1Ao buscarmos informações online sobre cirurgias plásticas, estamos a apenas alguns cliques de distância de um conjunto muito específico de produções audiovisuais, os chamados diários de cirurgia. Esses vídeos narram o processo de busca, realização e recuperação de procedimentos cirúrgicos diversos, sobretudo aqueles que visam alterar os contornos corporais. Estão presentes em diversas plataformas: no YouTube atingem milhões de visualizações, no Instagram se mesclam a fotos de antes e depois e no TikTok se destacam entre danças e coreografias, condensando semanas de acontecimentos em poucos minutos.
2A existência dos diários de cirurgia, um tipo de produção audiovisual muito particular, pode ser entendida como um fenômeno bastante complexo e relevante. Argumentamos que sua importância pode ser atestada não somente pelo número de visualizações dos vídeos, mas também pelo fato de que algumas pesquisas têm mostrado o quanto materiais de divulgação como esses podem ser impactantes na autopercepção corporal e na decisão de fazer uma cirurgia estética, por parte de mulheres e adolescentes (Rohden, 2021a; Silva, 2019; Silva, 2021). Além disso, trata-se de um exemplo singular que revela novos processos coproduzidos (Jasanoff, 2004) por meio das interações ocorridas via internet de um modo geral e especificamente nas redes sociais. Ademais, ilustra, como pretendemos demonstrar, uma forma bastante singular de digitalização da vida, por meio da produção e publicação de relatos que narram a intimidade do percurso de realização de uma cirurgia estética. Não apenas palavras e gestos que traduzem desejos, expectativas, ansiedades e medos, mas também imagens que refletem os recortes e ajustes (a serem) feitos nos corpos se transformam em “conteúdo” digital, com vistas a produzir o maior número possível de visualizações e interações.
3Nessa direção, os diários são analisados com o objetivo de tentar demonstrar como esse tipo de produção, que ilustra novas formas de aprimoramento de si, por meio das intervenções cirúrgicas, e exposição pessoal via audiovisual, só existe por meio da internet e redes sociais. Além disso, argumentaremos que esse fenômeno precisa ser entendido à luz da problematização de certas fronteiras, como entre vida pública e privada, e entre imagens em telas de dispositivos e pessoas “reais” (em seus corpos e peles concretos). São dimensões que permitem refletir acerca de novos modos de produção de subjetividades, transformações corporais e, em especial, referências ao que seria da ordem do natural ou sintético, e padrões de gênero e feminilidade. Na sequência, apresentamos a contextualização do objeto de pesquisa em cena e os aspectos metodológicos da investigação. Após, acionamos o material empírico dos diários de cirurgia, trazendo casos exemplares, e procedemos à análise, conforme os eixos de discussão mencionados.
- 1 De acordo com os dados disponibilizados pela International Society of Aesthetic Plastic Surgeons (I (...)
- 2 A lipoaspiração consiste em um procedimento de remodelação dos contornos corporais, realizado atrav (...)
4Antes de adentrarmos na análise dos diários de cirurgia, consideramos profícuo apontar algumas frentes de entendimento, que podem ajudar a descrever e interpretar este fenômeno. Trata-se de articulações que nos permitem ir adensando a compreensão dos diários de cirurgia e sua grande repercussão. Nessa direção, a primeira informação a ser trazida à tona diz respeito ao expressivo número de cirurgias estéticas realizadas no Brasil e majoritariamente por mulheres. Em 2019 o Brasil foi o país que mais realizou procedimentos estéticos cirúrgicos no mundo,1 um total de 1.493.673 cirurgias (The International Society of Aesthetic Plastic Surgeons, 2020). Os procedimentos mais realizados no país foram: lipoaspiração (15,5%), mamoplastia de aumento com prótese de silicone (14,1%), abdominoplastia (10,4%), blefaroplastia (9,7%) e a gluteoplastia (7,7%).2 Destaca-se a predominância do público feminino: dos 11.363.569 procedimentos realizados no mundo em 2019, 86,5% foram realizados por mulheres. A predominância em mulheres também pode ser observada nas cinco modalidades citadas acima, em âmbito internacional: 85,5% (1.458.114), 99% (1.777.182), 92,1% (850.917), 79,1% (996.937) e 96,0% (460.127), respectivamente.
5A posição de destaque do Brasil no cenário internacional das cirurgias estéticas tem motivado a investigação inclusive por pesquisadores estrangeiros, atentos não só à história dessa especialidade médica no país como também à importância dos marcadores de gênero, classe e raça/etnia e as fronteiras entre saúde e aprimoramento estético (Edmonds, 2010; Edmonds; Sanabria, 2014, 2016; Jarrín, 2017). A valorização de certos padrões de beleza definidos por rígidas fronteiras de gênero e também sua distinção associada à classe e raça/etnia têm contribuído para a produção de hierarquias e chances desiguais de mobilidade social. Além disso, o uso de referências genéricas à saúde, ligado a ideias pouco precisas de qualidade de vida, autoestima e bem-estar, têm justificado as intervenções cirúrgicas estéticas como associadas à promoção da saúde, o que pode ser discutível em muitos casos. Especialmente o impacto dos padrões de gênero e da objetificação do corpo feminino na saúde, que caracterizam o que poderíamos chamar de processos de normalização do desejável, tem sido descrito em práticas como os implantes de silicone nos seios e as chamadas cirurgias íntimas (Rohden; Cavalheiro, 2021; Rohden; Silva, 2020; Silva, 2019).
6Outro elemento importante para a compreensão dos diários se refere ao fato de que o aumento no número de cirurgias estéticas é acompanhado por um crescimento significativo da divulgação das cirurgias na internet e redes sociais. Por meio de páginas profissionais de médicos e médicas e sites de clínicas especializadas em cirurgia plástica, mas também via perfis pessoais em redes como Instagram e TikTok ou canais no YouTube, as mais variadas intervenções tornam-se assunto de discussão e mesmo de divulgação e promoção. Além do circuito de profissionais envolvidos, destaca-se também o crescimento de grupos nas redes sociais, compostos na sua maioria por mulheres que pretendem realizar ou já realizaram algum tipo de cirurgia estética.
- 3 Pesquisa de Iniciação Científica (Pibic Fapergs/UFRGS) vinculada ao projeto “Novas formas de circul (...)
