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Ensaio sobre o Tema

Etnografias do digital: um futuro mal distribuído na antropologia

Ethnographies of the digital: an unevenly distributed future in anthropology
Theophilos Rifiotis, Maria Elisa Máximo e Jean Segata

Resumos

O ensaio destaca a pluralidade de eleições etnográficas que descrevem e analisam o digital e suas formas cada vez mais complexas de constituir a vida. Nas últimas décadas, a antropologia tem problematizado, por diferentes caminhos, a concepção de social ou sociedade como sendo a reunião de indivíduos humanos e seus modos de representação, ação, convivência e pertencimento. Isso inclui a emergência de coletivos situacionais e contingentes, definidos, por exemplo, pela partilha de moléculas, por códigos binários e genéticos, ou pela combinação de dados minerados por algoritmos. Ainda que projetadas como globais, essas tecnologias encontram resistência e mobilizam interesses difusos, ganhando novos contornos nas práticas localizadas. Computadores pessoais e softwares de modelagem, aplicativos e redes sociais da internet, algoritmos e DNA, inteligência artificial e organismos geneticamente modificados constituem um amplo e complexo amálgama que intersecta tecnologias digitais e da vida. Elas dão forma a mundos múltiplos, modulados por combinações matemáticas, técnicas, arranjos e transformações biológicas. Um futuro que já está presente há algum tempo, embora mal distribuído, seja nas formas emergentes de constituição do social ou nas antropologias interessadas nela.

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1“O futuro já está aqui; ele só não está igualmente distribuído.” Frequentemente atribuída a William Gibson (1984), autor renomado de ficção científica e conhecido pelo influente romance Neuromancer, essa frase é uma síntese poderosa do desafio apresentado às etnografias do digital. Seja o que for que Gibson imaginasse como futuro, ao longo deste trabalho ele é representado pelo digital – uma presença simultaneamente pervasiva e desigual na vida cotidiana, lançando desafios persistentes e igualmente mal distribuídos para a antropologia.

2O digital resume o conjunto fragmentado e irregular das chamadas tech. Estas incluem as formas emergentes de produção da vida por meio de inovações relacionadas a computadores e engenharia genética. Computadores pessoais, softwares de modelagem, aplicativos e redes sociais da internet, algoritmos e DNA, inteligência artificial e organismos geneticamente modificados constituem um amplo e complexo amálgama que intersecta tecnologias digitais e da vida. Elas dão forma a mundos múltiplos, modulados por combinações matemáticas, técnicas, arranjos e transformações biológicas. Tecnossocialidade e biossocialidade, para usar a fórmula de Escobar (2016), compõem mundos complexos e mal distribuídos. Embora o digital seja projetado como global, frequentemente se restringe às geografias mais desenvolvidas do Norte Global e a grupos socioeconômicos mais privilegiados em outras partes do planeta. Esses grupos têm o privilégio de experimentar e influenciar as inovações tecnológicas, enquanto muitas outras populações são paradoxalmente “experimentadas” por elas, enfrentando desafios básicos de infraestrutura e tendo acesso limitado aos benefícios dessas tecnologias, ao mesmo tempo que são cada vez mais dependentes delas. Não é por menos que as tech encontram resistência, mobilizam interesses difusos e ganham novos contornos nas práticas localizadas ou em situações extraordinárias, como foi o caso da pandemia de Covid-19.

3Nas últimas décadas, a antropologia tem problematizado, por diferentes abordagens, a concepção de social ou sociedade como sendo apenas a reunião de indivíduos humanos e seus modos de representação, ação, convivência e pertencimento. Isso inclui a emergência de coletivos situacionais e contingentes, definidos, por exemplo, pela partilha de moléculas, códigos binários e genéticos, ou pela combinação de dados minerados por algoritmos. A abordagem etnográfica defendida neste trabalho trata a produção e o governo da vida trazendo o digital para o primeiro plano da análise antropológica. Ela destaca as escolhas políticas implicadas nas experiências concretas com essas tecnologias e seus efeitos cada vez mais pronunciados nos modos de pensar e viver a sociabilidade e a política, o trabalho e a economia, o ensino, a aprendizagem e a atenção, e até mesmo o corpo, a alimentação, a saúde, a agricultura e o meio ambiente.

4Considerando o complexo quadro das tecnossocialidades e biossocialidades que se desenha a partir da análise antropológica, a primeira seção do artigo explora justamente a percepção de que o debate sobre as etnografias digitais vai além das noções tradicionais de ciberespaço e cibercultura, embora as formulações ficcionais de William Gibson continuem inspiradoras. Esse entendimento é fundamental, pois revela uma abordagem mais ampla e etnográfica na antropologia do digital. Enquanto os campos da comunicação e da educação frequentemente se concentraram na utilização da internet e de tecnologias digitais como ferramentas para disseminação de informação e aprendizado no contexto da cibercultura, as políticas etnográficas no campo digital enfocam desafios que intersectam tecnologias computacionais e o próprio governo da vida. Esse enfoque considera o modo como essas tecnologias remodelam não apenas as formas de comunicação, mas também as práticas sociais, as identidades, as relações de poder e a produção contínua de subjetividades.

5Na segunda seção do artigo, a influência de autores como Arturo Escobar e Bruno Latour é revisitada para reforçar o manifesto central do ensaio, concentrado nas “políticas etnográficas” (Rifiotis; Segata, 2019; Segata; Rifiotis, 2016, 2018). Essas políticas destacam as escolhas metodológicas fundamentais na prática antropológica, propondo uma abordagem crítica que transcende a análise da internet para incluir as complexas relações entre humanos, animais, plantas e redes sociotécnicas. Essa perspectiva desafia visões tradicionais do digital, ao revelar a complexidade subjacente e muitas vezes invisível na cibercultura e no pós-humanismo. Ao abordar esses temas, a antropologia do digital se aventura em um campo atravessado por múltiplas formas de hibridizações e simetrizações, onde a interação entre tecnologias e biossocialidades ocorre de maneiras inovadoras e complexas na análise antropológica muito antes e para além da cibercultura. De fato, a defesa das políticas etnográficas está em permanente diálogo com questões que emergem de etnografias de outros contextos e interesses, como aquelas das populações melanésias e das ameríndias, da ciência e da tecnologia, dos estudos multiespécie, entre outras, que inspiram diretamente a teoria antropológica, sobretudo no que se refere às formas de agência, regimes de saberes e de formação de coletivos mais que humanos. Em outros termos, o projeto de políticas etnográficas que está na gênese dessas etnografias do digital procura

[…] trazer para o debate distintas perspectivas teóricas e empíricas sempre com o objetivo de cartografar as políticas etnográficas que se inscrevem no campo e de destacar a pluralidade de eleições etnográficas que fundamentam os distintos modos de conduzir e de produzir a etnografia. Assim, seguimos procurando contribuir com o vasto projeto de renovação da antropologia, explicitando, desta vez, as controvérsias em torno do estudo antropológico das moralidades e consolidando uma agenda de pesquisa em torno das políticas etnográficas em jogo no fazer antropológico contemporâneo (Rifiotis; Segata, 2019, p. 7).

6Finalmente, o ensaio efetivamente “volta para o futuro” para destacar a integração crescente, ainda que silenciosa e desigual, das tecnologias digitais na vida cotidiana e na pesquisa antropológica. Essas transformações ilustram uma jornada em que o futuro previsto se materializa em um presente continuado que expressa um ciclo de aprendizado com os desafios empíricos, teóricos e metodológicos, ao mesmo tempo que redefine a posição da disciplina no universo do digital e nas suas interseções com as antropologias da ciência, da técnica e da tecnologia.

Mais além do ciberespaço e da cibercultura

7Quem está familiarizado com trabalhos que analisam a emergência das tecnologias digitais sabe o quanto termos como ciberespaço e cibercultura ocupam uma posição central no debate. No Brasil, assim como em outros lugares, eles se tornaram não apenas sinônimos de um tema ou campo de estudos, mas também de uma nova dimensão da realidade envolvendo computadores, internet e um imaginário entre punk e ficção científica, que conformou os interesses de diferentes disciplinas.

8O termo “ciberespaço” foi popularizado por William Gibson (1984), especialmente em sua obra Neuromancer, e refere-se a um espaço virtual interconectado criado e sustentado pela infraestrutura da internet e dos sistemas computacionais. Nas palavras do autor:

Ciberespaço. Uma alucinação consensual experimentada diariamente por bilhões de operadores legítimos, em todas as nações, por crianças aprendendo conceitos matemáticos… uma representação gráfica de dados abstraídos dos bancos de todos os computadores no sistema humano. Complexidade impensável. Linhas de luz dispostas no não espaço da mente, aglomerados e constelações de dados. Como luzes da cidade, recuando (Gibson, 1984, p. 43, tradução nossa).

