SOUSA-SANTOS, Boaventura de (2014). O Direito dos Oprimidos: Sociologia crítica do direito. Coimbra: Almedina.
SANTOS, Milton. « Entrevista com Milton Santos ». Programa Roda Viva TV Cultura. 1997. 1 DVD (85 min).
SOUSA-SANTOS, Boaventura de (2014). O Direito dos Oprimidos: Sociologia crítica do direito. Coimbra: Almedina.
Minha atuação enquanto geógrafo sempre me levou a entender a dinâmica dos pobres e ao mesmo tempo as causas de sua marginalização em diversos territórios. Sempre aprendi na escola, nos ciclos iniciais, que a sociedade seria a grande culpada pela situação de abismo entre pobres e ricos, sobretudo, a classe média. A atribuição de uma pretensa « culpabilidade » da sociedade em relação a criação de um cenário bipolar entre « lugares opacos e lugares luminosos » expressão cunhada por Milton Santos parece ter deixado de lado e, bem confortável o Estado. O livro « O direito dos oprimidos » é uma crítica a ausência dos Estados no que concerne à falta de justiça nos territórios pobres. Boaventura de Sousa Santos nos mostra como as sociedades de países encontram soluções para os seus conflitos internos como Cabo Verde, Angola, Bolívia, Colômbia, Equador, Macau e Moçambique; e na favela do Jacarezinho no Rio de Janeiro, que é o cerne desta resenha.
Resenha recebida em: 16/12/2024
Resenha aprovada em: 16/12/2024
Resenha publicada em: 18/12/2024
1O que me levou a produzir essa resenha foi a essência da questão abordada por Boaventura de Sousa Santos no capítulo 2 do seu livro que trata da construção e reprodução do direito em Pasárgada onde o autor levanta a questão do direito à moradia numa das favelas do Rio de Janeiro na década de 1970, que contendo uma forte escrita sociológica numa ponte com o direito também é um grande campo de estudos da geografia, especificamente a geografia urbana.
2Ao revistar a obra O Direito dos Oprimidos, do Professor Boaventura de Sousa Santos é possível encontrar a falta de um dos braços do Estado, isto é, de políticas públicas para quem vive nas favelas do Brasil, que é a atuação do Direito Legal. Assim, os moradores das favelas se reinventam em mediações de conflitos. Às vezes entram num acordo informal entre as partes, outras vezes são os líderes comunitários que fazem o papel de juiz, e na hipótese mais extrema são julgados pelo chamado tribunal do crime; este último mecanismo menos presente quando da época da pesquisa realizada pelo sociólogo português.
3Ressalto que mesmo que o Direito dos Oprimidos ainda que seja uma publicação do ano de 2014, no Brasil, muitas coisas que Boaventura de Sousa Santos identificou no seu estudo sobre o Direito ou a falta dele aos pobres ainda acontecem não somente na favela estudado por ele bem como essa carência se ramificou para outros diversos lugares ermos em nosso país. Por isso, também enxerguei como um tema atual. E para mim, enquanto não se resolve ou mesmo diminua as diferenças sociais, econômicas, e nesse caso sobretudo o acesso ao Direito e outras formas de mediação para as populações mais pobres, os estudos ainda devem continuar. Nesse sentido, a história do Direito nas comunidades pobres ainda tem muito em que contribuir. De modo que se fatos que foram pesquisados no passado continuam a não ter respostas, sobretudo pela omissão do poder público. Penso que independentemente do ano em que foi realizada a pesquisa, devemos sempre a revistar com o objetivo de reforçar a necessidade e a importância do Direito aos oprimidos, principalmente aqueles que habitam os lugares opacos margeados pelas linhas abissais.
4Boaventura de Sousa Santos descreve da seguinte forma como acontece a mediação em Pasárgada:
Devido a inacessibilidade estrutural do sistema jurídico estatal e, sobretudo, ao carácter ilegal das favelas como bairros urbanos, as classes populares que aí vivem concebem estratégias adaptativas com o objetivo de garantir o ordenamento social mínimo das relações comunitárias. Uma dessas estratégias envolve a criação duma ordem jurídica interna, paralela (e, por vezes, oposta) à ordem jurídica oficial do Estado (p. 102).
5Pasárgada foi como Boaventura de Sousa Santos, inspirado em nosso poeta Manuel Bandeira, denominou uma favela na cidade do Rio de Janeiro. Como o próprio autor explica em seu livro, o nome fictício de Pasárgada teve como objetivo de proteger os seus interlocutores que viviam na favela pesquisada e ao mesmo tempo driblar o regime militar que governa o Brasil na época em que estava desenvolvendo a sua pesquisa no ano de 1970.