7Entre setembro de 2020 e junho de 2021 estivemos inseridas em 77 grupos no Facebook cuja temática central são as cirurgias plásticas.3 Naquele momento, estávamos interessadas em analisar a centralidade das imagens na construção de testemunhos e depoimentos das transformações corporais obtidas através das cirurgias plásticas. Utilizamos “testemunho” a partir da perspectiva de Teixeira (2016), enquanto uma prática que atribui valores, que pode sinalizar a “reconstrução moral de si” e que não se limita à construção de uma narrativa e performance do indivíduo. O testemunho representa uma forma social que produz valor moral, em que se articulam três aspectos, a partir das dimensões do “ter”, “dar” e “ser”: “[…] construção de uma narrativa, sua performance e a sustentação do seu conteúdo nas interações cotidianas” (Teixeira, 2016, p. 131). Nas redes sociais, a publicização das imagens enquanto “provas” dessa transformação de si parece evocar a sustentação do testemunho: são mais válidos os discursos proferidos pelos indivíduos cujos resultados são mais exitosos. Nos grupos, as imagens que ilustram os testemunhos buscam apresentar o antes e depois dos procedimentos, ou seja, mostrar as transformações ocorridas nos corpos através da manipulação dos tecidos.
- 4 Influenciadoras(es) digitais são pessoas que utilizam as ferramentas de comunicação das redes socia (...)
8A partir do mapeamento do cenário das interações envolvendo cirurgia plástica nas redes sociais, no qual estivemos empenhadas nos últimos anos, a presença e o impacto dos diários de cirurgia passaram a nos chamar a atenção. O material audiovisual produzido por influenciadoras digitais brasileiras circula com frequência nos grupos que acompanhamos e são publicações que geram ampla interação entre as participantes. Levando em conta a relevância e o potencial desse tipo de mídia, nos dedicamos à análise de vídeos e depoimentos de influenciadoras digitais4 brasileiras que narram a realização de cirurgias plásticas nas plataformas YouTube e Instagram.
9O levantamento das fontes utilizadas na presente pesquisa iniciou-se em agosto de 2021, através de uma busca exploratória no YouTube, utilizando os termos “minha cirurgia”, “silicone”, “meu silicone”, “lipo LAD” e “diário da cirurgia”. Como esperado, foram obtidos centenas de milhares de resultados. Em virtude da experiência prévia nos grupos de pacientes que haviam realizado intervenções e da importância que os diários de cirurgia assumiam naquele contexto, optamos, a partir de então, por analisar os vídeos produzidos por influenciadoras digitais brasileiras. Assim, foram selecionados em um primeiro momento vídeos com no mínimo 500 mil visualizações, postados por influenciadoras que contavam com mais de 100 mil inscritos(as) no canal do YouTube e possuíam um perfil ativo no Instagram. Através desse critério, foram selecionados 53 vídeos, organizados em uma playlist com duração média de 14 horas.
10Optar por trabalhar com as duas redes sociais de forma conjunta não é um acaso. Consideramos que acompanhar as duas plataformas era interessante para compreendermos como se dá o fluxo de informações e a produção do conteúdo, tendo em vista que muitos vídeos do YouTube são produzidos através das demandas das usuárias no Instagram. As duas redes dispõem de funcionalidades diferentes, mas possuem um ponto de encontro importante: as imagens. Enquanto a primeira é composta por vídeos, a segunda se volta majoritariamente para as fotos. Além disso, possuem diferentes formas de interação entre produtora de conteúdo e público. No YouTube, a comunicação ocorre somente através dos comentários. Já o Instagram possibilita, além dos comentários, outras formas de interação, como os stories, as caixas de pergunta e enquetes.
- 5 O dia […] (2019), Qual foi […] (2019), Diário da minha […] (2018), Diário do silicone e da lipo […] (...)
- 6 O vlog é um formato específico de produção audiovisual e surge da junção dos termos “vídeo” e “blog (...)
11Por conta do volume extenso de material, optamos por um novo recorte, nos atentando à categoria “diário”, nas suas diversas variações, como “diário da cirurgia”, “diário da lipo” e “diário do silicone”, por exemplo. Foram selecionados, portanto, 14 dos 53 vídeos, de autoria de dez influenciadoras brasileiras.5 Foram incluídos os vídeos no padrão “vlog”6 ou cujo título destaca o formato “diário”. A partir do conteúdo desses vídeos, buscamos trabalhar em duas frentes. A primeira delas foi analisar o próprio conteúdo dos vídeos, buscando sintetizar os tópicos abordados, atentando para as categorias que já ganharam destaque na pesquisa anterior, como o “antes” e “depois” e o gerenciamento dos fluidos e da dor (Rohden; Cavalheiro, 2022). Em um segundo momento, passamos a acompanhar no Instagram os perfis das influenciadoras digitais cujos vídeos foram selecionados.
12Das dez autoras dos diários selecionados para análise, sete realizaram lipoaspiração ou lipoaspiração de alta definição (conhecida como lipo LAD) e cinco se submeteram a procedimentos nos seios, como implante de prótese de silicone e mamoplastia. Esse dado não surpreende, já que o aumento de seios e a lipoaspiração correspondem, respectivamente, ao primeiro e segundo lugar no hall dos procedimentos cirúrgicos mais realizados por mulheres no mundo, segundo os dados da ISAPS (The International Society of Aesthetic Plastic Surgeons, 2021). Em 2020, foram 1.601.713 de procedimentos de aumento dos seios com prótese de silicone e 1.300.020 procedimentos de lipoaspiração realizados no mundo. O que gostaríamos de destacar, entretanto, é o surgimento da lipo LAD. Este procedimento, também conhecido como lipo HD ou lipo 3D, se diferencia da lipo tradicional ao modelar o corpo, destacando ou criando um contorno corporal que enfatiza a musculatura, criando um efeito “definido”. A lipo tradicional evita criar “sulcos” no tecido e é utilizada para retirar a gordura que se encontra em camadas mais profundas da pele. Apesar de buscar melhorar o contorno corporal, extirpando o “excesso” de gordura, a lipoaspiração tradicional não é utilizada para modelar de forma tão específica o contorno corporal.
13Os diários de cirurgia são vídeos que reproduzem filmagens de diversos momentos de um procedimento cirúrgico, desde as primeiras consultas médicas até a recuperação completa. Ou seja, são marcados por diferentes temporalidades. Esses momentos distintos podem ser organizados de forma individual, em múltiplos vídeos, ou compilados em um registro único. No que diz respeito à motivação para a produção desse formato de conteúdo, as influenciadoras argumentam que consomem esse tipo de vídeo, e, portanto, acreditam que seus diários podem auxiliar outras mulheres interessadas em realizar os mesmos procedimentos.
14A fim de ilustrar a maneira pela qual esses relatos são construídos, combinaremos nesta sessão descrições da construção narrativa dos vídeos com transcrições de um dos diários analisados, representativo do formato de vídeo comumente reproduzido por outras influenciadoras, de autoria de Bruna Santina Martins. A paulista, também conhecida como Niina Secrets, possui formação nas áreas de fotografia e moda e atua profissionalmente como youtuber, influenciadora digital e empresária do ramo da beleza, acumulando parcerias com grandes marcas como MAC, Seda e Eudora. Seu canal no YouTube, criado no ano de 2010, conta com aproximadamente 3,9 milhões de assinantes. No Instagram, acumula 3,5 milhões de seguidores(as).7 No ano de 2016, compôs a famosa lista “Under 30” da revista Forbes, que elenca os(as) 30 jovens mais promissores(as) do Brasil com menos de 30 anos (Teizen et al., 2016).
