1No contexto dos estudos da interseção entre Geografia Política e Geografia Econômica, há uma profusão de debates acerca da participação do Estado. No geral, os estudos adotam uma visão de poder assaz hierárquica, segundo a qual o Estado é interpretado apenas como o agente dominante. E, como tal, faz valer o seu poderio verticalmente por meio da força econômica, atuando como indutor de investimentos, controlador do tesouro público, de seu poder regulatório, do fisco e da determinação e fiscalização de leis que incidem diretamente na macro e na microeconomia. Evidentemente, todo esse processo ocorre sem nunca se perder de vista o monopólio legal da força e dos riscos de implosão por dentro e por fora dos regimes democráticos.
2No presente artigo, parte-se de um outro viés para a análise do Estado, que, sem a pretensão de colocá-lo como uma figura secundária, procurará concebê-lo a partir da sua plasticidade funcional, mediante o conceito de governança. Diante do caráter polissêmico do termo, adotamos a perspectiva difundida por Bob Jessop (2017), que entende o conceito como fruto da transição de governo para governança, no sentido de reconhecer a existência de novas práticas políticas. O autor defende que o Estado é cada vez mais convocado a relativizar sua posição como autoridade soberana em uma estrutura de hierárquica de mando, para exercer uma função contínua na auto-organização reflexiva de múltiplas partes interessadas, incluindo redes complexas, heterogêneas e multiníveis, destacando a importância da coordenação e da formação de redes de poder.
3O exemplo prático de maior plasticidade na ação do Estado será discutido a partir da análise da implementação das Câmaras Setoriais (CS) no Brasil e, mais especificamente, da experiência recente da criação da Câmara Setorial da Cerveja, doravante chamada pela sigla CSC.
4No Brasil, as Câmaras Setoriais tiveram início no final da década de 1980, em um momento de reposicionamento do Estado perante a sociedade, em termos políticos, econômicos e sociais. No cenário político, o país viveu o movimento de redemocratização, com grandes movimentações para construir representatividades de agentes sociais até então marginalizados. É o caso, por exemplo, do movimento sindical, que mostrou forte organização nacional.
5No âmbito econômico, o modelo de intervenção estatal na economia passou a ceder lugar às diretrizes neoliberais, com abertura econômica e redução do espaço de ação do Estado brasileiro, através, principalmente, das privatizações. Já na esfera social, a Constituição Federal de 1988 tornou-se um marco nos direitos sociais, abrindo as portas para maior participação e organização social, sobretudo por meio dos conselhos nacionais, das organizações não governamentais (ONGs), fóruns sociais etc. É justamente o contexto de abertura democrática que explica a necessidade de reposicionamento do papel do Estado.
6A escolha da CSC como foco de análise deste trabalho justifica-se por três aspectos importantes. Primeiro, por se tratar de uma das câmaras mais recentes, não obstante o largo histórico do setor no país. Em segundo lugar, deve-se considerar a popularidade da cerveja como um produto consolidado no hábito de consumo dos brasileiros, implicando em fortes investimentos financeiros em campanhas de marketing. Por fim, a escolha se justifica ainda pelas recentes transformações no setor, com destaque para a crescente oligopolização envolvendo grandes corporações, paralelamente ao movimento das pequenas cervejarias e da produção artesanal.
7Assim, este trabalho visa analisar a governança territorial do setor cervejeiro no Brasil, mediante a criação da CSC como exemplo prático do surgimento de novas instâncias de poder. A partir desse pano de fundo, observamos a transição democrática do país no final do século XX para examinar como novas formas de representação e governança surgem no espectro político de articulação governo-mercado-sociedade.
8Além desta introdução, que traz uma contextualização da formação das Câmaras Setoriais no final do século XX, este artigo conta com uma seção metodológica e discute ainda aspectos como: governança, território e desenvolvimento; a abertura das Câmaras Setoriais no MA como movimento de poder; a criação das CSC e seus desdobramentos territoriais. Por fim, as considerações finais pontuam como o poder da cerveja governa e como ocorre sua governança.
9As discussões desenvolvidas neste artigo foram pautadas por uma vasta pesquisa bibliográfica sobre os conceitos de território, governança e desenvolvimento para elucidar o encadeamento dessas noções e balizar a análise da CSC e sua governança territorial. A consulta ao diploma legal de formalização das câmaras no Ministério da Agricultura (MA) também foi fundamental para compreender as disputas de poder e a formação de blocos socioterritoriais na conformação das cadeiras representadas nesses colegiados.
