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Tradução

Discurso e prática na geografia humana

Discourse and practice in human geography
Discurso y práctica en geografía humana
Discours et pratique en géographie humaine
Erica Schoenberger
Tradução de Ana Maria Leite de Barros

Resumos

Este artigo analisa o modo como nosso discurso disciplinar molda nossas práticas materiais enquanto pesquisadores e nossas formas de pensar. Utiliza como estudo de caso o termo « competitividade », considerando suas origens e significados dentro da economia e dos negócios, a forma como estes significados são importados para nosso próprio trabalho e as consequências de uma aceitação acrítica da validade e do significado do termo. O artigo analisa dois exemplos de discurso em ação, questionando em que medida a « competitividade » da Nike depende do acesso à mão de obra de baixo custo em locais de produção em países estrangeiros e se a « competitividade » de Baltimore seria prejudicada pela adoção de um « salário-mínimo digno » como o mínimo local. O artigo argumenta sobre a necessidade de analisar a nós mesmos como atores sociais e históricos e de avaliar a maneira como trabalhamos e usamos a linguagem para fortalecer nossa pesquisa e melhorar a posição da disciplina.

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Notas da redacção

O artigo foi publicado originalmente em Progress in Human Geography, Volume 22 Issue 1, fev. 1998, p. 1-14.

Esta tradução contou com revisão técnica de Leandro Bruno Santos, da Universidade Federal Fluminense - Campos dos Goytacazes, Rio de Janeiro, Brasil
e-mail: leandrobruno@id.uff.br

Editor do artigo
Cláudio Luiz Zanotelli.

Artigo publicado em: 10/12/2024

Texto integral

Agradecimentos
Este artigo foi originalmente apresentado como a palestra da Progress in Human Geography na reunião anual da Association of American Geographers, em Forth Worth, Texas, em 3 de abril de 1997.
Gostaria muito de agradecer a Peter Dicken por seu convite para fazer a palestra e por seu incentivo e ajuda ao longo do processo. Meus agradecimentos também a Haydee Salmun e Felicity Callard por seus comentários e apoio.

Introdução

1O que eu pretendo fazer neste artigo é distanciar-me do meu próprio trabalho, na medida do possível, e tentar estabelecer um encontro entre meu estilo analítico e posição habituais e outras abordagens. Existem várias razões para fazer isso. Uma delas é que acredito que é um bom exercício e uma boa disciplina – uma maneira de verificar o rigor do próprio pensamento. Outra razão é que defendi fortemente que a incapacidade dos estrategistas corporativos de fazer algo assim contribui significativamente para o problema da competitividade industrial, então pensei que eu mesma deveria tentar, apenas como uma forma de manter a honestidade (Schoenberger, 1997). Uma terceira razão é que parece uma boa maneira de sair da minha zona de conforto de pensamento e engajar-me produtivamente com outras abordagens e outras preocupações. O ponto é ver se é possível alguém engajar-se criticamente com o próprio estilo de pensamento (cf. Fleck, 1979/1935).

2Para tanto, o terreno alternativo no qual desejo me posicionar é composto por alguns temas que surgiram em escritos feministas, pós-imperialistas e/ ou foucaultianos na história e na filosofia da ciência e na teoria social. Um deles tem a ver com o status do sujeito e o outro com o status do discurso. Dada a maneira como tradicionalmente trabalho (passando muito tempo conversando com os homens que dirigem corporações), você poderia pensar que eu dificilmente poderia ter evitado abordar esses temas diretamente, mas você estaria errado.

  • 1 NT [Nota da Tradução]: No original, neste trecho a autora escreve « ...knowing subject and the know (...)

3A primeira questão, então, tem a ver com o que podemos dizer sobre o sujeito cognoscente e o conhecimento que ela produz1. Aqui, desejo seguir Harding, que fornece uma distinção intrigante entre o que ela chama de objetividade fraca e forte na prática da ciência. Todo o edifício científico, é claro, é construído sobre e legitimado socialmente pela reivindicação de objetividade: que a percepção e análise dos « fatos » pelo cientista não serão coloridas por julgamentos a priori, e que o cientista não tem interesse pessoal no resultado de sua pesquisa. A objetividade, nesse sentido, sustenta a autoridade do cientista e sua capacidade de estabelecer questões de fato amplamente aceitas. Na ideologia oficial da ciência, a objetividade, combinada com a cuidadosa adesão ao « método científico », garante a validade da informação produzida.

4Harding, no entanto, afirma que a prática científica normal é apenas « fracamente » objetiva (Harding, 1991; cf. também Shapin, 1994). Nesse caso, objetividade fraca descreve a postura desinteressada e imparcial da cientista em relação ao objeto de pesquisa, seja ele um vírus ou uma supernova. O trabalho do cientista nada mais é do que analisar rigorosa e imparcialmente os dados associados ao objeto ou processo em estudo. Não é, porém, o trabalho normal da cientista submeter a si mesma, sua organização de laboratório, sua escolha de questões de pesquisa, entre outras coisas, à mesma análise cuidadosa e imparcial. Para Harding, no entanto, é precisamente esse ato de se localizar social e historicamente e analisar como isso afeta o processo de fazer ciência que constituiria a « forte » objetividade.

5Isso não quer dizer que a objetividade forte mudaria o que você vê no microscópio ou no acelerador de partículas. No entanto, poderia fazer você pensar duas vezes sobre por que você acha certos problemas interessantes ou particularmente satisfatórios, por que você faz certos tipos de perguntas aos dados e não outras, ou como você entende as contribuições de diferentes categorias de pessoas trabalhando com ou ao seu redor (por exemplo, técnicos de laboratório). E suas respostas a esses novos tipos de perguntas poderiam plausivelmente afetar a trajetória da investigação científica que você segue.

  • 2 Um exemplo é a distinção entre pobreza como categoria econômica e pauperismo como categoria social, (...)

6O segundo tema que quero abordar tem a ver com as maneiras pelas quais o discurso entra na constituição de nossa realidade social e, de fato, de nós mesmos como agentes sociais. Em parte, estou seguindo o exemplo de McCloskey (1985) em « The rhetoric of economics », que investiga a natureza das ideias dentro dessa disciplina, vendo a análise da retórica como um exercício de autocompreensão. Sou guiada também pela cuidadosa investigação de Poovey sobre o desenvolvimento histórico de domínios epistemológicos como « o social » e « o econômico » na Inglaterra vitoriana (Poovey, 1995). Esse processo envolve o estabelecimento de fronteiras entre domínios e o desenvolvimento de discursos e estilos analíticos que lhes sejam apropriados2. Como Poovey mostra, as estratégias discursivas e as tecnologias de representação empregadas dentro desses domínios estão envolvidas na criação das próprias categorias sociais que pretendem definir e analisar. Um aparato conceitual, dessa forma, assume a propriedade da materialidade: a abstração torna-se uma entidade social real.