- 8 Cabe ressaltar que no campo biomédico as intervenções cirúrgicas são classificadas em dois tipos: “ (...)
15O marco zero do diário comumente parte da manifestação do desejo por determinada intervenção cirúrgica. Nesse estágio, são relatadas as razões pelas quais determinado procedimento atuaria como uma solução para alguma insatisfação estética.8 Em seguida, alguns dos diários relatam o processo de busca e escolha de um(a) cirurgião(ã), que será responsável por realizar os procedimentos. Na totalidade dos vídeos selecionados, a escolha se deu por meio de indicações de amigas e/ou familiares que já foram clientes/pacientes do(a) cirurgião(ã).
16No período entre a escolha do(a) profissional e a realização do procedimento, existem uma série de encaminhamentos que precisam ser realizados. Entre eles, destacamos as consultas para definir questões centrais, como o tipo de cirurgia e a técnica empregada, a realização dos exames pré-cirúrgicos (de sangue e de risco cardíaco), a compra dos acessórios necessários para o pós-operatório, como cintas e meias de compressão, e a contratação de outros profissionais que prestarão serviços no pós-operatório, como enfermeiros(as), massagistas e fisioterapeutas. Essa série de tarefas e “burocracias” não são mostradas nos diários, somente citadas ao longo dos vídeos.
17O formato de diário mais comum se concentra, em especial, no dia da operação. Uma síntese das informações apresentadas pode ser consultada na Figura 1.
Figura 1. Síntese das informações apresentadas nos diários de cirurgia.
Fonte: Elaborado pelas autoras
- 9 Ver Mamoplastia […] (2017).
- 10 As citações apresentadas ao longo do artigo correspondem às transcrições realizadas a partir dos ví (...)
18Chegado o dia do procedimento, os vídeos iniciam com o momento da internação, que ocorre algumas horas antes da realização do procedimento. É comum destacarem o período em que se está de jejum e apresentarem os acompanhantes – mãe, companheiro ou amiga. Após a internação no hospital, a paciente dá entrada no quarto, onde pode aguardar a chegada do(a) médico(a) para realização das marcações cirúrgicas e a chegada do(a) anestesista, que vai prepará-la para a sala de cirurgia. Nesse momento inicial, o ambiente é de descontração. Algumas influenciadoras apresentam os acessórios de pós-operatório adquiridos, que devem ser levados para a sala de cirurgia. Em algumas situações, também é apresentada a mala preparada para a estadia no hospital, que varia entre algumas horas e poucos dias. Além dos acessórios de pós-operatório, as malas contêm itens básicos de higiene, medicamentos e roupas confortáveis para a alta. Niina compartilha9 esses detalhes ao narrar a realização de sua cirurgia de colocação de próteses de silicone:10
- 11 Optamos por não mencionar neste artigo os nomes de profissionais e clínicas citadas pelas autoras d (...)
Minha cirurgia estava marcada para as 10h, ele pediu pra gente chegar umas 8h da manhã, a gente acabou chegando mais cedo, umas 7h30. A gente chegou e foi para a área de internação, foi pro guichezinho pagar, assinar umas coisas e aí a gente esperou um pouquinho numa recepção até que alguém veio buscar a gente. A gente foi para um quarto provisório, só pra aguardar pra hora da cirurgia. Nesse quarto provisório veio um enfermeiro, conversou comigo, anotou numa ficha algumas coisas, se eu bebia, se eu fumava, se eu tomava algum remédio, peso, altura, e aí explicou todo o processo, como ia ser, que horas iam me buscar, pra onde o Gui e meus pais iriam nesse momento, enfim. Daí depois de um tempo chegou o anestesista e veio conversar comigo também, perguntou se eu já tinha feito alguma coisa. Muito simpático, me explicou que eu ia tomar uma anestesia primeiro no bumbum, pra eu ir mais relaxada, falou que muita gente ia dormindo com essa anestesia no bumbum até a sala de cirurgia, mas tinha gente que ia acordado, depende. E lá eu ia tomar a anestesia geral. […] Aí o primeiro moço que veio, o enfermeiro, levou o sutiã e meus exames, ele falou: quando for umas 9h, bota o seu, a sua camisolinha, que o médico cirurgião vai vir aqui te marcar e tudo. Deu 9h coloquei meu roupãozinho, coloquei umas blusas por cima porque a sala tava muito gelada, o quarto tava muito gelado. Quando foi umas 9h30, 9h45, chegou o doutor. Meu cirurgião é o dr. […],11 pediu pra eu tirar minha camisolinha, pediu pro meu pai e pro Gui saírem, pra eu ficar mais à vontade, e começou a me marcar. Aí é uma marcação doida, fiquei primeiro sentada na cama, bem retinha, marcou os peitos, usou uma reguinha pra fazer umas marcações. Aí ele falou: não é tudo que eu tô marcando que eu vou cortar, é só pra eu ter uma base. Que quando a gente deita, muda, né. Aí depois ele pediu pra eu deitar também, marcou algumas coisas e, enfim, foi super-rápido, já me vesti de novo e falou olha, a sua cirurgia vai atrasar porque ainda tão usando a sala e vai atrasar um pouco. Eu tava com muito sono, muito cansada, porque eu não dormi direito essa noite, não por ansiedade, porque eu tinha muita coisa pra resolver antes da cirurgia.
Aí eu dormi até umas 11h20, e aí chegou um outro moço, o primeiro moço que buscou meus exames, trouxe uma outra maca, que era a maca que eu ia pra cirurgia, pediu pra eu deitar na maca, deu uma injeçãozinha no meu bumbum. Não tenho medo de injeção, nem nada, mas não sei por que eu não gosto de injeção no bumbum. E aí uma moça já veio me buscar, pra ir pra cirurgia. Nisso dei tchau pra minha mãe, pro meu pai, pro Gui, comecei a dar uma leve chorada, porque eu tava bem nervosa, e chorei e tal. Mas a moça foi muito legal, ficou conversando comigo daqui até lá. Porque assim, esse hospital é muito grande, então foi muito longe. Eu entrei na sala de cirurgia, que, assim, é uma sala toda branca, com umas luzes em cima e o anestesista logo chegou e falou, olha, vou te dar a anestesia, vou achar uma veinha na tua mão, vou dar uma picadinha, e você já vai dormir. Gente, não tenho essa parte totalmente lúcida na minha cabeça, mas acho que foi assim que aconteceu […] ele pegou a agulhinha, e quando ele foi picar a minha veia, eu falei nossa que dor, doeu muito, ele – ah, eu usei uma agulha de criança, hein – até brincou assim. Nisso, quando ele foi injetar ardeu muito, doeu muito, aí uma outra moça, uma enfermeira, veio colocar no meu nariz e na minha boca assim, um negocinho que tem oxigênio né, e falou: respira, respira fundo e aí eu lembro de ter falado: eu não consigo, eu não consigo respirar. Respira! E apaguei.
