmicas próprias dos ambientes digitais. Uma tragédia amplamente memetizada nas redes sociais em perfis individuais e coletivos que, através de imagens e do humor, costuravam consensos sobre o cotidiano estudantil no período de isolamento social – disperso, desmotivado, sobrecarregado pelo uso excessivo das “telas”, pela baixa produtividade e por prejuízos diversos na saúde mental (Mugnatto, 2022).

10A exposição dessa conjuntura é fundamental para a contextualização e a compreensão da problemática do estudo aqui apresentado, que se organiza a partir da minha experiência como docente em uma instituição privada que há quase uma década situa a participação das tecnologias digitais em seus fazeres pedagógicos como um aspecto de “inovação”, respondendo com isso a indicadores de avaliação institucional externa e interna. Com a deflagração da pandemia, esse passado de “inovação” se traduz numa aparente contradição: se, de um lado, a adoção das tecnologias digitais nos fazeres educacionais era afirmada, no próprio projeto pedagógico, como evidência do comprometimento institucional com a inovação tecnológica – inclusive como ferramenta de acessibilidade pedagógica e atitudinal –, por outro lado, ainda que conscientes e convencidos das contingências colocadas pela pandemia da Covid-19, docentes e estudantes se perceberam, de modo geral, pouco preparados para transpor integralmente, praticamente de um dia para outro, suas aulas para o ambiente virtual. De que modo e em que medida, então, as tecnologias digitais estavam integradas aos processos pedagógicos?

11O estranhamento quase generalizado frente às tecnologias digitais por parte dos docentes se traduzia em um relativo desequilíbrio quanto às “competências” e “habilidades” preexistentes para o “uso” das tecnologias digitais. Como veremos mais adiante, tais distinções são percebidas pelas(os) estudantes, conformando suas experiências com o ensino remoto. À luz do legado de pesquisas e abordagens teóricas já produzidas no campo da antropologia do ciberespaço e da cibercultura, essas observações indicam uma inserção instrumentalizada das tecnologias digitais nos terrenos educacionais, sobretudo onde o “ensino presencial” se define a partir de uma divisão dicotômica entre “presença” e “virtualidade”, relembrando as dualidades clássicas já amplamente tratadas pela teoria como online e offline, real e virtual.

12Diante disso, a problemática da pesquisa da qual resulta este artigo se desenhou a partir de algumas questões que, a princípio, colocavam minha atuação enquanto docente – e tudo aquilo que essa condição permitia naturalizar – diante de interesses de pesquisa. Quais os limites de um entendimento sobre inovação que a reduz à aquisição de tecnologia – computadores, licenças de softwares, plataformas digitais, sistemas informacionais, digitalização de processos – nos espaços educacionais? Com os recursos já disponíveis antes da pandemia, como teria sido possível mitigar as dificuldades encontradas por docentes e estudantes no ensino remoto emergencial? E, amalgamando as duas outras questões, como fazer convergir o ensino presencial com a participação das tecnologias digitais nos processos e fazeres educacionais, considerando-se sua ubiquidade na sociedade contemporânea?

13Pautando-se por essas questões gerais, o presente artigo apresenta os resultados dessa pesquisa etnográfica cujo objetivo foi o de compreender como o ensino remoto estava sendo percebido e significado por estudantes de graduação em 2020 e 2021, bem como os impactos dessas experiências no retorno às atividades presenciais, visando colaborar de forma mais fundamentada e efetiva com as práticas educacionais e com a gestão acadêmica no contexto pós-pandemia.

Fundamentos teóricos e metodológicos da pesquisa

14Os desafios e dificuldades colocados pela adoção do ensino remoto emergencial na pandemia lançavam luz sobre duas percepções que, naquele momento de crise, emergiram como pressupostos de pesquisa. O primeiro é que, mesmo estando relativamente bem equipadas com tecnologias pensadas para o uso educacional, as instituições pareciam considerá-las apenas como “ferramentas” para o ensino presencial, sem entendê-las como espaços em que práticas e processos podem efetivamente tomar lugar de modos outros que não rotulados como “ensino à distância”. A segunda percepção é uma decorrência da primeira: a adoção emergencial do ensino remoto deu-se, principalmente, pela transposição direta de métodos e práticas pedagógicas assentadas no “presencial”, aumentando as distâncias entre docentes e estudantes e fomentando a percepção de que as aulas online eram improdutivas, dispersas e/ou ineficazes.

15Assim, ao mesmo tempo que trouxe “problemas” para o ensino superior presencial exigindo adequações de todas as ordens, a pandemia da Covid-19 também parece ter dado visibilidade para fragilidades e dificuldades preexistentes que colocam em pauta a “crise” do modelo escolar ainda predominante nas instituições, de um modo geral. Paula Sibilia (2012), ao pensar a escola como uma tecnologia de época à luz da contemporaneidade e suas marcas tecnológicas, visualiza uma “incompatibilidade”, um desajuste coletivo entre as instituições e seus estudantes. Para a autora esse modelo está configurado para educar cidadãos que estejam à altura do projeto político, econômico e sociocultural da modernidade, sustentando-se na disciplina e na racionalidade como dispositivos normalizadores. Sibilia (2012, p. 18-19) resgata Kant, que, nas conferências ministradas Sobre a pedagogia ainda no final do século XVIII, já pontuava que a instituição escolar foi fundada com fins civilizatórios, visando dominar a barbárie através da disciplina e fomentar o promover a modernização através do desenvolvimento de certas habilidades e destrezas. Quanto às universidades, ainda que precedentes à instituição escolar, modernizaram-se quando foi preciso convertendo-se igualmente em instituições disciplinares, lócus do saber universal motor do processo civilizatório (Sibilia, 2012, p. 33).

16A crise da modernidade, documentada e analisada por diversos autores tendo como marco principal o fim da II Guerra Mundial, afeta sobremaneira esse modelo predominante tanto nas escolas quanto nas universidades. Sibilia cita especialmente Gilles Deleuze, pelo seu esforço em cartografar o território e a organização social emergente dessa crise, descrevendo o surgimento gradual de novos regimes de vida, apoiados nas tecnologias eletrônicas e sustentados por um capitalismo mais dinâmico na passagem do século XX para o século XXI. Esse mundo orientado pela produção e consumo exacerbados, pelo marketing e pela publicidade e pelas redes globais de comunicação tem, segundo a autora, a empresa como instituição-modelo que se impregna, como um traço de “espírito”, tanto na escola quanto nos corpos e subjetividades que por ela circulam (Sibilia, 2012, p. 45).

17Nessa contemporaneidade assentada na articulação entre meios de comunicação, tecnociências e mercado, o culto à performance ou ao desempenho individual implicados na lógica do empreendedorismo neoliberal exige dos sujeitos certas competências que o modelo escolar tradicional, com sua vocação normalizadora e uniformizadora, é incapaz de produzir. Como coloca Sibilia, o capitalismo contemporâneo, sobre o qual não podemos nos eximir de um olhar crítico e ponderado, exige e suscita a emergência de novos modos de ser e estar no mundo onde distinção, singularização e exploração da criatividade para a construção do indivíduo como “marca” são atributos recorrentemente desejados e perseguidos.

Assim, numa sociedade fortemente midiatizada, fascinada pela incitação à visibilidade e instada a adotar com rapidez os mais surpreendentes avanços tecnocientíficos, em meio aos vertiginosos processos de globalização de todos os mercados, entra em colapso a subjetividade interiorizada que habitava o espírito do “homem-máquina”, isto é, aquele modo de ser trabalhosamente configurado nas salas de aula e nos lares durante os dois séculos anteriores. (Sibilia, 2012, p. 49).