9A definição de ciberespaço apresentada na ficção de William Gibson teve um impacto profundo em uma geração dedicada a analisar as transformações relacionadas ao uso de computadores e outros dispositivos conectados à internet. Ela estabeleceu a ideia de um “novo espaço”, que materializou a sensação de transcendência das fronteiras físicas entre pessoas, organizações e sistemas. Notadamente no caso brasileiro, em disciplinas como a filosofia, a antropologia e a sociologia, o ciberespaço tornou-se “um lugar” para o desenvolvimento de uma “cibercultura”, um campo de pesquisa voltado para explorar as interações sociais, culturais e tecnológicas na chamada “era digital” (Lemos, 2003; Rifiotis et al., 2010). Em outras áreas, como comunicação e educação, o ciberespaço emergiu como um novo meio de comunicação e expressão, revolucionando tanto a produção e o compartilhamento de informações quanto o processo de ensino-aprendizagem, por meio da “inteligência coletiva” (Lévy, 1996).

10Da literatura de ficção de William Gibson, a noção de ciberespaço expandiu-se para expressar a geografia de um mundo digital emergente. Essa ideia visionária, inicialmente concebida como parte de uma narrativa futurística, começou a materializar a noção de que fronteiras físicas se dissolveriam, abrindo caminho para uma nova dimensão de interação: a cibercultura. Desde os anos 1980, a cibercultura tem representado um conjunto complexo de práticas, atitudes e valores. Esse fenômeno foi amplamente analisado por uma variedade de autores e autoras, cujas obras exploram diferentes aspectos da interação entre humanos e tecnologias digitais. Entre esses aspectos, estão a maneira como as redes digitais possibilitaram a interconectividade global, transformando relações sociais, econômicas e políticas (Castells, 1996, 1997, 1998), a redefinição de noções tradicionais de comunicação e sociedade através da investigação de comunidades online emergentes (Rheingold, 1993), a produção, negociação e apresentação de identidades na interação com computadores e no ciberespaço (Kondo, 1990; Turkle, 1996), a cultura do remix, criatividade coletiva e as novas formas de propriedade intelectual digital (Lessig, 2008), bem como questões de produção e consumo (Benkler, 2006), desafios de segurança e privacidade na era digital (Solove, 2008), e preocupações como desigualdade no acesso à tecnologia e os impactos na saúde mental (Carr, 2010).

11Para a comunicação, e particularmente nos estudos de mídia no Brasil, a noção de cibercultura tornou-se extremamente relevante. Durante os anos 1990, ganharam força as correntes que propunham uma abordagem centrada na noção de comunicação orquestral, que ultrapassava o modelo tradicional de emissor e receptor, incentivando a produção coletiva de conteúdo e o engajamento ativo da audiência. A concepção orquestral, influenciada por teóricos da chamada Escola de Palo Alto, e refletindo os trabalhos de acadêmicos como Gregory Bateson e Erving Goffman, pressupõe que a comunicação seja uma atividade social na qual os sujeitos participam valendo-se de múltiplos modos verbais e não verbais, sem a determinação por uma intencionalidade prévia que defina a cooperação ou sem uma regência e partituras que ditem as suas interações. Nessa perspectiva, a comunicação é uma produção coletiva, contingente e relacional. Destacadamente referenciado entre entusiastas da cibercultura na comunicação está Yves Winkin (1981), que reuniu em sua obra La nouvelle communication diversos trabalhos que exploravam a metáfora da orquestra para descrever um modelo mais colaborativo e menos hierárquico, onde vários participantes contribuem de maneira harmoniosa para o processo comunicativo.

12Paralelamente, Pierre Lévy se destacou nos estudos de mídia e na educação, especialmente no âmbito da cibercultura. No livro intitulado Cibercultura, Lévy (1999) apresentou o ciberespaço não só como um espaço digital ou físico, mas como uma extensão do conhecimento humano, um ambiente onde a informação é acessível e democratizada. Ele descreveu esse espaço como um território emergente, que transcende barreiras físicas, facilitando a comunicação e a colaboração global focando na inteligência coletiva e explicando por meio dessa categoria como o ciberespaço permitiria que indivíduos em diferentes localizações geográficas colaborassem e compartilhassem conhecimento (Lévy, 2003).

13Nesse contexto, as ferramentas da internet abriram caminho para chamadas novas formas de comunicação, que seriam próprias da cibercultura, notadamente através do surgimento de plataformas amigáveis para a produção e veiculação de conteúdo, como os blogs e, mais tarde, em meados da primeira década dos anos 2000, as redes sociais (Hine, 2000; Jenkins, 2006; Máximo, 2006; Miller; Slater, 2000). Embora não se resumam a “canais de informação”, essas plataformas, surgidas no final dos anos 1990, revolucionaram a comunicação e a educação, com a promessa de democratizar a criação e o compartilhamento de informações. Blogs e outras ferramentas similares permitiram que “indivíduos comuns” se tornassem produtores ativos de conteúdo, desafiando o monopólio dos grandes veículos de comunicação.

14Fortaleceu-se, assim, um campo de pesquisa construído sobre uma paisagem midiática mais diversificada e participativa. Portanto, não é surpreendente que, no Brasil, a comunicação tenha se tornado uma disciplina quase hegemônica nos fóruns de discussão sobre cibercultura. A interseção da comunicação com as tecnologias digitais e a emergente cibercultura criou um terreno fértil para debates e pesquisas nessa área. Essa tendência foi cristalizada com a fundação da Associação Brasileira de Pesquisadores em Cibercultura (ABCiber) em 2006.

15A criação da ABCiber marcou um ponto de virada significativo, reconhecendo formalmente a importância da cibercultura como um campo de estudo legítimo e enfatizando a necessidade de uma abordagem interdisciplinar para sua compreensão. A ABCiber rapidamente se tornou um espaço vital para acadêmicos e profissionais dedicados ao estudo da interação entre comunicação, tecnologia e cultura na chamada “era digital”. Com ênfase na pesquisa e no diálogo sobre temas como identidade digital, comunicação orquestral e democratização do acesso e produção de conteúdo, a ABCiber desempenhou, nos seus primeiros anos, um papel crucial no avanço da reflexão crítica e na formulação de discursos sobre a cibercultura no Brasil. Sua influência se estendeu para além das fronteiras acadêmicas, impactando a maneira como a cibercultura era percebida e discutida em contextos mais amplos, que incluem políticas públicas, educação e indústrias criativas e do entretenimento. Tal processo demonstrou o engajamento e a dinâmica da pesquisa desenvolvida no Brasil em face das “novidades” trazidas pela “era digital”, não apenas adotando novas tecnologias, mas também desenvolvendo um discurso crítico e inovador sobre seu impacto na sociedade.

16A despeito da grande importância atribuída às noções de ciberespaço e cibercultura em fóruns como a ABCiber, sua exaltação como sinônimos da era digital é considerada limitada na perspectiva antropológica defendida neste ensaio. Há diversas razões para essa contestação, sendo duas particularmente notáveis: a primeira diz respeito à concepção do ciberespaço e da cibercultura meramente como novos meios de comunicação e informação. A segunda razão é a tendência de restringir o conceito do digital aos computadores e dispositivos conectados à internet, sem levar em conta as formas mais amplas pelas quais ele se manifesta na interseção entre tecnologias computacionais e aquelas relacionadas à manipulação da vida. Nesse cenário, torna-se evidente a má distribuição do futuro entre os diversos interesses em pesquisa, revelando tanto uma visão parcial do digital como provocando a omissão de sua integração ao campo da antropologia da ciência, da técnica e da tecnologia.

17Contrariando a tendência quase hegemônica de limitar o digital ao uso de computadores e internet, o Grupo de Estudos em Cibercultura (GrupCiber), vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, estabeleceu uma rota alternativa. Desde o seu início, em 1996, a experiência do grupo no campo da cibercultura revelou que, mais do que a extração de consequências analíticas sobre o digital, o que essa tendência reduzida operava era uma constante e problemática exaltação de sua própria reinauguração, marcada pela constante adjetivação do “novo”. Era o caso típico das novas tecnologias, com seus novos espaços, novos lugares, novas formas de comunicação e informação, novos métodos de ensino e aprendizagem, novas amizades, novos namoros, e a emergência de novas identidades, para manter a lista curta. A cada nova plataforma lançada, surgia um conjunto de “novos novos”, abrangendo até mesmo a exigência de métodos e teorias atualizados. Não surpreendia, portanto, que alguns eventos da área mais se assemelhassem a feiras de inovação do que a arenas de debate científico.