19Após a marcação cirúrgica, o(a) anestesista e um(a) enfermeiro(a) do bloco cirúrgico preparam a paciente. O acesso venoso é inserido e a paciente deve retirar as suas roupas e vestir o avental cirúrgico. Filma-se a despedida entre a paciente e os(as) acompanhantes e a maca segue em direção ao bloco cirúrgico. Comumente nessa etapa o(a) acompanhante aparece no vídeo para relatar como foi a operação, o tempo de duração e como está sendo a recuperação imediata, se houve ou não uma reação à anestesia, se a dor está intensa, etc. Após acordar da sedação, a paciente retorna às câmeras e relata como foi a anestesia e as impressões da sala cirúrgica: se o ambiente estava gelado ou aquecido, como eram os cheiros, como foi o tratamento da equipe médica, quais eram as suas sensações ao adentrar o ambiente. O registro do pós-operatório imediato, assim que a paciente acorda da sedação, é o trecho mais breve por conta da dor e do uso de medicamentos, que deixam a paciente sonolenta:
Lembro que eu acordei em uma sala bem quentinha, não senti frio, e aí vinham de tempo em tempo falar comigo, mas eu não tava acordada assim, sabe, quando você tá num sono gostoso. Aí falavam: “Bruna, tá tudo bem?” E eu falava: “Dor, estou com muita dor.” E eu tava sentindo dor só nesse seio aqui, no direito, não sei por que, era uma dor aqui, mais nesse canto. Não lembro de como eu cheguei no quarto, só lembro que quando eu abri o olho assim tava minha mãe e o Gui. Até perguntei: “Mãe, cadê o pai?” Ele já tinha ido embora. “Dormi muito, né amor?” Eu acordava um pouquinho, via o que tava rolando, dormi. Ai a moça enfermeira trouxe um remédio pra mim, remédio assim o dia inteiro, esse é o meu momento mais lúcida. Assim que cheguei na sala já chegou comida, mas eu não queria comer, aí depois que parou um pouco a dor eu comi.
20Esses trechos ilustram como os vídeos tentam produzir uma impressão de proximidade entre suas autoras e quem está assistindo. A descrição do ambiente, a presença dos diferentes profissionais de saúde, a participação dos(as) acompanhantes, a expressão do nervosismo, da sonolência, do medo da injeção, da dor expõe uma certa intimidade envolvida na intervenção e agora compartilhada nos diários. Além disso, é de se notar também o uso de diminutivos e expressões que indicam, talvez, fragilidade e infantilização e também o grau de proteção e cuidado implícito nessa situação específica. Certamente, o fato de se tratar de pessoas conhecidas, que estão produzindo um conteúdo para ser divulgado, que podem estar sendo operadas com o patrocínio das clínicas, é capaz de influenciar na forma como as interações ocorrem. Apesar de apontar para esses indícios, não é nosso objetivo aqui analisar a situação da cirurgia em particular, mas atentar para as especificidades desse tipo de produção de conteúdo digital.
21O que buscamos argumentar é que longe de apenas retratar uma sequência de acontecimentos, esses vídeos também abordam aspectos subjetivos elaborados pelas mulheres ao longo da realização de procedimentos estéticos. Apresentam, portanto, uma série de sentimentos e sensações com as quais elas precisam lidar no período de pré e pós-operatório imediatos. Em relação aos sentimentos, destacam-se a angústia, a ansiedade, o medo e desconforto. Já em relação às sensações, sobretudo no pós-operatório, destacam-se a textura da prótese, no caso do implante das próteses de silicone, e, de forma mais geral, o inchaço. Outros momentos, como as primeiras semanas de recuperação, são relatados em vídeos posteriores e passam a compor esse conjunto de registros. O foco reside sobretudo em descrições das dores e dos cuidados necessários para uma boa recuperação, na mudança gradual do corpo que passa a ser observada ao longo dos dias, na alimentação e no ritmo intestinal, alterações na textura e oleosidade da pele e dos cabelos.
22Uma série de características particulares distinguem esses vídeos de outras formas de divulgação e interações envolvendo intervenções estéticas. A primeira delas se traduz pelo próprio título empregado nesse tipo de produção. Trata-se de um “diário”, forma que se vulgarizou na internet para relatar uma série de experiências variadas. Porém, é bom lembrar que, nos últimos séculos, o diário está associado à emergência de um novo tipo de expressão da individualidade, caracterizada pela autorreflexão e consciência de si, uma forma de escrita íntima que condensaria sentimentos e experiências pessoais. No caso dos diários de cirurgia, eles são produzidos para serem publicados e visualizados por qualquer pessoa com acesso à internet e destinados a produzir engajamento, ou seja, interação, com o máximo possível de seguidoras ou seguidores daquele perfil. Se o diário já foi anteriormente adjetivado como íntimo e pessoal, nesse caso trata-se de algo público e interativo por natureza.
23Podemos argumentar, então, que se trata de um diário no qual o privado se dissolve. Ou, pelo menos, uma certa ideia de privado como algo que não se compartilharia com muitas pessoas, de forma ampla e generalizada. No caso aqui tratado, se valoriza a ilusão, e também a própria promoção e venda, ou monetização, para usar um termo êmico, de que algo muito íntimo e exclusivo está sendo compartilhado. E, em certo sentido, é o que ocorre, já que se compartilham detalhes e momentos relativos a um procedimento cirúrgico que, até então, parecia estar restrito à privacidade do indivíduo ou apenas compartilhado com pessoas ou familiares muito próximos. Imagens em detalhes ou descrições emocionadas são agora apresentadas a milhões de seguidoras. Desse modo, percebe-se que se trata de um fenômeno muito particular, no qual não somente um relato sobre a vida cotidiana, por exemplo, mas aquilo que poderia ser definido como da ordem da intimidade, é filmado, digitalizado e transformado em conteúdo a ser divulgado na internet e nas redes sociais.
24Suas protagonistas, influenciadoras digitais, como se autodenominam, avançam na direção de disputar o terreno da “produção de conteúdo”, por meio deste novo estilo de narrativa. Diga-se de passagem que a própria expressão “produção de conteúdo” é bastante singular e indicativa de um novo momento de digitalização e publicização da vida via a internet e as redes sociais. Traduz, por um lado, a importância de se valorizar a autoria e a singularidade de quem seria capaz de apresentar algo original e relevante em um formato que possa ser amplamente divulgado. Por outro lado, parece funcionar também como um operador de distinção entre as milhares de pessoas que tentam se projetar, o excesso de projetos e conteúdos que, na grande maioria das vezes, não são vistos por quase ninguém. Inicialmente, todas essas pessoas seriam, em potencial, produtoras de conteúdo. Porém, só algumas, em função da projeção devida ao número de seguidores e seguidoras, passam a merecer a distinção de ser reconhecidas enquanto tal.