10Além disso, foram realizadas cinco entrevistas com agentes que representam pontos focais das câmaras: o presidente e o secretário, responsáveis por articular os debates dos temas relevantes à cerveja; e os representantes de três principais entidades ligadas à produção cervejeira da câmara. Essas conversas permitiram elucidar diversas questões sobre as relações entre os agentes do setor cervejeiro nas Câmaras Setoriais.
11As conclusões aqui apresentadas também são frutos da participação em nove reuniões da CSC, ocorridas entre 30 de outubro de 2019 e 13 de outubro de 2021. Nesses encontros, foi possível observar a atuação, os conflitos e as formas de articulação das entidades, mostrando como os jogos de poder ocorrem para atender os interesses dos entes mais poderoso ou a aliança de entidades, quando o assunto é consenso entre os representantes. Essa observação foi essencial para verificar o enquadramento dos tipos de governança e para compreender até que ponto essa instância de governança alcança os preceitos democráticos dos colegiados formados no período de redemocratização e como contribui para o desenvolvimento do setor e dos territórios.
12Embora a noção de governança tenha ganhado mais notoriedade atualmente, o termo remonta da década de 1930, quando o debate era focado principalmente nas empresas. Somente a partir da década de 1970, esse conceito passou a se relacionar mais especificamente aos aspectos da governabilidade. Por fim, na década de 1980, já presente nos documentos do Banco Mundial, a discussão passou a versar sobre a eficiência da gestão econômica de um país, sendo também chamada de « boa governança » pelo Fundo Monetário Internacional (FMI). Atualmente, a palavra vem sendo aplicada em relação a empresas, instituições, organismos governamentais ou não governamentais e em diferentes escalas e interações dos setores da sociedade (Pires et al., 2011).
13Dessa forma, o conceito de governança não se limita à gestão estatal, na medida em que se refere « a mecanismos e estratégias de coordenação diante da complexa interdependência recíproca entre atores, organizações e sistemas funcionais operacionalmente autônomos » (Jessop, 2017, p. 278).
14A partir da concepção preconizada por Jessop (2017), ganha destaque a governança como rede « através das formas de controle exercidas por diferentes agentes públicos e/ou privados, atores sociais não estatais que influenciam na coordenação social, política e econômica de importantes atividades » (Bezerra, 2017, p. 110). Trata-se, portanto, de um conceito intermediário entre Estado e mercado e entre o global e o local, « designando as diversas formas de regulação e controle territorial implementados em diferentes tipos de redes e acordos entre atores sociais, que juntos definem mecanismos formais ou tácitos para resolver problemas inéditos » (Pires et al., 2011, p. 2).
15Nesse contexto, a governança surge como processo de construção organizacional e institucional, a partir de consensos formais entre os atores geograficamente próximos, que buscam diferentes modos de coordenação para resolução dos problemas enfrentados pela nova produção dos territórios (Pecqueur, 2000). O território é, portanto, local de origem e de propagação da governança, relacionando-se à noção de governança territorial. Este conceito parte da obtenção da coerência, sempre parcial e provisória, de compromissos entre atores, que se articulam de duas maneiras: entre os atores econômicos e atores institucionais sociais e políticos; e entre as dimensões local e global, por meio das mediações de atores ancorados no território e atrelados à lógica econômica e institucional global (Gilly; Pecqueur, 1997).
16Os elementos que compõem a governança partem da formação dos blocos socioterritoriais, ou seja, o conjunto heterogêneo de atores territoriais que, em determinado momento histórico, assume posição hegemônica, formando redes de poder socioterritoriais. Os acordos resultantes dessa prática de gestão territorial geram pactos socioterritoriais (Dallabrida, 2007).
17As redes de poder socioterritoriais referem-se à sociedade organizada territorialmente, representada pelas suas lideranças, que, em cada momento da história, assumem posição hegemônica, ditando a direção político-ideológica ao processo de desenvolvimento. Essas lideranças dos segmentos sociais, por vezes concorrentes, são induzidas a promover acordos, provisórios ou não, para manter a hegemonia, formando verdadeiros blocos de poder com vistas ao desenvolvimento territorial (Dallabrida, 2007).
