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Resenhas

Targino Ribeiro, Cicero Moraes e Rubens Ferraz. Memorial: A Serra dos Aimorés, uma barreira

Memorial revisión: Sierra de los Aimorés, una barrera
Memorial review: the Aimorés mountain, a barrier
Marcos Cândido Mendonça
Referência(s):

RIBEIRO, Targino; MORAES, Cicero; FERRAZ, Rubens. A serra dos Aimorés, uma barreira. Vitória: Escola Técnica de Vitória, 1949. 260 p

Resumos

A resenha elaborada refere-se ao memorial A Serra dos Aimorés, uma barreira, publicado em 1949. A obra expõe a arguição do Estado do Espírito Santo contra Minas Gerais, na questão dos limites territoriais entre os dois estados na região situada ao norte do rio Doce, para responder a uma ação impetrada em 1948 por Minas Gerais, que, em desacordo com o laudo de demarcação dos limites proferido pelo Serviço Geográfico do Exército, reivindicava a posse dessa área. Nesse embate, o aspecto mais notável é a negação de reconhecimento por parte de Minas Gerais do traçado da serra dos Aimorés na região situada ao norte do rio Doce.

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Introdução

1A Serra dos Aimorés, uma barreira, é um memorial escrito pelos advogados Targino Ribeiro, Cicero Moraes e Rubens Ferraz – publicado pela Escola Técnica de Vitória, no ano de 1949 – sobre a arguição de defesa do Estado do Espírito Santo no processo de delimitação dos limites entre Minas Gerais e Espírito Santo na região da serra dos Aimorés situada ao norte do rio Doce.

2Conhecida da historiografia capixaba, a questão dos limites ao norte do rio Doce e a consequente disputa territorial entre Minas Gerais e Espírito Santo foi resolvida somente em 1963, com a assinatura do acordo de definição dos limites entre os dois estados ao norte do rio Doce.

3Todavia, até à solução dessa questão, a determinação dos limites entre os estados vizinhos foi preenchida de « idas » (celebração de acordos) e « vindas » (desacordos, ocupações e conflitos entre as partes); e a obra aqui referida diz respeito a um desses momentos, quando o caso, por determinação da Constituição de 1937, foi entregue ao Serviço Geográfico do Exército, que, em 15 de setembro de 1941, proferiu decisão arbitral para findar o litígio territorial. Mas o Estado de Minas Gerais, em junho de 1948, apresentou ao Supremo Tribunal Federal uma ação discordando do laudo de demarcação dos limites proferido pelo Serviço Geográfico do Exército, o que levou o Espírito Santo a contestar a ação do Estado vizinho, e a resposta está contida no memorial A Serra dos Aimorés, uma barreira.

4A obra supracitada reúne dois documentos principais escritos pelos advogados representantes do Estado do Espírito Santo. O primeiro deles é a ação principal sobre os documentos de Minas Gerais, e a segunda consiste na medida preventiva sobre os documentos de Minas Gerais, ambos entregues ao Supremo Tribunal Federal. Esses textos estão acompanhados do laudo do Serviço Geográfico do Exército, órgão que elaborou a sentença arbitral para delimitação dos limites entre os dois estados na região da serra dos Aimorés situada ao norte do rio Doce.

5Para fins de melhor exposição dos aspectos essenciais da obra que interessem ao debate geográfico, a presente exposição não acompanhou os ritos do processo judiciário a que a estrutura da obra original obedece. Além disso, buscamos, com o resgate dessa obra histórica, recuperar parte da política interestadual capixaba, pela qual desvenda-se aspectos do pensamento « geopolítico » regional entre os estados confrontantes.

Resgate histórico: das capitanias hereditárias ao laudo do Serviço Geográfico do Exército

6A carta régia de 1534, pela qual se fez a doação a Vasco Fernandes Coutinho da capitania do Espírito Santo, estabelecia – com a imprecisão cartográfica da época, diga-se de passagem – que o território da referida capitania compreendia a distância de cinquenta léguas ao longo da costa e penetraria continente a dentro as mesmas cinquentas léguas, até o limite da conquista portuguesa, o que incluía na atualidade grande parte do território do estado de Minas Gerais.

