Agradecemos aos atingidos de Mariana e Barra Longa pela ajuda indispensável à realização desta pesquisa e aos professores Rogério Haesbaert e Raquel Oliveira dos Santos Teixeira pelas sugestões bibliográficas pertinentes à temática do risco.
Agradecemos também à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), via Programa de Desenvolvimento da Pós-Graduação (PDPG) – Pós-Doutorado Estratégico/Edital 16/2022, pelo financiamento da pesquisa.
1Em 5 de novembro de 2015, a barragem de rejeitos de Fundão, da mineradora Samarco, então joint-venture das empresas Vale e BHP Billiton, rompeu próximo ao subdistrito de Bento Rodrigues, que pertence ao município de Mariana, Minas Gerais. Trata-se de um dos maiores desastres envolvendo barragens de rejeitos no mundo (WANDERLEY; GONÇALVES; MILANEZ, 2020). Os rejeitos percorreram 663 km através dos rios Gualaxo do Norte, Carmo e Doce, desaguando diretamente na foz do Rio Doce, município de Linhares, litoral do Espírito Santo, impactando, no percurso, cerca de quarenta municípios. De imediato, dezenove pessoas morreram, além de um nascituro; territórios foram destruídos e, por conseguinte, milhares de pessoas foram desterritorializadas, ou seja, sofreram com processos de deslocamento compulsório e/ou de precarização territorial (HAESBAERT, 2007).
2Este artigo objetiva pensar a dimensão do risco presente na produção do desastre da Samarco, em sua relação com as transgressões legais e as dimensões técnica e institucional do desastre. Nesse quadro, realizamos uma crítica ao fundamento técnico-econômico das análises de riscos e à racionalidade empresarial de maximização dos resultados econômicos e de redução de custos no processo de produção de minério. Para tanto, em termos metodológicos, lançamos mão, sobretudo, de literatura pertinente, de análises da legislação no tocante às barragens de rejeitos e de relatórios técnicos produzidos sobre o rompimento da barragem de Fundão.
3No primeiro tópico, remetemos às origens da difusão da análise de risco, fundamental para pensar a racionalidade técnico-econômica que se encontra na base da tomada de decisões de empresas que lidam com atividades e tecnologias de risco. No âmbito da crítica à abordagem técnico-econômica do risco, remetemos à sua propulsão e difusão nos anos 1970, a partir dos experts da Ford Foundation e da RAND Corporation.
4No segundo tópico, analisamos as transgressões legais da Samarco/Vale/BHP Billiton, no campo do direito, e a dimensão técnica do desastre em uma crítica à abordagem hegemônica dos riscos. Nas considerações finais, aludimos, marginalmente, à dimensão institucional da catástrofe no tocante aos licenciamentos ambientais, destacando o fato de que a ruptura de Fundão nos remete a uma « catástrofe minerária » mais ampla, que não se limita à questão das barragens de rejeito e cujas causas e condições de produção não podem ser explicadas só pela dimensão do risco. A « catástrofe minerária » deve ser compreendida desde o extrativismo enquanto modelo privilegiado de desenvolvimento, não obstante seu caráter fundamentalmente destrutivo de territórios e de diferentes formas e modos de vida.
5O extrativismo mineral é uma catástrofe sempre dada, que se manifesta de diferentes formas e ritualmente eclode em catástrofes, que se tornam cada vez mais ordinárias, como o desastre da Samarco na bacia do Rio Doce. Para além do processo de « desterritorialização brutal » (HAESBAERT, 2007) e das mortes causadas por catástrofes, a mineração possui diferentes formas de matar, de mutilar, de fazer adoecer, de destruir e precarizar territórios: por contaminação, poluição e degradação do ar, da terra e da água; por desabamento de galerias subterrâneas e pilhas de estéril; por « acidentes » de trabalho; rompimento de minerodutos etc.
- 1 A Ford Foundation, fundada em 1936 por Edsel Ford, filho de Henry Ford, tornou-se, (...)