18É importante destacar que o conjunto das relações entres os atores, instituições e sociedade historicamente reconhecido define a dinâmica territorial e a construção da governança. A partir desse entendimento, podemos falar de uma governança do território composta por diferentes atores e instituições, que estabelecem regras e rotinas, determinando sua especificidade local em relação ao sistema produtivo nacional. A dinâmica da regulação do território leva em conta as estratégicas dos atores, a capacidade local de adaptação do território aos processos de aprendizagem e às lógicas externas dos ramos de atividade (Gilly; Pecqueur, 1997).
19A governança torna-se territorial quando se reconhece que o território é o recorte espacial de poder que permite que empresas, estados e sociedade civil entrem em contato, manifestando diferentes formas de conflitos e de cooperação, direcionando, portanto, o processo de desenvolvimento territorial. Assim a « governança territorial, enquanto conceito, instrumento e processo de ação, poderia ser conhecida como novo ‘piloto’ do desenvolvimento econômico e social descentralizado » (Pires et al., 2011, p. 26-27).
20Estabelecemos uma primeira aproximação entre os conceitos elencados por meio de um prisma, segundo o qual as articulações visam a estruturação de ações orientadas para o desenvolvimento, partindo do conceito de território como a projeção espacial de relações de poder (Souza, 2013). Entendemos que o desenvolvimento – não como premissa abstrata, etapista e sempre amparado na dimensão espacial – pressupõe uma « transformação para melhor das relações sociais e do espaço, propiciadora de melhor qualidade de vida e maior justiça social » (Pires et al., 2011, p. 286).
21No debate sobre governança, o conceito de desenvolvimento também está ancorado na busca do enfrentamento da heteronomia, ou seja, do quadro de assimetria estrutural de poder. Nesse processo, agentes privados, estatais e sociedade civil se relacionam para pensar em estratégias de inovação para o desenvolvimento econômico e espacial, se organizando a partir de diferentes instâncias de poder.
22Cada dinâmica produz formas de organização espacial que se modificam de acordo com os níveis de articulação e maturidade dos projetos, acarretando diferentes modos de territorialização. As estruturas de governança atuam como alavancas da competitividade e do desenvolvimento territorial das regiões e aglomerados produtivos.
23As diferentes formas de se estruturar a governança territorial permitem a tipificação de modelos distintos (Quadro 1), conforme a maior ou menor cooperação dos agentes territorializados, suas origens e finalidades. Assim, podemos verificar o papel dos agentes e instituições e sua organização, bem como o do Estado em suas três esferas (federal, estadual e municipal) para interpretar a sua importância na construção da governança territorial.
QUADRO 1 – Tipos de governança territorial
Fonte: Adaptado de MARCUSSO, 2018.
24A tipologia de governança define as lideranças que tomam frente na organização territorial, os atores que governam o território e o ator preponderante que iniciou a articulação entre os agentes. Esse tipo de formulação possibilita a classificação dos modelos de governança territorial presentes na realidade.
25A primeira experiência de governança territorial no país, já na década de 1990, foi representada pelos Conselhos Regionais de Desenvolvimento (COREDES), no Rio Grande do Sul e, posteriormente, pelas Câmaras Setoriais, os Arranjos Produtivos Locais, os Circuitos Turísticos Intermunicipais, os Consórcios Intermunicipais e os Comitês de Bacias Hidrográficas (Pires et al., 2011).
26Ao aprofundar a análise, podemos elencar os princípios da governança territorial para visualizar o grau de compromisso dos atores com a lógica coletiva dessa governança, demonstrando a maturidade de adesão às estruturas da governança (Quadro 2).
QUADRO 2 – Princípios básicos da governança territorial, democrática e triparte
Fonte: Pires et al., 2017.
27A partir da visão dos princípios que norteiam a noção de governança, é possível considerar que esta constitui um recurso específico do território, se articulando em prol de seu desenvolvimento (Benko; Pecqueur, 2001). Quanto maior o compartilhamento das decisões em uma estrutura de governança territorial, maior a satisfação de seus integrantes diante da contemplação de seus objetivos. Dessa maneira, a governança aparece como abordagem teórica justamente quando se constroem modalidades diferentes de administração político-regional/local, com consensos e redes de poder entre empresas, poder público e entidades civis (Pires et al., 2011).
28O exercício da governança territorial acontece por meio da atuação dos diferentes atores, instituições, Estado e organizações da sociedade civil, em redes de poder socioterritoriais. Dentro dessas novas formas de organização, os territórios se transformam no « fio condutor » das estratégias de governança e de desenvolvimento territorial (Veiga, 2002).