18Nesse contexto, tornou-se notável o rápido avanço no debate com a introdução pelo GrupCiber das críticas de Bruno Latour, ainda em 2008, sobre a modernidade e seus processos de purificação e tradução. Essa inclusão enriqueceu a compreensão das tecnossocialidades, incluindo seus hibridismos e a distribuição de agência no campo do digital. A percepção de que o fazer etnográfico pode ser influenciado pelos objetos tecnológicos, em qualquer campo de estudos, representou um momento significativo de expansão para as etnografias do digital, configurando-as progressivamente como uma antropologia multissituada, incentivando reflexões sobre a escala e a interação entre o local e o global na produção antropológica.

  • 1 Essa perspectiva, além de aberta, é necessariamente reflexiva: ela reconhece que o antropólogo e seu (...)

19Importa destacar que Letícia Cesarino, em 2014, discutiu essa problemática da escala a partir do estudo de fenômenos transnacionais, focando especificamente as relações de cooperação no Sul Global. Ela questiona como abordar fenômenos de alcance global a partir de uma antropologia originalmente estruturada, tanto pelo método quanto pelo tipo de conhecimento produzido, em estudos de escala local. Inspirando-se em Marilyn Strathern e Donna Haraway, Cesarino (2014) propõe uma via de análise que articula, de forma coesa, a relacionalidade e reflexividade nas duas dimensões da prática antropológica: o trabalho de campo e a escrita. Considerando o trabalho de campo como uma experiência essencialmente relacional, Marilyn Strathern sugere que sejamos atentos às maneiras pelas quais escalas e contextos são criados tanto pelos atores em campo quanto pelos antropólogos na academia. Nesse sentido, ela propõe uma simetria entre as práticas de conhecimento dos pesquisadores e dos “nativos”. Seguindo a ideias de Donna Haraway, Marilyn Strathern assume que apenas uma perspectiva parcial possibilita uma visão objetiva, implicando a participação parcial do etnógrafo nas redes formadas no e com seu campo. Essas considerações são particularmente relevantes em campos de estudo, incluindo as etnografias do digital, onde as distâncias relacionais entre etnógrafos e outros atores são reduzidas. Conforme observado por Cesarino (2014), isso exige que as relações estabelecidas em campo sejam integradas com as relações acadêmicas, inclusive durante o processo de escrita. Assim, sob a perspectiva da antropologia de Marilyn Strathern, Cesarino (2014) destaca a natureza parcial das conexões no processo de produção do conhecimento. Estas variam em escala conforme mudam as perspectivas sobre um fenômeno, tanto por parte do etnógrafo quanto dos “nativos”, que operam em diferentes escalas – do macro ao micro e vice-versa. Isso resulta em um entrelaçamento entre o trabalho de campo etnográfico e a produção de conhecimento antropológico, ambos implicados em uma rede de múltiplos agenciamentos.1

20Tal abordagem converge com o terreno das políticas etnográficas que têm sido pavimentadas como uma contribuição da antropologia para o campo de estudos das tecnologias digitais na sociedade contemporânea. Em todos os pontos de inflexão que marcaram os trabalhos do GrupCiber, por exemplo, o debate em torno dos modos de fazer etnografia e produzir antropologia esteve sempre presente. Vale relembrar a imagem impulsionadora das primeiras reflexões: o cursor pulsando na tela, pedindo interação (Rifiotis, 2002). Isso ocorreu, literalmente, no século passado. Antes que fosse possível aprofundar essa relação, surgiram o mouse, as interfaces gráficas, a internet, entre outros. Acompanhar esse processo – participando dele – já colocava os pesquisadores “em direção às dimensões técnica e operacional que interpelam a pesquisa numa abordagem que exige a sua reinterpretação antropológica” (Rifiotis, 2002, p. 17). Desde então, fazer etnografia na sociedade informatizada exigiu que se situassem numa rede que inclui softwares, sistemas operacionais e outros atores, humanos e não humanos.

21Mais recentemente, os trabalhos de Segata (2017, 2020a, 2020b) transcenderam o foco nos computadores conectados à internet e exploraram como as tecnologias digitais operam com esses outros agentes, especialmente nas intervenções em biossegurança no contexto das políticas de saúde global. Nessas situações, elas têm se entrelaçado com interesses políticos e corporativos no campo da saúde para formar sistemas globais de poder e desigualdade que governam a vida. Ao realizar uma etnografia sobre políticas de saúde pública para arboviroses em cidades do Brasil e da Argentina, Segata (2017, 2020b) evidenciou como as tecnologias digitais e da vida estão cada vez mais presentes na gramática das epidemias. “Softwares para modelagem e geolocalização, sistemas de mineração de dados, investigações por PCR e vetores geneticamente modificados tornaram-se a nova tendência no capitalismo da saúde” (Segata, 2020b, tradução nossa). Segundo ele, essas ferramentas, sozinhas ou em combinação, têm sido empregadas na vigilância e no controle de vírus, bactérias, vetores e, evidentemente, das populações humanas com as quais interagem.

22Armadilhas para captura de mosquitos, contagem de seus ovos para dimensionar populações e extração de DNA para mapear a presença de vírus são geolocalizadas digitalmente em certas áreas das cidades, sugerindo uma precisão na vigilância do risco à saúde. Para os formuladores de políticas de saúde pública, nada poderia se esconder da tecnologia, uma vez que o digital – o computador e o DNA – criava uma sensação de onipresença e eficácia, sustentando crenças em uma identificação e controle mais precisos. No entanto, “pessoas, mosquitos e vírus nem sempre se comportam como códigos binários” (Segata, 2020b, tradução nossa), fazendo com que essas tecnologias digitais computacionais e da genética muitas vezes ocultem importantes estruturas de desigualdade social e racismo ambiental. Frequentemente, as políticas atuam nos mesmos recalcitrantes circuitos de exclusão, como, por exemplo, posicionando armadilhas em áreas periféricas da cidade, partindo da preconcepção de que seriam mais propensas ao aparecimento de vetores do que em áreas mais abastadas, culpabilizando os pobres pelos riscos à saúde, como já ocorria desde a emergência das políticas higienistas no século XIX.

23No contexto das intervenções em biossegurança, essas tecnologias digitais são descritas como novas inteligências epidêmicas (Lakoff, 2017), funcionando como bolas de cristal que prometem antecipar riscos e crises de maneira ubíqua e em tempo real. Com elas, os cuidados e a prevenção foram substituídos pela preparação e resposta, transformando saúde e segurança em uma única mercadoria no capitalismo da saúde global. No entanto, o que aconteceu com a pandemia de Covid-19 mais uma vez contrariou as fantasias tecnocráticas de onisciência digital, surpreendendo a maior parte dos países do mundo, especialmente os Estados Unidos, que, sendo os mais entusiastas da biossegurança, registraram o maior número de contaminações e mortes. A questão é que o que constitui o mundo vivo é mais complexo do que alguns números e gráficos fornecidos pelas inteligências epidêmicas. A matematização frequentemente oculta experiências singulares e situadas, projetando, ao invés disso, a suposta universalidade de tendências epidemiológicas e seus impactos sociais e sanitários.

24O quadro esboçado aqui ganha sua dimensão mais importante na percepção de que incertezas inerentes à dinâmica de definição dos objetos da antropologia vêm sendo experienciadas, especialmente nos últimos anos, em relação às mediações sociotécnicas. De um aspecto inicialmente marginal e localizado, a chamada “antropologia do digital” tem se tornado cada vez mais naturalizada. Ela deixou de ser um espaço singular relegado a um segundo plano para se tornar um campo que permeia as mais variadas instâncias da vida social e das antropologias que interagem com elas. A essa tendência de amplitude geral, somaram-se eventos contingentes, como o período intenso da pandemia (2020-2021), que representou para o trabalho etnográfico uma abertura significativa para esses atravessamentos digitais, estimulando a curiosidade e o interesse em torno das políticas etnográficas e das mediações sociotécnicas.