25No caso das influenciadoras aqui apresentadas e das suas narrativas de transformação, destaca-se a valorização de sua capacidade de narrar o investimento na transformação de si própria. E essa característica, de incorporar múltiplas formas de investimento, como recursos financeiros, de tempo, de dedicação a novas rotinas, tem se tornado uma característica importante de formas contemporâneas de aprimoramento de si. Aliás, essa dimensão se desdobra no fato de que essas mulheres vêm de uma trajetória mais longa de projeção de si, por meio de seus perfis nas redes sociais, na qual os processos de transformação corporal são um disparador importante das interações. E, ao mesmo tempo, está atrelada à possibilidade de que, por já terem um número muito grande de seguidoras e portanto uma certa projeção, podem ser associadas ao nome de clínicas e profissionais que realizam os procedimentos. Ou seja, há um investimento mais amplo, ou coletivo, que está sustentando e também dependendo das narrativas públicas expressas em produtos como os diários de cirurgia.
26Sendo assim, os diários de cirurgia se convertem em um tipo de conteúdo específico, no qual algo anteriormente pensado como do terreno privado passa a ser transmitido a um imenso número de pessoas que, por sua vez, demonstram interesse em acompanhar essas narrativas, seguindo esses perfis, vias os seus variados dispositivos. Isso só é possível, obviamente, em decorrência do fato de que a internet tem se tornado uma matriz extremamente potente na produção de sociabilidades no mundo contemporâneo. Os diários não existiriam se não houvesse um largo terreno já pavimentado, no qual se descortinam múltiplas possibilidades de interação e transformação das relações sociais.
27Inúmeras pesquisas têm mostrado a importância dessas transformações já desde algum tempo e a necessidades de práticas etnográficas que deem conta disso (Hine, 2015; Leitão; Gomes, 2017; Miller, 2012; Miskolci; Balieiro, 2018; Rifiotis, 2016; Segata; Rifiotis, 2016). Um foco pertinente para o caso visto aqui tem sido exatamente as interfaces entre imagens digitais e novas configurações de corporalidades, gêneros e sexualidades (Beleli, 2015; Beleli; Miskolci, 2015; Miskolci; Pelúcio, 2017). Além disso, o processo de digitalização da vida, especialmente no que concerne ao fascínio pela tradução de diferentes experiências cotidianas em números e produtos digitais, tem sido investigado nos estudos que se concentram em torno da “quantificação” de processos vitais e uso de diversos aplicativos de uso pessoal com este intuito (Lupton, 2015, 2016, 2019). Contudo, para a análise que fazemos aqui, os trabalhos que têm enfatizado a emergência de uma cultura digital pós-feminista, problematizando o papel das mídias sociais na produção de novas formas de autorrepresentação feminina no contexto neoliberal (Dobson, 2015), são particularmente relevantes e inspiradores e serão retomados ao final do artigo.
28Para além da já citada problematização de certas fronteiras, como a das dimensões pública e privada, gostaríamos de apontar para o fato de que os recortes na superfície do corpo, via as cirurgias, não podem ser entendidos em separado das imagens transmitidas nas telas dos dispositivos e vice-versa. Nesse sentido, apresentamos na próxima seção o caso paradigmático do diário da cirurgia de Virgínia Fonseca.
29A lipoaspiração de alta definição (lipo LAD) foi criada e patenteada pelo cirurgião plástico colombiano Alfredo Hoyos,12 que dedicou boa parte de sua carreira a diversos procedimentos de contorno corporal. Desde seu surgimento, a lipoaspiração de alta definição é acompanhada de diversas polêmicas no campo das cirurgias plásticas, associadas à falta de dados de segurança e eficácia do procedimento. Em 2019, a regional paulista da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica dedicou um dia inteiro da programação da 39ª Jornada Paulista de Cirurgia Plástica para discutir o procedimento, evento intitulado de “SuperBody – Lipo HD”. Hoyos foi convidado a participar, em conjunto de outros profissionais selecionados pelo Departamento de Eventos Científicos (DEC) da Regional São Paulo. O evento foi promovido pela Revista Plástica Paulista13 como uma “discussão de alto nível e inédita sobre este tema em um evento oficial da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica” (Cervantes, 2019, p. 15).
30Em 2020, em meio à pandemia da Covid-19, diversas influenciadoras digitais passaram a realizar o procedimento de lipo LAD. Dentre os diários de cirurgia selecionados, seis retratam o procedimento. Destes, cinco foram realizados em uma única clínica na capital do estado de São Paulo. Dentre estes, optamos por apresentar um exemplo paradigmático, a fim de contribuir com as análises propostas.
31Virginia Pimenta da Fonseca Serrão Costa, ou apenas Virgínia Fonseca, é youtuber, influenciadora digital e empresária. É proprietária de uma agência dedicada à carreira de influenciadores digitais, a Talismã Digital, e fundadora de três marcas: We Pink, de produtos para pele; By IK, de óculos de sol; e Maria’s Baby, de produtos para bebês. É casada com o cantor José Felipe Rocha Costa, conhecido como Zé Felipe, com quem tem duas filhas. Virginia iniciou sua carreira no Youtube em 2016, e hoje conta com 11,3 milhões de inscritos no seu canal. É uma das personalidades brasileiras mais seguidas, acumulando 26,1 milhões de seguidores no TikTok (Dias, 2021) e 41,9 milhões no Instagram.14
- 15 Ver Diário do silicone e da lipo […] (2018).
- 16 Ver Os 3 primeiros […] (2020).
32No ano de 2018, Virgínia publicou seu primeiro diário de cirurgia plástica, quando realizou uma lipoaspiração e fez a inserção de próteses de silicone nos seios. Na ocasião, foi acompanhada pela mãe e registrou o procedimento em um vídeo intitulado “Diário do silicone e da lipo: como reagi aos 3 primeiros dias!!!”,15 que conta com cerca de 5 milhões de visualizações. No vídeo, são registrados diversos momentos, desde o nervosismo antes de adentrar a sala de cirurgia, já com as marcações desenhadas no corpo, até o pós-cirúrgico imediato, a alta do hospital e os primeiros dois dias de recuperação, já em casa. Em 2020, durante a pandemia da Covid-19, Virgínia se submeteu a sua segunda lipoaspiração, e compartilhou a experiência no vídeo “Os 3 primeiros dias pós lipo LAD!!”,16 hoje com mais de 5 milhões de visualizações e 8 mil comentários.