18Contudo, apesar das reformas pedagógicas em curso no século XXI – que colocam inovação, metodologias ativas, soft skills, dentre outras expressões na linguagem corrente das instituições de ensino e de seus projetos pedagógicos –, parte significativa dos processos e fazeres educacionais também no ensino superior ainda funciona nos moldes do quadro e giz (agora substituído pelo projetor multimídia e seus slides), dos regulamentos e boletins, dos horários fixos de início e término de aulas, das carteiras alinhadas e dos limites das salas de aula, das provas, etc.

19A urgência em transpor essa estrutura para o ambiente digital na pandemia pareceu, então, provocar uma sensação de desencaixe: aquele ambiente tão familiar aos jovens estudantes que se expressam diariamente através de perfis em plataformas de redes sociais mostrou-se pouco interessante para aulas online e, rapidamente, a experiência com o ensino remoto passou a ser vista como uma “tragédia” marcada pela falta de foco, pelo acúmulo de tarefas e pela exposição demasiada às telas, pela produtividade baixa. Somam-se a isso, é claro, todas as demais consequências da pandemia na vida cotidiana de estudantes (e também de docentes), incluindo adoecimentos e perdas familiares, mudanças de emprego e demissões, diminuição de renda, problemas psicológicos e psiquiátricos decorrentes do isolamento social e, principalmente, as desigualdades sociais e estruturais que determinaram condições objetivas e materiais para a vivência do ensino remoto emergencial.

20Ante esse cenário, a pesquisa foi concebida com o intuito de transformar os desafios e dificuldades colocadas pela pandemia para instituições, gestores, docentes e estudantes em possibilidades de contribuição para com as políticas de ensino, pesquisa e extensão na atualidade, considerando-se a ubiquidade e pervasividade das tecnologias digitais na vida contemporânea. Do ponto de vista metodológico, isso implica refletir sobre uma experiência duplamente situada na condição de “nativa” e de etnógrafa de uma mesma realidade, problematizada a partir das inquietações e das controvérsias vivenciadas na prática do ensino remoto durante a pandemia. Como sugere Mariza Peirano (2014), experiências como essas expõem a complexidade da etnografia, que se torna, então, irredutível ao “método”. A pesquisa, pontua a autora, nem sempre tem hora para começar ou terminar e depende da capacidade de estranhar, da percepção dessa natureza única e singular da experiência, “da necessidade de examinar por que alguns eventos, vividos e observados, nos surpreendem. E é assim que nos tornamos agentes na etnografia, não apenas como investigadores, mas como nativos/etnógrafos” (Peirano, 2014, p. 379).

21Seguindo a reflexão de Peirano, meu olhar de estranhamento deslocou a experiência do ensino remoto de um “fato social” para um “fato etnográfico”, para o qual a realidade – essa dimensão da empiria – não apenas oferece dados a serem coletados, mas se constitui como fonte de questionamentos e de renovação. Tal perspectiva não combina com a dualidade entre teoria e pesquisa empírica nem, tampouco, com orientações metodológicas previamente dadas. A autora defende, então, apoiada numa revisão dos clássicos antropológicos, que o refinamento da antropologia como disciplina se dá justamente no confronto com as novas experiências de campo, com novos dados a partir dos quais pesquisadores(as) podem repensar e transformar a disciplina, concebendo novas maneiras de pesquisar (Peirano, 2014, p. 381).

22Sob tal perspectiva, as entrevistas individuais e coletivas que integraram a fase mais sistemática do trabalho de campo constituíram-se, deve-se dizer, como a dimensão objetiva da pesquisa que nos permite, frente a demandas específicas, descrever e apresentar seu método. Contudo, é igualmente verdadeiro dizer que outra parte dos dados aqui apresentados resultam da dimensão pessoal da experiência, de quem a vivenciou uma realidade ao mesmo tempo em que a observava, a estranhava e a questionava. Foram realizados, então, cinco encontros com estudantes do ensino superior em Joinville (SC), entre abril e agosto de 2022, pautados por entrevistas realizadas através de um roteiro semiestruturado que visava preservar a natureza dialógica do trabalho de campo. A participação nos encontros foi espontânea, estimulada a partir de convites disseminados em grupos de mensageiros eletrônicos (WhatsApp), redes sociais e murais. Pelo link ou QR Code, os interessados poderiam se inscrever nos encontros, escolhendo dia e horário, modalidade (presencial ou online) ou indicar o interesse de participar em outra ocasião. No formulário de inscrição, o participante era apresentado ao Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e só poderia seguir com a inscrição após se informar sobre os contornos da pesquisa e concordar participar dessa etapa.

23Aproximadamente cem participantes se inscreveram, contudo, apenas 44 deles efetivamente compareceram nas datas e horários oferecidos para os encontros. A maioria das(os) participantes são estudantes de uma única instituição de ensino superior, a saber, aquela onde eu – a pesquisadora – atuava no período da pesquisa, expondo mais uma vez as distintas variáveis que produzem o campo da pesquisa e que fazem da própria pesquisadora parte do fenômeno em estudo. Em especial nesse ponto, a pesquisa ganhou contornos de autoetnografia, resultando em um tipo de conhecimento subjetivo e experimental que nega, como ressalta Gama (2020), separações radicais entre emoção e racionalidade, dados e análise, eu e o “outro”.

24Essa discussão não é nova na antropologia, especialmente desde que passamos a considerar o estudo do “familiar” uma dimensão possível para a produção do conhecimento antropológico. A autoetnografia, contudo, assume formas mais fluidas, conectadas com as artes, a literatura e a autobiografia, e se constitui por muitas camadas de reflexividade uma vez que, nela, antropólogas(os) refletem sobre suas próprias experiências ou a partir delas. Nessa pesquisa, embora o ponto de partida tenha sido minha experiência como docente e esta tenha perpassado todo o processo etnográfico – determinando, inclusive, a origem institucional da maioria dos participantes – não foram as minhas experiências o terreno exclusivo da etnografia. Há que se considerar, nesse sentido, que a minha experiência individual como docente na pandemia foi, em grande medida, compartilhada com e por muitas(os) docentes e estudantes que vivenciaram o ensino remoto e as modalidades híbridas durante e logo após a pandemia. Portanto, se parte do trabalho de campo ocorreu a partir ou sobre experiências que eu mesma vivi, outra parte significativa ocorreu a partir de um esforço de distanciamento, privilegiando as narrativas de estudantes e considerando um complexo de outros saberes produzidos sobre a educação superior na pandemia disponíveis em sites, blogs, plataformas de redes sociais e veículos de imprensa. Em última análise, o propósito da pesquisa foi também contribuir com a realidade estudada, apontando para formas de incorporar as tecnologias digitais no cotidiano educacional apoiadas no seu potencial emancipador, resistindo portanto às lógicas produtivistas e precarizantes intensificadas durante a pandemia.

Remoto, híbrido, presencial? Notas etnográficas para uma abordagem sociotécnica do ensino superior, a partir das experiências na pandemia

25Com uma abordagem sociotécnica inspirada especialmente na teoria ator-rede, a pesquisa se situou nos processos de produção de sujeitos, práticas, relações, compreendendo-os como resultado de fluxos de associações entre diferentes elementos e agências, humanos e não humanos. Procurando alcançar a amplitude dos impactos da pandemia nas experiências dos estudantes com o ensino superior, a etnografia aqui apresentada perseguiu as complexidades considerando, então, que pessoas, modalidades de ensino, dispositivos tecnológicos, plataformas, decretos sanitários, máscaras e álcool gel, testes de antígenos, estratégias didáticas (ou a falta delas), vacinas, o vírus, espaços físicos, dentre outros tantos entes, agem e interagem na coprodução da realidade e da própria vida.

  • 2 A repercussão dessa imagem, juntamente com outras notas iniciais da pesquisa, já foi objeto de refl (...)