7Ao mesmo tempo, disciplinas acadêmicas, como sociologia ou economia, podem ser vistas como nada mais do que o estudo desses domínios epistemológicos e das instituições a eles associadas. Como acadêmicos, então, também temos que lutar com uma história epistemológica e discursiva que não apenas nos orienta na produção do conhecimento, mas também nos mostra de maneiras importantes quem somos e o que fazemos.

8Tomando os dois temas juntos, o que estou tentando fazer é ser fortemente objetiva sobre como as estratégias discursivas dos outros afetam minhas próprias construções discursivas e como estas, por sua vez, entram no trabalho material que faço. Em outras palavras, que diferença faz o fato de eu aceitar certas maneiras de falar sobre o mundo que estou tentando analisar e o que acontece se eu desafiar essas convenções retóricas e discursivas?

9A seguir, quero examinar o significado e o uso do conceito de « competitividade ». A análise afirma, em essência, que o termo não é meramente uma descrição « objetiva » de um fato da vida econômica, senão parte de uma estratégia discursiva que constrói uma compreensão particular da realidade e provoca ações e reações apropriadas a essa compreensão. Isso é seguido por uma discussão sobre por que o discurso tem o poder que tem e como ele pode influenciar como pensamos e agimos no mundo. Em seguida, trabalho em alguns exemplos de como uma aceitação sem escrutínio de uma convenção discursiva pode ofuscar tanto quanto revelar.

Competitividade como categoria econômica e como estratégia discursiva

10Vou simplificar ao máximo e reduzir todo o problema do discurso a uma palavra: competitividade. Para os geógrafos econômicos em geral e para mim em particular, as categorias competição, estratégia competitiva e competitividade têm grande importância e podem, até mesmo, ser consideradas como algo que permeia nosso trabalho, mesmo quando não estão diretamente sob análise. Todos os tipos de resultados econômicos industriais e espaciais estão implícita ou explicitamente ligados a alguma noção de « competitividade » (cf. Krugman, 1994). A ascensão e declínio de determinadas regiões industriais têm relação com a competitividade da força de trabalho (geralmente entendida em termos de custos comparativos e sindicalização), que (para os geógrafos, se não para mais ninguém) tem algo a ver com a competitividade da região em primeiro lugar, entendida como sua combinação específica de recursos, infraestrutura, localização e perfil de custos.

  • 3 Veja Krugman (1994), que argumenta que as pessoas invocam o termo sem pensar sobre o que ele signif (...)

11Mais do que isso, porém, « competitividade » parece-me um termo que se tornou verdadeiramente hegemônico no sentido gramsciano. É uma categoria sancionada cultural e socialmente que, quando invocada, pode interromper completamente a discussão pública de atividades públicas ou privadas. Não há praticamente nenhum contra-argumento disponível à simples afirmação de que « fazer X nos tornará não competitivos », seja o que for X e quem quer que « nós » seja3.

12Em uma sociedade capitalista, é claro, é mais do que razoável estar preocupado com competição e competitividade. Independentemente de sua orientação teórica, da corrente dominante ou marxista, elas devem ser vistas como forças reais que moldam resultados reais na sociedade. Não são apenas construtos intelectuais que conferem um falso senso de ordem a um mundo caótico. Por outro lado, também podemos analisá-las como elementos de uma estratégia discursiva que molda nossa compreensão do mundo e nossas possibilidades de ação nele. Nesse caso, parece-me que as primeiras perguntas a serem feitas são: a quem pertence essa estratégia discursiva, o que eles realmente querem dizer com ela, de onde vem seu poder e que tipos de ações ela tende a abrir ou fechar.

Discurso de quem?

13O discurso sobre competitividade provém de duas fontes principais e, em parte, seu poder é o poder delas. Em primeiro lugar, é o discurso da profissão econômica que não precisa realmente analisar o que é ou o que significa socialmente. O mercado é o árbitro imparcial e final do comportamento correto na economia, e a competitividade simplesmente descreve o resultado de responder corretamente aos sinais de mercado.

  • 4 Como observa McCloskey (1985: 107), « não é estranho encontrar a evolução e a economia usando dispo (...)

14A insipidez dessa linguagem « objetiva » oculta a dureza subjacente da metáfora. Para Adam Smith, a ideia de competição plausivelmente evocava a perturbadora ideia de uma corrida de cavalos em que os perdedores não são sumariamente executados. Desde então, a estreita identificação da economia marginalista com a teoria evolucionária inevitavelmente impregnou o conceito com o sentido de uma luta de vida ou morte (cf. Niehans, 1990)4. Em suma, a própria vida depende da competitividade. Como Krugman (1994: 31) define: « ... quando dizemos que uma corporação não é competitiva, queremos dizer que sua posição de mercado é ... insustentável - que, a menos que melhore seu desempenho, deixará de existir ».

15Assim como na teoria evolucionária, nossa capacidade de despojar os conceitos de vida e morte de seu conteúdo moral e ético não é tão grande quanto a autoimagem da ciência moderna sugere. A competitividade torna-se inevitavelmente associada a ideias de aptidão e inaptidão, e estas, por sua vez, à premissa não declarada de mérito, como em « merecer viver » e « merecer morrer ».

16Em segundo lugar, a competitividade é o discurso da comunidade empresarial e representa tanto um valor essencial quanto uma validação essencial. De modo mais geral, serve como uma explicação universal e indiscutível para qualquer comportamento: « Devemos fazer X para sermos competitivos ». Novamente, o « ou então » que está implícito é a morte.

17No entanto, conforme sugerido, o discurso da competitividade escapou para além dessas fontes e está se tornando socialmente difundido. Reitores universitários, administradores hospitalares e burocratas governamentais também discorrem agora fluentemente sobre competitividade e seus apetrechos correlatos: clientes, qualidade total, flexibilidade e assim por diante.

18Pode-se objetar que a competitividade é uma categoria social e um valor social profundamente arraigados nos Estados Unidos e em outros lugares, e não há razão particular para apontar economistas e empresários como culpados por sua disseminação. Essa objeção é bastante verdadeira e, sem dúvida, contribui para o poder geral do discurso, já que ressoa tão bem com essa herança mais ampla. Mas « competitividade » no sentido de « merecer viver » não é o que se comumente entendia por essa compreensão social mais difusa. É isso, no entanto, o que se entende na análise econômica e na vida empresarial, e é cada vez mais o que se entende também em outros contextos institucionais e sociais.

