- 1 Entende-se por saneamento básico todo o conjunto dos serviços públicos de manejo de resíduos sólid (...)
1Por décadas, o saneamento básico1 foi considerado o ramo mais “atrasado” do setor de infraestruturas no Brasil. A falta de investimentos públicos, a escassez de recursos, o desinteresse político para o planejamento e execução de obras e a ausência de uma base jurídica e institucional capaz de assegurar a lucratividade do setor privado, dentre outros fatores, se apresentaram como principais motivos para o relativo “atraso” na produção e provisão do saneamento básico, não só no Brasil, como também na grande maioria dos países periféricos.
2No período atual, em que predomina a financeirização da economia, Chesnais (2005) argumenta que o capital portador de juros, ou simplesmente a “finança”, assume a centralidade das relações econômicas e sociais. Conforme Almeida Filho e Paulani (2011), a centralidade assumida pela finança tem como principal consequência o fato de que “a exterioridade que caracteriza esse tipo de capital vai ser inserida no seio da própria acumulação produtiva” (ALMEIDA FILHO; PAULANI, 2011).
3É na perspectiva apontada por Chesnais (2005) que buscamos discutir as recentes transformações do setor de infraestrutura no contexto brasileiro, em relação ao saneamento básico, mais especificamente sobre o esgotamento sanitário. As contribuições de Prado (2005) e Harvey (2008) sobre o papel do Estado no contexto neoliberal também serviram como referência para este artigo.
4O remodelamento do Programa de Parcerias e Investimentos (PPI), na gestão do presidente Michel Temer, veio reforçar as políticas neoliberais, priorizando a formação de Parcerias Público-Privadas (PPP) e privatização das empresas públicas de saneamento básico. Michel Temer, do partido Movimento Democrático Brasileiro (MDB), assumiu definitivamente a Presidência da República em 31 de agosto de 2016, após o Senado Federal aprovar o processo de impeachment e afastar do cargo a presidente Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT).
5Desde que assumiu a presidência do país, Michel Temer tem acelerado a efetivação na prática da política econômica neoliberal, realizando mudanças substanciais em diversas áreas, como a reforma trabalhista, a regulamentação da terceirização para atividades-fim e a reforma da previdência, que ainda tramita no Congresso.
6Em relação ao Saneamento Básico, a gestão Temer contribuiu para a rápida entrada do capital privado na produção e operação dos serviços de água e esgoto. A privatização de estatais e a formação de PPPs tem sido a tônica para o setor de saneamento deste governo. Aproveitando-se do arcabouço jurídico constituído em outros governos, como a Lei de PPP (2004), a Lei do Saneamento Básico (2007) e o Plano Nacional de Saneamento Básico (2013), o Programa de Parcerias e Investimentos, na atual gestão, colocou o saneamento básico na linha de frente para atrair o capital privado.
7Por se tratar de um setor onde se desenvolvem diversos serviços, o presente artigo abordará o esgotamento sanitário, mais especificamente o processo de produção da infraestrutura desse serviço. O objetivo é analisar e discutir os mecanismos de apropriação de renda através da produção, operação e manutenção dos equipamentos de esgoto na forma de Parceria Público-Privada.
8Conforme Prado (2005a), quase não há bens inerentemente públicos ou bens que não possam ser privatizados por meio de legislação consequente de decisões políticas. Considerando que o período atual é marcado pelo surgimento da empresa totalmente rentista, onde, mesmo havendo geração de valor e de mais-valia, a finalidade principal é a captação de renda, o setor de infraestruturas tem se mostrado como setor estratégico para ação dessas empresas. Desta forma, por que a produção de infraestruturas tornou-se interessante para essas empresas de caráter rentista? Quais os mecanismos de apropriação de renda que emergem através do setor de infraestrutura?
9Parceria Público-Privada se refere ao contrato de concessão sob os serviços ou obras públicas, podendo ocorrer sob duas modalidades: patrocinada ou administrativa.
10A concessão patrocinada é a concessão de serviços públicos ou de obras públicas em que a remuneração do parceiro privado se dá por meio da tarifa paga pelo usuário, mais a contraprestação pecuniária do poder público.
11A concessão administrativa é o contrato de prestação de serviços em que a Administração Pública é a usuária direta ou indireta do serviço prestado pela concessionária, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens. Na concessão administrativa, a remuneração da empresa é feita integralmente pelo poder público.
12Já a concessão comum não se constitui como PPP, pois se trata da concessão de serviços públicos ou de obras públicas onde não há contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado (BRASIL, 2004).
13O modelo atual de PPP implantado no Brasil teve origem no Reino Unido, entre as décadas de 1980 e 1990, como parte da política neoliberal implantada por Margaret Thatcher. O modelo logo foi adotado por outros países da Europa, alcançando também os demais continentes. Conforme Prado (2005a), as políticas de liberalização, de desregulamentação e de privatização, iniciadas nos governos de Ronald Reagan e Margaret Thatcher, provocaram uma mudança substancial no modo de funcionamento do capitalismo contemporâneo, favorecendo o rentismo em detrimento da produção industrial. Essas políticas não se restringiram somente aos países onde foram implantadas, mas mundializaram-se com o processo de globalização.
14No Brasil, a parceria entre os setores público e privado ocorre desde os anos 1990, porém, foi somente após criação da Lei nº 11.079/2004 (BRASIL, 2004), denominada “Lei de PPP”, que as grandes empresas passaram a atuar de maneira mais efetiva. Dentre os regulamentos promulgados pela referida lei, ficou instituído que os contratos de PPP não podem ser inferiores ao montante de 20 milhões de reais, e devem ter duração de no mínimo 05 e no máximo 35 anos.
15São Paulo foi o primeiro estado brasileiro a contar com uma PPP. O contrato para a construção da “Linha 4 Amarela” do metrô da capital paulista foi celebrado na forma de concessão patrocinada, pelo prazo de 30 anos, a um parceiro privado (SÃO PAULO, 2017).
16O setor de infraestrutura é o mais visado para a implantação dos contratos na forma de PPP. A construção de portos, aeroportos, rodovias, ferrovias, sistemas de energia e o saneamento básico, serviços empreendidos prioritariamente pelo Estado, têm despertado cada vez mais o interesse do capital privado. O grande aporte de verbas e recursos públicos destinados às referidas atividades e a facilidade na obtenção de crédito via bancos de desenvolvimento são alguns dos elementos que fazem da infraestrutura o setor estratégico para uma nova forma de acumulação e reprodução do capital, sobretudo o de origem financeira.