29Dessa maneira, os territórios se tornam « fonte de desenvolvimento » (Aydalot, 1986), de modo que desenvolvimento e governança permanecem atrelados pela noção de território. Então, para se pensar o desenvolvimento em tempos de globalização, é fundamental que se tenha o território como elemento condicionante, no qual as políticas, as organizações e a governança são recursos a um só tempo disponíveis ou a serem criados.
30Assim, o desenvolvimento territorial é o resultado de uma ação coletiva intencional de caráter local, constituindo um modo de regulação territorial. Trata-se, portanto, de uma ação associada a uma cultura e plano de instituições locais, tendo em vista arranjos de regulação das práticas sociais (Pires; Muller; Verdi, 2006).
31Ao considerarmos a relação entre conceitos de território, governança e desenvolvimento, devemos levar em conta que os aspectos de governança constituem um recurso específico para promover o desenvolvimento do território. Assim, território, governança e desenvolvimento estão interligados pelas relações de poder criadas pelos acordos e compromissos firmados pelos atores territorializados social, cultural e economicamente. E se o objetivo final é o desenvolvimento territorial, este depende cada vez mais da organização social e da criação de espaços de diálogos e negociação entre os diferentes atores sociais em prol de uma meta comum para garantir um desenvolvimento econômico territorialmente equilibrado, socialmente justo e ambientalmente sustentável (Pires, 2016).
32Esse encadeamento teórico entre território, governança e desenvolvimento é a base para entendermos as construções de governanças a partir da cerveja. Um dos principais elementos de governança territorial da cerveja consiste em sua Câmara Setorial no MA. Contudo, para entendermos sua dinâmica, é preciso olhar para a instituição das Câmaras Setoriais no ministério e compreender suas relações de poder no espaço.
- 1 Entre 1992 e 1995, a Câmara Setorial do setor automobilístico promoveu acordos sobre preços, tribut (...)
33Como vimos, a redemocratização no Brasil foi fundamental para ampliar os canais de participação social e gerar um novo marco na regulação das relações entre capital, Estado e sociedade civil organizada. Nesse contexto, o governo Sarney estabeleceu o Decreto nº 96.056/1988, que, no âmbito da política de desenvolvimento industrial, criou as Câmaras Setoriais com a ideia do compartilhamento do poder entre órgãos governamentais e a iniciativa privada. Nessa época, as câmaras preconizavam as ações voltadas para a política de incentivos e preços para os diferentes ramos da produção industrial, sendo a mais exitosa a automobilística, no início da década de 19901.
34A transição das Câmaras Setoriais para o Ministério da Agricultura (MA) se deu por meio da Lei nº 8.028/1990, que, ao organizar o Poder Executivo, criou o Conselho Nacional de Agricultura (CONAGRI). A partir da regulamentação dessa lei, foram criadas as Câmaras Setoriais especializadas em produtos, insumos ou atividades rurais. Por fim, a Lei nº 8.171/1991, conhecida como Lei Agrícola, instituiu o Conselho Nacional de Política Agrícola (CNPA) e lançou mão das câmaras como sua estrutura funcional.
35Esse diploma legal é um marco importante para a representação dos blocos socioterritoriais de poder, com a possibilidade de fomentar uma maior participação e criar fóruns democráticos de representação. Contudo, havia ainda a limitação não combatida pela lei de privilegiar os interesses do poder dos grandes produtores rurais na construção das políticas públicas (Delgado, 1994).
36Nesse contexto, foram abertas diversas Câmaras Setoriais. Sua composição envolveu entidades de representação dos setores produtivos de diversas categorias, órgãos públicos e também trabalhadores, apesar da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura (CONTAG) ser a única a participar (Takagi, 2000).
37Já a Portaria nº 535/1996 do MA criou o Fórum Nacional de Agricultura (FNA) que, através de um modelo de parceria público privada, traçou políticas públicas para as cadeias agroprodutivas, com a adesão de cerca de 500 lideranças do setor agrícola. Amparado por sua base política, o então presidente Fernando Henrique Cardoso fortaleceu o FNA como instrumento para aprimorar o agronegócio nacional através da perspectiva do setor privado como um dos principais responsáveis pelo « desenvolvimento do país ». Em entrevista concedida, o Ex-presidente da república comenta que « O governo entra com sua parte no suporte à produção, no direcionamento de recursos, na proteção e defesa da concorrência, na infra-estrutura e na garantia de um arcabouço jurídico » (Cardoso, 1997, p. 3).
