- 1 Este artigo resulta da pesquisa de Pós-Doutorado intitulado EcoFilosofia: Deleuze/Guattari e Heide (...)
1O presente artigo foi escrito a quatro mãos, a partir da pesquisa de Pós-Doutorado, cujo título é EcoFilosofia: Deleuze/ Guattari e Heidegger – diálogo virtual, vinculada ao CNPQ/ FAPES/UFES1, que ainda se encontra em curso. Trata-se de uma pesquisa desenvolvida no âmbito da Filosofia, que se divide em duas partes. A primeira parte é dedicada ao pensamento e à obra do filosofo alemão Martin Heidegger. Grosso modo, nesta primeira parte, o propósito foi o de demonstrar a hipótese segundo a qual, ao ater-se às questões relativas ao ser-aí do homem (Dasein), ao ser da natureza e às relações entre ambos, Heidegger elabora um novo conceito, a saber, o conceito de EcoFilosofia, que, no entanto, encontra-se subjacente ao seu próprio pensamento. Com isto, a EcoFilosofia apresenta-se como o impensado do pensamento de Heidegger. Aqui, o impensado não significa o não-pensado, mas o pensado, que, todavia, não foi enunciado enquanto tal. Ocorre que, ao pensar a EcoFilosofia, Heidegger elaborou três teses orientadoras de seu próprio pensamento, a saber, “a pedra é sem mundo”, “o animal é pobre de mundo” e “o homem é criador de mundo”. Pois, a partir da análise acerca da tese sobre o animal, ou antes, sobre o ser do animal, já que se trata de uma tese ontológica, escrevemos este artigo com dois grandes objetivos: por um lado, apresentar os principais conceitos que versam sobre o ser do animal; e, por outro, ao apresentá-los através de uma interligação e uma articulação, demonstrar uma hipótese que nos parece original, uma hipótese que tem a ver com a questão da temporalidade relativa ao ser do animal, a hipótese segundo a qual o modo de ser temporal do ser do animal caracteriza-se pela ubiqüidade entre o futuro e o passado. É que, diferente do ser-ai do homem, cuja existência (ek-sistência) consiste numa transição entre o passado, o presente e o futuro enquanto seus próprios modos de ser temporais, o ser do animal não possui propriamente uma existência, tendo em vista a impossibilidade de transição entre seus próprios modos de ser temporais. Esta impossibilidade deve-se à ausência do presente, bem como à simultaneidade entre o futuro e o passado, o que, a nosso ver, caracteriza a temporalidade do ser do animal.
2Em sua preleção Os conceitos fundamentais da metafísica: mundo, finitude, solidão, realizada nos anos 1929 e 1930, Heidegger elabora três teses orientadoras de seu pensamento, a saber, a pedra é ausente de mundo, o animal é podre de mundo e, finalmente, o homem é criador de mundo. O objetivo deste artigo é o de entender o conceito de animal, tal como pensado pelo filósofo alemão. Por isto, devemos começar pela segunda tese, justamente a tese sobre o animal, que se encontra entre a tese sobre a pedra e a tese sobre o homem. Mas, ao atentarmos para a referida tese, devemos perguntar: o que significa “ser pobre”? Segundo Heidegger, ser pobre significa ser privado. Esta privação possui uma plurissignificância dentro da qual Heidegger procura o significado que se relaciona, ao mesmo tempo, à animalidade e à pobreza de mundo, de tal modo que não se perca nas “explicações linguistas” nem tampouco na “mera ideia quantitativa de menos”. Se ser pobre de mundo significa ser privado de mundo, ser privado de mundo denota não-ter mundo. Portanto, essencialmente, o animal não tem mundo. Com isto, evidencia-se uma distinção entre a segunda e a terceira tese, visto que, se o animal é despossuído de mundo, o homem é possuidor de mundo. Por outro lado, salta aos olhos uma homologia entre a segunda e a primeira tese, o que atesta um deslocamento da análise comparativa operada por Heidegger neste ponto da preleção, haja vista que tanto o animal quanto a pedra não têm mundo. Trata-se, porém, de uma homologia apenas aparente, uma vez que, na verdade, “o não-ter mundo não é pensado nos dois casos no mesmo sentido” (Heidegger, 2006. p. 227). É que se, no animal, o não-ter mundo acena para a privação de mundo, ao passo que, na pedra, o não-ter mundo aponta para a ausência de mundo. Ainda que os enunciados “sem mundo” da tese sobre e pedra e “pobre de mundo” da tese sobre o animal impliquem um não-ter mundo dos referidos entes, a pedra “não pode nem mesmo ser privada de algo do gênero do mundo” (Heidegger, Op. cit., p. 227). Mas, afinal, o que é esta ausência de mundo da pedra? De acordo com Heidegger, a ausência de mundo não é senão o próprio modo de ser do ser da pedra, o modo de ser do “ser-pedra” da pedra, o que testemunha “o contexto ontológico da natureza física e material e, ainda, a ordem de suas leis” (Heidegger, Op. cit., p. 228). Mas o que nos diz a ausência de mundo enquanto status ontológico da pedra? Diz que a pedra “é”, embora seu ser seja ao modo de uma ausência de acesso ao ente enquanto tal, não interessando caracterizar esta ausência como uma falta, uma carência, uma privação de acesso ao ente, a exemplo do modo de ser do ser do animal.
3Donde uma definição provisória de mundo, que tem a ver com o modo de ser do ser dos entes vivos ou viventes (animal, planta, homem) enquanto acessibilidade: “mundo é o ente sempre a cada vez acessível e corrente. Mundo é o que é acessível, isto com o que uma lida é possível ou necessária para o modo de ser do ente” (Heidegger, Op. cit., p. 228).
4Isto aponta para a acessibilidade enquanto um conceito que concerne ao modo de ser do ser dos viventes. A pedra é sem mundo porque seu modo ser caracteriza-se pela ausência de acessibilidade ao ente enquanto tal. Já o animal é pobre de mundo porquanto seu modo de ser caracteriza-se pela privação de acessibilidade ao ente enquanto tal. Se considerarmos que a acessibilidade não é senão uma ligação, ao mencionar a privação de acessibilidade ao ente enquanto tal, Heidegger atém-se à questão da ligação do animal com o ente, uma ligação que lhe é absolutamente própria e específica. Diferente da pedra, que está simplesmente dada ao lado de outros entes, o animal liga-se aos demais entes em seu entorno. Esta ligação, todavia, nunca é uma ligação com o ente enquanto tal, isto é, uma ligação do ente enquanto ente.