17Santana e Rodrigues Júnior (2006) argumentam que a Lei de PPP criou demasiadas facilidades para a reprodução do capital privado nos setores onde antes não era possível sua entrada. A análise crítica de alguns dos artigos da Lei nº 11.079/2004 (Lei de PPP) nos revela as estratégias criadas para atrair e favorecer novos investidores na PPP.
18O artigo 7º fixa que a contraprestação da Administração Pública deve ser precedida da disponibilização do serviço objeto do contrato da PPP. Em tese, nenhum pagamento poderia ser feito durante o prazo de construção da obra, porém, o §1º do mesmo artigo flexibiliza a regra, ao facultar à Administração Pública o pagamento da contraprestação relativa à parcela fruível do serviço objeto do contrato, ou seja, admite-se o pagamento parcial mesmo antes das obras finalizadas.
19Já o artigo 16 institui o Fundo Garantidor de Parcerias Público-Privadas (FGP), cujo objetivo é garantir o ressarcimento do parceiro privado caso o poder público não consiga honrar seus compromissos na PPP, no âmbito da União. Ressalta-se que, segundo este dispositivo, o FGP não pode ser objeto de contingenciamento orçamentário e nem ter seus ativos destinados ao pagamento de precatório.
20De acordo com Santana e Rodrigues Júnior (2006), a formação do referido fundo se dá pela participação do poder público e se limita ao teto de 06 (seis) bilhões de reais na integralização de cotas. Os referidos autores chamam a atenção para o fato de que a integralização de cotas poderá ser realizada tanto em dinheiro quanto em títulos da dívida pública, bens imóveis dominicais e bens móveis, inclusive ações de sociedades de economia mista federal excedente ao necessário para manutenção de seu controle pela União (conforme parágrafo 4º do art. 16).
21O artigo 27 impede que o financiamento da obra, na forma de PPP, seja totalmente realizado com recursos públicos, alegando assegurar a divisão dos riscos entre os parceiros. Porém, o mesmo artigo institui que as operações de créditos das empresas públicas ou sociedades de economia mista controladas pela União não poderão ultrapassar 70% das fontes de recursos financeiros das sociedades de propósito específico (sociedade empresária cuja atividade é restrita ao objeto da PPP). Para as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, as referidas operações de crédito não poderão superar 80% do total dos recursos.
22Em última instância, o parceiro privado arcaria com apenas 30% dos investimentos, e, nas regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, somente 20% dos recursos estariam a cargo da iniciativa privada, o que põe em xeque não só a questão da divisão igualitária dos riscos, como também o discurso de escassez dos recursos do Estado, uma vez que a maior parcela do investimento advém do poder público, e não da esfera privada.
23Além disso, as facilidades criadas para a concessão de crédito via bancos nacionais e internacionais de desenvolvimento, prioridade na destinação dos investimentos dos fundos de previdência complementar das empresas estatais e de economia mista para as empresas participantes de PPPs, são algumas das estratégias instituídas pela legislação para atrair o capital privado.
24O artigo 5º, §2º, inciso I, permite aos financiadores da PPP assumirem o controle do empreendimento quando o parceiro privado não estiver cumprindo com suas obrigações, de forma a promover a reestruturação financeira do projeto e assegurar a continuidade dos serviços contratados (SANTANA; RODRIGUES JÚNIOR, 2006). De acordo com os autores, trata-se, na verdade, de um dispositivo para garantir que os investidores financeiros não percam o “benefício das PPPs”.
Esse dispositivo é visto pelas instituições financeiras interessadas em investir nas PPPs como instrumento importante de garantia dos direitos dos investidores, possibilitando a reestruturação de projetos na iminência de fracasso por ineficiência da gestão do parceiro privado, a bem da verdade, substituindo-o por outra empresa e dando continuidade ao negócio (SANTANA E RODRIGUES JÚNIOR, 2006, p.161).
25Observa-se, com isso, que no caso das PPPs, o sistema de crédito possui papel fundamental. Diante de toda flexibilidade proporcionada pela legislação para assegurar a remuneração do capital na PPP, a produção de infraestrutura tem sido estrategicamente utilizada pelas instituições financeiras como um novo campo para acumulação e reprodução do capital.
26Para compreender o papel do Estado e sua relação com os sistemas de crédito e operações financeiras, David Harvey, em sua obra “O novo imperialismo” (publicada em 2003, tradução brasileira em 2004), desenvolve o conceito da “acumulação por espoliação”, que, em resumo, seria a continuidade do processo de “acumulação primitiva”, proposta por Marx. Para Harvey (2008), a acumulação por espoliação decorre das estratégias neoliberais de acumulação de riqueza na atual fase de organização do modo de produção capitalista.
27De acordo com Harvey (2008), a crise fiscal que pairou sobre os Estados Unidos nos anos 1970 marcou a transição para uma nova etapa do imperialismo capitalista. Os Estados Unidos fizeram uso da primazia de ser o país detentor da moeda internacional e emitiram dólar para além das necessidades de crescimento da economia global, o que, de acordo com Almeida Filho e Paulani (2011), detonou pressões inflacionárias mundiais, as quais constituíram as condições necessárias para a explosão de capital “fictício”, hoje em circulação (ALMEIDA FILHO; PAULANI, 2011).
28Os Estados Unidos conseguiram impor uma nova ordem na economia mundial, que proporcionou a passagem do poder e dos interesses burgueses, antes situados sobre as atividades produtivas, para as instituições vinculadas ao capital financeiro (ALMEIDA FILHO; PAULANI, 2011).
29Harvey (2008) argumenta que o Estado possui um papel decisivo para a manutenção da atividade capitalista. Isso não significa que o capitalismo não funcione sem o arcabouço do Estado, porém, sua ausência representaria aos capitalistas maiores riscos. Segundo o autor, a ausência de oportunidades lucrativas que garantam o fluxo contínuo de acumulação de capital é um problema inerente ao capitalismo. A busca por novas oportunidades de acumulação de capital requer investimentos em infraestruturas físicas e sociais de longa duração, investimentos estes que poderiam ser realizados pelo próprio capital, mas se mostram muito mais efetivos quando realizados pelo Estado.
30Conforme Harvey (2008),
o Estado usa seus poderes para direcionar a dinâmica regional não só por meio de seu domínio dos investimentos infraestruturais e através do seu aparato administrativo, mas mediante sua atribuição de formular leis e sua capacidade de impô-las. Os exemplos vão de reformas institucionais à criação de paraísos para o investimento (HARVEY, 2008, p. 78).