- 2 A RAND Corporation foi criada em 1948 para oferecer pesquisas e análises às Forças (...)
6De acordo com Soraya Boudia (2013), o boom do risco na sociedade contemporânea, mais do que uma constatação de um mundo povoado por riscos e incertezas, é o resultado de um trabalho de conceituação e de experimentação científica e política levado a cabo nos anos 1970 por grupos de experts de forma pioneira nos Estados Unidos. Tais grupos atuaram no seio ou em relação com os da Ford Foundation1 e da RAND Corporation.2 No caso da RAND Corporation, ela diversifica seu campo de intervenção para além da esfera militar, aproveitando-se do know how das técnicas militares para a construção das tecnologias de tratamento do risco.
7A concepção das tecnologias para abordagem do risco e a sua implantação se apoiam em pesquisas iniciadas durante a Segunda Guerra Mundial e desenvolvidas no contexto da Guerra Fria (BOUDIA, 2013). Essas pesquisas forneceram um quadro geral de apreensão « do risco pelo risco », a partir de tecnologias genéricas e técnicas abstratas de análise de sistema (system analysis), passíveis de serem aplicadas em diferentes situações (BOUDIA, 2013).
8Nesse quadro, não podemos deixar de destacar os nexos militares advindos das práticas das corporações em sua abordagem técnico-econômico do risco. A RAND ao atuar, por exemplo, no desenvolvimento de teorias e instrumentos para tomada de decisão sob situações de incerteza, modelagem e simulação matemática, teoria das redes, teoria dos jogos, análise de custos, análise de sistemas etc. subsidiou não somente o campo militar, mas também o setor privado e o Estado, em termos de planejamento e políticas públicas. Logo, a RAND teve um papel crucial na articulação entre as « ciências militares e empresariais » e em « seus modelos de intervenção » nos territórios (GAVIRIA, 2015, p. 4).
9A atuação de Robert McNamara é exemplar desses trânsitos entre os campos militar, público e privado. McNamara após atuar na Força Aérea do Exército dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial, integrou um grupo conhecido como « Whiz Kids », dedicado ao desenvolvimento empresarial, composto por dez integrantes do Exército dos Estados Unidos, sob a liderança do comandante Charles Thornton. Em 1946 os « Whiz Kids » atuaram na Ford Motor Company. Avanços em diversos campos desenvolvidos pelo grupo no âmbito da Força Aérea do Exército durante a Segunda Guerra Mundial foram adaptados e aplicados em corporações, como a Ford. Observa-se, portanto, uma transposição de conhecimentos militares para o campo empresarial, com heranças atuais, como na gestão técnica-econômica do risco.
10Nos anos 1960, McNamara foi Secretário de Defesa dos EUA, nos governos John Kennedy e Lyndon Johnson, cercando-se de especialistas da RAND Corporation, o que contribuiu para a difusão das análises de risco. As tecnologias de enquadramento do risco desenvolvidas nesse contexto foram utilizadas para manejar contextos de incerteza e fornecer uma resposta « racional » para as questões, definindo os critérios para tomada de decisão e instrumentalizando matematicamente as análises (BOUDIA, 2013). A teoria da « escolha racional », desenvolvida no contexto da Segunda Guerra Mundial, foi central nessa perspectiva e, conforme Jean-Pierre Dupuy (2016, p. 126), figura como o alicerce das análises de risco contemporâneas: « todos os administradores de risco do planeta (...) pensam, calculam e raciocinam » a partir da « teoria da escolha racional ».
11A teoria da escolha racional, trabalhada por pesquisadores e experts da RAND Corporation e da Ford Foundation, foi concebida para ter uma validade universal (DUPUY, 2016, BOUDIA, 2013). Pautada em análises econômicas e nas ciências do comportamento, tal teoria pressupõe que os indivíduos agem segundo uma lógica utilitária e que as ações precisam satisfazer ou otimizar interesses (os benefícios precisam ser superiores aos custos) (BOUDIA, 2013).