33O diário da lipo LAD de Virgínia merece destaque sobretudo pela repercussão posterior de sua operação. Em vídeo publicado em 9 de outubro de 2020 (Estou […], 2020), a influenciadora compartilha com seus seguidores que engravidou apenas dez dias depois da cirurgia:
“Ah, Virgínia, você acabou de fazer uma lipo LAD.” Sim gente, eu fiz, e foi por causa disso que eu acho que eu acabei engravidando. Porque eu ia voltar a tomar meu anticoncepcional só que eu precisava ficar 30 dias antes da cirurgia sem tomar, então eu acabei não voltando e falei: “Ah, vou fazer cirurgia e depois da cirurgia, quando minha menstruação descer, eu tomo, eu coloco DIU.” E era isso que tava na minha cabeça. Minha menstruação atrasando, atrasando, e eu tipo véi, tá bom, tudo ok, porque quando eu fiz minha cirurgia dois anos atrás a minha menstruação também atrasou e eu também fiz o teste e deu negativo. Então eu falei assim: “Mano, não tô grávida, não tem como eu estar grávida, tô de boa. Menstruação atrasada por conta da anestesia geral, tá tudo certo.” E aí beleza, passou, cheguei em Goiânia, fiz o teste. Fiz aquele teste digital […] só pra tirar esse peso da consciência […] e deu não grávida. […] depois deu que eu estava grávida.
34Em comum acordo com a ginecologista e o cirurgião plástico, Virgínia pretendia engordar de seis a oito quilos durante a primeira gestação para “não perder a cirurgia”. A filha do casal nasceu em 30 de agosto de 2021, menos de um ano após a cirurgia plástica, e a influenciadora compartilhou com seus seguidores que o seu ganho de peso foi de cerca de 23 kg. Apenas dois meses após o parto, ela comemorou nos stories do Instagram os resultados na lipo LAD, novamente visíveis: “Olha ela voltando. Pensei que ia perder minha lipo por ter engravidado 10 dias depois de fazer e por ter ganhado 23 quilos na gestação, mas, com treino e alimentação, está voltando tudo. Foco” (Brito, 2021). A influenciadora foi uma das primeiras personalidades brasileiras a popularizar o procedimento. Seu “retorno” ao corpo esculpido pela operação, em especial após a segunda gestação, é referência não só para a clínica responsável pela cirurgia, que a intitulou como “musa LAD”, mas para uma ampla comunidade que deseja a intervenção. As fotos de “antes e depois” da influenciadora, ainda na mesa do centro cirúrgico, estão destacadas no perfil do Instagram da clínica, junto de trechos dos seus diários publicados no Youtube, stories compartilhando o pós-operatório e as fotos do corpo após as gestações. O procedimento, realizado por poucos cirurgiões no país, custa entre 40 e 100 mil reais.
35No contexto das intervenções estéticas narradas nos vídeos, e aqui ilustradas pelo caso de Virgínia, a interface entre telas e corpos torna-se algo imperativo. As imagens em foto e vídeo são um instrumento imprescindível em todo o processo. Aparecem já na fase de criação do desejo de realização da transformação corporal, por meio da coleção de imagens do que seria o contorno ideal a ser buscado. Mas também estão presentes nos momentos em que os cirurgiões demonstram como seria realizada a intervenção. E são centrais na apreciação dos resultados das cirurgias. Telas de computadores, tablets e celulares se tornam os instrumentos a materializarem as alterações (a serem) feitas nos corpos. É por meio desses dispositivos digitais que se projeta o redesenho do volume e da superfície corporal. Um jogo no qual diferentes dimensões vão sendo justapostas.
36Nas palavras de Jones (2017), trata-se de emergência de novas “superfícies expressivas”. De acordo com o argumento da autora, na era das mídias digitais, “peles e telas, antes tipos de superfície distintamente diferentes, estão se fundindo” (Jones, 2017, p. 29, tradução nossa). E é em decorrência dessa pressão por estar presente e participando das mídias que as peles, ou, poderíamos acrescentar, os corpos, vão se tornando obrigados a serem visualmente expressivos. Em sintonia com este processo, ocorre um movimento paralelo no qual as telas vão ganhando cada vez mais a capacidade de afetar as pessoas. Para Jones (2017), no contexto contemporâneo, os corpos idealizados passam a existir simultaneamente enquanto telas e peles, enquanto imagens e realidades que afetam, configurando uma nova fusão de “superfícies expressivas”.
37Em sintonia com esse argumento, sugerimos, ainda, que os diários indicam o esgarçamento de uma concepção de subjetividade altamente fechada ou circunscrita, caracterizada pelo privilégio a uma compreensão de si baseada em uma individualidade e singularidade subjetiva e corporalmente preestabelecidas. Longe disso, podemos reconhecer nesse material a expressão de uma compreensão e apresentação pública de si que revela a incorporação de atributos ou recursos, a princípio, externos ao sujeito. Ou seja, quando as influenciadoras narram as suas experiências, indicam como as transformações corporais fazem parte de um projeto de aprimoramento pessoal que inclui a incorporação de técnicas, substâncias, próteses como algo necessário à sua efetivação. E tudo isso é descrito como inerente e necessário à sua plena realização pessoal, à conquista da autoestima, ao alcance do corpo que, finalmente, estaria adequado à sua autoimagem.
38Para melhor desenvolver esse argumento é preciso introduzir uma discussão a respeito do significado das transformações e sua relação com o que seria “natural” ou “artificial”. As formas pelas quais mulheres têm descrito as experiências de intervenção cirúrgica e a relação com as próteses, por exemplo, indicam um rompimento com a ideia de um compromisso com a natureza ou a manutenção de um aspecto de “naturalidade” no resultado das cirurgias. Em uma investigação que trata da percepção de participantes de um grupo na rede social Facebook sobre o uso de próteses de silicone nos seios, ficou evidente que muitas preferem uma reconfiguração corporal que revele os investimentos feitos. Chegam a dizer que, longe de resultados “naturais”, preferem que sejam “marcados”, indicando um valor atribuído ao “artificial” enquanto característico do próprio investimento pessoal e financeiro, no processo de transformação (Rohden; Silva, 2020).
39Nesse sentido, podemos argumentar que está em cena uma concepção de subjetividade que se abre para o rompimento, ou pelo menos para o esgarçamento, de uma noção fechada de “natureza” corporal como destino. Também as influenciadoras aqui citadas insistem em apresentar uma noção de corpo como algo passível de modificações, em busca de sua correspondência com os ideais de beleza e perfeição nos quais acreditam. Não identificamos, por exemplo, a referência ao que seriam padrões “naturais” a serem buscados, mas, de forma distinta, vemos o privilégio à capacidade de transformação e adequação conforme os projetos idealizados. Técnicas apresentadas como inovadoras, exclusivas, de ponta parecem se coadunar muito bem com as expectativas de produção de um novo corpo para além do “normal”. A fabricação de músculos feita na lipo LAD, por exemplo, ilustra essa nova disponibilidade de transformação que não está comprometida com os limites do que seria “natural”.