Quando dizemos que o lagarto está sobre a rocha, precisamos riscar a palavra “rocha” para indicar que isto sobre o que ele se encontra lhe é dado em verdade de algum modo, mas, não obstante, não é conhecido por ele enquanto rocha, Este riscar não diz apenas: tomar algo diverso e como algo diverso. Ao contrário, ele diz: acima de tudo inacessível enquanto ente. (...) Assim, várias coisas são acessíveis para o animal: não algo qualquer em limites quaisquer. Seu modo de ser, que chamamos “vida”, não é desprovido de acesso ao que ainda está além disto ao seu lado, a isto em meio ao que ele advém como ser vivo que é. Daí dizermos em virtude desta conexão: o animal tem seu mundo ambiente (meio ambiente) e movimenta-se nele. Durante sua vida, o animal está encerrado em seu mundo ambiente (meio ambiente) como em um tubo que não se amplia nem se estreita. (Heidegger, Op. cit., p. 229 e 230)
5O filósofo francês Jacques Derrida clareia esta questão da rasura em nossa linguagem. Ele comenta:
A rasura marcaria na nossa linguagem, evitando uma palavra, essa incapacidade do animal de dar nomes. Mas esta é, primeiro, a incapacidade de se abrir ao como tal da coisa. Não é da rocha como tal que o lagarto tem experiência (...) Essa incapacidade de nomear não é só ou simplesmente linguística; refere-se à impossibilidade propriamente fenomenológica de dizer o fenômeno da fenomenalidade enquanto tal, de que o como tal mesmo não aparece ao animal e não desvela o ser do ente. (Derrida, 1987, p. 67)
6Com isto, Heidegger introduz duas questões teóricas da máxima relevância em sua investigação: por um lado, pela primeira vez em sua preleção, embora ainda sem analisá-la e conceituá-la, traz à baila a questão da estrutura - “enquanto”; por outro, apesar de não citá-lo diretamente, já entabula um diálogo com o cientista alemão J. von Uexküll a respeito da teoria dos mundos próprios dos animais, tal como veremos a seguir. Se o mundo é a acessibilidade ao ente; se a acessibilidade caracteriza o conceito de mundo de modo fundamental; e, finalmente, se o vivente tem acesso ao ente; então, de fato, o animal está ao lado do homem na medida em que tem mundo. Mas, por outro lado, se o animal é pobre de mundo; se a pobreza de mundo é uma privação; e, finalmente, se esta privação é um não-ter; então, na verdade, o animal está ao lado da pedra na proporção em que não tem mundo. No animal, esta simultaneidade entre ter e não-ter mundo caracteriza uma contradição, o que só é possível porque, segundo Heidegger, “a metafísica e o que há de propriamente essencial possuem uma lógica diversa do saudável entendimento humano” (Heidegger, Op. cit., p. 230). Faz-se necessário iluminar o problema da pobreza de mundo do animal, mas para iluminar tal problema, é mister elucidar outra questão: a animalidade enquanto essência do animal.
7No entanto, a elucidação da questão da animalidade impõe um problema metodológico anterior: a transposição. É que, ao perguntarmos pela acessibilidade, perguntamos pela possibilidade de um ente (pedra, animal, homem) estabelecer uma ligação com os demais entes. Todavia, ao perguntarmos pela transposição, perguntamos pela possibilidade de um ente conhecer outros entes (pedra, animal, homem) através da acessibilidade enquanto uma ligação entre os entes. Para Heidegger, dentre os entes, o homem é aquele cujo ser possui uma evidente capacidade de transponibilidade. Donde por que as três perguntas elaboradas a partir da perspectiva do homem: “Podemos nos transpor para o interior do animal? Podemos nos transpor para o interior da pedra? Podemos nos transpor para o interior de outro homem?” (Id. ib., p. 235). Ao especificar cada uma destas três perguntas, Heidegger pode dar diferentes respostas acerca da possibilidade desta transposição do homem em relação a cada um dos três referidos entes. Para ele, a pergunta pela transposição ao interior da pedra é impossível, assim como a pergunta pelos meios fáticos de fazê-lo é sem sentido, na medida em que o ser da pedra não possui nem oferece uma esfera de transponibilidade para seu interior. Quanto à pergunta pela transposição ao interior do animal, Heidegger responde que se trata de uma pergunta possível, na proporção em que seu ser possui e oferece uma esfera de transponibilidade, embora os meios necessários para a sua realização fática sejam problemáticos. Por fim, Heidegger considera a pergunta pela transposição ao interior de outro homem como uma pergunta supérflua: o homem está sempre e necessariamente transposto para o interior de outro homem porque um dos modos de ser do ser-aí é o “ser-com os outros”, “mesmo que não haja faticamente nenhum outro homem por perto” (Heidegger, Op. cit., p. 237), ou seja, a existência é sempre e necessariamente uma co-existência. Com isto, Heidegger chega à três conclusões: 1. esta transposição é um modo de ser do ser-aí do e no homem; 2. este ser-transposto enquanto modo de ser do ser-aí do e no homem tem um direito auto-evidente (apodítico), de tal modo que dispensa o próprio consenso; 3. este ser-transposto, que pertence à essência ontológica do homem, é o já sempre ter sido transposto para o interior de outro homem, mas também o transpor-se para o interior do animal em particular e do vivente em geral. Mas, justamente, transpor-se para interior do animal em particular e do vivente em geral não implica a possibilidade de acompanhá-lo em seus modos de ser. O animal, ao não estabelecer uma acessibilidade no sentido de uma ligação com ente enquanto tal, veda o acompanhamento do homem aos seus modos de ser, ainda que admita a transposição do homem ao seu interior. Eis por que o modo de ser do ser do animal caracteriza-se pelo “poder-conceder uma transposição” e pelo “precisar-vedar um acompanhamento”. Com isto, Heidegger delimita, não obstante ainda como um esboço, o conceito de animalidade enquanto essência do animal. A delimitação do conceito de animalidade através do “precisar-vedar um acompanhamento”, que se refere ao “não-ter” o ente enquanto tal, leva Heidegger à conclusão de que o animal também não tem mundo, uma privação de mundo enunciada pela tese “o animal é pobre de mundo”, que não apenas corrige sua conclusão anterior, mas também resolve o problema da contradição supracitada, qual seja, a de que o animal tem e não tem mundo em simultaneidade.: o animal não tem mundo, ainda que tenha acessibilidade enquanto ligação com o ente. A propósito desta conclusão a que chega Heidegger, Derrida afirma que o (...)
(...) animal também não tem mundo, porque é privado dele, mas sua privação significa que seu não-ter é um modo de ter e mesmo uma certa relação com o ter-um-mundo. O sem do sem-mundo não tem o mesmo sentido, não diz a mesma negatividade para o animal e para a pedra. Privação, num caso; pura e simples ausência, no outro. O animal tem um mundo no modo do não-ter ou, inversamente, ele é privado de mundo porque pode ter um mundo. Heidegger fala de uma ‘pobreza’ (ou privação) como de uma forma do não-ter no poder-ter. (Derrida, Op. cit., p. 62.)
8Esta afirmação de Derrida sobre Heidegger é confirmada ainda por Agamben para quem (...)