26Nesse sentido, uma das primeiras notações etnográficas se deu a partir da repercussão de uma imagem amplamente compartilhada em grupos de WhatsApp que reuniam estudantes de ensino superior e de outros níveis de ensino, em meados de 2020.2 Num fundo preto, lia-se a seguinte mensagem em letras maiores: “Não deixe seu professor sozinho.” Logo abaixo, em letras menores, a mensagem seguia: “Ligue a câmera, participe. Mostre que você está com ele e por ele.” No pé da imagem, lia-se “Campanha de conscientização”. Ou seja, a imagem forjava uma campanha para que estudantes “ligassem as câmeras”, não deixando seus professores sozinhos. O apelo contido na imagem sugeria a dimensão da “tragédia” do ensino remoto. Vencido o momento inicial em que as aulas online eram novidade para parte significativa dos estudantes, notava-se um padrão de comportamento e participação deles traduzido nas “câmeras desligadas”. Aos olhos da etnógrafa, desligar as câmeras não parecia sinônimo de uma ausência, mas emergia como uma ação, e, mais do que isso, uma ação que comunicava a possibilidade de uma presença apenas parcial nas aulas – que se combinavam com demandas do home office, com afazeres domésticos, lazer ou entretenimento – ou até mesmo uma “não presença” autorizada, digamos assim, pela própria plataforma. Ou seja, no limite, os recursos da plataforma (silenciar áudio, desligar câmera, mas permanecer na sala) permitem que, numa reunião online, qualquer um possa parecer estar presente sem, de fato, estar presente. No caso das aulas online, essa possibilidade só não estava dada ao docente que, então, percebeu-se muitas vezes “sozinho” na sala, mesmo tendo a presença da turma registrada.

27Assim, a imagem viralizada nas redes se constituía como parte de uma narrativa sobre como o ensino remoto estava sendo experienciado e sentido distintamente por estudantes e docentes. Imaginando docentes de um lado, ministrando aulas com suas câmeras ligadas para estudantes (quase) ausentes, e estudantes do outro, encontrando formas de se “estar na aula” e de estar, ao mesmo tempo, em outros espaços físicos e simbólicos, percebemos que essa imagem expressava a experiência com o ensino remoto em múltiplos aspectos: da infraestrutura, incluindo os espaços de onde se assiste ou se ministram as aulas; da didática, incluindo a duração e metodologia das aulas e atividades; das interações, incluindo a produção de novas formas de relação entre estudantes e deles com os docentes no ensino remoto.

  • 3 Esse foi o padrão, o modus operandi geral das aulas no período de adoção exclusiva do ensino remoto (...)

28A adoção do ensino remoto emergencial na pandemia produziu um fenômeno relativamente inédito para parte significativa dos estudantes: aulas exclusivamente online, em tempo real, por cinco dias na semana.3 Assim, por períodos que variavam de duas a quatro horas, com pequenos intervalos, esperava-se que os estudantes permanecessem conectados, em frente as telas, se possível com as câmeras ligadas, interagindo com professores e colegas acerca do conteúdo ministrado. Nem mesmo as experiências com EaD se assemelham a essa modalidade, pois constituem-se também a partir de atividades assincrônicas, mediação de tutores e de polos presenciais para avaliações e/ou atividades práticas.

  • 4 Um aspecto que não será aprofundado aqui pela falta de dados, mas que deve ser considerado, diz res (...)

29Diante disso, o espaço de onde assistiam às aulas passou a ser também agente das experiências, constituindo-se numa categoria analítica central desse estudo. A presença da família ou filhos, vozes captadas pelo microfone, quartos compartilhados, cachorros latindo, gatos passando pela frente das telas, o “pano de fundo” – como uma forma de representar a dimensão estética da ambiência capturada pela câmera,4 dentre outros aspectos, passaram a participar das aulas, mais do que figurarem apenas como parte do cenário. Era como se a instituição de ensino adentrasse as casas dos estudantes, ocupando um espaço que até então era vivenciado e significado como a antítese do tempo de estudo e do tempo de trabalho. Ou seja, além da interferência do próprio espaço e suas dinâmicas na experiência das aulas, insinuava-se também o conflito entre as expectativas das instituições e docentes em relação à performance dos estudantes e os sentidos e significados atribuídos ao “estar em casa”, “estar no meu quarto”. Esse conflito foi um dos aspectos mais evidentes nas falas dos estudantes nas entrevistas, e podemos vê-lo expresso nas falas abaixo transcritas.

O primeiro ano foi o mais difícil, nem pela questão de estar com outras pessoas [em casa], e sim pelo foco. As pessoas entendem que você está trabalhando e estudando, mas elas não conseguem respeitar esse espaço: vem alguém conversar com você… normalmente eu trabalhava na sala e estudava no quarto, para minha cabeça entender, mas não tinha essa noção de espaço pelas pessoas da família, falta essa compreensão deles, então a gente acaba desfocando o tempo todo.

Durante a pandemia eu estava empregada e continuei [presencialmente], mas da faculdade foi bem complicado a questão da família, eu entendo que deve haver respeito e tal, mas ao mesmo tempo eles já trabalharam [presencialmente] a semana toda e percebem a casa como um local de descanso, para assistir, lavar, etc.

Eu tenho uma grande dificuldade de desassociar a minha casa de um lugar de descanso mental. Eu sempre tive dificuldade de produzir em casa, na maior parte das vezes recorro à biblioteca da faculdade, laboratórios de informática para de fato poder render meu trabalho.

30Cada uma dessas falas foi feita por um(a) participante da pesquisa e, nelas, a agência do espaço sobre a experiência com as aulas online se expressa em duas dimensões: é o lugar onde ocorrem interações familiares nem sempre evitáveis, nem sempre harmônicas, nem sempre desejáveis, situadas em dinâmicas muito próprias, complexas, pouco flexíveis; e é o lugar que, do ponto de vista individual, remete a atividades e subjetividades compreendidas, em geral, em oposição ao trabalho, ao estudo ou a qualquer agenda institucional. Essas duas dimensões não devem ser consideradas isoladamente, mas como complementares, apontando a complexidade de uma realidade em que elementos humanos e não humanos estão em interação na produção das experiências. Como disse uma outra participante da pesquisa, “[…] é que a cama chama muito. […] Aí essa é a parte que mais me incomoda. Estar naquele quentinho da cama e não poder dormir porque tem que fazer as coisas.” Ao dizer que a “cama chama muito”, a estudante descreve a ação do objeto e do espaço doméstico sobre seu comportamento e disposição para as aulas online. É análogo a dizer, como nas outras falas, que a casa é associada a um “lugar de descanso mental”.

31Na perspectiva antropológica, não se trata de mera força de expressão ou figura de linguagem, mas da percepção de que a casa e seus espaços impõem com força seu significado. Situando essa análise na sociologia das associações proposta por Latour (2008, p. 19), é possível portanto compreender os espaços domésticos – ou outros espaços a partir dos quais os estudantes participaram das aulas online – como elementos que conformaram as experiências com o ensino superior na pandemia e pós-pandemia, e não apenas foram seu contexto. E, da mesma forma que agiu como um elemento de dispersão, o espaço doméstico também agiu como proteção para aquelas que, por outros motivos, precisavam ou preferiam, num determinado momento, ficar mais em casa.

Pra mim foi complicado, demorei pra alcançar a faculdade, quando entrei veio a pandemia, fiquei frustrada, pensei em desistir. Não saber quando voltaríamos gerou muita ansiedade, conseguir concentração e interação era difícil. O único lado bom era poder estar em casa perto da minha filha, mas, justamente por isso, acabava me distraindo e perdendo o foco muito fácil. Como se o online não valesse de nada, foi como passar por passar.

Em dezembro de 2019 nasceu meu filho, e logo na primeira semana de retorno, março de 2020, veio o ensino remoto. Pra mim, no início, foi um certo alívio porque a licença não cobre o período de aleitamento exclusivo, o que me causaria um trabalho dobrado em casa e ir à faculdade. Porém, com o tempo acabando esse período, estar em casa tirava a minha atenção, desmotivou.