O poder do discurso

19Em meu próprio trabalho, estou constantemente envolvida em discussões sobre estratégia competitiva e competitividade com pessoas que dirigem empresas. Nesse contexto, esforço-me para ser uma interlocutora crítica e imparcial, cujo trabalho é analisar e interpretar - em vez de simplesmente relatar - as respostas às minhas perguntas. Quando converso com pessoas sobre o que é necessário para que sejam competitivas em um determinado mercado, ou qualquer outra coisa, não sou exatamente tímida em debater o conteúdo de suas respostas. Ou seja, eu vou debater com eles se uma determinada estratégia é uma boa maneira de ser competitivo e o que realmente é preciso fazer para implementá-la. Mas existe uma categoria irredutível chamada competitividade, cuja concretização, in extremis, supera todas as outras considerações – sobre isso eu não discuto. Ou não discuti até agora. Simplesmente aceitei a ideia geral de competitividade como a demonstração última da validade desse comportamento.

20Não acho que esteja sozinha nisso. Acho que é característico da geografia econômica assumir as categorias de competição e competitividade para responder a outras perguntas, em vez de perguntar o que essas categorias em si mesmas podem significar. Acho também que uma noção não escrutinada de competitividade desempenha um papel cada vez mais forte, senão decisivo, em muitos debates políticos e institucionais com enormes consequências para pessoas reais. Então, é importante tentar entender por que o conceito é tão poderoso que goza de uma espécie de imunidade social. Você pode discutir o que é mais e o que é menos competitivo, mas não pode questionar a categoria em si.

21Dentro da academia, o poder do discurso da economia tem muito a ver com o poder social da disciplina. Isso, por sua vez, envolve uma mistura complexa de domínio sobre recursos materiais, reivindicações de utilidade social, uma certa quantidade de proselitismo em outras disciplinas, afirmando uma semelhança familiar com outras disciplinas poderosas e « duras », como a física, em virtude de seu estilo de raciocínio matematizado e abstrato, e assim por diante.

22O poder social, por sua vez, pode ser utilizado para estabelecer um padrão do que constitui « ciência » nas ciências sociais, contra o qual outras formas de ciência social (por exemplo, a geografia) são implicitamente ou explicitamente valorizadas (cf. Clark, 1997). Como McCloskey (1985: 82) observa, « As metáforas da economia muitas vezes carregam... a autoridade da Ciência e... suas reivindicações de neutralidade ética ». Não é necessário supor o menor grau de servilismo da parte de outros cientistas sociais para imaginar que as normas sociais estabelecidas dessa maneira gradualmente se tornam parte do ambiente geral e se tornam mais geralmente valorizadas, como são na economia (Foucault, 1995). Certas práticas e modos de pensar, como em um distrito industrial marshalliano, estão « no ar » e todos nós temos dificuldade de evitar inalá-los.

23A melhor evidência desse efeito dentro da geografia econômica que consigo pensar está, na verdade, nos escritos dos marxistas dentro do campo, especialmente nos anos 1970 e início dos anos 1980. Houve um tempo em que nenhum de nós conseguia escrever nada sem uma longa seção introdutória em que nos esforçávamos muito para demolir as suposições e os tropos analíticos da economia neoclássica. Não conseguíamos deixar isso de lado, e acho que deve ser o caso de que a longa luta para valorizar uma visão de mundo e um método científico alternativos deixou sua marca em todos nós. Mas fomos marcados de maneiras surpreendentemente sutis e é preciso um trabalho real para ver os efeitos.

24Mas a economia também obtém parte de seu poder graças à capacidade de implantar conceitos como competitividade, que possuem um enorme peso ideológico. A concorrência de mercado é a garantia da justiça do sistema social como um todo, porque os mercados, pela definição da disciplina, são imparciais e a competitividade, embora seja uma questão de vida ou morte, procede em uma base puramente técnica. Ou seja, você não é competitivo por causa de quem você é, mas a sua incapacidade de ser competitivo é simplesmente resultado de como você responde aos sinais do mercado, que fornece as mesmas informações para todos. Além disso, a ideia de competitividade econômica se encaixa tão perfeitamente com a teoria da evolução que assume exatamente o ar natural e atemporal que a torna tão indiscutível. A disciplina que possui tal conceito - cujo discurso é este - está destinada a parecer inevitável.

25Em suma, o poder social da economia dentro da hierarquia acadêmica ajuda a ancorar o poder de seu discurso que, em um verdadeiro círculo virtuoso, reforça o poder social da disciplina. Além de tudo isso, o discurso é compartilhado com outro grupo social extraordinariamente poderoso: a « comunidade empresarial ».

26Os problemas da competição, estratégia competitiva e competitividade são profundamente significativos para as pessoas que administram negócios. Eles realmente os veem como autênticas questões de vida ou morte e, no limite, estão certos. Mas há, sem dúvida, uma ampla gama de questões e condições em que, mesmo a vida e a morte não estando em jogo, a competitividade é automaticamente invocada de qualquer maneira como a explicação inquestionável e « natural » para o que está prestes a acontecer. É notável o grau em que isso é aceito e até imitado pelas pessoas em outras esferas.

O que o discurso produz

27Qual é a relação, então, entre o discurso e nossa realidade material, e entre o discurso e nossa capacidade de agir no mundo - pelo menos no que diz respeito à questão da competitividade? Aqui estão algumas reflexões.

28A relação entre discurso, realidade material e ação é mediada pelo poder social do agente discursivo. Os recursos sociais empregados na validação do discurso sobre competitividade são realmente impressionantes. Mas eles podem ser empregados com grande economia ou permanecerem totalmente latentes em função da forma bem sucedida que o discurso foi naturalizado. A beleza disso é que, uma vez que a conversa se move para este terreno, mais ou menos automaticamente nos calamos por nossa própria vontade. Isso pode ser uma instância particular da noção de individualismo disciplinar de Foucault, na qual a essência da liberdade é a adesão voluntária às regras - neste caso, a ordem estabelecida de uma determinada disciplina (Foucault, 1995; cf. Poovey, 1995). Uma vez que a palavra é proferida, sua força disciplinar se manifesta.

29Isso não significa que inevitavelmente acabamos simplesmente repetindo os economistas e empresários. Mas sugere que podemos ser sutilmente desviados de certos tipos de perguntas ou desafios ao discurso e às práticas a ele associadas, seja em um ambiente acadêmico ou em uma arena pública mais geral.