6Para compreender a dinâmica da justiça interna de Pasárgada, Boaventura de Sousa Santos morou no território de julho a outubro de 1970. Nesse tempo realizou várias entrevistas. Acredito que se esta pesquisa fosse nos tempos atuais seria quase que impossível a sua realização, por diversos fatores, mas cito aqui o fator da atual burocracia acadêmica em que os Comitês de Ética em Pesquisa, do Brasil, limitam a atuação de pesquisadores, principalmente, na área de Ciências Humanas e Sociais de fazer uma imersão nos territórios pesquisados. As normas desses comitês reduzem ou impedem que os pesquisadores estabeleçam uma relação de confiança com as pessoas que vivem num determinado território. Aliás, essa é uma atividade inerente ao trabalho de campo do geógrafo que se dedica a decodificar a dinâmica de um dado território.
7A imersão de Boaventura de Sousa Santos em Pasárgada lhe permitiu entender como os seus moradores resolvem os seus litígios dentro do território. Por exemplo, « a prevenção como à resolução de litígios » (p. 104). Para a surpresa do autor, « a ideia de conceber os mecanismos de prevenção e de resolução em Pasárgada como um sistema jurídico não oficial não constava » (p. 104), em suas hipóteses de trabalho.
8Certamente que o sistema judiciário em Pasárgada mediava os seus conflitos levando em consideração as características dos seus moradores, mas também inspirado no sistema oficial ainda que este fosse ausente no território. De acordo com Boaventura de Sousa Santos o direito em Pasárgada funcionava de forma conflitual ou mesmo complementar ao direito oficial do Estado. Portanto, o que há em Pasárgada, na visão de Boaventura de Sousa Santos é « um sistema jurídico subalterno, criado pelas classes populares para resistirem ou se adaptarem à dominação de classe » (p. 106); esta seria a essência do direito de Pasárgada.
9Ao retirarmos as favelas de uma análise simplificada através da sua violência interna, e isso devemos fazer, inclusive em contraposição de parte da grande mídia, e passarmos a entender a pesquisa de Boaventura de Sousa Santos, essencialmente jurídica/sociológica, veremos que o direito de Pasárgada,
Criado por comunidades urbanas oprimidas, que vivem em guetos e bairros clandestinos, para preservar a sobrevivência da comunidade e um mínimo de estabilidade social numa sociedade injusta onde a solvência econômica e a especulação imobiliária determinam o âmbito efectivo do direito à habitação (p. 381-382).
10Portanto, essa luta daqueles que vêm de baixo, que estão no primeiro degrau socioeconômico do país, procuram construir suas Pasárgadas e no seu interior estabelecem seus códigos de ética, suas leis, seus processos de mediação. Uma construção que é literalmente solidária, pois é onde um ajuda a construir a casa do outro formando um cenário geográfico que caracteriza Pasárgadas de diferentes dimensões que se tornam ilhas de exclusão social dentro do território de uma mesma cidade. O intelectual português escreve que « os moradores de Pasárgada, por pertencerem às classes oprimidas numa sociedade capitalista, são internamente excluídos, como está patente, por exemplo, no fato de o direito estatal declarar ilegal a posse dos terrenos onde habitam » (p. 404). Esse cenário de exclusão é produzido por diversos agentes, seja do Estado ou da iniciativa privada.
11Boaventura de Sousa Santos entende que « o direito de Pasárgada não pretende regular a vida social fora de Pasárgada, nem questiona os critérios de legalidade prevalecentes na sociedade mais vasta » (p. 382). Seria realmente impensável que os moradores de Pasárgada desejassem uma regulação fora do seu território tendo em vista que o seu território foi excluído deliberadamente do território maior a qual pertencem; do município, do estado, e numa visão mais holística, excluído do país. A falta de política pública, principalmente no que se refere ao planejamento da urbanização das cidades brasileiras propiciou a formação de uma enormidade de favelas. Este é um dos vetores que geram o alargamento das linhas abissais entre os territórios, entre os povos, tão bem expressadas em outros textos de Boaventura de Sousa Santos.
12Na época em que Boaventura de Sousa Santos fez a sua imersão em Pasárgada, nos anos de 1970, ele relata que « embora Pasárgada não esteja dividida por antagonismos de classes nos mesmos termos em que o está a sociedade que a rodeia, é inegável a existência de estratificação social e separação entre zonas de boa e má convivência » (p. 382). Certamente que de 1970 até 2024 (ano em que escrevo esta resenha) o número de favelas no Brasil aumentou bem como houve modificações internas em cada uma delas. As grandes favelas nas maiores cidades brasileiras adquiriram configurações demográficas que superam a dinâmica econômica e social de muitos municípios brasileiros.
13Boaventura de Sousa Santos caracterizou Pasárgada assim: « uma sociedade micro-capitalista cujo sistema jurídico é, em grande parte, ideologicamente compatível com o sistema jurídico oficial » (p. 382). É nítido que de 1970 até os dias atuais tanto o sistema jurídico, econômico, habitacional e social das Pasárgadas brasileiras se modificou tendo em vista a complexidade que tem em suas dinâmicas que aparecem em estudos acadêmicos, nas grandes mídias, e nas redes sociais que se tornaram uma espécie de outdoor desses territórios, sobretudo, capitaneada pela sua juventude.