32Relatos como esses surgiram em quase todas: para aquelas estudantes que atuam também enquanto cuidadoras, estar em casa produziu esse sentimento ambíguo, de alívio, otimização do tempo, mas ao mesmo tempo de dispersão em relação às atividades acadêmicas. Isso porque, como já sugerido anteriormente, ao mesmo tempo que a casa “chama” para o trabalho doméstico, o cuidado com a família ou para o entretenimento e descanso, o mesmo espaço também parece repelir ou desestimular outras atividades, como aquelas que remetem ao tempo e espaços institucionais, corporativos e acadêmicos.

33As formas como os estudantes interagiram com esses outros espaços, especialmente o doméstico, durante a pandemia, tiveram efeitos sobre suas interações com os professores. Da mesma maneira, docentes também estavam ministrando suas aulas de casa, agindo e sofrendo as ações dos seus próprios ambientes familiares. Temos, aqui, outra categoria relevante para a análise em curso: as relações professor(a)-estudante, significativamente alteradas no contexto da pandemia. Mais do que colocar docentes e estudantes em espaços distintos, o isolamento social parece ter operado, no âmbito dessa relação, uma espécie de “divisão de mundos”. Trata-se de um afastamento agravado e, de certo modo, até provocado pelo desgaste generalizado vivenciado na pandemia, sobretudo pelo acúmulo de atividades remotas em meios digitais que incluem, entre outras coisas, a precarização do trabalho (Segata, 2020).

34Como bem pontuou Jean Segata (2020, p. 164) em artigo intitulado “A colonização digital do isolamento”, para aqueles que se interessam pelas relações entre humanos, computadores e outros dispositivos conectados à internet, as situações críticas produzidas pela pandemia deram lugar a um campo fértil para reflexões sobre a constituição do sujeito no mundo contemporâneo, sobre o digital, seus processos de subjetivação e de produção da vida.

35O autor retoma alguns dados de pesquisa realizada em 2004 com professores da rede pública de educação do estado de Santa Catarina, onde a presença de computadores e a inclusão digital eram uma novidade e vistas como promessa de modernização do ensino. Nesse contexto, “entrar na internet”, ao mesmo tempo que significava acessar um lugar – dotado de certa materialidade – onde passava a ser possível encontrar um novo mundo, “novas oportunidades”, sugeria também um risco de precarização, de mais carga de trabalho não contabilizado e de mais demanda por produtividade. Se, por um lado, “a ubiquidade da internet era uma esperança de futuro e de transformação”, por outro, a possibilidade de se “estar em muitos lugares e fazendo tantas coisas ao mesmo tempo já apresentava efeitos colaterais das promessas de formar a gente do século XXI” (Segata, 2020, p. 166-167, grifo do autor).

36Saltamos para 2020, em pleno contexto pandêmico, com as instituições de ensino superior colonizadas pela lógica produtivista do mercado e por uma nova economia temporal baseada no imediatismo (Segata, 2020, p. 167), com os indicadores da saúde mental dos jovens em flagrante declínio, e vemos um cenário em que a necessidade do “distanciamento social” fez com que todas (ou quase todas) as atividades da vida cotidiana passassem a ser realizadas remotamente. Estudantes e professores estavam, todos, imersos em uma quantidade sem fim de reuniões, jobs, aulas e atividades online, transitando entre plataformas nem sempre familiares, lidando com problemas operacionais ou aprendendo “na marra” a resolvê-los, tudo isso de dentro do ambiente doméstico e todas as suas agências. Sobretudo nas instituições particulares, que implementaram o ensino remoto emergencial poucos dias ou semanas após a deflagração da pandemia, o imperativo do “não podemos parar” (Segata, 2020, 169) pode, em certa medida, ter contribuído para uma fragilização das relações professores-estudantes, que, como discutido anteriormente com base em Sibilia (2012), já sofriam certos desgastes.

37A pandemia “confinou” as pessoas em casa, mas, ao fazer isso, provocou uma superintensificação da vida através do excesso de conexões e aumento de demandas, tendo como consequência a diluição de certas relações. Uma afirmação como essa se torna possível quando observamos as falas de estudantes em relação aos vínculos com os professores no ensino remoto.

Senti um distanciamento maior, principalmente com aqueles que não conhecíamos na pré-pandemia. Não me sentia confortável em debater assuntos e tirar dúvidas.

Acredito que a relação tenha ficado distante, uma vez que a interação era mínima remotamente, as pessoas ficavam às vezes com vergonha de questionar e saíam com dúvidas.

38Sobre as percepções esboçadas aqui podemos pensar que, do afastamento provocado pela própria circunstância do ensino remoto, a memória da relação antes da pandemia parece potencializar essa sensação de uma distância que não era somente física, mas subjetiva. Ao mesmo tempo, a ambiência das salas de aula virtuais pareciam provocar nos estudantes uma experiência de “superexposição”: a mediação da tela, o frame da câmera dos notebooks e celulares, a relativa perda de controle sobre a própria imagem com a possibilidade de prints e gravações das aulas, dentre outras situações, permitem compreender esse sentimento de “desconforto” e “vergonha” para uma participação mais ativa.

39A percepção desse distanciamento como parte da experiência comum com o ensino remoto se revela também entre quem conseguiu preservar ou construir uma relação próxima com seus professores.

Eu fui um ponto meio fora da curva, porque me aproximei bastante de todos. Praticamente eu era a ponte dos professores com os alunos, então estava o tempo todo em contato.

40A maneira como essa estudante formula sua experiência se traduz como a exceção que confirma a regra: ao se colocar como “ponto fora da curva”, ela demonstra perceber que a maioria dos colegas sentiam o distanciamento.

41As relações entre professores(as) e estudantes também são afetadas por outra percepção recorrente no trabalho de campo: a de que o número de atividades avaliativas aumentou consideravelmente na pandemia, quando a expectativa era a de que diminuíssem, dadas todas as evidências de sobrecarga, desgaste e sofrimento mental já discutidos aqui. Não se tratava, contudo, de mera sensação. Na tentativa de mitigar a falta de interação com os estudantes ou, principalmente, a dificuldade de sustentar uma aula online pelo mesmo tempo que uma aula presencial, muitos docentes elaboravam exercícios ou atribuíam tarefas para serem desenvolvidas no tempo da aula. As ferramentas disponíveis em plataformas como o Google Classroom facilitam e fomentam esse tipo de estratégia que, no limite, traduz-se pela inclusão de atividades assíncronas nos processos pedagógicos.

42Isso remete, então, à dimensão didática, que, na pesquisa, também aparece como fragilizada não apenas pela falta de preparo de boa parte dos professores para as lidas com as tecnologias disponíveis, mas também porque professores e estudantes percebiam-se esgotados, psicologicamente afetados e sobrecarregados de atribuições. Nas situações abaixo, a relação com os professores foi situada no “acolhimento”, mais do que naquilo que está circunscrito aos conteúdos e metodologias das aulas.

[…] alguns professores já tinham um jeito mais fechado e tal, aí acabavam a aula e já desligavam, assim a gente nem conseguia perguntar algo e ficava naquela de mandar email. Mas com outros professores […] foram psicólogos na pandemia, um entrosamento muito bom e, na volta ao modelo presencial, essa relação se consolidou, melhorou muito. Enfim, eu acho que da parte dos professores […] eles também devem ter se frustrado […]

Depende do professor! Teve situações que os professores foram acessíveis e entendiam situações de dificuldade, seja no acesso ou aprendizado, e buscavam diversificar as aulas, enquanto também teve situações que distanciaram pela didática que foi usada remotamente, situação de compreensão com questões de presença, dúvidas, etc. Então teve casos que melhorou e ficou mais agradável o contato, e o oposto também.