31Retomando o conceito da “acumulação por espoliação”, é importante frisar que o ponto central para Harvey (2008) é o excedente de capital. De acordo com o autor, é preciso compreender o modo com que a acumulação por espoliação ajuda a resolver o problema da sobreacumulação. A acumulação por espoliação libera um conjunto de ativos que estão disponíveis, inclusive a força de trabalho, a custos muito baixos, para que o capital sobreacumulado possa lhes dar alguma lucratividade. Além disso, o sistema de crédito e o capital financeiro também são elementos que compõem a acumulação, pois permitem as valorizações fraudulentas de ações, falsos esquemas de enriquecimento, o aprisionamento de populações inteiras às dívidas estatais, fraudes corporativas e desvio de fundos (HARVEY, 2008).
32Para Harvey (2008), as características da acumulação por espoliação são: a privatização e a mercadificação dos ativos públicos; a financialização; a administração, e; a manipulação da crise e a redistribuição via Estado. Nesse sentido, o Estado passa a ter um caráter necessário, “seja porque pode dispor de seus ativos para mitigar as crises de sobreacumulação, seja porque produz capital fictício, seja por sua atribuição de formular e impor as leis, seja, finalmente, porque detém o monopólio da violência” (ALMEIDA FILHO; PAULANI, 2011, p. 256).
33Abordamos a PPP conforme a perspectiva apresentada por Harvey (2008), uma vez que, ao tratar da privatização e da mercadificação, o autor chama atenção para o fato de que, na acumulação por espoliação, bens que até então eram concebidos como bens públicos passam a ser privatizados com a finalidade de assegurar a obtenção de lucros para investidores. Conforme Harvey (2008),
todo tipo de utilidade pública [...] foi privatizado em alguma medida por todo o mundo capitalista [...] a passagem de direitos de propriedade comum, obtidos ao longo de anos de dura luta de classes [...] ao domínio privado tem sido uma das egrégias políticas de espoliação, com frequência imposta contrariando a ampla vontade da população. Todos esses processos equivalem à transferência de ativos do domínio público e popular aos domínios privados e de privilegio de classe. (HARVEY, 2008, p. 172-173).
34No que se refere ao papel do Estado, a argumentação de Harvey (2008) nos parece bastante apropriada para compreendermos também a criação das Parcerias Público-Privadas. Para Harvey (2008), uma das características da acumulação por espoliação é a manipulação das crises e a redistribuição. A redistribuição via Estado é comumente marcada por políticas que beneficiam a parcela mais rica da população, em detrimento dos mais pobres. Isto ocorre, pois o Estado acaba promovendo “esquemas de privatização e cortes de gastos públicos que sustentam o salário social. Mesmo quando a privatização parece favorável às classes baixas, seus efeitos de longo prazo podem ser negativos” (HARVEY, 2008, p. 176).
35Quando falamos da criação de condições para a iniciativa privada no setor de saneamento, estamos falando de um Estado capitalista, em um contexto neoliberal, que por meio das suas ações cria mecanismos que possibilitam a acumulação e a reprodução do capital. Nesse sentido, Harvey (2008) afirma que estamos diante de
um tipo peculiar de aparelho de Estado cuja missão fundamental foi criar condições favoráveis à acumulação lucrativa do capital pelos capitalistas domésticos e estrangeiros [...]. As liberdades que encarna refletem os interesses dos detentores de propriedade privada, dos negócios, das corporações multinacionais e do capital financeiro. (HARVEY, 2008, p. 80).
36A PPP estabelece o obscurecimento do processo produtivo da infraestrutura. Criam a ideologia de que a produção dos equipamentos públicos só se faz eficientemente quando realizada pelo setor privado. Fortalecem o discurso de um Estado ineficiente e incapaz de realizar obras e serviços de boa qualidade para a população. Insere-se, assim, a produção de infraestrutura pública na lógica da produção de mercadorias. Estipula-se um preço, um tributo que precisa ser pago pelo conjunto da sociedade que deseja ter acesso ao bem público produzido via parceria privada.
37De acordo com Borja (2017, s/p), “no capitalismo avançado e financeirizado a fronteira entre o público e o privado fica cada vez mais tênue”, o que não significa dizer que no período da grande indústria concorrencial e monopolista tenha sido diferente, pois tanto antes como agora o papel do Estado é garantir a produção, reprodução e valorização do capital.
38Seguindo o raciocínio, Santana e Rodrigues Júnior (2006) apontam o caráter rentista que as políticas do Estado têm assumido na atualidade. Conforme os autores, os governos estão
a serviço da acumulação financeirizada do capital. E esta, afinal, é a questão que está por trás de tantas outras. A principal fonte de gastos públicos vem a ser, justamente, aquela voltada para atender aos juros e rendimentos demandados pelo capital financeiro. Este é o maior compromisso do orçamento do Estado brasileiro, por exemplo, pagar credores e remunerar capital financeiro (SANTANA E RODRIGUES JÚNIOR, 2006, p. 171).
39Neste ínterim, o saneamento básico, mais especificamente o esgotamento sanitário, tem se apresentado como nova frente de expansão do capital em busca de remuneração. A criação do marco regulatório para o setor e os investimentos públicos anunciados para esta área foram fundamentais para despertar o interesse dos grandes grupos empresariais em busca de novas oportunidades de remuneração.
40Discutiremos neste subitem o papel da PPP em obras de saneamento básico, buscando compreender as estratégias rentistas aplicadas na produção do espaço no momento da financeirização da economia.
41O que se pretende é mais do que compreender a simples distribuição das atividades da sociedade sobre o espaço, trata-se de compreender a produção social do espaço como momento da produção da vida, superando a ideia do espaço como palco da ação humana e buscando a compreensão da dimensão social do espaço produzido por uma sociedade dividida em classes (CARLOS, 2015).
42Desta forma, “o espaço pensado como produção/produto da ação da sociedade está, assim, imerso na totalidade da reprodução social. Esse movimento do pensamento permite vislumbrar o papel da produção do espaço na reprodução da sociedade contemporânea” (CARLOS, 2015, p.9).
43No sistema capitalista, o próprio espaço torna-se uma mercadoria, mas uma mercadoria com características distintas daquelas da produção fabril. Enquanto mercadoria, o espaço se expressa por seu valor de uso e pelo valor, que se manifesta em valor de troca. O acesso ao espaço socialmente produzido fica condicionado pela existência do título de propriedade sobre as frações do solo.