38O fórum organizado pelo Ministério da Agricultura teve forte participação do setor privado, por meio da figura do vice-presidente da Associação Brasileira do Agrobusiness (ABAG), Roberto Rodrigues, que defendia o FNA como parte da reformulação do Estado na ótica neoliberal, rompendo com o modelo corporativista do Estado protetor e provedor para « buscar no mercado a nossa interação, a nossa energia. O FNA é fruto de uma nova atitude, da procura de novos paradigmas, formadores de uma nova consciência de parceria e cidadania para a construção compartilhada do futuro, do interesse de todos » (Rodrigues, 1997, p. 7).
- 2 O PRIMA foi criado como unidade piloto do Plano Diretor de Reforma do Aparelho do Estado, documento (...)
39Dentre os produtos entregues pelo FNA, merece destaque a proposta da nova estrutura, organização e dinamismo do CNPA, no contexto do Programa de Reorientação Institucional do Ministério da Agricultura (PRIMA), criado pelo Decreto nº 2001/19962. O objetivo do PRIMA também aponta para a divisão bipartite do poder entre governo e setor privado, buscando a reformulação institucional do Ministério da Agricultura dentro da visão de cadeias agroprodutivas, a partir dos novos cenários internos e externos, determinados pela globalização econômica, pela busca da competitividade do setor e pela Reforma do Aparelho do Estado.
40Essa visão caminha para a superação da centralidade do Estado e abre espaço para maior atuação dos entes privados no diálogo com o poder público, caracterizando-se, desde sua idealização como uma governança privada-estatal (Quadro 1). Isso pode ser evidenciado no desenrolar do FNA que, em 1997, estabeleceu 34 grupos temáticos para discutir os temas relevantes para o agronegócio brasileiro. Esses grupos podem ser considerados os embriões das novas Câmaras Setoriais.
41Como fica claro, trata-se de uma construção de discurso, ação e convencimento das autoridades públicas e privadas orientadas para o mercado, reforçando a ideia defendida no presente artigo da migração de uma governança estatal-privada para privada-estatal (Quadro 1).
42Nesse ínterim, foi criado o Conselho do Agronegócio (CONSAGRO) por meio do Decreto de 2 de setembro de 1998, que define sua composição paritária entre representantes dos setores públicos e privados e sua missão de articular e negociar o poder público e a iniciativa privada, com o objetivo de implementar os mecanismos, as diretrizes e as respectivas estratégias competitivas do agronegócio brasileiro, no médio e longo prazo, a partir das propostas do FNA.
43A primeira reunião do CONSAGRO ocorreu em 8 de abril de 2003, durante o primeiro Governo Lula, quando Roberto Rodrigues, na época Ministro da Agricultura, definiu câmaras para os principais temas e setores do agronegócio brasileiro. O conselho reafirmou os seis conceitos básicos nos fóruns de discussão entre o poder público e as instituições privadas: equidade no tratamento entre os diferentes elos das cadeias produtivas, qualidade nos serviços, garantia da segurança alimentar, competitividade, harmonização entre os setores e paridade público e privado na sua gestão (Vilela; Araujo, 2006).
- 3 Todas as 36 câmaras do MAPA podem ser acessadas, bem como a pauta e memória das reuniões no site do (...)
44Nos anos subsequentes, foram criadas muitas Câmaras Setoriais. Inicialmente, foram abertas 11 em 2003. Depois, esse número passou para 17 em 2004, 20 em 2005, 23 em 2006, 29 em 2017 e, finalmente, 31 em 2019. Na época, também foram criadas as Câmaras Temáticas (CT), que já foram sete e, atualmente, são cinco (Marcusso, 2018). A diversidade de temáticas3 mostra o quão importante são esses fóruns de discussão para o debate entre os setores público e privado, além de atuar como local privilegiado para encaminhar as reivindicações ao poder público.
45Com a chegada de Bolsonaro ao poder, em 2019, houve uma rápida deterioração dos mecanismos democráticos de participação, o que se concretizou com a publicação do Decreto nº 9.759/2019, que extingue e estabelece diretrizes, regras e limitações para colegiados da administração pública federal. O decreto previa a extinção de todos os conselhos nacionais, inclusive o CONSAGRO, mas, com relação ao CNPA, devido ao fato de este ser instituído por lei, se fez valer o entendimento do Supremo Tribunal Federal, que limitou o alcance do decreto (Pontes, 2019, on-line).