43A ausência das interações “de corredor”, aquelas que precedem e sucedem as aulas presenciais, pode explicar em parte as percepções ressaltadas acima. O ensino remoto emergencial embotou parte substantiva do cotidiano universitário, constituído justamente pelas trocas casuais, que não estão previstas nos programas disciplinares e nas estratégias didáticas. Não seria arriscado dizer, inclusive, que essa é a parte mais valorizada da experiência universitária: sem ela, tudo pode parecer “fechado”, “distante”, “incompreensível”, “pouco agradável”. Portanto, aqueles professores que conseguiram, de algum modo, desprender-se dos programas e horários rígidos, das fórmulas e métodos de antes da pandemia, abrindo espaço para a necessidade de acolhimento dos estudantes, foram percebidos como bem-sucedidos no ensino remoto. Do ponto de vista de gestores e até mesmo de professores, crescia com isso uma sensação de déficit de aprendizagem, pela diminuição dos conteúdos efetivamente ministrados, pela dificuldade de se cumprir plenamente os planos de ensino, pelo desempenho nas avaliações segundo os critérios e indicadores convencionais do ensino presencial.

44Um outro elemento que atuou de forma significativa como coprodutor das experiências com o ensino remoto emergencial foi o fator econômico. É curioso que entre os estudantes alcançados pela pesquisa o desemprego não se configurou como dado relevante. É sabido que o impacto da pandemia nas atividades geradoras de renda foi especialmente severo para trabalhadores desprotegidos, que estão na economia informal, ou para grupos mais vulneráveis (OIT, 2020 apud Costa, 2020, p. 972). No Brasil, o desemprego na pandemia cresceu, principalmente, nos setores de serviços, como a hotelaria, bares e restaurantes. O Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda, criado pelo governo brasileiro através da Medida Provisória n. 936 de 2020, buscava enfrentar a crise ampliando as possibilidades para a redução de jornada de trabalho com redução de trabalho, mediante acordo individual por escrito ou negociação coletiva, com duração máxima de 90 dias. Contudo, como coloca Costa, isso favoreceu a precarização das relações trabalhistas, já em avanço desde a Reforma Trabalhista de 2017, além de ter valor apenas para os trabalhadores formais do setor privado.

  • 5 Certamente, esse dado deve ser lido dentro dos limites da pesquisa e, mais do que isso, no contexto (...)

45Embora, como já dito, o desemprego5 não apareça como dado relevante na pesquisa, muitos estudantes passaram por mudanças significativas e, às vezes, numerosas, relacionadas ao emprego. Isso não necessariamente impactou a renda, mas gerou sobrecarga de trabalho, provocou jornadas mais extensas e extenuantes e levou ao acúmulo de responsabilidades que afetando não apenas o desempenho acadêmico, mas a própria relação com a instituição, com docentes e colegas.

É […] durante a pandemia eu tive mais ou menos oito empregos […] eu fui muito demitida e sim […] mexeu comigo, fiquei por um tempo me sentindo inútil, isso em 2020. Mas hoje eu estou realizada […] trabalhando com o que eu gosto, assumindo cargo de coordenação […] foi de 0 a 100 muito rápido […]

Para mim, chega até ser cômico, mas foi justamente o contrário […] durante a pandemia foi o momento que eu mais ganhei dinheiro, eu estava com dois empregos […]

46Sendo o enfoque da pesquisa as experiências com o ensino superior na pandemia, as falas acima ilustradas têm seu sentido ampliado. Os desafios colocados para o estudante-trabalhador são conhecidos desde muito antes desse período: estes sempre estiveram diante da necessidade de conciliar muitas e importantes demandas ou diante da possibilidade de, em algum momento, terem que priorizar o emprego ou os estudos. Assim, acumular muitas demissões, assumir um novo trabalho e novos desafios ou conciliar dois empregos com os estudos e a família são situações que revelam a rede complexa e multifacetada de elementos e aspectos que conformam a experiência acadêmica em qualquer época ou circunstância.

47Agora, imaginemos tudo isso ocorrendo dentro de um mesmo espaço – o espaço doméstico – e pensemos sobre os efeitos dessa convergência trabalho-faculdade-família nesse espaço na produção da subjetividade e da vida. Como coloca Segata (2020), ao possibilitar que o trabalho educacional ocorra em modalidade remota, as tecnologias digitais se tornam aliadas da saúde, cuidado e bem-estar, na medida em que evitam ou diminuem as chances de exposição ao vírus. No entanto, as mesmas tecnologias fomentam o adoecimento “ao expandir e complexificar uma nova ordem de apelo utilitarista baseada na otimização do tempo dentro de casa” (Segata, 2020, p. 169).

48É importante ter claro que tudo isso se intensificou num momento marcado por fortes incertezas sobre o futuro, aumentando a sensação de precarização da vida. Assim, a partir de março ou abril de 2021, o retorno gradual às atividades presenciais – consolidado apenas em 2022 – foi tão esperado e celebrado e, ao mesmo tempo, não escapou dos traumas, receios e dos novos hábitos produzidos durante a pandemia.

49As percepções construídas sobre esse retorno nos levam à última categoria de análise da pesquisa, circunscrita às percepções dos estudantes sobre a retomada das atividades presenciais e sobre suas experiências com as chamadas modalidades híbridas de ensino. Um dos temas bastante especulados pelas mídias em 2020 e 2021 foi o futuro do ensino superior (e da educação em geral) depois da pandemia. A grande hipótese construída, não sem qualquer intencionalidade, foi a de que a experiência com o ensino remoto e a experimentação intensificada e generalizada das plataformas nos fazeres pedagógicos operariam, como definiu Segata (2020), como janela de oportunidade para uma já tardia modernização do ensino através das tecnologias digitais. Em reportagem da Revista Ensino Superior (Longo, 2021), a metáfora da “janela” é acionada justamente para descrever uma tendência para o futuro da educação superior no Brasil, a partir da pandemia. O texto pressupõe mudanças significativas no comportamento social e na percepção dos estudantes quanto às formas de aprendizagem e, a partir disso, sugere que a adoção de modalidades híbridas seja um dos caminhos para o futuro.

50Reconhecendo que “aulas remotas” não são exatamente uma novidade na educação, a reportagem da revista sugere que o principal desafio colocado pela pandemia é transcender “aplicações” simplificadas das tecnologias digitais nos processos educacionais. O esforço teria que ser o de buscar para a educação o potencial disruptivo que o Uber ou o AirBnB representaram, respectivamente, para a mobilidade urbana e o mercado de hospedagem. Estaríamos, portanto, diante da possibilidade real de colocar o ensino superior na esteira da dataficação e plataformização da vida, processo que, segundo Lemos (2021), constituem-se a partir da captura indiscriminada de dados produzidos por nossas ações no digital. As plataformas, então, rastreiam oportunidades e agenciam usuários em nome da eficiência, oferecendo soluções inovadoras para problemas cotidianos (Lemos, 2021).

51Não são raras, inclusive, as iniciativas de traduzir essa tendência em dados que provoquem a busca por soluções ou saídas. Por exemplo, a Semesp, que representa mantenedoras de ensino superior no Brasil, disponibiliza, em seu site, uma série intitulada Como será a educação superior pós Covid-19?6 que já contém sete episódios. Analisando mudanças e inovações provocadas pela pandemia, a série de vídeos projeta novos cenários, faz prospecções sobre o futuro e discute desafios sobretudo em relação às possibilidades de uma entrada mais efetiva no mundo digital.

52Em certo sentido, parece que a pandemia foi transformada em uma oportunidade de mercado: cria-se uma demanda de adaptação das instituições a novas modalidades – híbridas, flexíveis, ajustadas ao “novo normal” – e, a partir dela, oferece-se um cardápio infindável de produtos: cursos para gestores, conteúdos exclusivos, consultorias especializadas em planejar e propor as mudanças nas políticas institucionais e matrizes curriculares de modo a reduzir a carga horária remunerada de professores, aglutinar turmas em componentes curriculares genéricos, ampliar a carga horária de EaD nos cursos, aliando as demandas de redução de custos das instituições ao marketing sedutor de uma formação superior mais “adequada” às rotinas aceleradas da vida contemporânea. Desponta com isso, num horizonte próximo, o que Segata (2020) definiu como a homeoficização da vida acadêmica.