44Sobre o contexto atual do sistema capitalista, Lencioni (2015) afirma que “o domínio e a direção da reprodução do capital em geral está sob o manto das finanças. Dizendo de outra maneira, é o capital financeiro quem dirige e domina o processo de reprodução em geral” (LENCIONI, 2015, p. 150).
45Nesse sentido, Carlos (2009) argumenta que o que há de mais novo nesse processo é o fato de que o “setor financeiro vai se realizar por meio do espaço, isto é, produzindo o espaço, uma vez que o capital tende a migrar de um setor ao outro da economia, e quando isso ocorre, uma nova infraestrutura se torna necessária como condição e meio para que tal processo se realize” (CARLOS, 2009, p. 305).
46O espaço torna-se alvo dos grandes grupos empresariais ligados ao mercado financeiro. O Estado assume papel importante nesse processo, pois é o agente responsável por estabelecer os mecanismos que criarão uma nova base para a acumulação e reprodução do capital via produção do espaço. Conforme Prado (2005b), quase não há bens inerentemente públicos ou bens que não possam ser privatizados.
47Lefebvre (1978) argumenta que “o ar, a água, a luz, a terra – os elementos – adquirem valor de uso desde o momento em que eles se produzem e se vendem, portanto adquirindo valor de troca: o ar, com o ar condicionado; a água com o fornecimento por canalizações; a luz com a iluminação artificial; a terra enfim, e, sobretudo, logo que ela torna-se objeto de propriedade” (LEFEBVRE, 1978 apud. BAGGIO, 2002, p. 27).
48Nesse sentido, o setor do saneamento básico tem sido capturado pela lógica de mercado e servido de novo impulso para a reprodução do capital. Os serviços de esgotamento sanitário, que durante muito tempo ficaram a cargo do Estado, passam agora por uma nova forma de produção. Resgatando o conceito das condições gerais de produção (Karl Marx), e considerando o saneamento básico como parte integrante dos meios de consumo coletivo (LOJIKINE, 1997), cabe refletir sobre algumas transformações que chamam a atenção no período atual.
49Se antes havia certa dificuldade em inserir os meios de consumo coletivos no setor das mercadorias, principalmente por conta do lento processo de consumo desses bens, como no caso das redes de esgotamento sanitário, levando a uma baixa rotatividade do capital produtivo no setor de consumo e, consequentemente, uma baixa rentabilidade (LOJIKINE, 1997), no período atual observa-se a entrada maciça dos agentes privados na produção de saneamento básico, justificada pelas altas taxas de ganho na forma de renda proporcionadas aos investidores no setor. E isso graças à política neoliberal que tem se intensificado nos últimos anos, através da qual a produção dos meios de consumo coletivo tem servido como nova frente de expansão e reprodução do capital.
50Prova disso é o fato de que legislação brasileira vem preparando terreno e consolidando as bases para a entrada maciça dos agentes privados no setor. A Lei nº 11.445/2007, denominada Lei do Saneamento, e o Plano Nacional de Saneamento Básico – Plansab (2013), associados à Lei de PPP, já detalhada anteriormente, consistiram nas bases jurídicas e econômicas que faltavam para a entrada incisiva da iniciativa privada no ramo do saneamento básico.
51Conforme nota técnica do DIEESE (2017), com o objetivo de atrair a iniciativa privada e o capital estrangeiro, o Governo Federal admitiu a necessidade de alterações no atual modelo de regulação da economia brasileira. A instituição do Programa de Parcerias e Investimentos (PPI), em novembro de 2016, se deu com o objetivo principal de “designar ao Estado o papel de ‘regulador’ e acabar com qualquer ‘entrave burocrático’, inclusive ambiental, para a transferência de empresas estatais para a iniciativa privada” (DIEESE, 2017, p.2). Conforme o referido documento,
o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) ficará encarregado de formar e participar do Fundo de Apoio à Estruturação de Parcerias (Faep), de natureza privada, cuja finalidade será estruturar e moldar as parcerias com a iniciativa privada e programas de desestatização, atuando junto a qualquer órgão ou entidade da União, estados, Distrito Federal e municípios (DIEESE, 2017, p. 3).
52A Lei do Saneamento (2007) tornou obrigatório o investimento, por parte dos municípios, em redes de água tratada, coleta e tratamento de esgoto. Além disso, a referida lei também estabeleceu as bases legais para o estabelecimento dos contratos de concessão, assegurando as possibilidades de reprodução do capital do investidor privado.
53O Plano Nacional de Saneamento Básico (2013), por sua vez, estabeleceu a universalização dos serviços de tratamento de água e esgoto para todos os municípios brasileiros como a principal meta a ser cumprida até o ano de 2033. Desta forma, para o cumprimento da meta, o Governo Federal prevê um investimento total de R$ 508 bilhões de reais em saneamento básico, priorizando os contratos via PPP e privatizações. No período entre 2014 e 2016, as verbas concedidas pela União para as obras de saneamento giraram em torno de 09 (nove) bilhões de reais por ano (BRASIL, 2017).
54Conforme resolução, o Conselho do PPI resolveu opinar pela “qualificação de empreendimentos públicos estaduais de saneamento por meio de contratos de parcerias com o setor privado, no âmbito do Programa de Parcerias de Investimentos da Presidência da República” (BRASIL, 2016). Até 80% dos investimentos feitos pela iniciativa privada nessas parcerias poderão ser financiados pelo BNDES.
55Após a criação dos mecanismos jurídicos e econômicos que passaram a reger o setor de saneamento no Brasil, observou-se uma movimentação de empresas privadas buscando expandir seus negócios via privatização e formação de PPP para os serviços de água e esgotamento sanitário.
56Em entrevista concedida à grande mídia, Roberto Muniz, presidente da Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços de Água e Esgoto (Abcon), afirmou que “os governos começaram, finalmente, a olhar a infraestrutura como vetor de crescimento”. Em outro trecho da mesma reportagem, o presidente do Grupo Equipav, holding que controla a empresa de saneamento Aegea, afirmou que a taxa de retorno em saneamento é de 10% a 11% ao ano, “muito mais atraente do que o retorno de projetos de ferrovias ou rodovias, por exemplo,” disse o entrevistado, justificando, em seguida, que a garantia da rentabilidade no setor é, ainda, a baixa cobertura desses serviços, representando um enorme potencial de crescimento (ISTO É, 2013).
57O maior contrato de PPP em saneamento básico foi celebrado no ano de 2013 pelo governo de Pernambuco. O contrato firmado entre a Companhia Pernambucana de Saneamento (Compesa) e um consórcio formado pelas empresas Foz do Brasil, do Grupo Odebrecht, e Lidermac Construções prevê investimentos no montante de 4,5 bilhões de reais para universalizar o serviço de água e esgoto em 15 municípios da Região Metropolitana do Recife (BRASIL, 2014).