25Para a antropologia, e especialmente para o trabalho etnográfico, o chamado “distanciamento social” significou uma revisão no espectro das possibilidades metodológicas e estratégias de pesquisa. Inicialmente visto como uma “perda” ou “limitação”, esse período multiplicou o interesse nas etnografias do digital. Houve a “perda” das relações face a face e das “interações diretas”, além da introdução de avatares e “interferências técnicas”, mudanças essas percebidas como “forçadas pelas circunstâncias”, resultando em um empreendimento etnográfico limitado. Contudo, essa aparente contingência, muitas vezes vista como um imprevisto e algo restritivo, pode também ser interpretada como uma atualização circunstancial de um longo processo que já vinha se desenhando na antropologia desde as décadas de 1980 e 1990.

26As interrogações suscitadas nas primeiras aproximações empíricas e teóricas com os campos inaugurados pelas então “novas” tecnologias da comunicação e informação criaram uma situação favorável para a retomada de fundamentos da antropologia e para o aprofundamento do debate em torno de problemas cruciais da disciplina. O cenário era semelhante ao dos anos 1970-1980, período em que a antropologia se dedicou cada vez mais ao estudo das sociedades urbano-industriais. Na sua emergência, a antropologia urbana trouxe à tona desafios empíricos, teóricos e metodológicos que colocavam no centro a figura do “nativo-pesquisador”, reposicionando a produção do conhecimento antropológico produzida agora na partilha de uma mesma geografia de espaço e de pensamento. Com o advento da internet e a gradual popularização das ferramentas e dispositivos de comunicação digital, surgiram para a antropologia questões ainda mais específicas acerca da produtividade social do que passou a ser chamado de ciberespaço e o modo como ela passou a se converter numa realidade vivida intensivamente em meio a outras realidades, ainda “analógicas” (Rifiotis, 2002).

27Em um dos primeiros esforços de sistematização dessas reflexões, Rifiotis (2010) confrontou o ideal de etnografia malinowskiana com as dificuldades e dúvidas apresentadas pela pesquisa antropológica na internet. Esse contexto demandava um debate atento sobre o trabalho etnográfico, a realização da observação direta e participante, e a pertinência de iniciar a formação antropológica nesse campo. Um aspecto emblemático dessa reflexão sobre o lugar da etnografia na era da internet era a possibilidade de utilizar os logs – registros automáticos das interações online gerados pelas plataformas – como parte do diário de campo. As facilidades do ambiente digital levavam à tentação de limitar a escrita do diário de campo ao registro linear das interações, conforme processadas pelo computador (Rifiotis, 2010). A iniciação de pesquisadores nesse campo exigia uma atenção redobrada à complexidade da inserção em campo, à observação das interações – cenários, linguagens, códigos sociais, etc. –, às situações de diálogos “privados”, ao grau de participação do observador, entre outros elementos cruciais para compreender as situações comunicativas e suas especificidades, como chats, listas de discussão, ambientes tridimensionais, etc. Especificamente, a reflexão sobre a presença dos etnógrafos em campo implicava pensar nos processos de constituição dos sujeitos na e pela internet e nas distinções entre indivíduo, pessoa e avatar. Rifiotis (2010, p. 22) apontava que isso levava a “recolocar a questão da relação face a face e sua natureza na pesquisa etnográfica, pois se trata de uma relação de grande complexidade que vai desde a performance até a linguagem corporal, frequentemente tomados como evidentes e naturalizados durante a observação de campo”. Com o desenvolvimento das tecnologias e ferramentas de comunicação digital, incluindo recursos de imagem, áudio, vídeo e inteligência artificial, o debate ganhou mais nuances. Já no final dos anos 1990, com o surgimento do campo de estudos da cibercultura, tornou-se claro para a antropologia que as experiências de campo na internet, ou configuradas pelas tecnologias da comunicação e informação, estavam cada vez mais próximas de situações de copresença ou face a face. Isso levava a reflexões sobre a dimensão das mediações e o papel dos mediadores na produção da vida social sob uma perspectiva sociotécnica. As interações sociais ou sociabilidades no ciberespaço eram processos complexos que associavam experiências online e offline, além de aspectos técnicos e culturais.

28À medida que os contornos entre o online e o offline se tornam mal definidos e instáveis, e as noções de cibercultura e ciberespaço mostram-se cada vez mais propensas a uma homogeneidade incompatível com os resultados dos empreendimentos etnográficos, reflexões sobre hibridismos, fenômenos ciborgues e interações indivíduo-máquina, bem como agências múltiplas, despontam como possibilidades interpretativas potentes para as problemáticas no campo da antropologia do digital. Especialmente notável é uma imagem nostálgica, mas icônica, que continua simbolizando essa antiga inspiração sociotécnica: a do cursor pulsando na tela, solicitando participação e interação, ainda em um tempo pré-internet. Textualizada por Rifiotis (2010), ela ressurgiu várias vezes como gatilho para reflexões em meio a cada “nova inovação”. Não demorou muito para que o cursor fosse substituído pelo mouse, pelas “janelas”, desktops, abas, ferramentas de busca, telas sensíveis ao toque, entre outras máquinas que indicam cada vez mais onde clicar, o que abrir, onde salvar, etc. Uma vontade de saber sociotécnico manifestou-se na percepção e reconhecimento de que a compreensão antropológica dos fenômenos produzidos com e pelas tecnologias digitais exige uma reflexão atenta sobre sistemas operacionais, softwares, hardwares e outros dispositivos, orientando as pesquisas para a dimensão técnica.

“Jamais fomos digitais”

  • 2 A segunda coletânea do GrupCiber, Políticas etnográficas no campo da cibercultura (Segata; Rifiotis (...)

29Em 1994, quando Arturo Escobar publicou “Welcome to Cyberia: notes on the anthropology of cyberculture” no renomado periódico Current Anthropology,2 as referências à internet ainda eram incipientes, e o projeto de uma antropologia da cibercultura envolvia um domínio mais tipicamente ligado às tecnossocialidades e biossocialidades. Tratava-se de um projeto amplo e ambicioso, que propunha uma revisão geral da disciplina, partindo dos estudos de ciência e tecnologia. Nesse contexto, referências a Donna Haraway, Bruno Latour e outros nomes proeminentes do então emergente campo da antropologia da ciência eram mobilizadas de forma central nas análises de Escobar sobre a cibercultura. A perspectiva analítica proposta por Escobar não era redutível apenas à internet e aos fenômenos marcados pela hoje chamada dataficação. Ela representava um projeto mais amplo, como aquele aqui defendido, de cartografia das políticas etnográficas, que explora os limites da teoria antropológica, especialmente no que concerne aos agentes e coletivos considerados na análise, à agência, e à busca contínua por simetria na relação entre diferentes regimes de saberes.

30É nesse contexto que, no centro das preocupações deste ensaio, a expressão “políticas etnográficas” busca destacar as escolhas metodológicas que moldam o cotidiano da prática antropológica, delimitando o campo do observável e dos relatos, e fundamentando modos específicos de produzir a etnografia. Essas políticas etnográficas têm se tornado um objeto constante de reflexão para pesquisadores, especialmente aqueles envolvidos no estudo das relações entre humanos, animais, plantas e redes sociotécnicas. A internet, no início do século XXI, representa apenas a ponta do iceberg dessas interações complexas. A metáfora de “ver-como” é um convite para estabelecer uma nova perspectiva sobre um campo de estudos que se consolidou na antropologia nas últimas duas décadas, desafiando os modos tradicionais de descrever e conceber a complexidade que envolve a hibridização, a distribuição da agência e a simetrização entre as entidades que compõem o campo de trabalho do ofício antropológico. A complexidade a que estamos nos referindo implica um “ver-como” que nos interpela em considerar que não se trata de uma especificidade e tampouco uma “novidade”.

31Desde a obra seminal de Marcel Mauss “Les techniques du corps”, de 1934 (Mauss, 2003), que explora as maneiras pelas quais as técnicas corporais são socialmente construídas e culturalmente transmitidas, tem-se observado uma crescente atenção ao papel do corpo e da tecnologia na formação da experiência humana. Esse enfoque abriu caminho para investigações subsequentes sobre como as tecnologias, tanto físicas quanto digitais, interagem com e moldam o corpo humano e suas capacidades. O trabalho de Marcel Mauss serviu, assim, como um ponto de partida para compreender a relação simbiótica entre os seres humanos e as tecnologias que eles utilizam, influenciando estudos posteriores na antropologia, sociologia e outras disciplinas relacionadas ao corpo, tecnologia e cultura. Em outros termos, desde Marcel Mauss passamos a “ver-como” a hibridização já estava tematizada e problematizada no campo antropológico. Um “dilema”, como já afirmava Bruno Latour (1994, p. 12) em Jamais fomos modernos, desde há muito resolvido pela antropologia que tratava o “tecido inteiriço das naturezas-culturas” fora das sociedades euro-americanas. Trata-se de pensar a “modernidade”, ainda seguindo Bruno Latour (1994, p. 16), identificando dois conjuntos de práticas que estariam deixando de ser distintas: de um lado, a “[…] ‘tradução’, misturas entre gêneros de seres completamente novos, híbridos de natureza e cultura” […], e de outro, a “[…] ‘purificação’, duas zonas ontológicas inteiramente distintas, a dos humanos, de um lado, e a dos não-humanos, de outro”.