40É certo que nesses projetos parâmetros tradicionais de gênero, sexualidade, raça/etnia, classe social e privilégio à juventude estão em cena, configurando o que em nossa sociedade tem caracterizado historicamente os ideais associados ao feminino. Mas o que queremos destacar é que também está presente uma novidade, que seria a noção de um corpo a ser modificado (algo que em si certamente não é novo), que não precisaria esconder o processo de transformação. Longe de uma espécie de recuperação da beleza ou perfeição “natural” que marcaria certas privilegiadas por nascimento, as narrativas enfatizam exatamente o valor do processo de investimento em busca da própria capacidade pessoal de realização de um projeto de “perfeição”. O investimento passa então a ser central para caracterizar esse tipo de processo de aprimoramento de si. Contudo, esse fenômeno revela ainda o quanto as fronteiras entre natural e artificial vão sendo fragmentadas.
41Neste momento, vale fazer uma referência especial à lipo LAD enquanto procedimento que mais vem chamando a atenção e sendo foco dos diários de cirurgia. Entre suas particularidades, trata-se de uma forma de redesenho dos contornos corporais que cria a percepção de desenvolvimento muscular, que seria característico de quem teria arduamente “trabalhado” o corpo via exercícios físicos. Sendo assim, não só temos aí um caráter protético desses “músculos” que, na verdade, são apenas camadas de gordura adicionadas e que imitam o desenho dos músculos. Há também essa espécie de mimetização do trabalho corporal e toda a ascese, envolvendo não só os exercícios, mas alimentação, cuidados com o sono, etc., exigida para ter resultados significativos e visíveis. Essa artificialidade que, portanto, qualifica a lipo LAD, não parece ser um problema. Muito pelo contrário, parece indicar que, para aquelas que dispõem de projeção e capacidade de investimento – em vários sentidos, mas especialmente o financeiro – haveria um outro caminho a seguir. Não aquele dos longos treinos e privações e busca da construção de um corpo “naturalmente” musculoso, magro e modelar – única via para quem não dispõe de muitos recursos. Mas sim aquele que, por meio de investimentos e parcerias, prometeria resultados rápidos e precisos como decorrência do trabalho de cirurgiões renomados e muito bem remunerados. Embora, obviamente, as cirurgias envolvam dedicação, certas privações e cuidados, especialmente no pós-operatório, são prioritariamente descritas nos vídeos como intervenções eficazes e que transformam quase que magicamente os corpos nos modelos desejados e projetados nos desenhos apresentados pelos cirurgiões.
42Nada nesse processo parece remeter à possível desqualificação dessas práticas de apresentação de si e transformação corporal por seu caráter “artificial” ou deslocado de um compromisso com qualquer espécie de “verdade” subjetiva interiorizada. Não se trata de um modelo de subjetividade em que se privilegia um discurso em torno de valores como “verdade interior” ou mesmo a busca por uma “natureza” original a ser resgatada (Heyes, 2007). Trata-se, muito mais, de uma perspectiva que se singulariza por sua capacidade de associação de múltiplas formas ou estratégias de transformação de si, em busca dos ideais projetados, e que se dá nas telas, nas peles, nos tecidos corporais, nas narrativas que contam uma experiência de investimento que teria dado resultados plenamente satisfatórios.
43Para entender esse fenômeno, certamente a ideia de uma plasticidade corporal, articulada a novas possibilidades biotecnológicas (Clarke et al., 2010), é bastante importante. Mas é possível ir um pouco mais adiante e refletir acerca das singularidades expressas nesses novos projetos de transformação de si que se deslocam de um compromisso com o “natural”. Para tanto, é preciso reconhecer que estamos diante de uma separação entre o que seria “normal”, e mesmo ideal, mas que pode ser feito, fabricado, conquistado, e o que seria pensado como “natural”, primário, ou original, que vai perdendo importância. Trata-se da emergência de uma perspectiva que admite uma ideia de natureza que é sujeita a modificações. Quando o natural, pré-dado, original, não atinge as expectativas, pode ser readequado. Rompe-se com uma contraposição binária entre natural-normal-desejável por um lado, e artificial-anormal-desvalorizado (na medida em que seria resultado de trabalho e manipulação e não de alguma espécie de essência ou herança), por outro. A essa altura, fica evidente que o termo artificial, em sua possível conotação negativa, não serve mais para indicar o que está em jogo. Artificial ou sintético podem ser as próteses ou recursos que se usam para produzir um novo normal idealizado. Esse padrão ideal pode não mais se confundir com uma normalidade-natureza original ou primária.
44Os novos projetos de realização pessoal passam por ser capaz de possuir ou adquirir os recursos necessários aos empreendimentos de transformação. Dispor de recursos que permitam conhecer e contratar os profissionais, as clínicas e todos os meios necessários às intervenções cirúrgicas seria o caminho para garantir o sucesso do projeto que se traduziria em resultados rápidos e eficazes. Além disso, é importante considerar que, entre os resultados pretendidos ou alcançados, teríamos não somente a conquista das modificações esperadas e percebidas “imediatamente” na superfície corporal. Está em cena também a satisfação pessoal por sido capaz de realizar o projeto de investimento em si própria. Podemos argumentar que se trata de um processo que sintetiza, aglutina ou incorpora uma série de elementos distintos na composição do que seria essa nova pessoa “plenamente realizada” em razão das transformações operadas. Ao que parece, estaríamos diante da conformação de modos de aprimoramento pessoal e de apresentação de si que poderiam ser compreendidos pela referência a uma espécie de “subjetividade sintética” (Rohden, 2021b).
45O termo sintético, nesse sentido, remete, em primeiro lugar, à ideia de síntese, composição ou mesmo engajamento corporal-subjetivo. Trata-se de uma síntese que pode se caracterizar pela aglutinação de diferentes tipos de elementos, a princípio, reconhecidos como externos ao indivíduo e seu corpo (como próteses, recortes na própria carne ou mesmo o uso de substâncias químicas). Entra em jogo uma noção de subjetividade incorporada que se qualifica ou se distingue por essas incorporações, composições ou acréscimos. O que nos parece original é que esse processo de adição ou transformação, que pode ocorrer via a incorporação de elementos protéticos, não “originais” ou “naturais”, passa a ser valorizado em si mesmo, exatamente por suas características aditivas. E pela capacidade de mobilização desses diferentes recursos por parte de quem está empreendendo o projeto de transformação.
46Por fim, a chave de leitura via a noção de subjetividade sintética também poderia ser pensada para refletirmos acerca de junção entre peles e telas. As imagens nas telas de diferentes dispositivos e em diferentes etapas do processo de decisão, realização e publicização das intervenções cirúrgicas também comporiam esse processo, adicionando mais camadas ou complexidades às novas formas de síntese subjetiva. Como já indicamos, o fenômeno dos diários de cirurgia só existe por meio da interação entre as muitas expectativas e interesses envolvidos e a sua possibilidade de materialização via as redes sociais. E, de forma mais específica, os desenhos nos corpos são dependentes das imagens produzidas nas telas e estas são, por sua vez, coproduzidas e coproduzem as próprias intervenções cirúrgicas nos corpos.