58Sobre o cenário das PPPs no contexto brasileiro, dados do DIEESE (2017) dão conta de que até o mês de março de 2017 foram anunciados
mais 55 projetos do PPI, entre eles a desestatização de outras 14 empresas estaduais de saneamento. [...] De acordo com a Associação Brasileira de Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon), a iniciativa privada opera os serviços de fornecimento de água e esgotamento sanitário em 316 municípios de 18 estados no Brasil. No total, são 258 contratos de prestação de serviços, distribuídos em 133 concessões plenas, 28 parciais, 15 parcerias público-privadas (PPPs), 3 locações de ativos e 1 subdelegação de serviços. Além disso, existem outros 78 contratos de assistência técnica. A estimativa da Abcon (2016) é que, nesses contratos, os serviços prestados atinjam 31,11 milhões de pessoas. Segundo o Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Sindcon), somente seis empresas concentram em torno de 95% dos negócios privados, são elas: OAS, GS Inima, Odebrecht Ambiental, Águas do Brasil, Aegea e Cab Ambiental. (DIEESE, 2017, p. 3).
59Para Moraes (2016), as PPPs consistem na forma mais predatória de relação entre os poderes público e privado. Isto porque elas funcionam nos moldes do capitalismo sem riscos. Conforme o autor, trata-se de uma parceria entre aspas, “porque o parceiro privado acaba usufruindo bastante dos recursos públicos, através de linhas de crédito a juros baixíssimos, apropriando-se desses recursos” (MORAES, 2016, s/p), e uma vez no exercício da operação e manutenção, ou seja, da exploração dos serviços públicos de água e esgoto, ele praticamente determina os espaços onde haverá a construção das obras e a ampliação dos serviços. De acordo com Moraes (2016),
entre uma população de baixa renda na periferia que muitas vezes nem tem ainda o serviço de saneamento, ou tem de maneira inadequada, e uma população de renda média, ele [o parceiro privado] prefere, óbvio, investir naqueles bairros com esse perfil de maior capacidade de pagamento, porque sabe que ali vai obter lucro sem risco nenhum. Enquanto lá na periferia ele pode não conseguir obter o retorno monetário desses recursos aplicados (MORAES, 2016, on-line).
60As decisões políticas se articulam cada vez mais aos interesses dos grupos financeirizados, e isso tem repercutido na forma com que as legislações vigentes são constantemente remodeladas em favor dos referidos grupos. De acordo com Prado (2005b), o surgimento da empresa totalmente rentista, onde, mesmo havendo geração de valor e de mais-valia, a finalidade principal é a captação de renda, define bem o período atual.
61Entende-se por renda todo título de propriedade que permite, por sua exclusividade, proporcionar um ganho ao seu detentor pelo simples direito de propriedade. Sobre a renda fundiária, Marx (1985-1986) esclarece que é somente o título de certo número de pessoas “sobre a propriedade do globo terrestre que lhes capacite a se apropriarem, como um tributo, de parte do mais-trabalho da sociedade” (MARX, 1985- 1986, p. 239). Desta forma,
O dono de terra é rentista, porque a renda fundiária que lhe é devida liga-se ao fato de ser proprietário de uma dada porção do globo terrestre (que pode ser explorada capitalistamente). Dono de capital monetário é rentista, porque o juro que lhe é devido liga-se ao fato de ser dono de um montante de dinheiro (que pode ser empregado como capital). (PAULANI, 2016, p. 518).
62O capitalismo contemporâneo é marcado por um fortíssimo traço rentista. Trata-se de um rentismo que agora é constitutivo do processo de acumulação, e não mais um entrave à acumulação, como outrora se apresentavam, conforme apontam Chesnais (2005) e Prado (2005b).
63Para Chesnais (2005), estamos diante de um novo capitalismo, cuja dinâmica centra-se no capital portador de juros. A finança atual, conforme propõe o autor, é marcada pela ação do mercado secundário de títulos, o qual somente negocia os ativos já emitidos e possibilita a valorização fictícia da propriedade que já existe. Chesnais (2005) afirma que o que define o capitalismo atual é a “reconstituição de uma massa de capitais procurando se valorizar fora da produção, como capital de empréstimos e de aplicação financeira, tem por origem o esgotamento progressivo das normas de consumo e a baixa rentabilidade dos investimentos industriais” (CHESNAIS, 2005, p. 38).
64Neste contexto, o papel da propriedade torna-se fundamental, pois é por meio dela que se criam os direitos aos rendimentos sob a forma de aluguéis, de rendas fundiárias, de juros e de rendimentos relacionados às aplicações em Bolsa de Valores. Chesnais (2005) utiliza o termo “propriedade patrimonial” referindo-se ao direito à renda, seja a renda advinda da propriedade de imóveis, seja a renda que provém das aplicações do capital-dinheiro em atividades financeiras. Chesnais (2005) adverte que a propriedade patrimonial não tem por finalidade nem o consumo nem a criação de riqueza que aumentem a capacidade de produção, mas sim o rendimento.
65O exemplo brasileiro dos contratos de concessão por meio de PPP para as obras de saneamento básico nos servem de exemplo sobre esse tipo de rentismo. Conforme Paulani (2016), “nesse tipo de contrato, portanto, as rendas produzidas pelo trabalho executado no setor são inteiramente privatizadas, ao invés de ficarem sob o controle do Estado” (PAULANI, 2016, p. 527). Segundo a autora, esse tipo de contrato é o que mais combina com o processo de financeirização da economia, traço marcante do capitalismo contemporâneo.
66Ao contrário dos contratos de serviço que vinculam ao capital apenas o lucro obtido na prestação dos serviços, as concessões atrelam ao capital também as rendas produzidas no processo de exploração dos recursos (PAULANI, 2016). A promoção da participação privada nos serviços de saneamento responde à lógica do capitalismo financeirizado, que assume no Brasil contornos altamente conservadores, decorrentes de um neoliberalismo intensivo com traços notadamente rentistas.