32A interrogação deste ensaio se direciona aos regimes de veridição das práticas discursivas relacionadas à “cibercultura” e seus tangenciamentos e cruzamentos com as abordagens do pós-humanismo. Essas abordagens operam num regime crítico que enfatiza imagens híbridas orgânico-tecnológicas, tecnologias e biossocialidades, que, desde o ponto de partida do ensaio, não são radicalmente distintas da própria modernidade como regime de verdade que traz a dupla entrada de “tradução” e “purificação”. De fato, corroborando a afirmação de que o debate já existia antes da onipresença da internet, a própria figura do ciborgue e a obra “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX” de Donna Haraway (2009) vêm ao encontro da metáfora do iceberg, representando uma massa gigantesca que navegava pelos mares sem ser reconhecida como tal. Portanto, não se trata da instauração de uma “nova” complexidade, mas de tornar visível uma complexidade e um modo singular de construir invisibilidades sociotécnicas. Ou, como afirmava Marilyn Strathern (1994, p. 226, tradução nossa, grifo nosso) em seu comentário crítico ao texto “Welcome to Cyberia” no mesmo número do periódico Current Anthropology no qual Arturo Escobar publicou seu artigo: “a vida social implica sempre movimentos do complexo para o complexo” e a técnica faz parte da complexidade, “[…] nunca houve uma pré-cibercultura”. Referindo-se aqui a Donna Haraway, Marilyn Strathern (1994) aponta para uma possível armadilha, no sentido de um efeito de verdade, que seria supor que a complexidade é consequência do “desenvolvimento técnico”, um regime de verdade que está possivelmente subsumido no texto de Arturo Escobar ou, pelo menos, nas abordagens do pós-humanismo que ele defende.

  • 3 Guimarães Jr. foi um dos pesquisadores que, juntamente com Theophilos Rifiotis e Maria Elisa Máximo (...)

33Se nunca houve uma “pré-cibercultura”, como afirmou Marylin Strathen, em 1994, em resposta à Escobar, é porque a complexidade, pressuposta como “novidade” na e com a internet, já estava presente. É a invisibilidade que chama a atenção, e não a “novidade”. Nesse contexto, faz sentido recordar a descoberta do continente da “internet” e a surpresa provocada quando o antropólogo Mário Guimarães Jr. (2004) descreveu LadyBunny, uma mulher norte-americana de aproximadamente 30 anos, que vivia na companhia de seus animais de estimação, realizava a maioria de suas atividades profissionais em casa e mantinha uma intensa vida social online, criando e colecionando avatares em “mundos” tridimensionais programados com softwares e linguagens de programação. Em sua narrativa etnográfica, o autor foi pioneiro ao descrever experiências e ambientes produzidos pela combinação de elementos técnicos e sociais, humanos e não humanos, no processo de criação do campo de estudos da cibercultura.3

34Em um momento em que os estudos sobre e na internet se dividiam entre formulações teóricas abrangentes e generalistas – que se concentravam principalmente nas análises dos impactos da popularização das tecnologias digitais sob perspectivas ora apocalípticas, ora apologéticas – e pesquisas focadas nas dinâmicas e processos sociais resultantes dos usos de e-mail, listas de discussão, chats e outras formas predominantemente textuais de comunicação online, o interesse de Guimarães Jr. (2004) por ambientes tridimensionais já trazia à tona questões sobre o papel da técnica na produção da vida social e dos próprios sujeitos. Nesses “mundos”, os indivíduos não apenas elaboravam tecnologia, mas também eram por ela produzidos, destacando a relação recíproca e a coconstrução entre tecnologia e socialidade.

Situações como a vida social no ciberespaço, onde artefatos tecnológicos simultaneamente sustentam sociabilidades e são por ela elaborados, oferecem uma oportunidade singular para a compreensão das múltiplas formas pelas quais a tecnologia se relaciona – e se confunde – com cultura. Avatares, corporificações construídas a partir de softwares e relações sociais, são um excelente exemplo do dinamismo e fluidez dessas relações, e demonstram uma arena onde “homens” e “objetos” se misturam e se confundem (Guimarães Jr., 2004, p. 152).

35Em meados da década de 1990, a internet já era uma realidade, mas sua presença em nosso dia a dia ainda não era plena. O lançamento comercial da internet no Brasil e no mundo despertava questões sobre um futuro que, de certa forma, já era o presente, desafiando-nos a refletir sobre a internet antes de ela se tornar parte integrante de nossas experiências concretas e cotidianas. Esse foi o desafio enfrentado por Nicholas Negroponte, renomado pesquisador do MIT e um dos primeiros autores a discutir as perspectivas sobre o desenvolvimento das tecnologias digitais e seus “impactos” nas formas de vida de indivíduos, grupos e instituições sociais.

36No livro A vida digital, Nicholas Negroponte (1995) dedicou uma posição de destaque à construção de um imaginário caracterizado pela “novidade” das tecnologias digitais, sugerindo que estávamos à beira de uma “nova era”. Ele descreve uma sociedade centrada na circulação global de informações, transformada pela transição do pensamento analógico para o digital. O autor enriqueceu sua análise da sociedade contemporânea com um vocabulário técnico e tecnológico, incluindo termos como bits, pixels, multimídia, hipermídia, fibra ótica e largura de banda.

37Negroponte não estava sozinho em sua visão. Ele fazia parte de um grupo de especialistas e empresários, como Bill Gates, e estudiosos, como Pierre Lévy, que juntos alimentaram esse imaginário no qual as redes de computadores e a comunicação digital possuíam o potencial de libertar a humanidade de sua história. Para esses entusiastas, estávamos presenciando uma revolução que posicionaria o digital como um novo domínio da experiência humana. Hoje, é reconhecido que os primeiros estudos do ciberespaço, principalmente no campo da comunicação, compartilhavam desse imaginário, pressupondo que as mudanças tecnológicas indicavam uma ruptura com os modos de vida anteriores, dando origem a uma “vida digital”.

38O foco nas “comunidades virtuais” e nas formas de “comunicação mediada por computador” estava na base dos empreendimentos teóricos e das pesquisas guiadas pelo imperativo da novidade. Para esses novos objetos de estudo, novos métodos eram prospectados, com questionamentos sobre como conduzir pesquisas nesses ambientes hipermediados. A coleta de dados, a observação e a própria presença do pesquisador ou da pesquisadora assumiam novos contornos nesse contexto.

39Na antropologia, o estudo das socialidades coproduzidas pelas tecnologias digitais apresentou desafios teóricos e metodológicos semelhantes a outros momentos marcantes da evolução da disciplina. Na primeira coletânea do GrupCiber, publicada já tardiamente, em 2010, Rifiotis aprofundou essa reflexão, retomando questões e dilemas que emergiram nos anos 1970-1980, relacionados às pesquisas em contextos urbanos e na sociedade urbano-industrial. Durante esse período, a etnografia de grupos e fenômenos próximos à experiência vivencial do pesquisador ou da pesquisadora exigia uma revisão crítica dos próprios fundamentos epistemológicos da antropologia, marcando um momento extremamente produtivo e decisivo na consolidação da disciplina no Brasil. O resultado desse processo foi uma significativa expansão do campo de análise e intervenção da antropologia, que, consequentemente, “redefiniu seu lugar e papel na produção de conhecimento sobre a modernidade” (Rifiotis, 2010, p. 16).

40A partir dos anos 1990, com as pesquisas sobre fenômenos configurados pela participação das tecnologias digitais, surgiram novas interrogações sobre os fundamentos da antropologia. Essas questões envolviam dilemas relacionados ao trabalho de campo, às possibilidades de registro e sistematização de dados, à inserção e posição do antropólogo no contexto da pesquisa, e, de forma mais abrangente, ao papel dos objetos técnicos na configuração das pesquisas. As questões levantadas iam além das especificidades do ciberespaço e já sugeriam, naquele momento, avanços teórico-metodológicos importantes para a antropologia (Rifiotis, 2010, p. 17). Nesse contexto, muitas pesquisas antropológicas, incluindo aquelas conduzidas no GrupCiber da UFSC, esforçavam-se em considerar cuidadosamente as particularidades desses “novos” objetos, procurando situar os processos, interações e experiências típicas do digital no contexto mais amplo das características da vida social contemporânea.