- 4 Segundo Luciano Mariz Maria, Vice-Procurador-Geral da República: «Devemos respeitar a autoridade do (...)
46Essa medida foi um retrocesso para os mecanismos de maior representação da sociedade civil organizada, concentrando o poder no Governo Federal, que não mais precisa debater o assunto de forma democrática. A esse respeito, a Procuradoria Geral da República (PGR), questionou: « Quantas vozes são silenciadas com esse decreto? O que deixa de ser dito quando extintos os conselhos? O que não estamos querendo ouvir? »4.
47Com o CONSAGRO extinto, houve uma preocupação em relação à extinção das câmaras do MAPA. Porém, como elas estavam previstas na Lei Agrícola, vinculadas ao CNPA, foi necessário fazer o reenquadramento das câmaras. Com isso, a Portaria nº 253/2019 aprovou o novo regimento interno do CNPA e assegurou a permanência das câmaras. Mas, para isso, foi necessário revogar todas as 36 portarias de criação das câmaras geradas no âmbito do CONSAGRO para recriá-las no CNPA, o que foi feito pela Portaria nº 13/2020.
48Justamente no período de maior instabilidade política, quando as CS estavam ameaçadas, é que a Câmara Setorial da Cadeia Produtiva da Cerveja foi criada. Como visto, as CS são fontes de poder e representação socioterritorial, visando o posicionamento dos interesses dos líderes do agronegócio do Brasil, mas também são pontes de acesso para representação de pequenos produtores, que não teriam voz nas formas políticas de lobby e de influência econômica.
49O poder dentro da cadeia da cerveja sempre foi de grande importância e disputa, já que estamos falando de mais de 2% do PIB nacional e das maiores empresas de cerveja do mundo operando no território nacional. Recentemente, as pequenas cervejarias iniciaram sua trajetória de crescimento e representação política, o que contribuiu para aumentar os conflitos pela defesa dos interesses de parte a parte (Marcusso, 2021).
50Em meio às disputas de poder no setor cervejeiro, foi instalada no MAPA a Câmara Setorial da Cadeia Produtiva da Cerveja, por meio da Portaria nº 201/2019, após dois anos de debates com as instituições, de convencimento das autoridades e de trabalhos acadêmicos (Marcusso; Limberger, 2019) que sustentaram a formação da CSC.
51Após longo processo de negociação e convencimento, em 30 de outubro de 2019, ocorreu a primeira reunião ordinária, que contou com a participação da Ministra da Agricultura, Tereza Cristina e de membros da Frente Parlamentar do Agronegócio (FPA) e da Frente Parlamentar Mista de Defesa da Indústria de Bebidas. Esse cenário mostra como foi necessário haver uma articulação entre as diversas redes de poder para superar as barreiras e avançar com o projeto.
52A competição entre cervejarias grandes e pequenas tem suas raízes no século XIX, com a introdução da tecnologia de resfriamento, essencial para o avanço da indústria de cervejas de baixa fermentação. A união dos produtores em defesa de seus direitos moldou as dinâmicas de poder na indústria cervejeira, culminando no predomínio das cervejas de baixa fermentação e na quase extinção daquelas de alta fermentação em muitos países com tradição na produção de cerveja.
53Marques (2014) traz uma análise primorosa das batalhas entre grandes e pequenas cervejarias por maior espaço comercial e políticas tributárias diferenciadas por parte do Estado, demonstrando a complexidade das relações entre os poderes público e privado, sendo que este último jamais pode ser considerado como um setor homogêneo.
54Justamente por se reconhecer o histórico conflitivo do setor cervejeiro no país é que se deve dar atenção ao caráter positivo da criação da CSC, que reúne em um mesmo fórum de discussão diversos atores envolvidos metaforicamente do campo ao copo, algo impensável nos séculos anteriores.
55Como sabemos a partir das já citadas normas dos colegiados, as câmaras são órgãos de assessoramento do Ministro de Estado da Agricultura, de modo que quem for protagonista nesse fórum terá mais acesso e influência ao alto escalão do poder ministerial dentro do MAPA. Um exemplo disso foi a disputa pelo posto de presidente da CSC. Após debate entre os representantes das grandes e pequenas cervejarias, optou-se por uma versão rotativa da presidência, com a primeira cadeira ocupada por um representante das microempresas.