(...) estatuto ontológico do ambiente animal pode ser assim definido: ele é offen (aberto), mas não offenbar (revelado, literalmente “passível de abertura”). O ente, para o animal, é aberto, mas não acessível; isto é, é aberto em uma inacessibilidade e em uma opacidade - ou seja, de qualquer modo, em uma não relação. Essa abertura sem desvelamento define a pobreza de mundo do animal em relação à formação de mundo que caracteriza o humano. O animal não é simplesmente privado de mundo porque, enquanto é aberto no atordoamento, deve - diferentemente da pedra, privada de mundo - precisar, necessitar (entbehren), isto é, poder ser determinado em seu ser por uma pobreza e uma carência (...) (Agamben, 2013, p. 91)
9Para Heidegger, a animalidade é o ser do animal, ao passo que a manualidade é o ser o utensílio, mas também do instrumento e até mesmo da máquina. Ocorre que o ser, que é sempre o ser do ente, possui modos de ser. O modo de ser da manualidade enquanto ser do utensílio é a prontidão, ao passo que o modo de ser da animalidade enquanto ser do animal é a aptidão. Enquanto modos de ser, a prontidão e a aptidão são possibilidades, embora sejam, em si mesmas, possibilidades distintas. No entanto, em suas análises, não raro Heidegger parece tratar a prontidão e a aptidão não como modos de ser, mas como o próprio ser, respectivamente, do instrumento e do animal. A nosso ver, isto se deve ao fato de que, grosso modo, a prontidão é único modo de ser da manualidade enquanto ser do utensílio, assim como a aptidão é o único modo de ser da animalidade enquanto ser do animal. A aptidão, que se confunde com a própria animalidade enquanto ser do animal, também é uma, não obstante também se diga de diversos modos. Tal como veremos, a aptidão é um conceito importante para Heidegger porque desempenha o papel de um conceito-ponte, isto é, um conceito através do qual sua análise pode deslocar-se entre diferentes conceitos, a exemplo do animal, da animalidade, do organismo, do órgão, entre muitos outros, sem incorrer em possíveis arbitrariedades no âmbito teórico. Mas, afinal, o que é a aptidão? Para respondermos tal pergunta, lançamos mão do exemplo do olho, exemplo dado pelo próprio Heidegger. O olho, enquanto um órgão do vivente, é intrínseco e necessário àquele que vê. Donde se conclui que, no caso do olho enquanto órgão visual, ele não é uma propriedade nem tampouco um utensílio fabricado e instalado no vivente ulteriormente. O olho é apto para ver, embora não esteja pronto para a visão. Mas o ser-apto para ver não significa que o olho possua tal aptidão. Na verdade, é a aptidão que possui o órgão, já que o segundo pressupõe a primeira como sua condição de possibilidade. E mais, a aptidão ou ser-apto, enquanto único modo de ser do ser do órgão, confunde-se com seu próprio ser, motivo pelo qual não apenas se antecipa, mas também cria o próprio órgão. No caso concreto, isto significa que a aptidão ou ser-apto para ver, a possibilidade de ver, o poder-ver, é aquilo que se antecipa e cria o próprio olho enquanto órgão de visão. Mas o que liga ou conecta a aptidão (modo de ser) ao órgão (ente) é a serventia, outro importante conceito elabora pelo filósofo alemão.
10A serventia não é senão a própria ligação do órgão com a aptidão, que o criou. Ocorre que a aptidão, ao criar o órgão para servi-la, serve a si mesma. Esta autosserventia enquanto ligação da aptidão consigo mesma é o que permite, em certos limites, a autorrecuperação (reparação de si próprio), autorrenovação (renovação de si próprio) e autodireção (direção da mobilidade de si próprio) tanto do órgão em particular quanto do organismo em geral, sem depender de forças ou agentes externos para realizá-los. Esta autosserventia da aptidão, que possibilita a autorrecuperação, a autorrenovação e a autodireção do órgão e do organismo, aponta para certa ipseidade (ser si-mesmo). Para exemplificar esta ipseidade, Heidegger descreve e analisa os animais unicelulares, tal como a ameba, cujos órgãos formam-se, transformam-se e aniquilam-se segundo uma ordem determinada, razão pela qual não são órgãos permanentes, mas transitórios e instantâneos. É o caso dos órgãos relativos à digestão no infusório, tal como investigado por Uexküll, onde “uma bexiga (...) se torna primeiramente boca, “então estômago, então intestino, e, por fim, anus” (Heidegger, Op. cit., p. 257). Para Heidegger, este exemplo demonstra basicamente duas hipóteses: por um lado, sendo um processo vital autorregulado, a digestão do infusório demonstra certa ipseidade do vivente e, em particular, do animal; por outro, demonstra que, numa ordem cronológica, “as aptidões para comer, para digerir etc. são mais antigas do que seus respectivos órgãos” (Id. ib., p. 257). Pois a demonstração desta hipótese produz um desdobramento ontológico. É que se, na ordem cronológica, a aptidão é mais antiga ou anterior ao seu respectivo órgão, que lhe é posterior, analogamente, na ordem ontológica, a aptidão é transcendental em relação ao seu respectivo órgão, que lhe é empírico. A aptidão é transcendental porque é a priori em relação ao seu respectivo órgão, que é a posteriori, mas também porque é a condição de possibilidade de seu respectivo órgão, que é o condicionado. Aqui, a demonstração científica remete à mostração metafísica. Não que a ciência, por via de seu próprio instrumental, possa demonstrar a hipótese da aptidão enquanto tal. Devido à sua estrutura ontológica, a aptidão não é passível de demonstração alguma. Afinal, como medir, pesar, calcular a aptidão para digerir, ver, ouvir etc.? Todavia, a ciência pode inferir a aptidão enquanto modo de ser e mesmo como o próprio ser do órgão, o que, direta ou indiretamente, remete à metafísica. Ocorre que, para Heidegger, a remissão à metafísica significa uma remissão à questão do tempo ontológico enquanto modo de ser do ser dos entes. Nesta perspectiva ontológica do tempo trazida pela metafísica, o órgão aparece ligado à duração da vida. Por isto, o tempo do órgão, que tem a ver com sua aptidão, não é lhe indiferente. Através do tempo ontológico, o órgão e, por extensão, o animal e o vivente podem alcançar sua possível unidade, totalidade e ipseidade (ser si-próprio). Todavia, Heidegger recomenda certa cautela em relação à ipseidade do órgão, do animal e do vivente. Esta ipseidade nada tem a ver com uma suposta força vital ou mesmo com uma pretensa alma do animal; e, por outro, neste ponto da preleção, Heidegger diz que é preciso abstrair o conceito de ipseidade para aprofundar a análise da aptidão enquanto tal. De todo modo, segundo a perspectiva ontológica, através do “estar-a-serviço de” (si mesma), a aptidão determina o para-quê do ser do órgão, ou seja, determina a si mesma, visto que ela, segundo nossa hipótese, sendo o único modo de ser do ser do órgão, é seu próprio ser. Através desta autodeterminação, a aptidão translada-se para o interior de si mesma, a partir de seu próprio ímpeto, pois a aptidão possui o ímpeto pelo qual serve a si mesma.