30Essa observação bastante simples tem, quero enfatizar, consequências reais tanto para acadêmicos quanto para não-acadêmicos. Para os acadêmicos, a substância dos nossos questionamentos e desafios é nosso ofício. Conseguimos financiamentos para pesquisa com base nisso e escrevemos artigos que ancorarão nossas carreiras, permitindo-nos fazer novos questionamentos para obter mais financiamento e assim por diante. Enquanto isso, estamos contribuindo para a construção coletiva de um corpo de conhecimento - uma estrutura interpretativa - que molda uma compreensão mais geral do mundo. Nós criamos e validamos a nós mesmos por meio de nosso discurso.

31O efeito de silenciamento e de desvio do discurso sobre competitividade também pode ser visto em várias formas de discurso público sobre uma série de questões: meio ambiente, reforma do sistema de previdência e bem-estar social, reforma do sistema de saúde e, mais obviamente, a competitividade da economia nacional. Novamente, quando tudo corre bem, não é necessário realizar nenhum exercício específico de poder ostensivo. O efeito disciplinar do discurso foi naturalizado e internalizado, tornando-se eficaz mesmo com pessoas cujos interesses claramente não são atendidos por ele. Isso também fica ainda mais notável quando alguns grupos de pessoas indisciplinadas acabam revidando.

O discurso e a prática da competitividade na vida cotidiana

32Nesta seção, quero analisar alguns exemplos do discurso em ação sobre a questão da competitividade para ter uma ideia mais clara do que está em jogo. O primeiro exemplo questiona até que ponto a « competitividade » da Nike depende do acesso a mão de obra de barata em locais de produção no exterior. O segundo exemplo analisa questões de competitividade urbana por meio de uma análise da campanha pelo salário mínimo em Baltimore.

Nike

33A Nike, como corporação, dispensa apresentações. Ela não só é global como é onipresente. De calçados esportivos, ela expandiu seus interesses para equipamentos esportivos e roupas esportivas, mas, além disso, é principalmente conhecida por transformar calçados esportivos em um negócio intensivo de design e moda, tornando-se fenomenalmente rica nesse processo (Katz, 1994). De acordo com seu relatório 10-K de 1996 para a SEC, é a maior empresa de calçados esportivos do mundo (Nike, 1996).

34A Nike também foi pioneira em uma mudança na divisão internacional de trabalho na produção de calçados esportivos, que depende, em grande parte, de subcontratados em um conjunto hierarquicamente aninhado de locais de produção no exterior (cf. Donaghu e Barff, 1990). Se os custos locais se tornarem muito altos, um determinado local pode ter suas tarefas aprimoradas para que os custos não fiquem defasados ou ele pode ser abandonado em favor de locais menos caros. Essa é uma estratégia de produção que foi imitada pela maioria dos principais concorrentes da Nike.

  • 5 A empresa também tem acordos de fabricação com produtores independentes na Argentina, Brasil, Itáli (...)

35A montagem de calçados continua sendo uma operação altamente intensiva em mão de obra, portanto, os custos salariais são um fator locacional óbvio. Ou poderíamos dizer que a Nike precisa de acesso a mão de obra de baixo custo para permanecer competitiva. Não é surpresa que praticamente toda a produção de calçados esportivos da empresa é produzida em seis países asiáticos: Indonésia (38%), República Popular da China (34%), Coreia do Sul (11%), Taiwan (5%), Tailândia (10%) e Vietnã (2%) (Nike, 1996)5.

36Recentemente, a empresa tem sido alvo de críticas em função do tratamento dispensado aos trabalhadores - especialmente às mulheres - nessas instalações no exterior. Além de oferecer salários e condições de trabalho precárias, os subcontratados da Nike são acusados de abuso físico e sexual. Em resposta, a Nike desenvolveu um código de conduta para seus subcontratados e contratou o ex-embaixador da ONU e ativista pelos direitos civis Andrew Young e sua consultoria, Goodworks, para monitorar a situação dos direitos humanos em suas operações no exterior (ILO, 1996; The New York Times, 1997a; 1997b).

37Mais recentemente, a Nike e várias outras empresas de vestuário e calçados chegaram a um acordo com grupos de trabalho e direitos humanos para apoiar padrões trabalhistas mínimos em instalações no exterior. Os padrões especificam uma semana de trabalho máxima de 60 horas e monitoramento in loco para abusos. Eles proíbem o emprego de crianças menores de 15 anos, exceto quando for permitido o emprego de 14 anos. As empresas devem pagar pelo menos o salário-mínimo local. Pontos específicos de discórdia nas negociações que antecederam este acordo incluíam a independência dos monitores (as empresas poderão nomear os seus próprios) e se as empresas deveriam tentar pagar um « salário digno » local - ou seja, um salário suficiente para viver no país em questão - em vez do salário-mínimo local. Até agora, as empresas envolvidas insistiram que o salário-mínimo legal é o padrão apropriado (The New York Times, 1977c; 1997d).

38Em outra frente, a Nike também se juntou recentemente a um consórcio que está trabalhando para eliminar o trabalho infantil generalizado no setor de costura de bolas de futebol no Paquistão. Foi relatado que as crianças recebiam 60 centavos por costurar uma bola que poderia ser vendida entre US$ 30 a 50. Uma criança experiente pode costurar duas em um dia.

39Aqui, então, está a questão. Em um setor de trabalho intensivo, podemos todos concordar que baixos salários têm algo a ver com competitividade. Mas exatamente o quanto salários baixos têm a ver com a « competitividade » ou a capacidade de sobreviver economicamente em um sistema de mercado, e quanto têm a ver com outra coisa? Fui forçada a refletir, ao ler sobre bolas de futebol no Paquistão, que a capacidade de nenhuma empresa existir no mundo poderia depender do pagamento de 60 centavos pagos a crianças para costurar uma bola de futebol de US$ 50. Por que não 90 centavos? Por que não US$ 3,00? Que diferença faria? Da mesma forma, por que é tão importante para as empresas se obrigarem a pagar apenas o salário-mínimo legal em lugares como o Vietnã? Faria tanta diferença pagar o suficiente para viver lá?

40Pensei em tentar construir uma análise numérica bruta dos custos de produção de calçados da Nike para ver em que medida a competitividade da empresa pode estar ligada aos salários que ela realmente paga em suas operações de baixo custo no exterior - ou, pelo menos, os salários que seus subcontratados estão pagando em seu nome. Na verdade, quero descobrir o que aconteceria com a empresa se ela 1) simplesmente dobrasse o salário local vigente; 2) pagasse a todos os seus trabalhadores no exterior dez vezes o salário local vigente; e 3) pagasse a seus trabalhadores no exterior aproximadamente o salário-mínimo dos EUA. Uma primeira restrição é que ela não pode repassar o aumento de custos aos seus clientes, de modo que o aumento salarial presumivelmente não afetará sua competitividade no mercado ou a sua receita. Ela ainda ganharia dinheiro? Isso não pode ser calculado com muita precisão, mas o método é o seguinte.