67Ao obter a concessão para a produção e exploração de determinado serviço público, no caso em análise, a concessão do esgotamento sanitário, a empresa vencedora da disputa obtém, por conseguinte, o monopólio sobre a prestação e exploração do serviço por um determinado período de tempo. Isso permite à empresa privada não só estabelecer os preços do serviço de esgotamento, como também cobrar um tributo na forma de renda pelo mero título de concessão desse tipo de serviço monopolizado. A exclusividade da operação do esgotamento sanitário pelo parceiro privado se configura no monopólio deste sobre o serviço público de esgoto, monopólio que permite ao ente privado traçar suas estratégias com a finalidade de deixar o negócio cada vez mais lucrativo, como a possibilidade de se obter receitas extras por meio de atividades alternativas, como o beneficiamento do esgoto para a produção de água de reuso, como já acontece em algumas cidades brasileiras onde a produção de saneamento na forma de PPP já foi implantada.
68Ao se produzir infraestrutura para saneamento básico, se produz também o espaço, produção esta que se articula ao processo global de acumulação capitalista. A produção via PPP possui um caráter rentista que se reflete no modo como o espaço é produzido socialmente e como o próprio espaço torna-se um ativo financeiro por meio dos títulos de propriedade, através dos contratos de concessão à iniciativa privada.
69Desta forma, a produção do esgotamento sanitário no contexto do capitalismo contemporâneo tem assumido cada vez mais um caráter corporativo, através do qual as grandes holdings do setor de infraestrutura encontram novas oportunidades de valorização e reprodução do capital, em especial, os capitais advindos das finanças. A lógica rentista se apodera do bem público, dando-lhe uma nova roupagem e onerando os serviços para as camadas mais pobres da população.
- 2 A Cesan é uma empresa de economia mista, controlada pelo Governo do Estado do Espírito Santo, que (...)
70O governo do Espírito Santo não aderiu ao programa de concessão de companhias de água e esgoto do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), mas vale frisar que o governo capixaba já vinha colocando em prática as PPPs e tem atraído investidores, principalmente para serviços de esgotamento sanitário de alguns municípios da Região Metropolitana da Grande Vitória (RMGV). Até o ano de 2018, o Governo do Estado, por meio da Companhia Espírito Santense de Saneamento (Cesan)2, já havia firmado contratos na forma de PPP para a ampliação, manutenção e operação do sistema de esgotamento sanitário dos municípios de Serra e Vila Velha.
MAPA 1: Localização do município de Serra no contexto da Região Metropolitana da Grande Vitória (RMGV)
Fonte: Elaborado pelos autores
71Inserido no contexto da Região Metropolitana da Grande Vitória (RMGV), o município de Serra viveu um intenso crescimento populacional a partir da década de 1970, devido, principalmente, à mudança do perfil produtivo do Espírito Santo, da decadência do café e sua erradicação na década de 1960 para a implantação de plantas industriais no município, a partir da década de 1970.
72Não foi por acaso que Serra recebeu a primeira PPP do estado do Espírito Santo, tampouco o fato de a primeira PPP do estado ter sido na área de saneamento básico. Em 1970, Serra possuía uma população de 17.286 habitantes. Nas décadas que se seguiram, o crescimento foi acelerado, chegando a uma população de 502.618 habitantes em 2017, tornando-se o município mais populoso do estado do Espírito Santo (IBGE, 2017).
73O mercado imobiliário se formou plenamente em Serra a partir dos anos 2000, quando o município recebeu inúmeros lançamentos imobiliários realizados tanto por empresas locais como por empresas de abrangência nacional. Em 2011, o município concentrou 78,9% das unidades imobiliárias lançadas na Região Metropolitana da Grande Vitória (RMGV). Conforme os dados dos projetos aprovados na Secretaria de Desenvolvimento Urbano da Serra, somente no período entre 2009 e 2010 foram aprovados mais de 7,5 mil unidades imobiliárias (ALVES, 2017).
74Até o final do ano de 2013, o serviço de esgotamento sanitário de Serra esteve na responsabilidade da Cesan. A partir de 2014, o consórcio Serra Ambiental assumiu, já na forma de PPP, os serviços de produção, operação e manutenção do esgotamento do munícipio. Toda a infraestrutura produzida até então pela Cesan foi repassada para o parceiro privado, assim como as obras que estavam em andamento naquele momento.
75A implantação da primeira PPP capixaba se deu por meio de Concorrência Internacional, aberta pela Cesan, para a concessão administrativa dos serviços de ampliação, manutenção e operação do sistema de esgotamento sanitário do município de Serra, no ano de 2014. O Consórcio Serra Ambiental foi a empresa vencedora do certame. O valor do contrato corresponde ao montante de R$ 485.498.350,11, corrigido anualmente, de acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).
76A Serra Ambiental é uma Sociedade de Propósito Específica (SPE) formada pelo consórcio entre três empresas: a construtora Aterpa M. Martins S/A, Sonel Engenharia S/A e Mauá Participações Estruturadas S/A, cada empresa com a cota de 33% do negócio. Em novembro de 2016, a Aegea, uma holding do saneamento, comprou a Sonel Engenharia S/A e adquiriu a cota da Aterpa M. Martins S/A no consórcio, assumindo, assim, o controle administrativo da Serra Ambiental.
77O modelo de remuneração da concessionária, estipulado em contrato, se dá através de uma contraprestação mensal que corresponde à soma de uma parcela fixa, equivalente à remuneração dos investimentos realizados pela concessionária, e uma parcela variável, equivalente à remuneração pela execução dos serviços.
78A parcela fixa será paga em 360 meses e sofrerá correção anual, de acordo com o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). Já a parcela variável corresponde ao preço unitário sobre o metro cúbico de esgoto proveniente de todo o município de Serra, incluindo mais uma taxa sobre a operação, manutenção e tratamento do esgoto proveniente do município de Fundão. Outro mecanismo de cobrança é o acréscimo de 10% sobre o preço cobrado por m3 de esgoto, onde o hidrômetro estiver instalado há mais de 08 anos, a título de compensação por possíveis registros de medição a menor.
79Além da contraprestação mensal, a concessionária também poderá explorar as “receitas alternativas” relacionadas ao esgotamento sanitário, desde que não envolvam o fornecimento de água e nem as atividades relacionadas aos biossólidos. Conforme o contrato de concessão, as “receitas alternativas” serão compartilhadas com a Cesan, que terá direito a receber 20% (vinte por cento) da receita líquida, exceto as receitas alternativas relativas à ligação intradomiciliar. Cabe mencionar que a porcentagem a ser compartilhada com a Cesan poderá ser descontada no preço da contraprestação a ser por ela paga.
80Apesar de a PPP para o esgotamento sanitário em Serra ser ainda recente, algumas mudanças já são percebidas, principalmente no que se refere ao preço das tarifas e à forma de organização do processo produtivo.