47Como tentamos demonstrar, os diários de cirurgia constituem um fenômeno inovador e que nos leva a várias possibilidades de entendimento acerca de suas tantas interfaces. Além das já mencionadas, torna-se imprescindível fazer referência ao peso da dimensão de gênero, especialmente no que se refere à interseção entre as transformações corporais e subjetivas e ao posicionamento assumido pelas influenciadoras ao expor as suas experiências.
48No caso dessas e de tantas outras mulheres que relatam publicamente as suas experiências com as cirurgias estéticas, o desejo de mudança no corpo é apresentado como um meio de chegar à realização de si, à satisfação pessoal, à melhoria da autoestima, a se reconhecer na própria anatomia ou na própria pele. A busca pela transformação, portanto, se dá mediante um processo de escolha e de muitos investimentos. Podemos afirmar que se percebe um certo tipo de agência efetiva por parte de suas autoras. Porém, ao mesmo tempo, é preciso situar os limites concretos que condicionam as escolhas feitas.
49Esse dilema tem sido alvo de estudos do campo de gênero e feminismos atentos a múltiplas e diferentes formas de agência e “empoderamento” por parte de mulheres que, muitas vezes, destoam do ideário feminista, vinculado à luta coletiva e ao rompimento com os mecanismos de opressão e desigualdade. Os recentes estudos críticos em torno do pós-feminismo têm caminhado nessa direção e são particularmente relevantes aqui porque se dedicam de forma particular às mudanças expressas na mídia cultural, internet e redes sociais (Dobson, 2015; Dobson; Kanai, 2019; Gill, 2007; McRobbie, 2015; Riley et al., 2017). Para esse conjunto de estudiosas, o termo “pós-feminista” indica a conformação de uma rede de valores comuns circulando em torno da ideia de que as mulheres, sobretudo a partir do início do século XXI, já teriam ultrapassado as demandas trazidas pelos movimentos ou ondas feministas anteriores. Para muitas mulheres, as demandas feministas como liberdade, autonomia, capacidade de trabalho já teriam sido alcançadas e estariam garantidas. A partir dessa percepção, passam a se concentrar nas demandas individuais e nos projetos de realização de si, abandonando qualquer discussão mais coletiva e procurando se distanciar do que seria eminentemente “político”. Conforme McRobbie (2015), o privilégio ao individual, ao consumo, ao aprimoramento e aos valores neoliberais caracterizariam essa nova percepção de si como uma mulher “empoderada” e dotada de escolhas e agência próprias.
50Essa argumentação é bem desenvolvida na obra Postfeminist digital cultures: femininity, social media, and self-representation. Nesse livro, Dobson (2015), propõe que a objetificação contínua e proeminente dos corpos femininos na cultura visual ocidental passaria agora a ser enquadrada como uma escolha ou resultado da agência das próprias mulheres. Aquilo que poderia ser criticamente reconhecido como um processo de objetificação é percebido por alguns grupos de mulheres como uma conquista. Esse seria o caso, por exemplo, quando tentam adequar o seu corpo, via inúmeros procedimentos estéticos, aos padrões tradicionais de beleza e feminilidade. Em outro trabalho, Dobson e Kanai (2019) propõem que as redes sociais serviriam de forma fundamental a essa objetificação de si, por meio da incorporação de padrões modelares de uma estética corporal altamente disciplinada pelo gênero.
51Além disso, um aspecto significativo apresentado por esses trabalhos diz respeito a como a feminilidade passa a ser circunscrita enquanto uma propriedade eminentemente física, produzida através de práticas que exigem autovigilância e trabalho corporal relacionado à aparência, tornando o corpo o local do sucesso e da identidade da mulher. Para Gill (2007), trata-se de uma reafirmação da diferença de gênero e do essencialismo biológico que traduziu as preocupações e prazeres tradicionais femininos em torno da aparência e do consumo, como sendo escolhas naturais das mulheres contemporâneas. De acordo com a autora, essas características de uma sensibilidade pós-feminista encorajaram as mulheres a se considerarem livres, seletivas e capacitadas, ao mesmo tempo que limitaram suas escolhas em relação ao trabalho corporal, privilegiando o consumo de práticas restritivas de aperfeiçoamento estético.
52Esses argumentos nos parecerem absolutamente pertinentes para considerar o caso das influenciadoras aqui mencionadas e das autoras de tantos outros vídeos. O fato de se apresentaram já como mulheres de sucesso, capazes de “influenciar”, de ter milhões de seguidoras, de terem seus perfis associados à venda de muitos produtos permite identificar esse papel de mulher “empoderada”. Lutas coletivas por acesso a direitos, oportunidades de trabalho e remuneração não são questões em cena. Mas sim a plena realização pessoal que parece, no caso dos vídeos, se expressar na capacidade de adequação corporal aos padrões desejados. Ou seja, um privilégio ao corpo e a valorização de ideias de beleza e feminilidade como lócus de satisfação e produção subjetiva que, por sua vez, só se efetivam plenamente por meio de sua publicização nas redes sociais.
53Os diários de cirurgia que apresentam a realização das lipoaspirações de alta definição permitem, portanto, identificarmos novas justaposições ou combinações entre imagens nas telas e contornos dos corpos, novos “músculos” que são criados pelas mãos dos(as) cirurgiões(ãs) em algumas horas, novas noções de aprimoramento e realização pessoal que passam pela capacidade de investimento, promoção do próprio perfil e sucesso na produção de engajamento com seguidoras e seguidores. Esses são apenas alguns focos pelos quais tentamos demonstrar a especificidade dos diários de cirurgia. Contudo, é preciso ainda ressaltar que esse fenômeno de digitalização de uma experiência de transformação corporal e, de alguma forma, também subjetiva, como é o caso das intervenções cirúrgicas descritas, só existe em virtude do peso que a internet e as redes sociais têm na vida contemporânea.
54Nesse ponto, não se trata simplesmente de dizer que esses diários não existiriam sem as redes sociais. Porém, em um sentido mais forte, afirmar não somente que essas redes têm se tornado mecanismos fundamentais de produção das sociabilidades ou trocas de informação sobre os mais variados recursos, mas que também estão coproduzindo novos caminhos de produção de subjetividade. No caso específico analisado, trata-se de reconhecer o surgimento de formas de concepção e apresentação de si, que envolvem a publicização de transformações corporais via as intervenções cirúrgicas estéticas e a elaboração de narrativas de investimento e sucesso que só se tornaram possíveis por meio do dispositivo de divulgação de vídeos nas redes sociais. Muitos fatores, portanto, caracterizam a existência desse fenômeno e ilustram a sua complexidade. Da mesma forma, assim como muitos outros processos distintos de digitalização da vida, as suas repercussões e consequências constituem-se como um vasto e complexo caminho ainda a ser explorado.