41A Nike reconhece um total de 17.200 empregados em todo o mundo. No entanto, esse número quase certamente não inclui exatamente os trabalhadores nos quais estamos interessados, então simplesmente temos que supor. Uma suposição seria que um número aproximadamente equivalente de trabalhadores é empregado por subcontratados - digamos 20.000 para facilitar o cálculo. Outra suposição seria que o número de trabalhadores terceirizados é consideravelmente maior - digamos 50.000.

42A renda média mensal ou anual dos trabalhadores da indústria manufatureira em vários países foi fornecida pelo Anuário de Estatísticas do Trabalho da OIT de 1996. Infelizmente, os dados para o Vietnã e Taiwan não estão disponíveis. Como sua participação na produção total da Nike na Ásia é relativamente pequena (7% do total), tomei a liberdade de simplesmente equipará-los ao país da Nike mais parecido em termos de níveis de desenvolvimento econômico, de modo que os trabalhadores no Vietnã sejam tratados como se ganhassem os mesmos salários que os indonésios em 1990, e os trabalhadores em Taiwan sejam tratados como se fossem mulheres coreanas. A Coreia foi o único país da lista para o qual foi possível obter dados especificamente para mulheres e, portanto, todos os trabalhadores da Nike na Coreia e Taiwan são tratados como se fossem mulheres. Isso pode tender a subestimar a folha de pagamento real para esses países, mas, por outro lado, usar médias para homens e mulheres em todos os outros países provavelmente superestima suas folhas de pagamento reais.

43Se houver 20.000 trabalhadores terceirizados da Nike distribuídos a cada país de acordo com sua participação na produção total, a folha de pagamento anual totaliza cerca de US$ 44 milhões (ver Tabela 1). Se houver 50.000 trabalhadores, a folha de pagamento anual chega a US$ 111 milhões.

TABELA 1 – Estimativa dos custos de emprego em outros países da Nike

TABELA 1 – Estimativa dos custos de emprego em outros países da Nike

Notas: 1. Indonésia, 1990. 2. Custo total do trabalho, incluindo despesas sociais. 3. Média para homens e mulheres. 4. 1994. 5. Coreia, 1995. 6. Somente mulheres. Números calculados de acordo com as taxas de câmbio em vigor em 21 de março de 1997.
Fonte: OIT, Anuário de estatísticas trabalhistas, 1996; Nike, 1996.

  • 6 Na primavera [do hemisfério norte] de 1997. O trabalhador coreano, é claro, trabalha mais horas por (...)

44A Tabela 2 mostra os resultados da intervenção nos níveis salariais reais, primeiro dobrando-os e depois multiplicando-os por um fator de dez. Em ambas as operações, mantive os salários na Coreia/Taiwan nos níveis reais atuais, que por acaso são quase exatamente equivalentes aos ganhos anuais de um trabalhador em tempo integral nos EUA que recebe o salário-mínimo atual de US$ 4,75/hora6. Em outras palavras, concedi aumentos apenas a trabalhadores na Indonésia, República Popular da China, Tailândia e Vietnã.

TABELA 2 – Estimativa da massa salarial anual total em condições variadas, fabricação em outros países da Nike (US$000s)

TABELA 2 – Estimativa da massa salarial anual total em condições variadas, fabricação em outros países da Nike (US$000s)

Observação: 1. Os países de baixa renda incluem a Indonésia, a República Popular da China, a Tailândia e o Vietnã.
Fonte: Tabela 1.

45Se houver 20.000 trabalhadores, dobrar os baixos salários aumenta a folha de pagamento total em US$ 13,5 milhões ou cerca de 31%. Multiplicando por dez, resulta em um aumento de US$ 122 milhões ou 274%. Se houver 50.000 trabalhadores, os aumentos são de US$ 34 milhões e US$ 304 milhões, respectivamente (as porcentagens são as mesmas).

46Em seguida, elevo todos ao nível da Coreia ou, aproximadamente, do salário-mínimo dos Estados Unidos. Com 20.000 trabalhadores, isso produz um aumento de US$ 148 milhões ou 335%. Com 50.000 trabalhadores, a folha de pagamento aumenta em US$ 371 milhões. Este último valor representa pouco menos de 10% dos custos totais da Nike em 1996, que foram de US$ 3,9 bilhões.

47A Tabela 3 fornece vários pontos de referência para avaliar o impacto desses aumentos salariais nos resultados financeiros da Nike. Podemos ressaltar o pior cenário para ter uma ideia geral do que está em risco. No pior cenário (50.000 trabalhadores com salários coreanos), a receita da Nike permanece constante em US$ 6,5 bilhões, enquanto os custos sobem para US$ 4,3 bilhões. As margens brutas, portanto, caem de 39,6% para 33,9%. Isso é significativo, dado que as margens brutas da Nike têm sido de pelo menos 38% desde 1990, mas claramente não é fatal.

TABELA 3 – Impacto financeiro do aumento de salários, considerando o pior cenário possível (50.000 trabalhadores com salários no nível da Coreia)

TABELA 3 – Impacto financeiro do aumento de salários, considerando o pior cenário possível (50.000 trabalhadores com salários no nível da Coreia)

Fonte: Nike, 1996: Tabelas 1 e 2.

  • 7 Este cálculo é particularmente inexato, pois o lucro líquido por ação ordinária no relatório 10-K é (...)

48O lucro sem os impostos foi de US$ 899 milhões em 1996. Se deduzirmos o aumento de custo inteiramente desse valor, o lucro sem os impostos cai para US$ 527,8 milhões, o que ainda está à frente do valor comparável de 1994 (US$ 490,6 milhões). Mantendo a alíquota efetiva de imposto de renda da empresa constante em 38,5%, isso resulta em um lucro líquido de US$ 203 milhões, em comparação com os US$ 553 milhões realmente registrados. Desde 1990, o lucro líquido da Nike não caiu abaixo de US$ 243 milhões. O lucro líquido por ação ordinária cai de US$ 3,77 para algo em torno de US$ 1,387. O lucro líquido por ação da Nike não caiu abaixo de US$ 1,61 desde 1990.

49Em 1996, a Nike registrou um retorno sobre o patrimônio líquido de 25,2% e um retorno sobre os ativos de 15,6%. Até onde posso dizer (veja nota 7), essas taxas caem para 9,3% e 5,7%, respectivamente. Os menores valores registrados para essas categorias desde 1990 são 17,7% e 13,1%.

  • 8 De fato, o acordo sobre padrões trabalhistas descrito acima permite que as empresas coloquem um rót (...)