41Para isso, abordagens teóricas da antropologia urbana e das chamadas sociedades complexas – uma expressão bastante corrente na época – foram revisitadas, principalmente com o objetivo de demonstrar que a antropologia já possuía instrumentos conceituais pertinentes para a interpretação desses fenômenos digitais. Exemplos disso são as abordagens teóricas sobre interações sociais inspiradas nas contribuições de Goffman (2002) sobre representação e conceitos como rede social (Barnes, 1987), sociabilidade (Simmel, 2006), performance (Turner, 1974; Turner; Bruner, 1986), entre outros, que eram fundamentais nas etnografias que o GrupCiber produzia na época. Esses conceitos também orientavam um olhar crítico sobre a noção de comunicação mediada por computador, dominante no campo de estudos recém-criado, e a compreensão de que, sob a perspectiva antropológica, todas as interações são mediadas pelos aspectos culturais, históricos e políticos de cada contexto em que ocorrem.

  • 4 Essas pesquisas estão sistematizadas, principalmente, na primeira coletânea do GrupCiber, Antropolo (...)

42É acertado afirmar que a antropologia promoveu uma virada analítica significativa nos estudos do digital no início dos anos 2000, propondo que os fenômenos tecnológicos fossem compreendidos e investigados não apenas sob a ótica de “impacto” ou como “novas formas” de comunicação e interação, mas como elementos integrantes e constitutivos da vida social contemporânea. Essa abordagem originou análises críticas sobre as fronteiras entre o online e o offline; estudos acerca das dinâmicas de formação de grupos sociais e comunidades, englobando linguagens interacionais, etiquetas, hierarquias e critérios de pertencimento; além do debate sobre o papel de espaços físicos na configuração das experiências digitais. Pesquisas que o GrupCiber realizou em lan houses são um exemplo da aplicação prática dessas perspectivas, explorando como esses locais físicos influenciam e moldam a interação digital.4

43Insistindo na etnografia como abordagem privilegiada para a investigação, propõe-se também uma vigilância semântica sobre a tendência de adjetivação do método em resposta aos “novos” objetos, especialmente em relação à noção de “netnografia”, inicialmente cunhada nos estudos de marketing (Máximo et al., 2012). Em uma revisão das abordagens sobre a etnografia nos estudos da e na internet, destaca-se que, na antropologia, o debate metodológico vai além do método em si, englobando dimensões epistemológicas e conceituais, e se baseia nas experiências concretas, tanto online quanto offline.

44Outra mudança significativa na antropologia surgiu com a consolidação da abordagem sociotécnica e da ampliação das possibilidades de investigação naquilo que se chama de políticas etnográficas da cibercultura (Segata; Rifiotis, 2016). A partir de 2008, um novo exame crítico sobre o campo de estudos, inspirado principalmente nas contribuições da chamada “teoria ator-rede” (TAR), permitiu um afastamento definitivo das noções generalistas e apriorísticas de cibercultura, ciberespaço, comunidades virtuais, etc., para situar a etnografia nas tecnossocialidades, hibridismos e múltiplas agências. Essas pesquisas se caracterizam pelo esforço de descrever os modos como as ações são distribuídas no curso das interações, sem predeterminar a natureza das ações – se humanas ou não humanas, sociais ou técnicas. O desafio foi superar a tendência, bastante presente na fase inaugural do campo de estudos, de pressupor a exterioridade dos objetos técnicos e descrevê-los geralmente como contexto para agências exclusivamente humanas. Com a obra de Bruno Latour como referência central para o que se denomina de virada sociotécnica, as questões giravam em torno do lugar da técnica na produção do social, com foco nas justaposições, associações e hibridizações entre essas dimensões. Seguir atores humanos e não humanos, rastrear as associações entre eles, considerando as ações, tornou-se, assim, o propósito das etnografias do digital. Para a antropologia, a interação entre a técnica na produção do mundo social e dos objetos técnicos nas mediações das relações com o “real” não é uma consideração recente. Como enfatizou Rifiotis (2016), a contribuição de Marcel Mauss na definição de “técnicas corporais” já instigava reflexões sobre o lugar da técnica e dos seus objetos nos estudos antropológicos.

45Numa linha direta de interesse ao argumento deste texto, Madeleine Akrich (2014) discute o papel da tecnologia reconhecendo que objetos técnicos atuam como elementos ativos nas relações entre indivíduos e seus ambientes, destacando seu conteúdo político. As implicações desse debate para as etnografias digitais se expressam, como Akrich sugere, nos modos de descrever os objetos técnicos que, para além de seus aspectos físicos, devem ser compreendidos como conjuntos de relações entre elementos heterogêneos. Nesse sentido, segundo a autora, descrever um objeto técnico envolve defini-lo como uma narrativa construída entre o uso para o qual foi projetado e as maneiras pelas quais ele se insere no mundo, no ambiente e nas relações. Metodologicamente, trata-se de situar a descrição entre o ponto de vista do projetista e do usuário ou, nas palavras de Akrich (2014, p. 165), “entre o mundo inscrito no objeto e o mundo descrito pelo seu deslocamento”. Mais uma vez, o debate remete ao clássico trabalho de Marcel Mauss, quando ele ensina aos pesquisadores e coletores de objetos para museus e arquivos que devem se interessar por qualquer objeto, com a premissa de criticar os ideais estéticos eurocêntricos. Ao afirmar que “uma lata de alimento em conserva caracteriza melhor nossa sociedade do que a joia mais suntuosa ou o selo mais raro”, Mauss (2012, p. 86-87, tradução nossa) indicava a necessidade de valorizar os objetos mais comuns e banais no trabalho do etnólogo.

46A centralidade da questão metodológica e do lugar da etnografia nas etnografias do digital pode ser reafirmada em Arturo Escobar (2016). A etnografia como via privilegiada para a investigação das múltiplas práticas associadas às tecnologias levou Escobar (2016) a articular a antropologia às ciências da complexidade, oferecendo uma espécie de roteiro para a investigação etnográfica das tecnologias. Dentre as principais contribuições dele naquele momento de fundação do campo estava a proposta de pensar as tecnologias não como exteriores à sociedade, mas como invenções culturais, que emergem de condições particulares ao mesmo tempo que produzem novas condições (Escobar, 2016, p. 22). No entanto, como já mencionado anteriormente sobre a proposta de Escobar (2016) de pensar a tecnologia a partir de uma antropologia da complexidade, Marilyn Strathern (1994) pondera que o complexo não deve ser reduzido à escala ou à oposição ao “simples”. Esse é um ponto central que merece ser reiterado: se a complexidade repousa não sobre os seus efeitos (como o mundo aparenta ser), mas sobre o que produz os efeitos, podemos dizer que não existe vida social que não seja complexa. Sob esse ponto de vista, situar-se sobre as complexidades significa trabalhar na produção e na disposição ao detalhe, em detrimento da escala. Nesse sentido, a definição de cibercultura apresentada por Escobar (2016) parece, na leitura de Strathern (1994), refém do seu impulso de generalização, na medida em que incorpora sob o mesmo rótulo eventos heterogêneos, reunindo tudo que se apresenta como “novo”. Para a autora, se a vida social se move sempre do complexo para o complexo, não há nada que nos possibilite pensar numa pré-cibercultura.

47No debate entre Arturo Escobar e Marilyn Strathern, destaca-se que o estudo antropológico da tecnologia na vida contemporânea deve se aprofundar na complexidade, afastando-se da retórica etnocêntrica e recorrente do “novo”. Seguindo essa perspectiva, Thomas Haigh (2014), ao reexaminar os trabalhos de Nicholas Negroponte e Bruno Latour, argumentou que as previsões de especialistas como Negroponte tendem a ser mais futuristas do que representações da realidade cotidiana, permanecendo no imaginário popular por décadas, influenciadas pela indústria da tecnologia. Haigh (2014) aborda um ponto crucial para a antropologia: a era digital não é marcada pela simples assimilação das novas tecnologias no dia a dia, mas pela transição dessas tecnologias de elementos de um futuro desconhecido para objetos familiares. Assim, enquanto Negroponte antecipava uma ruptura digital, Latour criticava a “visão moderna” que separa natureza, técnica e sociedade, argumentando que “jamais fomos modernos”. Essa discussão é fundamental para entender o desafio de descrever a tecnologia como algo externo, que define “eras” na sociedade humana.