12A teoria da escolha racional importa da abordagem liberal neoclássica pressupostos-chave, como: o individualismo metodológico (PAULA, 2005); o ideário da ação/comportamento racional (maximizador de utilidade) dos agentes/ indivíduos (AVRITZER, 1996); e a perspectiva de que as « contingências podem ser previstas e suas consequências avaliadas » (ROMEIRO; FILHO, 2001, p. 92).
13No tocante aos riscos, a teoria da escolha racional pode ser traduzida na relação custo-benefício em que se dá a tomada de decisões. Através da análise de custo-benefício, é possível traduzir, em termos financeiros, os riscos ambientais e sociais, fundindo, em números, diferentes variáveis e situações (BOUDIA, 2013). O objetivo é claramente tornar comensuráveis e comparáveis diferentes elementos que podem afetar as decisões empresariais ou a elaboração de determinadas políticas (BOUDIA, 2013). Assim, em nome da operacionalidade metodológica e da razão econômica que pautam as « escolhas ditas racionais », os mecanismos e as regras de mercado cingem todos os aspectos da vida.
14Os saberes que alicerçam as pesquisas sobre riscos são do campo das estatísticas e matemáticas aplicadas, da economia, das ciências do comportamento e das análises de políticas públicas (BOUDIA, 2013). As ciências do comportamento, objeto de investimento crescente por parte da RAND Corporation e da Ford Foundation, a partir dos anos 1950, em linhas gerais, ao buscar compreender o padrão comportamental dos indivíduos, frente aos riscos, visavam instrumentalizar instituições e empresas na gestão de conflitos ligados aos riscos; esvaziar contestações e questionamentos; elaborar planos de comunicação para grupos de interesse; e, sobretudo, construir instrumentos para legitimação de determinadas atividades junto às populações (BOUDIA, 2013).
15Nesse quadro, as pesquisas voltadas para o desenvolvimento das tecnologias de tratamento de riscos, produzidas nos anos 1970, possuíam uma preocupação não só com a definição de critérios e modalidades de decisão em situação de incerteza, mas também com a aceitabilidade social dos riscos (BOUDIA, 2013). A questão da aceitação social dos riscos é formulada nesse contexto como um « problema de percepção », a partir de uma divisão entre « risco objetivo » e « risco percebido », de forma que a diferença entre os dois permite medir o grau de « aceitabilidade social dos riscos » (BOUDIA, 2013). Sob esse viés, as contestações e os questionamentos são vistos como manifestações de irracionalidade, um problema na comunicação do risco.
- 3 Os sistemas de peritos são “sistemas de excelência técnica ou competência profissional (...)
16Giddens (1991, p. 38) define segurança « como uma situação na qual um conjunto específico de perigos está neutralizado ou minimizado », ou seja, a segurança se dá pela gestão do risco, pelo chamado « risco mitigado ». A « experiência de segurança baseia-se geralmente num equilíbrio » que envolve « confiança e risco aceitável » (GIDDENS, 1991, p. 38). A confiança, ainda conforme o autor, é construída na relação com o « sistema de peritos », fundamental para a aceitação social do risco. Para Giddens, nossa sociedade moderna se caracteriza não só pela produção de riscos, mas pela « confiança nos sistemas de peritos », pela confiança de que os sistemas técnicos funcionarão sempre da forma esperada.3 Entretanto, considerando que os riscos não são escolhidos, mas impostos e, em grande parte, desconhecidos (DOUGLAS; WILDAVSKY, 2012), confiar deixa de ser uma escolha e passa a ser uma necessidade, já que os sujeitos são propositadamente desprovidos de instrumentos para avaliar a « caixa preta dos riscos » em sua produção privada. Nesses termos, os sujeitos se tornam não só irremediavelmente submetidos aos riscos, mas dependentes e subjugados às decisões alheias.