50Este pior cenário pressupõe que não há folga no sistema. Pode-se considerar, por exemplo, que a Nike gastou US$ 642,5 milhões em publicidade e propaganda em 1996, ou cerca de 72% de sua receita sem os impostos. Agora, pode ser que esse seja exatamente o valor ideal a ser gasto e que qualquer redução geraria uma queda na receita. Por outro lado, esse pode não ser o valor ideal, e talvez seja possível compensar parte do aumento dos custos salariais com essa quantia. Ou pode seja possível costurar o equivalente a um pequeno golfinho em cada par de sapatos que foi feito em condições humanas dignas e cobrar um pouco mais por eles8.

51Isso não importa, no entanto. O que está claro é que, se você presumir que há 50.000 trabalhadores em países estrangeiros e decidir pagar a todos eles aproximadamente o salário-mínimo dos Estados Unidos - o que, para a maioria deles, é algo mais de dez vezes seus ganhos atuais -, a Nike ainda ganha dinheiro. A empresa pode absorver 100% dos custos adicionais e ainda ganhar meio bilhão de dólares antes dos impostos. Ou seja, a empresa ainda é competitiva.

52Outra maneira de colocar isso é dizer que depender de trabalhadores em países estrangeiros com baixos salários não tem nada a ver com a competitividade da Nike. Com o que tem a ver, então? Talvez seja mais correto dizer que, em vez de ser uma parte necessária da estratégia competitiva da empresa, as trabalhadoras em outros países de baixa remuneração são uma parte essencial da estratégia de acumulação da empresa e da sua estratégia no mercado de ações.

53Em suma, o uso de mão de obra feminina ultrabarata no terceiro mundo permite que a empresa acelere a taxa de acumulação e possa redistribuir o capital, seja em produção ampliada e mais produtiva, seja no tipo de campanhas publicitárias globais que simplesmente esmagam a concorrência. Ao mesmo tempo, permite que ela aumente suas estatísticas financeiras para níveis mais atrativos. Isso não é estúpido do ponto de vista corporativo, e as empresas têm o direito legal de operar dessa forma. Mas não é isso que queremos dizer com competitividade. Não é uma situação de vida ou morte, e não é indiscutível.

54Não imagino, nem por um minuto, que alguém realmente tenha pensado que a Nike foi totalmente obrigada a pagar exatamente os níveis salariais da Indonésia para se manter viva. Mas acho possível imaginar que, em geral, achamos plausível que a Nike ache necessário, sob as pressões de um mercado competitivo, pagar salários « baixos » sem descobrir quais deveriam ser os limites da categoria « baixos ». Penso também que essa plausibilidade reflete o poder e a abrangência de um discurso específico.

Baltimore

  • 9 Esses valores referem-se ao que estava vigente quando este artigo foi escrito. O salário-mínimo fed (...)

55Baltimore é, em muitos aspectos, um caso clássico de declínio urbano. Uma base manufatureira outrora robusta e diversificada quase que totalmente desmoronou, um porto próspero foi reduzido e automatizado, e a classe média branca há muito tempo fugiu para os condados vizinhos. A partir da década de 1970, enormes subsídios estaduais e federais alimentaram um projeto de renovação urbana centrado no turismo e serviços que resgatou a imagem de Baltimore aos olhos de muitos, sem alterar o fato essencial de que uma proporção considerável da população negra majoritária da cidade vive na pobreza. De fato, o tipo de emprego gerado pela estratégia de renovação urbana, por geralmente pagarem o salário-mínimo ou algo próximo a ele, garante que mesmo pessoas trabalhando em tempo integral continuem vivendo na pobreza (cf. Levine, n.d.). Trabalhar em tempo integral com um salário-mínimo de US$ 4,25/hora proporciona uma renda anual de pouco menos de US$ 9.000 por ano, supondo que não haja tempo de folga. O recente aumento para US$ 4,75/ hora eleva esse valor para US$ 9.8809. A linha de pobreza federal para uma família de quatro pessoas é de pouco menos de US$ 16.000. Não é preciso dizer que esses empregos normalmente não oferecem nenhum tipo de benefício.

  • 10 The Association of Federal, State, County and Municipal Employees (Associação de Funcionários Feder (...)

56Entre os primeiros a decidir enfrentar essa questão, estava um grupo de pastores altamente respeitados e influentes, com longa experiência no movimento pelos direitos civis. Mal podiam deixar de notar que muitas das pessoas que frequentavam regularmente as cozinhas populares administradas por suas igrejas tinham empregos em tempo integral e ainda estavam longe de serem capazes de sustentar a si mesmas e a suas famílias. Os pastores, trabalhando por meio de um grupo chamado Baltimoreans United in Leadership Development (BUILD), se aliaram a um grupo da Industrial Areas Foundation tentando organizar trabalhadores de baixa renda. O Solidarity Sponsoring Committee (SSC) resultante também é apoiado pela AFSCME10. Como resultado de seus esforços, Baltimore em 1994 tornou-se a primeira cidade dos EUA a aprovar uma lei de « salário digno ».

  • 11 NT: Cidade é utilizando aqui, fazendo um paralelo com o Brasil, no sentido do governo municipal.

57A lei exige que todos os fornecedores de serviços contratados pela cidade11 paguem a seus funcionários um salário digno, ou seja, um salário por hora suficiente para elevar seus beneficiários acima da linha da pobreza. Esse salário está atualmente fixado em US$ 7,70/hora (em comparação com o salário-mínimo atual de US$ 4,75), embora a ordenança defina o aumento gradual. Assim, no momento da redação deste documento, o mínimo atual sob a referida lei é de US$ 6,60/hora, subindo para US$ 7,10 em 1º de julho de 1997 e para US$ 7,70 no ano seguinte.

58Trabalhadores empregados diretamente pela cidade já são pagos nesse nível ou acima dele, portanto, os impactos orçamentários imediatos estão restritos aos efeitos do aumento salarial nos custos contratuais para a cidade. Estima-se que o número total de trabalhadores envolvidos seja de cerca de 4.000, o que implica que o impacto econômico direto total na cidade será bastante limitado. No entanto, podemos supor que o aumento daqueles que recebem os salários dos mais baixos levará a um certo grau de desvio salarial ascendente. E sabemos que o SSC está trabalhando duro para organizar outros trabalhadores de serviços de baixa remuneração em torno do salário digno. A Universidade Johns Hopkins, o maior empregador privado de Maryland, já prometeu instituir um salário-mínimo de US$ 6,00 em seus contratos de serviço em resposta a essa campanha de organização. O objetivo final, na verdade, é tornar o salário digno o salário-mínimo em Baltimore.