81Em 2014, quando a PPP ainda estava em vias de implantação, a Cesan realizou o reajuste de 5,31% nas tarifas de água e esgoto para os municípios da Região Metropolitana da Grande Vitória (RMGV). Em 2015 e 2016, durante os dois primeiros anos de operação da PPP, os reajustes realizados pela Cesan sobre os serviços de água e esgoto foram de 10,59% e 11,06%, respectivamente (ESPÍRITO SANTO, 2018). O aumento sobre as tarifas de água e esgoto ocorreu no mesmo período em que a Cesan iniciou o pagamento de suas obrigações com a Serra Ambiental. Teve início o pagamento das contraprestações mensais e também o depósito de garantia na Conta de Reserva e na Conta Vinculada por parte da Cesan, no montante inicial de R$ 2 milhões.
82Após a implantação da PPP em Serra, uma nova tarifa foi criada pelo governo estadual. A Lei 10.495/2016 instituiu a cobrança da tarifa pelas prestadoras de serviços públicos de saneamento básico, em razão da disponibilidade da infraestrutura do esgotamento sanitário. A nova tarifa está sendo cobrada dos usuários que possuem rede e tratamento de esgoto à disposição e que, mesmo após comunicado da Cesan, não efetuaram a ligação do imóvel ao ponto de coleta de esgoto. Trata-se de um dispositivo que busca inibir o lançamento irregular de esgoto e, ao mesmo tempo, aumenta o número de contribuintes para as concessionárias de água e esgoto que operam no estado, principalmente para a Cesan. Vale ressaltar que uma parte da contraprestação mensal paga à Serra Ambiental pela Cesan provém justamente do volume de esgoto tratado. Desta forma, quanto maior o número de imóveis ligados à rede coletora, maior será o repasse da Cesan para a Serra Ambiental.
83O caso de Serra e de outras cidades brasileiras evidenciam que o saneamento básico se tornou um novo ambiente de negócios. Além de executar novas obras, a empresa se beneficia operando o sistema físico previamente constituído. No caso da Serra Ambiental, toda a infraestrutura construída anteriormente à concessão pela estatal foi transferida para o consórcio privado.
- 3 Conforme ação promovida pelo Sindicato dos Trabalhadores em Água, Esgoto e Meio Ambiente do Espír (...)
84Antes da implantação da PPP, o município de Serra contava com 21 Estações de Tratamento de Esgoto (ETE) e 129 elevatórias de esgoto. Uma das metas do Consórcio Serra Ambiental é reduzir essas 21 ETES para 10 ETES, com a possibilidade de se reduzirem também as elevatórias. A redução do número de ETES vem acompanhada da redução do quadro de funcionários. Em 2016, após a Aegea assumir o controle acionário da Serra Ambiental, foram demitidos 73 dos 200 funcionários que a empresa empregava. As demissões faziam parte da reestruturação administrativa promovida pela nova gestão da PPP3.
85Tanto na Serra Ambiental como nas empresas que a controla, a “governança corporativa” aparece como um dos pilares fundamentais para a liquidez do negócio. Conforme Chesnais (2003), a governança corporativa é uma característica do regime de acumulação sob o domínio das finanças, que estabelece novas formas de relações entre acionistas, dirigentes das empresas e empregados, e acentua a influência da finança sobre os governos.
86A criação do Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento do Saneamento Básico (REISB), pela Lei 13.329/2016 (BRASIL, 2016), serve de exemplo para demonstrar a influência política e econômica das grandes empresas sobre o poder público. Trata-se de um mecanismo institucional, criado com o objetivo de estimular a empresa prestadora de serviços públicos de saneamento básico a aumentar seu volume de investimentos, por meio da isenção à contribuição ao Programa de Integração Social – PIS, ao Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público – PASEP e à Contribuição para Financiamento da Seguridade Social – COFINS.
87O REISB se estenderá até o ano de 2026, e não se aplica às empresas optantes pelo Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte – Simples Nacional, mas abrange as grandes empresas do setor de saneamento.
88As mudanças na legislação, em torno do saneamento básico, não foram realizadas ao acaso. Trata-se de mais uma estratégia onde os agentes empresariais jogaram todos os esforços, no sentido de influenciar a política pública e a elaboração e aprovação de leis. Tais articulações refletem o que já anunciava Lefevbre (1999), para quem, “no capitalismo, a base econômica comanda. O econômico domina. As estruturas e superestruturas organizam as relações de produção (o que em nada exclui os atrasos, os distanciamentos e as disparidades)” (LEFEBVRE, 1999, p. 112).
89Nesse sentido, o saneamento foi inserido na lógica atual do mercado, e os serviços prestados pelo setor possuem caráter rentista. Primeiro, a questão da água, depois, a coleta e o tratamento do esgoto tornaram-se objetos extremamente rentáveis. Percebe-se uma articulação entre os agentes privados e o poder público para a formulação e aprovação de leis para ocupar o espaço que, até então, era ocupado pelas empresas públicas. Conforme Borja (2017), trata-se de um modelo de prestação de serviços que se assenta na lógica da governança corporativa (CHESNAIS, 2003), da eficiência econômica e da rentabilidade do capital, e não vai responder a outras lógicas, como a da justiça e da inclusão social.
90A própria ação do capital imobiliário em Serra é um dos elementos que nos permite compreender um pouco mais dessa articulação entre os agentes privados e o poder público. Articulações que contribuem ainda mais para a segregação socioespacial na cidade.
91A produção imobiliária que se desenvolveu em Serra é voltada para faixas bem acima do nível médio de renda de grande parte da população do município. Não se trata então de atender a uma demanda social, mas sim a uma demanda de mercado. Isso se torna mais evidente quando a própria gestão municipal enxerga a atividade imobiliária como um fator positivo para a transformação do perfil socioeconômico do morador de Serra. De acordo com a Secretária de Desenvolvimento Urbano (gestão 2008-2012),
a estratégia é colocar moradia de alta renda, porque vindo moradia de mais alta renda a gente trabalha o setor de serviços e comércio, que é o que emprega e é o que distribui renda (...) nós precisamos incrementar a riqueza da população para aumentar a possibilidade dessa população ter mais renda. E crescer, mas não crescer naquele nível de população de menor renda. E o que tem isso a ver com a política urbana? Tem a ver porque a forma como foi encontrada na Serra foi através dos condomínios e loteamentos. (Secretária de Desenvolvimento Urbano de Serra, 2009, apud. Zanotelli; Ferreira, 2011).