17Nessa perspectiva, para as análises de risco, o problema não é tanto a existência potencial de um dano, mas sua aceitação ou não por uma dada população. Com isso, tudo « se torna uma questão de ‘equilíbrio’ » entre a definição dos critérios de decisão para seguir ou não com uma atividade de risco e o « ‘julgamento’ pela coletividade », com vistas à legitimação das decisões (BOUDIA, 2013, p. 62 – tradução nossa). Mais que prevenir « perigos », « os administradores do risco » agem, fundamentalmente, na administração do « sentimento de insegurança » da população (RANCIÈRE, 2003).
18As tecnologias de enquadramento de diferentes questões (sanitárias, ambientais, sociais, políticas, econômicas) sob a perspectiva do risco, elaboradas pelos grupos de experts da RAND Corporation, foram implantadas em diferentes esferas públicas e adotadas por organizações internacionais que contribuíram para a sua disseminação mundial em novos setores, como da saúde e do meio ambiente (BOUDIA, 2013). Todo o instrumental do risco, desde então, é pautado no cálculo econômico, na otimização de recursos e na elaboração de normas de comportamento. Embora o instrumental metodológico adotado possa ser diverso, o objetivo é unívoco: « gerir situações de incerteza, otimizando a alocação de recursos pelo cálculo econômico » (BOUDIA, 2013, p. 70 – tradução nossa). Dessa forma, o que une a variedade de tecnologias de enquadramento pelo risco é o fato de que elas foram forjadas numa « matriz comum », por grupos de experts que buscaram construir uma base de conhecimento universalizável (BOUDIA, 2013).
19A abordagem hegemônica dos riscos, aplicável a um amplo conjunto de situações e problemas, possibilita sua manipulação conforme determinados interesses. As relações de poder entre os agentes sociais determinam a injunção e a hegemonia na abordagem dos riscos em seu balizamento econômico e técnico-científico e na sua administração pelo Estado e pelas grandes corporações. O risco, portanto, por meio de estatísticas e cálculos, obsta qualquer tipo de questionamento, age para a despolitização dos contextos de ameaça, apregoando que, sob a perspectiva do controle, « o problema está resolvido, como se diz em matemática » (DUPUY, 2016, p. 63). Sob o viés do controle técnico-científico, « se postula que (...) [os] riscos podem ser pensados independentemente do destino » catastrófico « de que são os sinais anunciadores. (...) [A] intenção é tranquilizar, mas segurando gastos » (DUPUY, 2016, p. 63).
20Na perspectiva do controle, os riscos não serão anulados nem evitados em suas causas, mas estimados e geridos conforme determinados limites e uma estimativa de probabilidades normalizadora, visando sempre a um equilíbrio, médias ótimas, resultados técnica e economicamente eficientes para os interesses determinantes (FOUCAULT, 1999; OLIVEIRA, 2009; HAESBAERT, 2014). A intenção é « maximizar os elementos positivos » e minimizar os riscos, que, ao fim, « nunca serão suprimidos » (FOUCAULT, 2008, p. 26). Trata-se de uma lógica « minimax », que busca « tornar mínimo », nem que seja no plano discursivo, o « risco máximo », o que, obviamente, não é torná-lo nulo (DUPUY, 2016, p. 104).
21No âmbito dos critérios de cientificidade, « o círculo dos riscos reconhecidos e, portanto, relevantes para a ação » tende a ser « reduzido ao mínimo » (BECK, 2011, p. 75), principalmente na medida em que o seu reconhecimento implica custos para as empresas produtoras de risco. Como esclarece Beck (2011, p. 73): « Isto torna claro uma vez mais o grau de obviedade com que se valida historicamente, no desenvolvimento tecnológico conduzido pelas ciências (...), um (...) interesse cognitivo » que visa aumentar « a produtividade, que se refere à lógica da produção de riqueza e segue vinculado a ela ». A normalização, a minimização ou a negação dos riscos são técnica, científica, política e socialmente produzidas, buscando tornar os « riscos aceitáveis » para o atendimento das necessidades econômicas e produtivas.