48Se, ainda que mal distribuído, o futuro já está aqui, então o que se torna saliente nesse debate não é apenas a natureza desigual das mudanças, mas também a percepção de que o digital está fadado à banalidade e à onipresença à medida que se torna familiar e integrado às rotinas cotidianas. Como aponta Haigh (2014, p. 27, tradução nossa), “ele [o digital] passa a ser notado mais pela ausência do que pela presença”. Essas ideias sugerem uma virada analítica, já evidente em estudos importantes do campo. Surgem questões sobre representatividade racial e de gênero nas periferias brasileiras, mudanças nas práticas de agentes policiais e jurídicos, experiências de reconstrução cirúrgica de corpos e a construção da reputação profissional de trabalhadoras domésticas, entre outros exemplos, todos influenciados por elementos e agências tecnológicas. Tal cenário indica uma tendência à multiplicação de estudos na antropologia que, embora não se originem no digital, são atravessados por fenômenos, linguagens e efeitos próprios do digital. Essa abordagem exige uma atenção mais detalhada às tecnossocialidades, hibridismos e às diferentes formas de interação e associação entre agências humanas e não humanas. Tal tendência foi intensificada pela pandemia, que levou uma parte considerável dos trabalhos de campo para ambientes digitais, generalizando uma experiência que até então era marginal na antropologia.

49Tem-se, portanto, o que pode ser considerado mais uma virada analítica nos estudos antropológicos do digital. Nesse contexto, a técnica, a tecnologia e seus objetos passam a ser reconhecidos onde antes estavam invisíveis, em campos e problemáticas de pesquisa que, até então, não eram considerados como parte da antropologia digital. A antropologia se depara cada vez mais com pesquisas que tangenciam o digital, sem serem, precisamente, pesquisas do digital. Esses estudos revelam como plataformas, dispositivos e objetos informáticos estão sendo compreendidos numa perspectiva de complexidade, que rompe ou problematiza as dualidades entre o real e o virtual, o social e o técnico, o humano e o não humano.

50O ponto é evitar a armadilha de tratar o campo digital como uma “nova complexidade”. É ela que encapsula a análise antropológica num jogo que opera na lógica do “simples ao complexo”. Afinal, como apontou enfaticamente Marilyn Strathern (1994, p. 226, tradução nossa), inspirada por Donna Haraway, “[…] a vida social se move do complexo para o complexo (do concreto e heterogêneo para o concreto e heterogêneo)”. O “novo” não é muito mais do que aquele futuro que já estava aí, ainda que mal distribuído ou voluntariamente ignorado. Para dizer de uma forma mais direta e ecoando Bruno Latour em uma fórmula sintética que já apareceu em Haight (2014) e Leach (2018), “jamais fomos digitais”.

“Back to the future”: considerações finais

51A atual percepção de que as tecnologias digitais participam, em maior ou menor grau, de (quase) todas as pesquisas antropológicas provoca o tipo de antropologia defendida neste ensaio. A pandemia, longe de representar apenas uma circunstância específica ou isolada, parece ter colaborado na normalização de formas de vida e gestão do cotidiano que já eram realidade e que incluem o home office, a proliferação de grupos e contatos via WhatsApp e, é claro, as redes sociais como dimensão da vida social tão ou mais significativa do que qualquer outra. Inclusive, é relevante notar que a noção de rede social, presente nas teorias sociais desde os anos 1960 e 1970, tenha se tornado sinônimo das redes de contatos criadas através da nossa presença e participação nas plataformas digitais. Além disso, questões em torno das fake news, da segurança de dados, da saúde mental, da comunicação e da ação política, dentre tantos outros temas e problemáticas, atravessam e são atravessadas pelas tecnologias, demandando que pesquisadores e pesquisadoras situem seus estudos também nessas instâncias tecnológicas.

52Importa também destacar uma tendência cada vez mais abrangente de realização de pesquisas – integral ou parcialmente – com recursos digitais: entrevistas pelo WhatsApp ou videochamadas, formulários online, pesquisas de dados e referências bibliográficas e, até mesmo, o auxílio de inteligência artificial. Se a pandemia inicialmente tornou essas possibilidades uma contingência, agora, no mundo pós-pandêmico, recorrer aos recursos digitais para realizar etapas da pesquisa se tornou também uma forma de contornar a falta de financiamentos, cronogramas apertados e a combinação de inúmeras atividades que compõem a vida acadêmica (docência, gestão, produção científica, etc.), bem como a natureza desterritorializada de muitas equipes e redes de pesquisa, compostas por pesquisadores situados em diferentes partes do globo. Em resumo, se por um lado as tecnologias digitais passaram a constituir objetos e campos de estudo anteriormente considerados como exclusivamente presenciais, por outro lado essas mesmas tecnologias revelam aspectos das dinâmicas acadêmicas atuais que implicam, também, a precarização do trabalho, a sobrecarga de responsabilidades e, de um modo geral, a aceleração da vida.

53É nesse contexto que as políticas etnográficas ganham relevância como um programa de pesquisa para a antropologia, especialmente no que se refere às tecnologias, hibridismos, coletivos e múltiplos agenciamentos envolvendo humanos e não humanos. A pesquisa adquire um sentido particular, com uma ênfase na perspectiva sociotécnica. Mariza Peirano (2014), ao declarar que “etnografia não é método”, auxilia a compreensão e a defesa das políticas etnográficas no âmbito digital, delineada quase como um manifesto nesse texto. Ela ressalta uma ideia já presente desde Malinowski, mas que ganha destaque atualmente: a importância de se permitir ser surpreendido(a) por eventos vividos para então poder examiná-los. Isso significa que antropólogos e antropólogas são agentes ativos nas suas etnografias, não apenas como investigadores, mas também como nativos-etnógrafos (Peirano, 2014, p. 379). Nessa ótica, a prática etnográfica rejeita abordagens preconcebidas e exige um aprimoramento teórico contínuo em face de dados novos e experiências de campo inovadoras, o que Peirano (2014) caracteriza como “bricolagem intelectual”. Assim, a pesquisa de campo e a produção teórica são compreendidas como partes de um mesmo processo, marcado por reinvenções constantes. Peirano (2014, p. 381) sublinha que “métodos (etnográficos) podem e sempre serão renovados, mas sua natureza, originada de quem ou do que se deseja examinar, é ancestral. Somos todos inventores e inovadores”.

54No amplo e multidisciplinar campo dos estudos da cibercultura, como já destacado anteriormente, rejeita-se as noções de “netnografia” ou de “etnografia virtual” que muitas vezes reduzem, instrumentalmente, a etnografia a um mero método. Isso se dá pela compreensão de que as etnografias são, fundamentalmente, formulações teórico-metodológicas que permitem revisões críticas dos fundamentos da antropologia. Ao direcionar as etnografias do digital para as políticas etnográficas e para uma agenda de pesquisa sociotécnica, consolida-se um empreendimento histórico que reafirma o lugar da antropologia nesse campo de estudos, contudo sem reduzi-lo a elas. Afinal, como bem afirmaram Segata e Segata (2024), “etnografia não é mineração de dados”.

55Este ensaio representa um esforço adicional para refletir sobre as escolhas etnográficas que fundamentam os métodos de condução de etnografias na pesquisa de campo e na escrita. Isso inclui a importância de “inventar” uma linguagem sociotécnica. Uma mudança fundamental é deixar de ver a rede apenas como metáfora ou estratégia metodológica, para incorporá-la no discurso analítico, permitindo que ela ocupe um lugar narrativo na etnografia de uma realidade ou fenômeno empírico. Esse é um dos desafios enfrentados. Abordar a rede como estratégia narrativa para ilustrar os efeitos produzidos a partir de composições que emergem no decorrer da ação, sem predefinir fronteiras ou entidades fixas, tem se mostrado um caminho promissor para uma abordagem sociotécnica. Conforme Marilyn Strathern (2014) articulou, a rede oferece uma vantagem analítica significativa: o entrelaçamento das interpretações que conectam “numa cadeia contínua” as representações, políticas e descobertas científicas. Para a autora, a rede pode ser vista como um “híbrido socialmente expandido”, uma metáfora adequada para descrever como entidades díspares se conectam, sem a pressuposição de hierarquias e níveis.

  • 5 Alusão ao título da obra de Michel Callon, Yannick Barthe e Pierre Lascoumes, Agir dans un monde in (...)