11Este ímpeto da aptidão para servir a si mesma é uma pulsão. Com o conceito de pulsão, Heidegger alude ao movimento próprio à aptidão ou ser-apto para (si mesmo). Trata-se de um movimento de si para consigo realizado pela aptidão, um movimento da aptidão para a aptidão, um movimento que impele a aptidão no sentido de reter-se a si mesma em seu interior, o que se confunde com a própria serventia ou estar-a-serviço de (si mesma) enquanto uma ligação da aptidão consigo mesma. É por isto que, segundo Heidegger, “só há aptidão onde há pulsões” e, ao mesmo tempo, “só onde há pulsões já há também de algum modo, mesmo que ainda de maneira desregrada e sob a forma de ensaio, aptidão” (Heidegger, Op. cit., 261). A nosso ver, esta passagem é um dos pontos altos desta preleção, uma vez que Heidegger vislumbra uma autêntica virtualidade, a virtualidade livre, selvagem e indomável, uma virtualidade enquanto a própria Diferença pura no âmbito ontológico, porque, ao ser prévia, ainda não é dominada pela identidade nem por seus correlatos, a exemplo da possibilidade, que traz em si mesma suas próprias regras em exercício, isto é, a regulação e a autorregulação. Todavia, no pensamento de Heidegger, este vislumbre não se transforma numa visão clara e nítida da virtualidade enquanto tal. É que este vislumbre não é senão um desvio do qual sua visão logo se esquiva para então voltar àquilo que de fato quer ver, a saber, a aptidão enquanto uma possibilidade que se autorregula, na proporção em que traz em si mesma e aplica a si mesma suas próprias regras. Eis por que, ao referir-se à aptidão enquanto possibilidade circunscrita aos limites do âmbito ontológico, Heidegger diz que “aí subsiste uma vez mais a possibilidade de adestramento” (Heidegger, Op. cit., p. 262) É neste sentido que o movimento pulsional da aptidão não é aleatório, nem acidental, nem tampouco indeterminado. Se a aptidão vai ao encontro de si mesma, descrevendo uma espécie de circulação transcendental, é porque o movimento pulsional já é a própria autorregulação antecipada da aptidão, o que sinaliza para uma autodeterminação pré-determinada da aptidão através de sua pulsão. Ocorre que a aptidão não é apenas uma possibilidade limitada ao campo transcendental. É que a aptidão também possui um “para-quê” voltado aos processos vitais no campo empírico. Donde por que a aptidão é sempre e necessariamente uma aptidão para ver, ouvir, cheirar, comer, copular, atacar, defender, construir etc. relativos ao órgão, ao animal e ao vivente. Pois é neste sentido que, para Heidegger, as pulsões, enquanto movimentos transcendentais das aptidões, constituem antecipadamente os processos vitais na acepção de movimentos empíricos dos “seres vivos”. Esta constituição antecipada mostra que as pulsões não apenas provocam, mas também atravessam e atuam continuamente sobre os movimentos vitais. Por isto, Heidegger entende que os movimentos vitais “nunca são apenas mecânicos, por mais que possam ser mecanicamente extraídos” (Id. ib., p. 263) no âmbito da ciência. As pulsões constituem antecipadamente os movimentos vitais, na medida em que os regulam a partir da autorregulação antecipada das aptidões. Heidegger entende a aptidão pulsional como uma forma pura, visto que, por um lado, possui o caráter antecipatório, ou seja, encontra-se no futuro com o qual se confunde o próprio campo transcendental, e, por outro, recepciona e organiza, tanto em termos de sucessão e simultaneidade temporal, como de extensibilidade material, aquilo que será percebido e, em última instância, mensurado faticamente pelo órgão, pelo animal e pelo vivente no campo empírico, embora, por razões que apresentaremos ulteriormente, este não se confunda com o presente, mas com o passado - outra de nossas hipóteses. Mas se a aptidão pulsional possibilita formalmente tanto o espaço empírico quanto sua mensuração é porque, antes de tudo, a mesma cria o órgão no sentido físico, corporal e anatômico, bem como seu respectivo modo de ser, isto é, seu desempenho. Grosso modo, o desempenho do órgão é seu movimento vital. Através de seu movimento vital, o órgão está a serviço da aptidão para ver, ouvir, cheirar, degustar, tatear, locomover, comer, copular, atacar, defender, construir etc., cujo movimento pulsional é aquele através do qual a aptidão está a serviço de si mesma. Donde se conclui que o órgão está a serviço da aptidão enquanto um estar-a-serviço de si mesma. Em seu desempenho enquanto movimento vital, o órgão só pode servir à aptidão porque sua própria constituição orgânica é criada para tal finalidade (telos). Eis por que Heidegger entende que o próprio órgão empírico deve ser criado, antecipadamente, pela aptidão transcendental, a exemplo do olho que vê em razão da aptidão para ver, o que aponta não apenas para uma antecipação, mas também para uma predeterminação da aptidão sobre o órgão no sentido físico e etológico. Ao comparar os olhos da abelha com as do homem, por exemplo, Heidegger mostra as diferenças orgânicas entre ambos, que, no entanto, parecem apontar para um mesmo princípio transcendental em suas constituições. Porém, para o filósofo alemão, não se trata absolutamente do mesmo princípio, já que “o ver e o poder-ver do animal são uma aptidão, enquanto o nosso poder-ver possui, por fim, um caráter de possibilidade totalmente diverso e um modo de ser totalmente diverso” (Heidegger, Op. cit., p. 265). Ao elaborar este enunciado, Heidegger parece indicar que, em sua constituição, os órgãos do homem e seus respectivos desempenhos não se devem às aptidões e, por conseguinte, às pulsões. Embora este enunciado seja pouco claro, podemos fazer hipótese no sentido que, para Heidegger, conquanto a aptidão pulsional seja uma possibilidade, trata-se de uma possibilidade não escolhida, o que caracteriza a animalidade enquanto ser do animal, ao passo que, no âmbito do ser-aí do homem, todas as possibilidades são passíveis de escolha. Daí por que podemos levantar algumas questões: primeiramente, devido à própria constituição interna, existe alguma possibilidade que não seja passível de escolha? Depois, a pulsão é de fato um movimento da aptidão? Em seguida, a estrutura ontológica do homem é mesmo desprovida de pulsões? E se a pulsão não tiver um caráter de possibilidade nem tampouco estiver atrelada à aptidão, não é possível que a mesma constitua a estrutura ontológica do homem, o ser-aí do homem, assim como do ser dos demais viventes?
12Ocorre que a antecipação é também uma antecipação da aptidão pulsional em relação a si mesma. Antecipando-se, a aptidão descreve o movimento pulsional pelo qual é impelida por si, de si e para si mesma, de tal modo que vai ao encontro de seu “para-quê” (ver, ouvir, cheirar, degustar, tatear, digerir, locomover, copular, procriar, atacar, defender, construir etc.), sem, no entanto, perder-se ou afastar-se de si mesma. É que, devido á antecipação, seu “para-quê” já é sempre e necessariamente seu si. Esta antecipação em relação a si mesma, por sua vez, é um “adiantar-se-e-ganhar-a-si-mesmo de modo pulsional” (Id. ib., p. 267). Isto significa que, ao adiantar-se de modo pulsional, a aptidão apropria-se de si mesma. Esta apropriação de si mesma é o que possibilita a proprie-dade (eigen-tümlich) enquanto ser-si própria, isto é, a ipseidade da aptidão pulsional, que se dá no tempo ao modo do futuro com o qual se confunde o próprio campo transcendental.