7Posteriormente, a criação da capitania de Minas Gerais, pela carta régia de 23 de novembro de 1709, sem estabelecer limites entre elas, reduziu enormemente o território da capitania do Espírito Santo. Destaca-se que, nessa época, inexistiam ligações terrestres entre as duas capitanias e que o interior do Espírito Santo ainda não havia sido ocupado pelos colonizadores.

8A situação só começou a mudar em 8 de outubro de 1800, quando no Quartel do Souza, à margem do rio Doce, ficou firmado o auto de demarcação de limites entre a capitania de Minas Gerais e a do Espírito Santo, que foi, posteriormente, aprovado pela carta régia de 4 de dezembro de 1816. O auto de 1800, como ficou conhecido, embora não precisasse os limites da capitania do Espírito Santo na região situada ao norte do rio Doce, estabelecia « [...] que pela parte norte do rio Doce, servisse de demarcação, a serra do Souza [ou dos Aimorés] que tem sua testa elevada defronte deste quartel e Porto do Souza [...] » (Auto de 1800, apud Ribeiro et. al., 1949, p. 228).

9A questão só teve continuidade com a celebração do convênio de 15 de dezembro de 1911, quando determinava dois pontos principais sobre a questão dos limites ao norte do rio Doce: a) ficavam sujeitos à decisão arbitral os limites ao norte do rio Doce unicamente na serra dos Aimorés; por essa decisão, tais limites deveriam seguir a linha das cumeadas da serra até o rio Mucuri, b) ao norte do rio Doce, pela linha de cumeadas da serra dos Aimorés, os trechos não contínuos da serra deveriam ser preenchidos por linhas retas.

10Assim, a sentença arbitral de 1914 não julgou limites ao norte do rio Doce, sendo exclusiva para a definição dos limites ao sul do mesmo rio. Por isso, a indefinição persistia e encontrou novo capítulo através da Constituição de 10 de novembro de 1937, que prometia resolver as indefinições persistentes dos limites interestaduais. A Constituição de 1937, orientando-se por seu artigo 184, dispunha que os Estados continuariam na posse dos territórios sobre os quais exerciam jurisdição, e ficava a cargo do Serviço Geográfico do Exército elaborar o laudo para definir os limites entre os estados.

11Assim sendo, em 18 de setembro de 1940 foi despachada ordem para que o Serviço Geográfico do Exército organizasse uma comissão para execução dos trabalhos. Pela parte do Espírito Santo, a comissão se fez acompanhada pelo Diretor do Serviço Geográfico Estadual Cicero Moraes.

12A execução da sentença arbitral dos limites territoriais entre os estados foi balizada por dois fundamentos principais: a) exercício de jurisdição plena, anterior a 1937, que se sintetizava na execução de uma série de serviços ou atividades públicas, como arrecadação de imposto, venda e registro de terras, existência de policiamento, prática de serviço eleitoral etc., e b) direito geográfico e histórico, que, baseado nos acordos e sentenças firmados no passado, definia a legitimidade nos territórios ocupados ou ainda nos não ocupados e, como já mostramos acima, respeitava a premissa da demarcação dos limites de seguir a linha de cumeadas ou crista da serra dos Aimorés.

13Anota-se, ainda, que entre os dois fundamentos existia primazia do exercício de jurisdição sobre o geográfico e o histórico, quando pleno e comprovado por ampla documentação. Mesmo nessa condição, o Serviço Geográfico do Exército proferiu laudo no qual os limites entre os dois estados seguiram respeitando, na sua maior extensão, a linha de cumeadas da serra dos Aimorés, o que desmontou as pretensões de Minas Gerais de expandir-se territorialmente a leste, segundo sua proposta de limites (as propostas de limites de cada estado também foram representadas na carta do laudo), e levou a questão para uma nova rodada de disputas nos tribunais. A obra em apreço é justamente a argumentação do Estado do Espírito Santo em resposta aos interesses do Estado vizinho de ampliar seu território ao norte do rio Doce, na região em litígio.

A disputa cartográfica: por onde percorre a serra dos Aimorés?