56Etnografias do digital, portanto, representam formas de investigar os limites da linguagem das redes, deslocando o enfoque do uso da rede para a descrição, através do esforço de mapear as redes por meio dessa descrição. Esse empreendimento, fundamentado nas bases da etnografia, emerge como uma contribuição distintiva da antropologia para os estudos do digital. Afinal, agir em um mundo incerto e em uma “cultura ativa da incerteza” exige que se pense sem a segurança das certezas absolutas.5 Como tem sido enfatizado em diversas ocasiões ao debater essa agenda para a pesquisa pós-social, tal abordagem pode possibilitar uma expansão na compreensão das redes e dos coletivos, colocando-nos em uma posição crítica para refletir sobre as tecnologias e enfrentar as novas dimensões que elas apresentam em relação aos “velhos problemas” da teoria social.

57Tomar emprestado nestas considerações finais o título do filme De volta para o futuro de Robert Zemeckis (De volta […], 1985) como metáfora para o projeto em constante transformação das etnografias digitais pode parecer hiperbólico, mas é surpreendentemente apropriado. Ele captura perfeitamente as viagens complexas ao passado que, paradoxalmente, impulsionam as etnografias do digital em direção ao futuro, em um campo que parece orbitar em torno de “novas” descobertas de descobertas já descobertas, onde o “novo” é constantemente reinventado: novas formas de comunicação e interação, novos espaços, novos sujeitos – enfim, uma nova etnografia? No entanto, como abordado ao longo deste ensaio, essa ênfase no inédito pode inadvertidamente obscurecer de uma só vez tanto uma parte significativa da história da antropologia com a cibercultura quanto a própria capacidade criativa da disciplina em gerar vanguardas dentro de suas tradições, expandindo temas e campos de investigação e tensionando suas forças teórico-metodológicas.

58Voltar para o futuro une os anos de 1934, 1984, 1994 e 2024 nas etnografias do digital na busca por um lugar apropriado para a técnica e as tecnologias na análise antropológica. Em 1934, antes dos computadores aparecerem, Marcel Mauss (2012) analisou com “Les techniques du corps” o modo como o biológico, o psicológico e o social se integram na formação das expressões coletivas e revelou um futuro para os estudos antropológicos sobre as relações entre humanos, artefatos e técnicas. Já em 1984, Sherry Turkle tratou em The second self os computadores e outros dispositivos digitais não simplesmente como ferramentas, mas como uma parte integral das nossas identidades e vidas sociais e psicológicas (Turkle, 1984), enquanto que, em 1994, Arturo Escobar (2016) abordou os conceitos de tecnossocialidade e biossocialidade para sintetizar as formas pelas quais a tecnologia e a biologia se entrelaçam no governo da vida, em seu ensaio intitulado “Welcome to Cyberia: notes on the anthropology of cyberculture”. Chegamos em 2024 às voltas com essas velhas questões sempre novas. Não se trata de um exame minucioso de cada “novo” objeto em si, tampouco a produção de uma história das técnicas e dos artefatos tecnológicos na antropologia, mas o modo como essa volta para o futuro e sua redescoberta de descobertas já conhecidas pode contribuir para pluralidade de eleições etnográficas que problematizam o digital e suas formas cada vez mais complexas de constituir a vida.

59Em suma, o futuro, entendido como uma temporalidade distribuída de maneira desigual, e o ciberespaço, percebido como uma alucinação consensual, revelam muito sobre as incertezas e os fantasmas que ainda evocam e provocam na antropologia. O que hoje nos parece tão comum e rotineiro era, de fato, surpreendente na década de 1980 e no início dos anos 1990. Contudo, se o futuro já está aqui, é porque está sendo vivenciado agora, e as incertezas que parecem inerentes a ele são, na verdade, experiências que, em diferentes graus, estamos sempre enfrentando. O futuro não é algo distinto; é o mesmo, apenas observado com distanciamento.

60Se o tom deste ensaio parece excessivamente abrangente, isso se deve ao fato de que as etnografias do digital estão conduzindo a antropologia a um campo de estudos em um momento crucial de transformação, posicionando-a diante de um ponto de inflexão caracterizado por questões empíricas, teóricas e metodológicas que estão redefinindo um conjunto de ideias complexas. Já faz algum tempo que o futuro chegou à antropologia; no entanto, como em outros lugares, ele ainda não está bem distribuído.

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Notas

1 Essa perspectiva, além de aberta, é necessariamente reflexiva: ela reconhece que o antropólogo e seus informantes formam redes de relações nas quais o primeiro participa enquanto parte igualmente interessada e situada (no sentido de Haraway, 1995), e sugere a explicitação dos efeitos dessa situacionalidade no próprio relato etnográfico (Cesarino, 2014, p. 20).

2 A segunda coletânea do GrupCiber, Políticas etnográficas no campo da cibercultura (Segata; Rifiotis, 2016), contém uma tradução inédita desse artigo seminal de Arturo Escobar (1994). A edição conta, também, com a tradução igualmente inédita do artigo de Bruno Latour (2000), “Faturas/fraturas: da noção de rede à noção de vínculo”.

3 Guimarães Jr. foi um dos pesquisadores que, juntamente com Theophilos Rifiotis e Maria Elisa Máximo, fundou o GrupCiber, instigando reflexões e abrindo caminhos que, atualmente, estão no centro de diversas pesquisas aqui defendidas e das contribuições teóricas e metodológicas que delas emergem. O artigo que ele publicou no número 21 de Horizontes Antropológicos, em 2004, antecipava sua pesquisa de doutorado realizada no Centre for Research into Innovation, Culture and Technology (CRICT) da Brunel University, em Londres, Reino Unido. Nessa pesquisa, Guimarães Jr. dedicou-se a uma etnografia de um grupo social online que interagia no Adobe Atmosphere, uma plataforma de interação com gráficos 3D povoada de “mundos” modelados à imagem e semelhança de espaços comuns à vida social contemporânea, como praças, bares e galerias de arte. Essa plataforma permitia a presença corporificada de indivíduos que atuavam e interagiam por meio de avatares elaborados a partir de ferramentas e saberes sofisticados de programação (Guimarães Jr., 2004). Guimarães Jr., carinhosamente conhecido como Mário Guima naquele grupo ainda restrito de pesquisadores e pesquisadoras da cibercultura no início dos anos 2000, faleceu tragicamente em 2005, poucos dias após a entrega oficial de sua tese, vítima de um atropelamento em Londres. Recuperar sua participação inaugural no campo de estudos da cibercultura não apenas constitui uma justa homenagem, mas também ajuda a situar o lugar da antropologia nesse campo, uma preocupação constante de Mário Guima. Qualquer esforço para apresentar um estado da arte das etnografias do digital estaria definitivamente incompleto sem reconhecer Guimarães Jr. no diálogo, como alguém que antecipou a virada sociotécnica que hoje demarca uma parte importante das pesquisas sobre os fenômenos coproduzidos pelas tecnologias digitais. Ver nota de pesar emitida pela Agência de Comunicação da UFSC, em maio de 2005, em Diana (2005).

4 Essas pesquisas estão sistematizadas, principalmente, na primeira coletânea do GrupCiber, Antropologia no ciberespaço (Rifiotis et al., 2010), publicada pela Editora UFSC e nas publicações organizadas a partir da Rede Amlat (Maldonado; Padilla, 2009; Maldonado; Valarezo, 2011).

5 Alusão ao título da obra de Michel Callon, Yannick Barthe e Pierre Lascoumes, Agir dans un monde incertain: essai sur la démocratie technique, publicada em 2001 pela Éditions du Seuil.

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Theophilos Rifiotis, Maria Elisa Máximo e Jean Segata, «Etnografias do digital: um futuro mal distribuído na antropologia»Horizontes Antropológicos [Online], 68 | 2024, posto online no dia 30 abril 2024, consultado o 01 dezembro 2024. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/horizontes/8720

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Autores

Theophilos Rifiotis

Universidade Federal de Santa Catarina – Florianópolis, SC, Brasil
rifiotis[at]gmail.com
https://orcid.org/0000-0003-1515-6633

Maria Elisa Máximo

Universidade Federal de Santa Catarina – Florianópolis, SC, Brasil
elisamaximo[at]gmail.com
https://orcid.org/0000-0002-5611-4889

Artigos do/da mesmo/a autor/a

Jean Segata

Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Porto Alegre, RS, Brasil
jeansegata[at]ufrgs.br
https://orcid.org/0000-0002-2544-0745

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