92Observa-se a legitimação do processo de exclusão social, por parte da própria gestão municipal, em diversos níveis. Consolida-se a exclusão social por meio dos espaços urbanizados privativos (condomínios residenciais e loteamentos de alto padrão), cujos muros impedem a entrada do restante da população nessas áreas.
93Também se amplia a segregação social ao se priorizar empreendimentos para pessoas com nível de renda mais elevado, relegando aos demais moradores a moradia precária em áreas periféricas, muitas vezes, por meio de ocupações irregulares e loteamentos clandestinos. Para esses moradores, não haverá universalização dos serviços de esgoto, pois não se inserem na “cidade legalizada”, sob o controle dos órgãos públicos de fiscalização, resumindo, não geram receitas, na forma de impostos, para a gestão municipal, nem rendimento para as concessionárias de energia, água e esgoto.
94No período atual do capitalismo, os limites entre o público e o privado se apresentam como fronteiras a serem removidas. Nos momentos de grandes crises, o Estado movimenta-se para assegurar a valorização e a acumulação do capital, criando condições para o surgimento de novos negócios em diversas modalidades. Abrem-se novas frentes para a expansão do capital.
95O processo de globalização foi responsável pela introdução de um novo padrão de acumulação e regulamentação social e política, a partir dos anos 1970 (HARVEY, 2008; PRADO, 2005b). Paralelo a isso, as políticas neoliberais e a desregulamentação financeira, associada à mundialização do dólar e ao desenvolvimento dos fundos de pensão, liberaram um enorme volume de dinheiro no mercado financeiro. Dinheiro em busca de valorização. Desta forma, o mundo dito globalizado torna-se essencialmente dominado pelas finanças.
96Na busca por valorização, o capital assume posições em espaços onde ainda não havia penetrado. A influência política e econômica exercida pelas grandes corporações pressionam cada vez mais os Estados nacionais, principalmente pelo fato de o Estado possuir os principais mecanismos que transformam as transações econômicas no mercado. Os governos possuem ainda um papel essencial para o capital, em especial para a “desregulamentação” dos mercados nacionais. Isso significa um enorme aparato de normas e leis criadas para a entrada do capital financeiro em áreas antes não visadas, como o setor de saneamento.
97Wallerstein (2003) argumenta que cabe ao Estado o poder da restrição legal. Nesse sentido, o Estado pode decretar ou proibir monopólios, assim como criar cotas. O Estado pode simplesmente assumir parte dos custos de produção do capitalista, por meio da concessão de crédito e subsídios, ou, ainda, pode beneficiar múltiplos empresários, simultaneamente, na construção de infraestrutura e das condições gerais de produção. Além disso, o autor argumenta que “o Estado oferece aos empresários a possibilidade de não pagar os custos de reparação dos danos que infligem ao que não é sua propriedade” (Wallerstein, 2003, p. 98). Desta forma, quando os empresários não assumem a responsabilidade sobre determinados impactos da atividade produtiva, como no caso da degradação ambiental, por exemplo, o Estado está permitindo o repasse dos custos à sociedade em geral.
98Neste contexto, o setor de infraestrutura pública inseriu-se perfeitamente na lógica de mercado do rentismo. A produção do bem público pelo parceiro privado não ocorre de maneira desinteressada. Estipula-se um preço, um tributo que precisa ser pago pelo morador da cidade que deseja ter acesso ao bem produzido.
99No Brasil, a novidade do momento tem sido o saneamento básico. A criação de legislação específica (Lei de PPPs e Lei do Saneamento), o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab) e a promoção de privatizações e PPPs por um órgão do próprio Governo Federal (PPI) deixam claras as articulações entre os agentes privados, para a conquista e mercantilização dos bens públicos. Trata-se de uma lógica rentista que capturou, estrategicamente, o setor de saneamento como fonte de acumulação e reprodução do capital de origem financeira. Através das concessões, dos incentivos e das altas taxas de retorno de investimento, o esgotamento sanitário abriu uma nova frente de expansão de negócios e de remuneração do capital.
100O mero título de monopólio dos bens e serviços públicos garante ao parceiro privado a oportunidade de extrair renda sobre bens e serviços que antes eram produzidos pelo Estado. Agora, são bens que servem ao capital. Além da renda obtida pelo mero título de propriedade via concessão, existe também a possibilidade de se explorar outras atividades que podem ser agregadas ao contrato, a médio e longo prazos.
101Pesquisas recentes têm indicado a tendência para a reestatização de diversos setores em âmbito internacional, principalmente nos países da Europa e das Américas. Conforme apontam Pigeon, McDonald, Hoedman, Kishimoto (2013) e Lobina, Kishimoto, Petitjean (2015), entre os anos 2000 e 2014 ocorreram mais de 845 casos de reestatização dos serviços públicos, envolvendo mais de 1600 cidades, em 45 países ao redor do mundo. Deste total, 235 casos de reestatização corresponderam aos serviços de abastecimento de água e saneamento, em 37 países, a maioria em países ricos. A principal justificativa dos governos locais para cessação dos contratos de PPPs está relacionada a problemas na gestão privada da água, à falta de investimento em infraestruturas, ao aumento das tarifas e até mesmo a danos ambientais.
102O Brasil segue na contramão desse processo. Negligenciando as experiências, na maior parte negativa, dos outros países, o Governo Federal vem empreendendo um projeto de privatizações e formação de parcerias entre os setores público e privado. Com o auxílio do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), criam-se estratégias cada vez mais vantajosas para atração de investidores privados para as obras de infraestrutura pública. A concessão de crédito a juros mais baixos, isenção fiscal e garantia de retorno ao investimento são os principais mecanismos para a realização desse projeto, colocando por terra o discurso sobre a escassez de recursos e inabilidade dos governos, e revelando a subordinação do Estado ao capital.
103Desta forma, as políticas públicas para o saneamento básico, no contexto nacional, se mostram cada vez mais rentáveis para os investidores, porém, excludente para a parcela mais pobre da população, ampliando a segregação socioespacial na cidade.
104Visando os municípios mais populosos e as áreas mais valorizadas da cidade, onde geralmente reside a população com maior poder aquisitivo, os investimentos em infraestrutura via PPP tendem a concentrar-se onde o risco de inadimplência é menor, desta forma, não comprometendo a rentabilidade do consórcio.
105Priorizam-se os bairros elitizados, em detrimento das áreas onde reside a população mais pobre, restringindo o acesso ao serviço somente para parcela da sociedade que pode pagar por ele, ou então se amplia o acesso aos mais pobres por meio de tarifa subsidiada pelo Estado.