13Segundo Heidegger, no entanto, o animal não apresenta uma única aptidão, mas uma multiplicidade de aptidões, tais como alimentação, crescimento, herança, locomoção etc. Ocorre que, segundo ele, o valor desta multiplicidade de aptidões não se deve apenas à si mesma, mas também e sobretudo à sua unidade e sua totalidade enquanto características transcendentais de seu modo de ser. É que as aptidões não estão simplesmente dadas, já que se encontram juntas e articuladas entre si, o que aponta para certa organização transcendental do vivente empírico. Esta organização transcendental, por sua vez, não é senão o próprio organismo enquanto tal. Donde por que, para Heidegger, o organismo não é um complexo de instrumentos nem uma associação de órgãos. Mas também não é um feixe de aptidões. O organismo é o modo de ser do ser das aptidões em conjunto ou do possível conjunto das múltiplas aptidões enquanto ser. Através do organismo enquanto modo de ser, as múltiplas aptidões juntam-se e articulam-se entre si, criando os órgãos para si mesmas, o que aponta para uma possível unidade e totalidade do próprio organismo. Isto significa que o organismo é dotado de aptidões. Todavia, a dotação não é o mesmo que a posse de aptidões. O organismo não possui aptidões, mas é constituído por elas, a partir delas e para elas. Por isto, para Heidegger, se o organismo caracteriza-se pela possível unidade e totalidade das múltiplas aptidões, estas somente se constituem a partir da possível ipseidade da aptidão, isto é, da possibilidade da aptidão apropriar-se de si mesma, para si mesma e por si mesma, que corresponde ao movimento pulsional da aptidão enquanto servir-se-a-si-mesma. Heidegger não quer que a aptidão transcendental seja entendida como uma mera possibilidade abstrata em relação ao órgão, ao animal e ao vivente. Eis por que, para ele, não se trata de uma simples “possibilidade (...) em face do real”, mas de “um momento constitutivo do modo como o animal é enquanto tal - o modo de seu ser” (Heidegger, Op. cit., p. 270). Por isto, entendemos que, tal como pensa Heidegger, trata-se de uma possibilidade real, mas real no sentido de que sempre e necessariamente já se realizou enquanto possível ipseidade da aptidão individual, bem como enquanto possível unidade e totalidade das múltiplas aptidões. Ulteriormente, voltaremos ao conceito de possibilidade já sempre e necessariamente realizada, tal como postulado pelo filósofo alemão, pois concerne à uma das duas partes da principal hipótese de nosso trabalho, a saber, a ubiquidade ou a simultaneidade entre o futuro e o passado enquanto o próprio modo temporal de ser do ser do animal, razão pela qual se constitui como o conceito fundamental sobre o qual Heidegger pode pensar ser do animal.
14Em Os conceitos fundamentais da metafísica, o comportamento é outro importante conceito pensador por Heidegger. Segundo ele, o comportamento é tanto o para-quê da aptidão enquanto ser do órgão, do animal e do vivente quanto o modo de ser da pulsão enquanto movimento da aptidão. O comportamento é o para-quê da aptidão porque toda aptidão é sempre e necessariamente uma aptidão para nascer, crescer, envelhecer, morrer, ver, ouvir, cheirar, degustar, tatear, comer, locomover, copular, procriar, atacar, defender, fugir, construir etc. Mas o comportamento é também o modo de ser da pulsão, visto que se trata do movimento através do qual cada aptidão vai ao encontro de si mesma - um dispor-se, um impelir-se, um inserir-se e um reter-se em si, por si, de si e para si mesma. Eis por que, para Heidegger, o ser do animal comporta-se, ao passo que, por exemplo, o ser-aí do homem assume atitude. O comportamento circunscreve-se ao âmbito da animalidade porque é o modo de ser da pulsão, a partir e através da qual se dão os movimentos vitais do animal. Por isto, Heidegger afirma que, através do comportamento enquanto modo de ser do movimento pulsional, o ser do animal está preso a si e em si mesmo: o estar-junto-a-si mesmo da animalidade do animal. Mas esta questão ganha complexidade na medida em que, tal como mostramos, a aptidão pulsional sempre se encontra acompanhada de diversas outras aptidões, de tal modo que, através de uma junção e de uma articulação, as mesmas constituem uma possível unidade e totalidade, que se expressam por meio do organismo. Esta imbricação entre as aptidões pulsionais pressupõe e implica a perturbação, outro relevante conceito pensado por Heidegger. A perturbação constitui-se como o contato, a fricção, a afetação entre as aptidões pulsionais. É por isto que o comportamento do ser do animal é sempre e necessariamente um comportamento perturbado. Esta imbricação entre as aptidões pulsionais, cujo contato caracteriza-se pela perturbação, faz com que cada aptidão pulsional particular, para além de servir a si mesma, sirva igualmente à outra aptidão pulsional particular e/ou outras aptidões pulsionais particulares. Por exemplo, no cachorro, o cheirar serve para caçar, o caçar serve para comer, o comer serve para digerir etc. Isto aponta para o fato de que cada comportamento, além de servir a si mesmo, serve a outro comportamento, formando uma espécie de cadeia comportamental. Eis por que, para Heidegger, o comportamento possui um caráter duplo, que, aliás, faz lembrar a lógica da alétheia: por um lado, enquanto modo de ser da pulsão, que é o movimento da aptidão, o comportamento tem o caráter de “inserir-se em” si mesmo, ou seja, um caráter de aproximação; mas, por outro, ao compor uma cadeia com outros comportamentos, possui o viés de “não se inserir em” si mesmo, isto é, um viés de afastamento. Mas, se o comportamento é o modo de ser da pulsão enquanto movimento da aptidão, isto acena para o fato de que cada pulsão, para além de servir a si mesma, serve à outra pulsão, constituindo um círculo pulsional ou, como quer Heidegger, um “círculo da compulsividade recíproca de suas pulsões” (Heidegger, Op. cit., p. 286), que sempre e necessariamente envolve o animal. Por isto, se, por um lado, o ser do animal está preso à pulsão enquanto movimento de uma aptidão particular, por outro, ele está absorvido pelo círculo das pulsões, que corresponde à junção e à articulação das aptidões particulares numa possível unidade e totalidade. Isto sinaliza para o fato de que a aptidão particular, ao descrever um movimento pulsional através do qual vai ao encontro de si mesma, também vai ao encontro de outras aptidões, compondo uma possível unidade e totalidade relativamente ao organismo, mas também ao próprio comportamento em sentido genérico. Mas se a aptidão, a pulsão e o próprio comportamento possuem um caráter fático é porque sempre e necessariamente envolvem uma conjunção, uma ligação, uma relação frente à “alguma coisa”. Mas, justamente, a hipótese central formulada por Heidegger é a de que o animal, ainda que se relacione com o ente, não se relaciona com o ente enquanto tal. É por isto que, segundo ele, para o cachorro, o cheiro não é o cheiro enquanto tal, a animal caçado não é o animal caçado enquanto tal, a comida não é a comida enquanto tal etc. O ente enquanto tal não está aberto para o animal. Mas, exatamente por isto, também não está fechado para ele. Há uma abertura, uma ligação, uma relação do animal com o