53Mas como os estudantes que participaram da pesquisa perceberam o retorno à modalidade presencial a partir de 2021? O que restou do ensino remoto na experiência dessas pessoas? Em que medida as facilidades do digital são efetivamente valorizadas no cotidiano estudantil? E, mais importante, qual é o papel que a instituição de ensino – e seus espaços físicos – desempenham na vida de sua comunidade? Aqui, a dimensão vivencial da pandemia, as perdas, sentimentos que ela provocou, aponta para a complexidade de um fenômeno que não pode ser reduzido a tendências de mercado.

54Contrastando com a frustração e esgotamento da vida “nas telas” e do isolamento social, o retorno às atividades presenciais foi, para muitos, marcado pelo medo. Em 2021, logo que as instituições foram reabertas, muitos estudantes permaneceram em casa, participando das aulas remotamente naquilo que chamaram de “modelo híbrido”. No modelo híbrido, professores ministravam as aulas das instituições, mas as aulas eram transmitidas por câmeras instaladas em computadores, através das mesmas plataformas digitais utilizadas no ensino remoto emergencial.

55Com regras ainda vigentes para o distanciamento social na sala de aula física e sobre o uso obrigatório de máscaras nas dependências das instituições, o principal desafio para o docente, nessas circunstâncias, era administrar concomitantemente estudantes em sala e estudantes em casa. A necessidade de permanecer no ângulo da câmera tirava a mobilidade do professor. Problemas na acústica das salas e nos equipamentos dificultavam, para quem estava em casa, ouvir tudo o que era dito: a infraestrutura disponível permitia uma boa escuta do professor, apenas, mas não dos colegas. As câmeras, por sua vez, não captavam as salas de aula em 360 graus. Quem estava em casa dificilmente enxergava quem estava em sala, reduzindo a interação à escuta prejudicada por interferências técnicas e do próprio ambiente, como ruídos, falas sobrepostas, barulhos externos. Atividades práticas propostas para quem estava em sala, sobretudo as em grupo, acabavam por excluir quem estava em casa. Do lado oposto, ao se propor atividades remotas e assíncronas, corria-se o risco de ser mal interpretado por aqueles que já estavam na instituição para uma outra aula ou por conta de rotinas individuais.

56Ou seja, a adoção das modalidades híbridas foi tão desafiadora e inédita quanto aquela com o ensino remoto, intensificando os impactos da pandemia sobre as relações entre professores, estudantes e as instituições. É como se, paralelamente à pandemia de Covid-19, vivêssemos uma outra pandemia configurada a partir do “adoecimento” da educação superior, cujas sequelas permaneciam apesar do avanço da vacinação, da revogação dos decretos sanitários, da liberação do uso das máscaras e, finalmente, das quedas sucessivas nos números de internações e de mortes pelo novo coronavírus.

57Sob essa perspectiva, o retorno às atividades presenciais foi descrito, muitas vezes, como marcado por movimentos de reconexão. Aqui, conectar-se deixa de ter relação com o digital, com as conexões facilitadas pelas tecnologias, e recupera um certo sentido idílico relativo às relações como elas eram antes da pandemia, antes do ensino remoto, antes do isolamento. As percepções sobre o retorno à modalidade presencial enfatizam, nesse sentido, menos a retomada de uma “qualidade do ensino”, do “foco” disperso entre aulas online e home office, do desejo pela aprendizagem e da produtividade acadêmica, e mais do “acolhimento”, das “trocas”, das “conexões”, como expresso nas falas abaixo.

Gera um acolhimento, né?! Tem uma empatia, um acolhimento no presencial, mas vai de instituição para instituição […] foi muito importante eu estar dentro de uma instituição e ter os professores comigo [empaticamente, dando suporte]. Talvez acontecesse isso remotamente, mas presencialmente é diferente.

Também tem a ver com toda a troca que a gente tem um com o outro, né?! Um ponto positivo do digital é a possibilidade de a gente alcançar mais pessoas, trocar uma ideia, mesmo que não conheça muito bem. Em contrapartida, o presencial serve justamente para ter essas conexões […]

58Para além dessa percepção da “força” das interações face a face em oposição à multiplicidade e fragmentação das interações online, há um aspecto nessas falas que pareceu significativo para os propósitos da pesquisa: o papel que a instituição, com seus espaços e sua infraestrutura, pode ter nas experiências dos estudantes. Esse papel não necessariamente está centrado no ensino, nas relações de aprendizagem, mas no pertencimento e na produção dos afetos. O significado da presença, do estar presencial, aproxima-se assim da pertença, de pertencer a um lugar no qual se situam as relações, seja entre estudantes, deles com seus professores, entre os professores, etc. E isso parece ter se tornado mais visível justamente pela ausência, quando faltou.

A falta de interações sociais acabou levando a um “desencanto” com a faculdade. Realmente tive bastante dificuldade em me manter interessado nas matérias e nas questões da faculdade.

59Tem-se, então, que o “encanto” da instituição se situa nas interações às quais ela é capaz de dar lugar. Mas como estavam os estudantes antes da pandemia? Se, em 2019, perguntássemos a eles como eles percebiam suas experiências com o ensino superior, o que eles responderiam? Diante da impossibilidade de voltar no tempo, resta-nos acionar a memória docente e resgatar, ainda que remotamente, percepções recorrentes daquela época não tão distante.

60Não é difícil lembrar da sensação de dar aula “para as paredes”, enquanto estudantes cansados distraíam-se com celulares e notebooks; das reuniões pedagógicas que incluíam nas pautas estratégias para motivar e estimular os alunos; das revisões curriculares para substituir disciplinas de quatro créditos por disciplinas de dois créditos, em face da dificuldade crescente de manter a atenção das turmas por períodos inteiros sobre o mesmo assunto. Esses são apenas alguns exemplos que nos mostram, como sugere Sibilia (2012), que onde ainda imperava uma lógica de “confinamento”, pelas grades curriculares pouco flexíveis, horários rígidos de início e término de aula, normas de controle de presença, avaliações como “prova” de aprendizagem, já se estendiam “as tramas atraentes da conexão, que opera de outro modo e com objetivos diferentes: enfeitiçando os consumidores contemporâneos com suas incontáveis delícias transmidiáticas” (Sibilia, 2012, p. 174-175).

61A crítica de Sibilia está em compreender, inspirada em Michel Foucault, que a insistência num modelo educacional em crise, ainda pautado pela vigilância e controle, centrado na hierarquia, na disciplina, na autoridade, abre espaço para que outras formas de poder, mais compatíveis com os ritmos do mundo atual, atuem sobre os corpos. Contrastando com essa escola oitocentista, as formas atuais de inserção e controle dos corpos no capitalismo contemporâneos (Sibilia, 2012) parecem mais sutis e divertidas, até porque nos dão a ilusão de estarmos “livremente” conectados. Interagindo e performando a vida privada nas redes sociais, enredados em mecanismos de rastreamento e geolocalização ou entretidos com grupos e contatos em aplicativos de mensagens, estudantes sobrevivem “à chatice que implica ter que passar boa parte de seus dias encerrados nas salas de aula, mais desesperadamente desconectados que disciplinarmente confinados” (Sibilia, 2012, p. 177).