59O debate sobre os impactos do salário digno tem se concentrado nos custos para o governo municipal e na « competitividade » da cidade. A competitividade de Baltimore, ou a falta dela, é, obviamente, um assunto extremamente delicado na cidade, que há décadas vem lutando arduamente para se revalorizar de maneiras muito específicas.

60A estratégia de revalorização teve essencialmente dois aspectos. O primeiro foi subsidiar publicamente os custos para o capital privado de fazer negócios na cidade. O segundo foi criar enclaves geográficos, centrados no Inner Harbor e no distrito central de negócios, incluindo postos avançados selecionados, como universidades e hospitais, e tornando essas áreas « seguras » para investimentos. Por seguro, é claro, queremos dizer (mas nunca poderíamos dizer) livre de qualquer ameaça representada por pessoas perigosamente pobres (negras). O mais seguro de tudo é estar totalmente livre da presença deles.

  • 12 O fato de a portaria ter sido aprovada pode ser atribuído à enorme influência política da BUILD e d (...)

61O salário digno parece estar em desacordo com a primeira vertente da estratégia e parece ser essencialmente irrelevante para a segunda. A estratégia do enclave é excludente e implica em afastar os pobres, em vez de acolher e atenuar as suas circunstâncias12. De qualquer forma, a segunda parte da estratégia não pode ser discutida e, portanto, o discurso predominante, proveniente dos centros tradicionais de poder nesta cidade e em outras onde propostas semelhantes estão em pauta, tem sido sobre custos e competitividade (Weisbrot e Sforza-Roderick, 1996).

62E esse, de fato, tem sido o discurso usado por pesquisadores como eu. Atualmente, estou envolvida em um estudo desenvolvido para avaliar os impactos do salário digno em Baltimore. Trata-se de desdobramento de um estudo de 1996 da Preamble Foundation que constatou, de fato, que o custo real dos contratos da cidade diminuiu ligeiramente e o valor dos investimentos das empresas aumentou no ano seguinte à aprovação da lei. De fato, os efeitos colaterais positivos da lei parecem ser uma redução drástica na rotatividade e no absenteísmo e um aumento na produtividade associado ao aumento dos salários (Weisbrot e Sforza-Roderick, 1996).

63Agora, não há nada de errado em avaliar os custos dessa ou de qualquer outra atividade. Acabei de falar sobre os custos da Nike e estou muito interessada em descobrir quais são os impactos do custo de longo prazo da lei do salário digno em Baltimore. E se, no entanto, os dados tivessem sido diferentes no estudo do Preamble Center, ou se fossem diferentes no nosso? E se tudo o que pudermos mostrar for que, sim, os custos para a cidade aumentaram e, ao mesmo tempo, por qualquer motivo, os investimentos na cidade diminuíram?

64O que é preocupante é que o discurso dos custos e da competitividade define todo o terreno da discussão, constituindo a única moeda válida de argumentação. Em parte, isso ocorre porque há muitas coisas acontecendo que não pode ser dita na sociedade educada e, em parte, isso se deve ao fato de que os dados « cientificamente válidos » que se podem encontrar são quase que totalmente sobre essas categorias.

65Para demonstrar isso, tentei imaginar fazer um tipo de pesquisa totalmente diferente relacionado ao salário digno em Baltimore. A hipótese é que altos custos não são um impedimento significativo para investimentos produtivos em Baltimore; o principal impedimento é a pobreza e a insegurança que a pobreza gera para ricos e pobres. A pobreza significa ausência de mercado e trabalhadores mal preparados cujas vidas são constantemente perturbadas por pequenas catástrofes que, por sua vez, perturbam sua capacidade de trabalho. A pobreza também significa saúde precária e falta de segurança física para trabalhadores e empregadores. A pobreza significa uma base tributária escassa e uma infraestrutura e serviços urbanos deficientes. O custo de fazer negócios aqui poderia ser zero, e ainda assim o investimento poderia não ocorrer. O salário digno, nesse contexto, seria a principal ferramenta política para incentivar o investimento e o crescimento econômico.

66Há outro aspecto do tipo de lugar e pessoa que a pobreza cria que vale a pena mencionar. A pobreza cria « outros » assustadores que, em Baltimore, são predominantemente afro-americanos. Pelo truque social habitual, a raça passa a representar a adequação geral de uma pessoa para o emprego. Ou, dito de outra forma, não é mais a competitividade da pessoa, mas a competitividade do corpo que conta em primeiro lugar na criação de uma oferta de trabalho que seja considerada adequada para o investimento (cf. Martin, 1992; Wright, 1996; Harvey, 1997). Em uma sociedade capitalista, no entanto, o medo do Outro pode ser mitigado na medida em que o Outro fornece uma base produtiva para a acumulação. Novamente, o salário digno parece ser a política apropriada.

67Estou profundamente ciente de que não consigo demonstrar nenhuma parte desse argumento de forma cientificamente aceitável. Esse é realmente o ponto. O discurso e os recursos reais que sustentam o discurso abrem um terreno para alguns tipos de pesquisa e tornam outros tipos bastante difíceis e menos válidos. Ainda se é livre para apresentar um argumento moral, mas isso não tem nada a ver com o seu status de pesquisador ou cientista na sociedade. Com liberdade acadêmica ou não, acontece que somos bastante limitados no exercício do nosso trabalho e, como resultado, podemos acabar apoiando tacitamente o discurso e as práticas que nos limitam em primeiro lugar.

Conclusão

68Os sujeitos coloniais há muito tempo têm lutado com o que significa usar a linguagem do mestre - mesmo em tempos pós-coloniais. Em nossa compreensão normal da vida acadêmica, não deveríamos ter nada em comum com sujeitos coloniais nesse ou em qualquer outro assunto. Mas se somos fortemente objetivos sobre nós mesmos e nosso trabalho, como Sandra Harding defende, podemos ter certeza de que a objetividade desejada de nossa pesquisa não é sutilmente prejudicada por nossa dependência de uma linguagem e de um discurso que não são inteiramente de nossa escolha e, sem dúvida, é uma linguagem e um discurso que representa os interesses de grupos sociais específicos e não de outros?

69A resposta, creio eu, é que não podemos ter certeza, por isso temos que verificar várias vezes e tentar descobrir que diferença isso faz. Que diferença faz, por exemplo, concluir que a fabricação em países estrangeiros da Nike é uma estratégia de acumulação e não uma estratégia competitiva, ou que o status competitivo de Baltimore é prejudicado pela pobreza e não pelos custos?