outro, que, no entanto, não é um ente enquanto ente. O animal não é capaz de perceber nem tampouco de entender o ente enquanto ente, seja o ente que ele mesmo é, seja o ente que ele mesmo não é (meio-ambiente). Neste sentido, a percepção e o entendimento são possibilidades negadas ao animal. E, todavia, “ele não está simplesmente sem qualquer ligação com outro” (Id. ib., p. 284), o que leva Heidegger a perguntar: “a que é que o comportamento está ligado e como se dá esta ligação?” (Id. ib., p. 289). E ainda: “onde e como transcorre o círculo, com o qual o animal enquanto tal se envolve?” (Heidegger, Op. cit. p. 289). Para responder tais perguntas, faz-se necessário entender o duplo caráter da aptidão, da pulsão e do comportamento (respectivamente o ser, o movimento do ser e o modo de ser do movimento do ser do animal) em toda a sua complexidade: por um lado, através do movimento pulsional, cujo modo de ser é o comportamento, cada aptidão particular vai ao encontro de si mesma (dispor-se, impelir-se, inserir-se e reter-se), o que caracteriza cada ser-apto enquanto poder ser-próprio a si mesmo (propriedade); por outro, ao ir ao encontro de si mesma, a aptidão pulsional particular também vai ao encontro de seus pares, de tal modo que se afasta de si mesma - duplicidade da aptidão-pulsão-comportamento: estar preso a si mesmo e, ao mesmo tempo, estar absorvido pelo todo do qual faz parte, embora, para ele, nem o si nem tampouco o todo tenham a estrutura ontológica “enquanto tal”. No âmbito pulsional, por exemplo, esta absorção de cada pulsão pelo círculo da compulsão determina a perturbação enquanto afetação entre as pulsões, que se juntam e articulam. Mas, para além de ir ao encontro de si mesma e de seus pares, cada aptidão pulsional particular também vai ao encontro do ente. Mas, tal como pontuamos, não se trata de ir ao encontro do ente enquanto tal, visto que o ser do animal é desprovido de percepção e de entendimento. Eis por que este ente, ao qual se dirige o ser do animal, é denominado por Heidegger de “outro”. O “ir ao encontro do outro de um determinado modo” constitui o comportamento pulsional do ser do animal. Portanto, este comportamento pulsional caracteriza-se por uma ligação com o outro. Mas a ligação com o outro pressupõe uma abertura ao outro. É que, através do comportamento pulsional, o ser do animal somente se liga com aquilo para o qual ele está previamente aberto. A nosso ver, esta abertura prévia do ser do animal aponta para duas questões: 1. se o ser do animal é aberto previamente ao outro, significa que o ser do animal é paciente, ao passo que o outro é agente; 2. e se esta abertura é prévia, significa que o ser do animal está aberto à ações previamente selecionadas e predeterminadas pelo próprio ser do animal (a aptidão pulsional particular), o que, a propósito, confirma uma das hipóteses formuladas por Uexküll com quem Heidegger mantém um diálogo profícuo. Estas ações previamente selecionadas e predeterminadas não são senão estímulos, excitações, afetações. Para Heidegger, o estímulo não é um ente e, muito menos, um ente enquanto tal, pois, segundo ele, possui um modus operandi através do qual se retrai assim que estimula o estimulável. O estímulo em si mesmo não permanece estimulando o estimulável, assim como o estimulável, ao ser estimulado, não devolve um contra-estímulo à estimulação, motivo pelo qual Heidegger entende a concepção mecânica do estímulo como um equívoco. É bem neste sentido, que, diferente do ser-aí do homem, o ser do animal não possui mundo, mas um meio-ambiente. Este meio-ambiente age de tal modo que estimula o ser do animal de acordo com cada uma de suas aptidões pulsionais particulares, aptidões que previamente selecionam e predeterminam estes estímulos sobre si mesmas. Estes estímulos previamente selecionados e predeterminados constituem-se como uma desinibição, visto que, tal como coloca Heidegger posteriormente, a pulsão, enquanto movimento da aptidão particular, requer o estímulo enquanto elemento desinibidor para acontecer. É por isto que o outro, sob a forma do estímulo enquanto elemento desinibidor, não é um mero apêndice que se adiciona posteriormente ao ser do animal, mas uma parte constituinte, imprescindível e essencial da estrutura ontológica do animal desde seu princípio. Na verdade, como não se trata jamais de um único estímulo, mas sempre de uma rede de estímulos, que desinibem as pulsões, Heidegger refere-se ao “círculo de desinibição. Pois o círculo da desinibição é outro importante conceito de sua formulação. A princípio, Heidegger havia mencionado outro círculo, a saber, o círculo compulsivo das pulsões, que se afetam reciprocamente. Mas, ao trazer à baila o problema do estímulo (estimulabilidade), ele mostra que, na verdade, as pulsões e os estímulos enquanto elementos desinibidores constituem o mesmo círculo. Tal como entendemos, o círculo das pulsões é o círculo dos elementos desinibidores e vice-versa por duas razões: por um lado, as pulsões precisam dos elementos desinibidores para se dar, e, por outro, os elementos desinibidores são previamente selecionados e predeterminados pelas aptidões pulsionais. Daí por que, no fundo, os elementos desinibidores funcionam como verdadeiras pulsões dentro do referido círculo. Mas, se o círculo da compulsão é o círculo da desinibição, na medida em que as pulsões estão previamente abertas aos estímulos enquanto elementos desinibidores previamente selecionados e predeterminados, o que se apresenta como uma ligação prévia, significa que cada pulsão, enquanto movimento de cada aptidão particular, é absorvida pelas demais pulsões, mas também pelos estímulos enquanto elementos desinibidores, que lhes correspondem antecipadamente. O círculo compulsivo-desinibidor, ao absorver cada pulsão, faz com que cada comportamento, enquanto modo de ser do movimento pulsional, seja perturbado, visto que a perturbação é a afetação que resulta da imbricação entre as pulsões sempre e necessariamente estimuladas pelos elementos desinibidores de maneira antecipada. Donde por que cada comportamento, enquanto modo de ser de cada movimento pulsional, é afetado pelo elemento desinibidor que lhe corresponde antecipadamente, assim como pelos demais comportamentos, cujos movimentos pulsionais são igualmente afetados pelos elementos desinibidores, que também lhes correspondem de maneira antecipada. No entanto, tal como colocamos, para Heidegger, o estímulo enquanto elemento desinibidor, que se confunde com o outro, não é um ente e, muito menos, um enquanto tal. Eis por que, a partir da abertura antecipada, por mais que haja uma ligação prévia do ser do animal com o outro (estimulação enquanto elemento desinibidor), trata-se de uma ligação com caráter de “não-inserção em”, o que, por sua vez, também faz com que o comportamento do animal seja um comportamento de afastamento. A nosso ver, com isto, Heidegger aponta para um paradoxo que constitui o ser do animal, a saber, o ser do animal está ligado (aproximado) àquilo em relação ao qual também está desligado (afastado). Segundo Heidegger, no entanto, este afastamento não deve ser entendido “de maneira apenas negativa”, visto que, enquanto “traço fundamental do comportamento”, pode apresentar-se de modo concretamente