62A crítica formulada pela autora pode ser discutida em vários aspectos, mas de forma geral nos fornece algumas chaves interpretativas para a problemática dessa pesquisa. Se reconhecemos que a dispersão é anterior à pandemia – e, junto dela, a fragilização da saúde mental e a precarização da vida pelas demandas por produtividade e alta performance próprias do neoliberalismo – podemos inferir que a experiência do ensino remoto emergencial e das modalidades híbridas nesses últimos anos serviu para tornar mais visíveis e potencializar dilemas da vida acadêmica, seu modelo de ensino, suas lógicas. Carecendo de um melhor aprofundamento teórico e empírico, essa reflexão sugere, por agora, que para considerarmos uma maior participação das tecnologias digitais no ensino superior temos que, antes, rever o próprio modelo. Adequar as rotinas acadêmicas ao mundo atual, à “era digital”, não deveria ser sinônimo de rendição ao produtivismo neoliberal, pela otimização do tempo e aumento das demandas, mas deveria privilegiar a saúde, o bem-estar psicológico, a autonomia e, como os próprios estudantes ressaltam, os vínculos.

Algumas aulas, não todas, poderiam acontecer online pela dinâmica, além de algumas apresentações […] “A gente vai pra aula só para apresentar slide? Isso poderia ser feito de casa.” Eu acredito que alguns assuntos e questões possam funcionar remotamente, mas acho que caberia ao professor avaliar isso […]

63Se a dimensão presencial garante as conexões, aí sim algumas aulas ou atividades podem ser online. Afinal, como sugere a estudante na fala acima transcrita, não é preciso estar na instituição para apresentar ou assistir “slides”. Estamos, aqui, diante de um modo de “descrever os objetos” que, como sugere Madeleine Akrich (2014), os considera além de seu aspecto físico, como resultado de um conjunto de relações entre elementos heterogêneos. A definição de um objeto técnico se dá, segundo a autora, como narrativa que se constrói entre o dispositivo material e os “usos” preenchidos por esse dispositivo (Akrich, 2014, p. 163). As narrativas dos(as) estudantes sobre suas experiências e aprendizados com as modalidades híbridas possibilitam algumas articulações com a perspectiva de Akrich.

64Ao serem questionados sobre as possíveis “vantagens” ou “pontos positivos” do modelo remoto ou modalidades híbridas, três aspectos foram evidenciados: a flexibilidade, a otimização do tempo e o impacto econômico. O isolamento social na pandemia mostrou, não apenas na vida acadêmica, que algumas atividades e compromissos formais poderiam facilmente se realizar online, economizando deslocamentos e, até mesmo, reduzindo a duração de certas agendas. Nesse contexto, dispositivos móveis, conexões, plataformas de teletrabalho, etc. não são possíveis de serem descritos como objetos mudos e imóveis, mas como movimentos de atores que experimentam soluções para melhor ajustar objetos técnicos aos seus ambientes. Do ponto de vista da análise, isso nos provoca a “ir e vir […] entre o mundo inscrito no objeto e o mundo descrito pelo seu deslocamento” (Sibilia, 2012, p. 165) É nos relatos dos usuários, tal como buscamos aqui, que se torna possível a análise dos mecanismos que permitem a relação conjunta entre a forma e os sentidos que constituem os objetos técnicos. Do ponto de vista individual, das rotinas cotidianas dos(as) entrevistados(as) na pesquisa, a pandemia permitiu reclassificar prioridades e repensar situações que pedem a presença ou, grosso modo, que podem ser resolvidas em uma videochamada. Soma-se a isso o aspecto econômico, considerando-se os custos de sair de casa, que incluem transporte, alimentação e outros gastos. Na vida acadêmica, isso se reflete na percepção de que nem tudo precisa ser presencial, mesmo que o “presencial” seja o padrão desejado.

65Os estudantes parecem resistir, contudo, às atividades remotas propostas como forma de aumentar demandas em rotinas já sobrecarregadas, da mesma forma que já não suportam um ensino presencial circunscrito às “grades” curriculares, às notas bimestrais, aos boletins. Com base em Sibilia (2012), pode-se supor que eles continuam a assistir às aulas pelo fato de “estarem juntos”, compartilhando uma mínima coesão, alguma ancoragem num cotidiano potencialmente dispersivo e bastante incerto.

66Por isso, retornar ao presencial tentando restaurar o que está perdido, “restabelecendo os códigos deteriorados pelo esgotamento das instituições” (Corea, 2004 apud Sibilia, 2012, p. 178), talvez não fosse o mais útil ou desejável. Antes disso, repensar os modos pelos quais nos comunicamos – instituições, professores, estudantes –, buscando outras formas de dialogar, ensinar e aprender em circunstâncias tão desafiadoras, pode ser um princípio. Ao que tudo indica, mesmo antes da pandemia, estudantes – e também professores – já demonstram evidente rebeldia contra os poderes disciplinadores sobre seus corpos que, como coloca Sibilia (2012, p. 179), hoje se convertem nos “corpos vorazes, ansiosos, flexíveis, performáticos, hedonistas, narcisistas, hiperativos, mutantes, consumidores, conectados” da atualidade.

Considerações finais

67A pandemia deflagrou um processo ritual marcado por intensa dramatização de performatividade de novos hábitos e rotinas, suspendendo toda uma estrutura pelo imperativo do “fique em casa”. É possível afirmar, nesse sentido, que a pandemia da Covid-19 colocou o ensino superior brasileiro em situação liminar, como sugere a clássica teoria estrutural de Victor Turner (1974). Ou seja, do ponto de vista macro, a experiência do ensino remoto emergencial pode ser vista como uma antiestrutura que tem o potencial de provocar a transformação da estrutura anterior.

68Trazendo essa perspectiva para a situação da pesquisa, que transformações poderiam operar no ensino superior a partir da experiência na pandemia? Sabemos que a estrutura é regulada pela legislação que prevê número mínimo de dias letivos, memórias de cálculo da carga horária dos cursos superior, critérios distintos para o funcionamento do ensino presencial e do EaD, diretrizes curriculares para cada curso, indicadores para a autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento de cursos, protocolos nacionais de avaliação da qualidade do ensino. Em última instância, mudanças mais significativas dependem, também, de revisões dessas legislações.

69Não foi por acaso que introduzi este artigo situando as iniciativas do Conselho Nacional de Educação, que, na conjuntura atual, parece buscar ajustes e reavaliações das políticas educacionais empreendidas nos anos anteriores. Se a Portaria nº 2.177 de 6 de dezembro de 2019 (Brasil, 2019) ampliou para 40% o percentual de carga horária em EaD para cursos presenciais ofertados por instituições de ensino superior pertencentes ao sistema federal de ensino, parece haver agora vontade política de estabelecer critérios e regular a expansão do ensino à distância na educação superior brasileira. Afinal, nos últimos anos, muitas instituições vêm modificando suas políticas de ensino – incluindo revisões de matrizes curriculares, criação de novas disciplinas e ajustes nos regimes de contratação de professores – para contemplar esse percentual. O ponto que merece nossa atenção é que nem sempre os propósitos institucionais que pautam essas mudanças convergem com os interesses e percepções dos estudantes, visando mais a redução de custos do que a combinação entre qualificação e flexibilização do ensino.

70Em conversa com uma estudante durante o trabalho de campo, já em meados de 2022, ela contou que estava se formando sem ter participado mais de aulas presenciais:

  • 7 A instituição não será identificada, para preservar os aspectos éticos da pesquisa.

Lá na faculdade,7 seguiram online. Foi bem ruim! Alguns professores até pediram demissão, por não concordarem com as mudanças. As aulas acontecem segundas, terças e quartas, e os dois últimos dias da semana são para as horas buscativas [sic], para realizarmos extensão e trabalhos remotos.

71São relatos como esse que nos permitem inferir que a pandemia intensificou, em alguma medida, processos de mudanças e de reestruturação que já estavam em curso no ensino superior.