70Não acho que isso necessariamente signifique coisas específicas e nomeáveis. Suspeito, em vez disso, que com o tempo, se continuarmos verificando nós mesmos e o nosso trabalho dessa forma, contribuiremos para construir um conjunto alternativo de recursos intelectuais e materiais que podem ser usados para formular e responder diferentes tipos de perguntas - nossas próprias perguntas e as perguntas que surgem dos discursos e das circunstâncias materiais de diferentes tipos de pessoas. Entre outras coisas, suspeito que isso nos ajudaria a nos libertar das sombras constrangedoras de outras disciplinas, como a economia, e a recriar a geografia como uma arena central de investigação e debate dentro e fora da universidade (cf. Clark, 1997).

  • 13 NT: Referência a The Stepford Wives (1972), livro do escritor americano Ira Levin que retratava um (...)

71Não quero de forma alguma argumentar que, tendo absorvido o discurso hegemônico, estamos todos condenados a ser geógrafos Stepford13 que só podem servir a esse discurso. Mas acho que isso deve nos ajudar a saber com mais clareza por que estamos fazendo o que estamos fazendo e por que o fazemos de um jeito específico. Examinar e debater nosso próprio discurso e as práticas profundamente associadas a ele com a mesma intensidade e cuidado com que examinamos e debatemos o mundo « lá fora » nos ajudará a entender melhor essas coisas.

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Bibliografia

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Notas

1 NT [Nota da Tradução]: No original, neste trecho a autora escreve « ...knowing subject and the knowledge she produces ». A palavra « subject » em inglês não tem gênero inerente, sendo uma palavra neutra que pode se referir a qualquer pessoa; por outro lado, o termo correspondente em português, « sujeito », é uma palavra masculina. Optamos, portanto, por manter na tradução o estilo da autora colocando na tradução o pronome no feminino neste trecho e em outros subsequentes em situações similares.

2 Um exemplo é a distinção entre pobreza como categoria econômica e pauperismo como categoria social, que descreve não apenas um nível de renda, mas um modo de vida e um modo de pensar degradados.

3 Veja Krugman (1994), que argumenta que as pessoas invocam o termo sem pensar sobre o que ele significa e, portanto, comumente o usam de forma incorreta.

4 Como observa McCloskey (1985: 107), « não é estranho encontrar a evolução e a economia usando dispositivos retóricos idênticos, pois são gêmeos idênticos criados separadamente ».

5 A empresa também tem acordos de fabricação com produtores independentes na Argentina, Brasil, Itália e México.

6 Na primavera [do hemisfério norte] de 1997. O trabalhador coreano, é claro, trabalha mais horas por essa renda. De acordo com as estatísticas da OIT, a média de horas semanais relatadas para mulheres coreanas na indústria chega a 48,6. Isso parece baixo. Talvez valha a pena tentar incluir alguma compensação pelas horas a mais, embora também se possa especular que o pagamento de salários muito mais altos tenderá a induzir mais mecanização e assim por diante, reduzindo assim a entrada de mão de obra. Considerando a imprecisão de todo esse exercício deve ser, parece razoável estabelecer um limite para as mudanças salariais.

7 Este cálculo é particularmente inexato, pois o lucro líquido por ação ordinária no relatório 10-K é derivado de uma ponderação inexplicada de ações. Tanto aqui quanto para os índices financeiros, eu simplesmente calculei proporcionalmente ao que é mostrado em seus resultados de 1996.

8 De fato, o acordo sobre padrões trabalhistas descrito acima permite que as empresas coloquem um rótulo « Sem exploração » em seus produtos.

9 Esses valores referem-se ao que estava vigente quando este artigo foi escrito. O salário-mínimo federal subiu para US$ 5,15/hora em 1º de setembro de 1997.

10 The Association of Federal, State, County and Municipal Employees (Associação de Funcionários Federais, Estaduais, do Condado e Municipais).

11 NT: Cidade é utilizando aqui, fazendo um paralelo com o Brasil, no sentido do governo municipal.

12 O fato de a portaria ter sido aprovada pode ser atribuído à enorme influência política da BUILD e de seus aliados com o prefeito recém-eleito, que dependia muito do apoio de seus eleitores.

13 NT: Referência a The Stepford Wives (1972), livro do escritor americano Ira Levin que retratava um local, Stepford, em que os homens são casados com mulheres submissas e obedientes que, na verdade, eram robôs.

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Índice das ilustrações

Título TABELA 1 – Estimativa dos custos de emprego em outros países da Nike
Legenda Notas: 1. Indonésia, 1990. 2. Custo total do trabalho, incluindo despesas sociais. 3. Média para homens e mulheres. 4. 1994. 5. Coreia, 1995. 6. Somente mulheres. Números calculados de acordo com as taxas de câmbio em vigor em 21 de março de 1997.Fonte: OIT, Anuário de estatísticas trabalhistas, 1996; Nike, 1996.
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/geografares/docannexe/image/17212/img-1.png
Ficheiro image/png, 103k
Título TABELA 2 – Estimativa da massa salarial anual total em condições variadas, fabricação em outros países da Nike (US$000s)
Créditos Observação: 1. Os países de baixa renda incluem a Indonésia, a República Popular da China, a Tailândia e o Vietnã.Fonte: Tabela 1.
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/geografares/docannexe/image/17212/img-2.png
Ficheiro image/png, 66k
Título TABELA 3 – Impacto financeiro do aumento de salários, considerando o pior cenário possível (50.000 trabalhadores com salários no nível da Coreia)
Créditos Fonte: Nike, 1996: Tabelas 1 e 2.
URL http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/geografares/docannexe/image/17212/img-3.png
Ficheiro image/png, 95k
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Para citar este artigo

Referência eletrónica

Erica Schoenberger, «Discurso e prática na geografia humana»Geografares [Online], 39 | 2024, posto online no dia 18 dezembro 2024, consultado o 22 março 2025. URL: http://0-journals-openedition-org.catalogue.libraries.london.ac.uk/geografares/17212

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Autor

Erica Schoenberger

Universidade Johns Hopkins - Baltimore, Maryland, Estados Unidos da América
e-mail: ericas@jhu.edu
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0449-6168
Professora emérita de saúde e engenharia ambiental na Whiting School of Engineering e na Bloomberg School of Public Health [Escola Whiting de Engenharia e na Escola Bloomberg de Saúde Pública] da Johns Hopkins University.
Ela obteve seu bacharelado na Universidade de Stanford e seu doutorado em 1984 na Universidade da Califórnia, em Berkeley.
Geógrafa econômica e historiadora ambiental, ela é autora da obra « Nature, Choice and Social Power ». Atualmente, ela está escrevendo um livro sobre as origens do capitalismo intitulado « Money, Monks and Monarchs », pelo qual recebeu uma bolsa Guggenheim em 2020.

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Tradutor

Ana Maria Leite de Barros

Universidade Federal do Espírito Santo - Vitória, Espírito Santo, Brasil
e-mail: amleitedebarros@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8534-466X

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