através de um desviar-se de...” (Heidegger, Op. cit., p. 286). Grosso modo, isto significa que a receptividade à uma estimulação enquanto elemento desinibidor requer a prévia seleção e predeterminação do estímulo operada pela aptidão pulsional. É que, tal como dissemos, a aptidão pulsional, para além de servir à si mesma e às demais aptidões, serve igualmente à estimulação enquanto elemento desinibidor de seu próprio movimento pulsional, cujo modo de ser é o comportamento. Donde por que a aptidão pulsional é, em última instância, o ser-apto para o círculo compulsivo-desinibidor, que sempre e necessariamente envolve o animal. Se, antes, Heidegger tentou demonstrar a hipótese pela qual a aptidão pulsional era a própria possibilidade do animal, isto é, o único modo de ser do ser do animal e, por isto mesmo, seu próprio ser, razão pela qual se confunde com a animalidade, agora, sua tentativa não é outra a não ser a de demonstrar a hipótese segundo a qual a aptidão pulsional, para além de ser uma possibilidade, é a própria realidade do animal ao longo de sua vida. Mas, ao mesmo tempo, os círculos compulsivo-desinibidores dos animais e das espécies atravessam uns aos outros, o que leva Heidegger, mais uma vez em diálogo com Uexküll, a chamá-los também de círculos envoltórios. Donde por que cada animal, bem como cada espécie precisa lutar em favor de seu próprio círculo envoltório, do círculo compulsivo-desinibidor para o qual é apto. O filósofo alemão entende que a unidade entre o meio-ambiente e o corpo do animal é a única unidade possível, uma vez que, a partir do plano ontológico ou do âmbito transcendental, como queiramos, o meio ambiente resulta de uma prévia seleção e de uma predeterminação, ao passo que o corpo e o comportamento (perturbado) do animal derivam da relação antecipada que os elementos desinibidores estabelecem com suas pulsões. Para Heidegger, a diferença entre mundo e meio ambiente não é uma diferença qualitativa (mundo humano versus meio ambiente animal) nem tampouco quantitativa (maior amplitude, profundidade e extensão do mundo humano em comparação ao do meio ambiente animal). Também não se trata de uma mera questão terminológica. Trata-se, sim, de uma questão ontológica, pois envolve o ser da pedra, do homem e do animal em relação ao mundo no sentido do “ente enquanto tal na totalidade”.
15Uma das hipóteses centrais de nossa pesquisa é a de que Heidegger, ao trazer à baila a “questão-enquanto”, opera uma abertura para pensar o tempo como modo de ser do ser-aí do homem, mas também para pensá-lo, a contrapelo, como modo de ser do ser do animal e de seus correlatos (órgão, corpo, vivente, vida etc.). Afinal, tendo em vista a questão do tempo ontológico, o que significa a impossibilidade do animal estabelecer uma relação com o ente enquanto tal? Em sua preleção, ainda que reconheça a questão do tempo enquanto a questão central da metafísica, Heidegger não opera uma análise sobre a questão do tempo relativamente ao ser da pedra e do animal. A nosso ver, no entanto, isto apenas aponta para o fato de que a questão do tempo sustenta sua análise, embora permaneça subjacente e oculta. Com efeito, a questão do tempo não aparece senão de modo indireto, obliquo, mediado por outras questões, sobretudo pela questão da “estrutura-enquanto”. No âmbito circunscrito ao ser do animal, a ausência de percepção empírica do ente enquanto tal deve-se à própria ausência da “estrutura-enquanto”, ou seja, deve-se à impossibilidade do ser do animal estabelecer uma relação antecipada com o possível ente enquanto tal. Do ponto de vista temporal, a “estrutura enquanto” confunde-se com o presente. Estabelecer uma relação com o ente enquanto tal significa tornar o ente imediatamente presente para si, tornar-se imediatamente presente para o ente e, ainda, tornar-se imediatamente presente de si para consigo. Portanto, o tempo ao modo do presente não é senão a própria condição de possibilidade da percepção, ao precedê-la e possibilitá-la. Por outro lado, isto significa também que a ausência do tempo ao modo do presente é a condição de possibilidade da ausência de percepção do animal em relação ao ente enquanto tal. Portanto, no que tange o animal, não é a ausência da percepção que determina a ausência do presente, mas o inverso. Todavia, Heidegger deixa claro que, embora o animal seja incapaz de estabelecer uma relação antecipada com o ente enquanto tal, ele estabelece uma relação com o outro enquanto estímulo ou elemento desinibidor. Segundo ele, trata-se de uma relação antecipada através da qual a pulsão, enquanto movimento da aptidão, submete-se previamente ao estímulo do elemento desinibidor, ao mesmo tempo em que o elemento desinibidor é previamente selecionado e predeterminado pela pulsão, enquanto movimento da aptidão. Eis por que, no fundo, o comportamento não é apenas um movimento do animal no plano empírico, mas o modo de ser da pulsão enquanto movimento da aptidão, bem como o para-quê da aptidão enquanto o próprio ser do animal no plano transcendental. Enquanto para-quê da aptidão, o comportamento envolve antecipadamente tanto a pulsão quanto o estímulo do elemento desinibidor, que se ligam de maneira igualmente antecipada. E eis que chegamos à primeira parte de nossa hipótese: se tudo se passa de modo antecipado, prévio, de antemão, significa que o ser do animal encontra-se no futuro, ou antes, que o futuro é o próprio modo temporal de ser do ser do animal. Não por acaso, Heidegger afirma que a aptidão é uma possibilidade, que, como tal, pertence ao futuro. Ao mesmo tempo, ele afirma que o elemento desinibidor não é um ente, uma coisa, algo passível de mensuração, deixando entrever que também se trata de outra possibilidade pertinente ao futuro. Com isto, é estabelecida uma ligação prévia entre as duas possibilidades, embora se trate de uma ligação sem o caráter de “inserir-se em”, visto que o ser do animal não é capaz de estabelecer uma relação com o possível ente enquanto tal, razão pela qual, em sua ligação prévia, tanto a aptidão quanto o elemento desinibidor são possibilidades relativas ao futuro, o que nos leva à primeira parte de nossa hipótese: o futuro é o primeiro modo temporal de ser do ser do animal.
16Por outro lado, Heidegger afirma que a aptidão não é apenas uma simples possibilidade relativa ao futuro, pois a mesma sempre e necessariamente já foi aberta para o elemento desinibidor. Paralelamente, ele afirma que o elemento desinibidor também não é apenas outra mera possibilidade relativa ao futuro, porquanto o elemento desinibidor sempre e necessariamente já foi selecionado e predeterminado pela aptidão. Mas se a aptidão sempre e necessariamente já foi aberta, assim como o elemento desinibidor sempre e necessariamente já foi selecionado e predeterminado, significa que a ligação entre as duas referidas possibilidades não é apenas futura, mas também passada. Em outros termos, o ser do animal não é capaz de estabelecer uma relação com o ente enquanto tal (relação de “inserir-se em”) porque sua estrutura temporal caracteriza-se pelo futuro e pelo passado em simultaneidade, ou antes, porque, no que toca os modos temporais de ser do ser do animal, o futuro abre-se diretamente ao passado, permanecendo fechado ao presente.