14A mediação dos conflitos em Pasárgada é para a justiça oficial como os poros soa para a nossa pele por onde o calor sai dos nossos corpos, pois ela « liberta os tribunais oficiais e os gabinetes de assistência jurídica do fardo de terem que atender os casos das favelas » (p. 384). Ainda que tenhamos um sistema jurídico melhor, mais humano, mesmo deficiente por falta de infraestrutura humana e de equipamentos, porém de uma maneira geral ainda impera uma « ideologia jurídica que legitima e consolida a dominação de classes » (p. 384); basta observarmos como o pobre e o rico são tratados por alguns agentes do judiciário no Brasil.
15Como dizia o Professor Milton Santos em uma de suas entrevistas no ano de 1997 no Programa Roda Viva da TV Cultura: « o pobre é sempre mais forte porque é mais sábio, porque ele sabe sobreviver na escassez ». Quando o Estado falha ou se torna omisso, a parte mais pobre da sociedade vai buscar seus caminhos para a sobrevivência. Dessa forma, « a juridicidade não oficial é um dos poucos instrumentos a que as classes oprimidas urbanas podem recorrer para organizar a vida comunitária e conferir um mínimo de estabilidade a uma situação de estrutural precariedade » (p. 386).
16Ao nos colocar no mundo jurídico de Pasárgada, Boaventura de Sousa Santos não apresenta em seu livro nenhuma romantização da geografia de uma favela. As fotos que ilustram a parte final de O Direito dos Oprimidos retratam a vielas com pontes improvisadas com pedaços de tabuas, o trabalho de jovens sapateiros, a grande população de negros que foram « empurrados » para Pasárgada, as casas sem infraestrutura construída às margens de córregos que se tornaram rede de esgoto à céu aberto, ruas sem calçamento e a falta de todos os serviços essenciais que caracterizam o bem-estar social que o Estado deve prover para todos os cidadãos. Portanto, ele sabe e reconhece as dificuldades de se morar na Pasárgada que ele morou e retratou. « Seria um absurdo romantizar a vida comunitária nas sociedades capitalistas em geral, e muito menos em Pasárgada. Pasárgada não é uma comunidade idílica » (p. 392).
17O que Boaventura de Sousa Santos nos apresenta é a capacidade de um povo, que mesmo com toda a carência econômica, por vezes de formação educacional, tem de nos mostrar como é possível mediar conflitos sem sequer precisar dos órgãos oficiais. Uma dinâmica que pode ser compreendida como benéfica para todos, inclusive, para o sistema judiciário oficial. Contudo, a mediação em Parságada acontece de uma forma forçada, pois seus moradores como de qualquer outra Pasárgada têm dificuldades de chegar até os grandes palácios da justiça brasileira.
18Se excluirmos as carências sociais de Pasárgada temos muito a aprender com seus habitantes, sobretudo, nos dias atuais onde as pessoas estão menos propensas ao diálogo. Daí a dificuldade de se entender a diversidade de pensamentos, de comportamentos, e consequentemente perdemos a capacidade de termos mais mediações de conflitos. Aliás, Boaventura de Sousa Santos relata que em Pasárgada havia mecanismos de prevenção de conflitos. Nossa sociedade atual sequer consegue mediar o conflito com os filhos, com as esposas, esposos, com os amigos, com os professores, com colegas de trabalho; muito menos conseguimos mediar o conflito com um estranho. Nessa era digital a câmera do celular é o primeiro tribunal, a fala de quem fala primeiro tem crédito sem ouvir o contraditório. Isso explica um pouco a nossa imensa dificuldade de compreender o mundo e por conseguinte, uma diminuição de nossa capacidade em propiciar mediações.
19É bem possível, que por tudo isso, a Pasárgada de Boaventura de Sousa Santos para além de ser uma metáfora seja também um paraíso inalcançável para a sociedade atual, no Brasil e no mundo. Seria muito difícil para nós acostumados com o conforto viver numa Pasárgada carente e ao mesmo tempo rica nas relações entre os seres. Longe de ser um paraíso geográfico, a Pasárgada de Boaventura de Sousa Santos se caracteriza pela
Ampla distribuição de conhecimentos jurídicos, patente na ausência de especialização profissionalizada; instituições manejáveis e autônomas, patentes na acessibilidade e na participação; justiça não coercitiva, patente no predomínio da retorica e na orientação do consenso (p. 406).
20Essas características estão cada vez mais escassas numa sociedade individualista e as vezes perversa coletivamente.
SOUSA-SANTOS, Boaventura de (2014). O Direito dos Oprimidos: Sociologia crítica do direito. Coimbra: Almedina.
SANTOS, Milton. « Entrevista com Milton Santos ». Programa Roda Viva TV Cultura. 1997. 1 DVD (85 min).
Sebastião Pinheiro Gonçalves de Cerqueira Neto, «Boaventura de Sousa-Santos. O direito dos oprimidos», Geografares [Online], 39 | 2024, posto online no dia 18 dezembro 2024, consultado o 21 março 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/geografares/17259
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