- 5 A lista completa está disponível na Portaria MAPA nº 13, de 15 de janeiro de 2020 de criação da CSC
56Nas 24 entidades de criação da CSC, temos representantes dos produtores agrícolas; da pesquisa; de insumos, como latas e garrafas; do setor produtivo; dos trabalhadores; do associativismo; do varejo; pontos de venda; turismo etc.5 Assim, 83% dessas entidades têm sede no Distrito Federal e são de abrangência federal, ou seja, estão no centro do poder, representando sua classe no país todo, sendo que 42% representam a indústria, 21% o comércio e 17% a agricultura. Já a representação do governo aparece com 8% e a dos trabalhadores, da pesquisa e da sociedade figuram com apenas 4%.
57Nessa distribuição, a disputa entre o agricultor e a indústria é um dos pontos de atenção nas câmaras do MAPA, sobretudo nas câmaras de produtos agroflorestais e de proteína animal. No caso da CSC, essa disputa é menor, uma vez que o Brasil importa aproximadamente 100% do lúpulo e 70% do malte para produção nacional (Beer Art, 2018, on-line). Outro ponto de destaque é a baixa representatividade dos trabalhadores e da sociedade civil. Essa constatação reforça a noção de uma governança bipartite entre governo e empresários, passando longe do ideário de uma governança tripartite democrática (Marcusso, 2018). Não obstante tais limitações, a configuração da CSC somente foi possível graças à ação do Estado via MAPA, orientando o setor para que houvesse participação do maior número de representantes possível, incluindo a trabalhadores e consumidores. Ou seja, com essa medida ressaltamos a questão da governança e o papel do Estado como membro coordenador, revelando sua plasticidade funcional.
58Como podemos verificar, existe uma ampla distribuição territorial das redes e blocos de poder. Cada entidade tem nos seus territórios a fonte de organização e poder para representação de seus interesses no colegiado, o que fica claro principalmente nos debates sobre temas regionais dentro da câmara e na promoção dos eventos locais de cada representante, buscando atrair o desenvolvimento para seus territórios.
59A partir da comparação entre as definições do Quadro 2 (princípios básicos para uma governança territorial, democrática e tripartite) e da participação e observação da dinâmica das reuniões da CSC, foi possível atribuir, de forma subjetiva, notas de 1 a 5, referentes ao desenvolvimento de cada um dos dez temas avaliados (1-Baixa, 2-Média-Baixa, 3-Média, 4-Média-Alta, 5-Alta). Como temos dez temas, com notas variando de um a cinco, as notas totais ficaram entre 10 e 50.
TABELA 1 – Avaliação dos princípios da governança territorial da Câmara Setorial Cervejeira
Fonte: Marcusso, 2021.
60A boa avaliação da CSC decorre dos entendimentos e acordos citados acima, que promovem o bom andamento das atividades. Os princípios mais bem avaliados foram foco, mecanismos e confiança, enquanto accountability e transparência mostraram ausência de característica democrática desse modelo de governança específico das câmaras dentro do ministério. Na CSC, há maior representatividade de pequenos produtores estabelecendo coerência das ações junto da subsidiariedade devido aos acordos tácitos e não tácitos do colegiado, tornando esses itens bem avaliados.
- 6 Conforme pode ser verificado na memória de reunião da 1º Reunião Ordinária da câmara.
61Como é de se supor, a criação de uma câmera não ocorre sem conflitos. Do que se pôde acompanhar na pesquisa, especificamente na primeira reunião, houve uma disputa pela presidência da câmara. De lados opostos, perfilaram os representantes das grandes cervejarias por meio do Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja (SINDICERV) e o representante das microcervejarias, a Associação Braseira da Cerveja Artesanal (ABRACERVA). Após o debate acerca da posição de cada entidade para chefiar a câmara, foi feito um acordo de revezamento da presidência6 entre os grandes e pequenos empresários, cabendo a um representante das microempresas a presidência da câmara no primeiro momento. A partir desse evento, foi possível reafirmar o papel positivo da câmara na garantia de uma representação mais balanceada e não apenas sobrepondo as estruturas hierárquicas de poder, segundo as quais os mais fortes conduzem as agendas de discussão.