17E eis que chegamos à segunda parte de nossa hipótese: devido à ligação tanto ulterior quanto anterior entre aptidão, que é o ser do animal, e elemento desinibidor, o ser do animal também se encontra no passado, ou melhor, o passado é o segundo modo temporal de ser do ser do animal. É por isto que Heidegger, ao tratar do comportamento do animal, que se constitui como a unidade indefectível entre o ser do animal e o possível elemento desinibidor, diz que “o ver é o ver do que se viu, o ouvir é o ouvir do que se ouviu” (Heidegger, Op. cit., p. 275). Com isto, não queremos dizer que, primeiramente, o ser do animal estabelece uma relação antecipada com o possível elemento desinibidor no futuro para que, em seguida, realize-se no passado. Não. No que tange o ser do animal, em momento algum Heidegger faz menção à realização da possibilidade no futuro em realidade no passado – com o perdão do possível pleonasmo. No entanto, ele refere-se à aptidão para o elemento desinibidor como “o momento fundamental da realidade do animal em todo e qualquer momento da duração de sua vida” (Heidegger, Op. cit., p. 295).
18E eis que chegamos à terceira e última parte de nossa hipótese: se a possibilidade futura não se realiza enquanto realidade passada, trata-se não de uma sucessão, mas de uma simultaneidade entre a possibilidade futura e a realidade passada, e mais, trata-se de uma ubiquidade na medida em que o ser do animal, sempre ligado ao seu elemento desinibidor de modo concomitantemente ulterior e anterior, encontra-se imediatamente no futuro e no passado ao mesmo tempo. Mas, como o tempo é o modo de ser do ser do animal, é necessário dizer que, na verdade, o ser do animal “não se encontra”, mas “é” imediatamente o futuro e o passado em simultaneidade. Esta imediaticidade deve ser entendida em sua forma ontológica, isto é, não apenas como instantaneidade, mas também e sobretudo enquanto ausência de mediação. Do ponto de vista ontológico, a temporalidade do ser do animal é ubíqua porque não há nenhuma possibilidade de mediação, de passagem, de transição temporal do futuro, que ele já “é” embora não sendo ainda, para o passado, que ele já “é” embora não sendo mais. Portanto, sua ubiquidade deve-se ao fato de que ele “é” seu próprio futuro, apesar de não ser ainda, e de que ele “é” seu próprio passado, não obstante não seja mais, de modo simultâneo e imediato. Diferente do homem cujo ser-aí transita entre seus próprios modos temporais de ser, a partir de determinados afetos, o ser do animal não é capaz desta transição temporal.
19Na perspectiva da analítica existencial aberta pela obra Ser e tempo, que ainda se estende à preleção Os conceitos fundamentais da metafísica, o ser do Dasein ou o ser-aí do homem existe porque a existência enquanto ek-sistência significa transcender finitamente, isto é, transitar entre seus próprios modos temporais, que são possibilidades delimitadas por antecipação (predeterminação ou determinação a partir da predominância do futuro sobre o passado e o presente), o que encontra confirmação, por exemplo, no capítulo dedicado a Heidegger, da Tese de Doutorado HomemTempo, da autoria de Jean Calmon Modenesi.
Portanto, a temporalidade como tal consiste na possibilidade de unidade sobre a qual se constitui a possibilidade de totalidade e, por consequência, a possibilidade de ipseidade do ser do Dasein. Isso significa que ele pode ser si-mesmo porquanto pode ser-todo, mas pode ser-todo porque pode ser-uno. (MODENESI, 2009, p. 180)
20É por isto que, a partir da análise operada por Heidegger, chegamos à conclusão de que, no sentido estritamente ontológico, o ser do animal não existe. A exemplo do ser-aí do homem, o ser do animal somente existiria caso transitasse através do tempo, isto é, de seus próprios modos temporais. O ser do animal “é” simultânea e imediatamente o futuro e o passado, a possibilidade ainda não realizada e a realidade que já se realizou, embora não exista (ek-sista), visto que não pode transcender finitamente, ou seja, não pode transitar entre seus dois modos temporais, realizando a possibilidade futura em realidade passada. Pois é neste sentido que o comportamento do animal é determinado pelo futuro e pelo passado de maneira imediata e simultânea. Por exemplo, ao pegar a bola lançada por seu dono, o ser do cachorro sempre se divide entre a possibilidade de ainda não ter pego a bola no futuro e a realidade de já ter pego no passado, embora ele jamais possa pegar a bola enquanto tal no presente. A rigor, o cachorro não é presente nem mesmo para si próprio, o que se aplica ao seu meio ambiente, ao qual ele está indissociavelmente ligado segundo seus dois modos temporais: o futuro e o passado. Mas, afinal, qual é a ligação entre a “questão-enquanto” e a questão da ausência de presente no âmbito circunscrito ao ser do animal? O ser do animal não pode transitar entre seus próprios modos temporais, visto que “é” simultânea e imediatamente seu futuro e seu passado, o que aponta para certa ubiquidade temporal. Mas ele também não pode estabelecer uma relação com o ente enquanto tal na totalidade, já que, para ele, o ente não é ente, mas apenas um elemento desinibidor com o qual estabelece antecipadamente uma relação sem o caráter de “inserir-se em”. Donde se conclui que o animal não possui mundo. Mas, se o animal não possui mundo, como ele pode ser pobre de mundo, tal como propõe uma das três teses orientadoras do pensamento de Heidegger, a saber, “o animal é pobre de mundo”? Pois esta questão é levantada pelo próprio filósofo alemão ao final do quinto capítulo de Os conceitos fundamentais da metafísica.
Nossa tese “o animal é pobre de mundo” permanece, consequentemente, muito longe de ser uma – ou de ser plenamente a proposição metafísica de fundo (o princípio) sobre o qual a essência da animalidade. (...) Mas se estas reflexões se mantiverem intangíveis, então não precisamos apenas restringir por fim drasticamente a significação da tese. Ao contrário, precisaremos abdicar efetivamente dela porque – visto justamente a partir da essência da animalidade – ela conduz ao erro: isto é, ela desperta a opinião equivocada de que o ser do animal é em si uma privação e uma pobreza. (Heidegger, Op. cit., p. 311)
21Como podemos verificar, a resposta de Heidegger para a questão supracitada é cabal. A tese em questão “o animal é pobre de mundo” deve ser denegada na medida em que se constitui como uma proposição equivocada sobre a animalidade enquanto ser do animal, no âmbito circunscrito à metafísica. No entanto, curiosamente, ao longo de sua preleção, Heidegger toma o caminho contrário àquele indicado por ele. Ao invés de descartar a tese “o animal é pobre de mundo”, ele prefere mantê-la como um problema, sob a promessa de que, ulteriormente, será útil à análise comparativa através da qual pretende chegar ao problema e, por via de consequência, ao conceito de mundo no sentido do “ente enquanto tal na totalidade”.
Assim, a tese “o animal é pobre de mundo” precisa persistir enquanto problema; enquanto um problema que não abordaremos agora, mas que conduz os passos ulteriores da consideração comparativa, isto é: a própria exposição do problema do mundo. (Heidegger, Op. cit., p. 313)