72Giorgio Agamben (2020), em um breve artigo publicado logo nos primeiros meses da pandemia da Covid-19, apontou as dimensões globais dessa tendência. Nesse artigo, intitulado “Réquiem para os estudantes”, Agamben (2020) foi categórico em postular que a pandemia estava sendo “utilizada como pretexto para a difusão sempre mais pervasiva da tecnologia digital”. Para o autor, não se tratava de uma situação meramente circunstancial, mas um movimento previsível de uma “ditadura telemática” que quer pôr fim ao estudantado como forma de vida.

73As universidades, continua Agamben, chegaram a tal ponto de especialização e corrupção dos seus propósitos originais, que empobreceram a vida dos estudantes e decretaram seu fim. Diante disso, convoca professores e estudantes a recusarem se submeter aos cursos integralmente online, constituindo novas universidades como lugar de estudo, de escuta, de encontro e de trocas contínuas.

74Ainda que a perspectiva lançada por Agamben nesse artigo-manifesto possa ser avaliada como profundamente pessimista, ela não deixa de ser uma expressão hiperbólica da tendência já discutida aqui. Como bem sugeriu Segata (2020), a pandemia abriu uma “janela de oportunidade” para que a ubiquidade tecnológica fosse traduzida na linguagem de uma economia temporal, produtivista e marcada pela meritocracia e por lógicas de exclusão. “São as estruturas de desigualdade funcionando para o favorecimento de quem pode ficar em casa com acesso aos bens e serviços dos dispositivos conectados à internet” (Segata, 2020, p. 169).

75Há muito o que aprofundar sobre essa tendência, na esteira dos achados e das questões lançadas por esta etnografia. Contudo, o que foi possível acumular até aqui permite pensarmos que nesse primeiro momento pós-pandemia permanecemos em situação liminar, gestando os efeitos de dois anos atípicos ainda sem alcançar posições de algum modo estáveis sobre o futuro. Não há dúvidas de que temos instituições bem melhor equipadas, mas, apesar de dispendioso, esse é o passo mais fácil de dar (Sibilia, 2012, p. 181). É preciso transcender o “uso” das tecnologias como recursos didáticos ou como forma de baratear ou otimizar processos de ensino. “Em tais casos, a aparelhagem técnica é considerada um mero instrumento a ser incorporado às práticas escolares, como se fosse uma ferramenta neutra capaz de atualizá-las, remediando assim a tão proclamada crise” (Sibilia, 2012, p. 182).

76Participando dos processos de gestão educacional nos últimos anos, pude perceber como é comum reduzirem a noção de inovação à incorporação do aparato tecnológico, de forma muitas vezes alheia à reflexão sobre como inseri-lo no âmbito das relações que constituem não apenas o trabalho educacional, mas o próprio cotidiano acadêmico e suas subjetividades. Para tanto, é preciso compreender que computadores, internet, plataformas digitais, etc. possuem valores, linguagens e modos de uso implícitos que lhe conferem materialidade, identidade e, principalmente, capacidade de agências. Não se trata, portanto, de tratá-los apenas como parte do patrimônio institucional e colocá-los em uso, dependendo exclusivamente das possibilidades de apropriação, experimentação e agenciamento por parte dos “usuários”. Mais do que isso, trata-se de transcender a noção de “uso” e “apropriação” para articular estratégias nas quais a associação entre tecnologias, pessoas e instituições produzam juntos projetos pedagógicos realmente inovadores, capazes de superar a dispersão e de “concentrar de novo a atenção do conjunto de alunos na aprendizagem” (Sibilia, 2012, p. 184).

77Isso depende de uma aprendizagem conjunta de como “lidar” com os dispositivos e plataformas digitais, conhecendo suas lógicas e linguagens e, mais importante, superando o paradigma da “transmissão” de conteúdo. Diante desse modelo já desgastado de ensino, estudantes tendem a se dispersar pelas conexões tecnológicas que, por sua vez, diluem o tempo e o espaço como categorias que organizam as experiências. Segundo Sibilia (2012, p. 186-187), “a sociedade informacional não conecta, mas tende a desligar, dificultando as possibilidades de dialogar ou de compor uma experiência junto com os demais”. Pensando nisso, a autora sugere que na dimensão mais complexa e profunda dos desafios colocados para a educação no mundo atual está a tarefa de “produzir condições de recepção e agir sobre os efeitos dispersivos” (Sibilia, 2012, p. 199), permitindo que a tecnologia se integre a práticas e dinâmicas capazes de reconstituir o diálogo, a conversa, a troca, a participação.

78Mais do que notas conclusivas, a pesquisa resulta, enfim, em questionamentos em torno das possibilidades efetivas de nos comprometermos com um projeto educacional renovado por novas relações com as tecnologias digitais, onde o tempo e o espaço do presencial sejam qualificados na medida em que se incorpora a fluidez e flexibilidade das conexões online para certos tipos de atividades. É preciso ultrapassar a ideia de que estamos apenas “lidando” com o mundo informacional, para entender que o habitamos. A ubiquidade tecnológica nos exige repovoar o campo educacional, incorporando as tecnologias nos fluxos das ações como elementos com potencial de agir e colaborar na mitigação dos efeitos nocivos da vida contemporânea, intensificados durante a pandemia.

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Notas

1 O presente artigo é resultado da pesquisa Percepções, sentidos e significados sobre o ensino remoto: um estudo etnográfico sobre experiências de estudantes do ensino superior na pandemia de Covid-19, realizada com financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Santa Catarina (Fapesc), através da chamada pública Fapesc nº 12/2020, e circunscrita na Rede Covid Humanidades MCTI (UFRGS) através de um estágio de pós-doutorado realizado entre maio de 2022 e maio de 2023.

2 A repercussão dessa imagem, juntamente com outras notas iniciais da pesquisa, já foi objeto de reflexão no artigo “No desligar das câmeras: experiências de estudantes de ensino superior com o ensino remoto no contexto da Covid-19” (Máximo, 2021). Este artigo foi a primeira publicação decorrente do presente projeto e teve na reflexão metodológica um de seus aspectos centrais.

3 Esse foi o padrão, o modus operandi geral das aulas no período de adoção exclusiva do ensino remoto (entre março de 2020 e, aproximadamente, abril de 2021). Contudo, as instituições variaram muito seus protocolos quanto às atividades extraclasse, avaliações, aulas práticas, dentre outras atividades que não coincidiam com esse mesmo padrão.

4 Um aspecto que não será aprofundado aqui pela falta de dados, mas que deve ser considerado, diz respeito às desigualdades sociais e econômicas que atravessam, sobretudo, a configuração desses espaços, até mesmo na dimensão estética. Nesse sentido, não se deve descartar a possibilidade de que o “desligar da câmera” opere, também, como uma atitude de preservar diferenças que possam atuar como marcadores sociais. No decorrer da pandemia, as próprias plataformas digitais passaram a oferecer “planos de fundo” virtuais que, uma vez acionados pelos usuários, escondiam os espaços físicos de onde estes se conectavam.

5 Certamente, esse dado deve ser lido dentro dos limites da pesquisa e, mais do que isso, no contexto específico da região Sul, do estado de Santa Catarina e de Joinville.

6 Os vídeos estão disponíveis pelo link https://www.semesp.org.br/eventos/serie-como-sera-o-futuro-da-educacao-ep-3-desafios-estrategicos-do-ensino-superior-pos-pandemia/.

7 A instituição não será identificada, para preservar os aspectos éticos da pesquisa.

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Maria Elisa Máximo, «Tecnologia e educação: reflexões a partir de uma etnografia sobre experiências com o ensino remoto na pandemia»Horizontes Antropológicos [Online], 68 | 2024, posto online no dia 30 abril 2024, consultado o 02 dezembro 2024. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/horizontes/8804

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Autor

Maria Elisa Máximo

Universidade Federal de Santa Catarina – Florianópolis, SC, Brasil
Pesquisadora associada ao Grupo de Estudos em Ciberantropologia (GrupCiber)
elisamaximo[at]gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-5611-4889

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