14O aspecto mais interessante da obra diz respeito à disputa entre os dois Estados pela localização da serra dos Aimorés no mapeamento da região. Acontece que, respeitando o auto de 1800 e o convênio de 1911, estava definido que os limites territoriais, fundamentados no aspecto geográfico e no histórico, percorreriam a linha de cumeadas da serra dos Aimorés até alcançar o talvegue do rio Mucuri. A única forma de cada estado traspor esse limite natural era pela comprovação de exercício de jurisdição plena na região, o que, de fato, foi comprovado, por exemplo, na região do vale do Mucuri, onde se localiza Teófilo Otoni, e na região dos povoados de Bom Jesus, São Sebastião do Mantena e São Felix (o laudo estabeleceu essas regiões como por direito de Minas Gerais).

15Sendo a região ainda pouco conhecida e inexistindo mapas com precisão da região, coube ao Serviço Geográfico do Exército o mapeamento da serra dos Aimorés, e principalmente da linha de cumeadas ou crista da serra, e, quando a serra não se mostrasse contínua, adotar soluções de continuidade, estabelecendo linhas que conectassem os pontos máximos da serra.

16Nesse sentido, a definição do limite interestadual pela serra assumia tanto uma premissa técnica (de fato, utilizar elementos naturais notáveis, como uma serra, para estabelecer marcos, facilita a identificação dos limites) quanto ideológica, de naturalização das fronteiras, como se limites naturais resguardassem a integridade geográfica do território; aspecto que em nenhum momento fora questionado por ambas as partes envolvidas no litígio.

17Todavia, as pretensões mineiras de conquistar território a leste levaram à rejeição da sentença arbitral proferida pelo Serviço Geográfico do Exército, já que a proposta mineira baseava-se no argumento de inexistência de uma serra na atual divisa entre os dois estados ao norte do rio Doce. Minas Gerais, segundo sua proposta de mapeamento dos limites, sugeriu – por mais equivocado que nos dias atuais isso possa se apresentar – que a parte da serra dos Aimorés situada ao norte do rio Doce se caracterizava morfologicamente como uma planície preenchida por vários pontões rochosos ou morros, conferindo uma outra direção da serra no sentido nordeste. Com base nesse argumento, Minas Gerais sugeria que os limites fossem representados por uma linha partindo próximo à serra dos Pancas (contraforte da serra dos Aimorés), atravessando a serra da Fortaleza e o morro do Oratório até alcançar o povoado de Santa Clara, junto da primeira corredeira do rio Mucuri, envolvendo quase por completo a região em litígio.

18Não é de se estranhar que a arguição do Estado do Espírito Santo se iniciou com uma discussão baseada no conceito morfológico de serra. Na defesa dos interesses do Estado do Espírito Santo, os advogados T. Ribeiro, C. Moraes e R. Ferraz utilizaram volumoso material literário, documental e jurídico para deslegitimar aquilo que eles denominaram de « cartografia de fantasia » promovida pelo Estado de Minas Gerais.

19Dentre outros aspectos presentes no memorial, surge à tona o descontentamento da elite governante capixaba pela « amputação » (retalhamento) de porções do território do Espírito Santo desde a época das capitanias hereditárias. São várias as acusações de infiltrações e ocupações no território capixaba causadas pelo « apetite insaciável » do « gigante estado montanhês » (Minas Gerais), como referido na obra.

Considerações finais

20A obra A Serra dos Aimorés, é um importante capítulo da política interestadual mineira e da capixaba. Ela reflete uma disputa territorial regulada pelo poder federal, em que cada força utilizou as ferramentas materiais e, principalmente, ideológicas naquele contexto. Embora a disputa territorial tenha tido solução nos tribunais, importa frisar, e várias evidências indicam isso, que ela deixou marcas reais no território, verificando-se, muitas vezes, desrespeito aos direitos individuais e atos de violência que resultaram em mortes. Por outro lado, a arguição em defesa dos limites fronteiriços do Espírito Santo pode ser reconhecido, nos dias de hoje, como um verdadeiro tratado de geopolítica do governo capixaba, seguindo o interesse de preservação de sua autonomia territorial.

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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Marcos Cândido Mendonça, «Targino Ribeiro, Cicero Moraes e Rubens Ferraz. Memorial: A Serra dos Aimorés, uma barreira»Geografares [Online], 23 | 2017, posto online no dia 11 agosto 2017, consultado o 05 dezembro 2024. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/geografares/9615

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Autor

Marcos Cândido Mendonça

Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Geografia-Ufes
mcmcandido@hotmail.com

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