62Em relação ao funcionamento da CSC, houve também muitos momentos de convergências, de consensos e de apoio mútuo entre grandes e pequenos. Alguns exemplos desses processos foram: o apoio geral da câmara para pedidos das grandes empresas, como importação de cevada dos EUA (para aumentar a oferta e ter outra opção em caso de quebra de safra na Argentina, nosso maior fornecedor); a manifestação do setor na OMS (nas consultas públicas sobre as políticas de combate ao uso nocivo de álcool, sendo o posicionamento da CSC a favor das políticas, mas contra as medidas de proibição); a prorrogação do prazo de entrada em vigência da IN65/2019 (novo PIQ da cerveja – devido à questão, principalmente de rotulagem) e a revisão do Decreto 6296/2007 (sobre ração animal) e da respectiva IN para destinação do bagaço de malte para alimentação animal.
63As medidas das pequenas cervejarias também são endossadas por todos da CSC, como o pedido de indeferimento do registro de estilo de cerveja no Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), a inclusão do Sommelier de Cerveja no Cadastro Nacional de Atividades Econômicas (CNAE), a atuação do MAPA no caso Backer para provar que cerveja é um produto seguro e que a ocorrência foi pontual, além da audiência com o Ministério do Turismo para expor o setor cervejeiro e o grande potencial turístico que possui.
64Nesse sentido, um resultado que mostra o impacto das ações da câmara no território foi a inclusão de atividades cervejeiras no programa Experiências do Brasil Rural (Ministério do Turismo, s.d.). As cervejarias rurais são importantes vetores do turismo cervejeiro, que geralmente é uma atividade urbana. Assim, o movimento da CSC foi fundamental para potencializar o desenvolvimento dos territórios da cerveja rural.
65Como pudemos verificar, a abertura político-econômica e o aumento da participação da sociedade organizada nos debates políticos após o período de redemocratização forneceram amplo campo de conflitos e disputas de poder que não escaparam a nenhum espaço.
66Retomando as reflexões de Bob Jessop (2017, p. 289), a prática da governança é a expressão do processo de recalibração do poder estatal. Isso ocorre « quando o Governo faz um uso mais extensivo de redes e outros modos de governança como meio para manter sua eficácia política frente a crescente complexidade social ».
67O encadeamento da noção de governança, território e desenvolvimento nos colocou em uma posição teórica privilegiada para analisar a formação dos blocos de poder socioterritoriais da cerveja, seus pactos, o modelo de governança e o enquadramento da CSC nos princípios da governança territorial.
68O modelo de governança da CSC pode ser considerado do tipo privado-estatal, já que os entes privados guiam as discussões dentro do colegiado e traçam os caminhos para o desenvolvimento do setor e de seus territórios. As ações levantadas nas entrevistas e nas atas de reuniões expuseram os pontos de atuação da câmara, tais como a importação de cevada dos EUA, a manifestação do setor na OMS, a prorrogação do prazo de entrada em vigência do novo PIQ da cerveja e a revisão do decreto sobre ração animal. As entidades, lideradas pelo presidente da câmara conseguem mover ações de influência no governo, no setor e no território, já que esses pontos geram ações de promoção do território, mesmo de forma indireta, como no caso do sucesso da ação da câmara em melhorar o arcabouço normativo da destinação do bagaço de malte para ração animal, promovendo a integração produtiva de territórios da produção de cerveja e de criação de gado.
69Observando a dinâmica da CSC, verificamos que seu funcionamento até o presente momento está em consonância com seus objetivos e pressupostos. Se, por um lado há disputas por representatividade e pautas específicas de cada segmento são levantadas, por outro, observa-se também a formação de consensos e de medidas protetivas do setor, uma vez que seus acordos estão bem firmados. Porém, é necessário atentar para o fato de que os conflitos mais estruturantes podem romper as concertações em prol do setor e de seus territórios
70É importante destacar que a câmara propiciou uma aproximação entre os membros, focando em ações de interesse comum e deixando a guerra concorrencial de fora desse fórum, uma vez que não há consenso nesse ponto entre as partes (Marcusso, 2021). Diante desse cenário, surgiram ações em parceria entre as entidades, como a criação de um programa de gestão da qualidade para cervejarias, iniciativa inédita entre grandes e pequenos produtores em prol da qualidade da cerveja no Brasil.
71Assim, podemos afirmar que, para o desenvolvimento do setor e dos territórios nele envolvidos, a existência da CSC é um aspecto positivo para a divisão do poder e representação dos menores produtores. Já para as grandes empresas, a CSC contribui para a validação dos seus pleitos de forma coletiva. Por fim, observando-se a governança territorial tripartite democrática, pode-se afirmar que: ruim com a câmara da cerveja, pior sem ela.