22A « sintomática e simbólica ‘superação’ do risco » (BECK, 2011) pela perspectiva do seu controle técnico-científico possibilita que as fontes geradoras se estabeleçam e se mantenham ativas. Como resultado, tem-se a multiplicação e o aumento dos riscos, o que também vem a calhar para o mercado. Na medida em que podem ser administrados, os riscos figuram como oportunidades de mercado, movimentando uma economia de « securitização », de pesquisas científicas, de segurança e de tecnologias de mitigação. Os riscos, portanto, não rompem com a lógica capitalista, mas servem à própria acumulação e valorização do capital, sob a hegemonia do complexo técnico-industrial. O sistema econômico aproveita-se, portanto, de incertezas, danos e disfunções que ele próprio produz. Riscos são « big business », como diz Beck (2011, p. 28 – grifo do autor), « um barril de necessidades sem fundo, interminável, infinito, autoproduzível ».
23Por fim, é preciso mencionar que a tomada de decisões em torno dos riscos resulta em assimetrias de poder: há aqueles que definem e tiram proveito dos riscos e aqueles que sofrem os efeitos de sua realização em danos e catástrofes. Nesse quadro, mesmo os riscos distribuídos globalmente, são vivenciados local e assimetricamente, já que as condições para o seu enfrentamento são extremamente desiguais. Ademais, há uma miríade de riscos que não são globais, mas que, dentro da « escolha racional » em que se dá a tomada de decisão, são remetidos a determinados grupos historicamente subalternizados, evidenciando a forte relação entre risco e injustiça social (ACSELRAD; PÁDUA; HERCULANO, 2004). Logo, não é por acaso que atividades, empreendimentos ou indústrias de risco (mineradoras, depósitos de lixo, incineradoras, indústrias químicas, de tratamento de resíduos perigosos ou que emitem ou armazenam substâncias ou materiais com alto potencial de dano socioambiental etc.) são instaladas em bairros pobres, de origem operária ou em territórios de comunidades rurais e/ou tradicionais.
24No caso especificamente das barragens de mineração, em linhas gerais, a análise de risco se pauta no cálculo de probabilidades de ruptura e de inoperacionalidades/anomalias de seus componentes. O risco de ruptura é « estimado com base no impacto combinado de cenários », tendo em vista determinados parâmetros, « probabilidades de ocorrência e consequências associadas » (ALMEIDA, 2002, p. 8). A partir de um estudo de cenários denominado « Dam Break », que lança mão de modelagem matemática, simulações computadorizadas, de análise de variáveis etc., as mineradoras devem traçar os potenciais impactos de ruptura de uma barragem de rejeito, delimitando a área de inundação em caso de rompimento (mancha de inundação). É com base nesse estudo que são realizados os zoneamentos críticos das áreas potencialmente inundáveis, « com implicações no licenciamento de ocupações do solo » e « na fixação de prêmios de seguros » (ALMEIDA, 2002, p. 18).
25A probabilidade de ocorrência de desastres é considerada sempre em face do controle técnico e dos recursos de engenharia e das tecnologias de segurança adotadas pela empresa. Nessa lógica, o rompimento de barragens é tido como um risco de baixa probabilidade (principalmente se comparado a outros riscos como o de morte no trânsito), não obstante suas consequências ampliadas. Como alerta Silva (1999), a noção de probabilidade de ocorrência, em parte, pode corroborar a negação do risco (não há risco), sua atenuação (o risco existe, mas é mínimo) e até mesmo sua generalização (o risco existe em todo lugar).
26Sob a lógica dos cálculos, a segurança de uma barragem de mineração é estimada e considerada conforme determinados limiares, mais especificamente através do chamado « fator de segurança ». O « fator de segurança », estabelecido pela NBR 13028, é um número que mede a estabilidade de uma estrutura. Essa norma prevê que, « para estruturas numa condição normal de operação », o fator de segurança mínimo é de 1,5 (explicação do Diretor de Operações e Infraestrutura da Samarco, Kléber Terra) (G1 MG, 2015, n.p.). « Em condições adversas, é admitido fator de segurança de 1,3 ». O índice igual a 1 significa « que a estrutura está no limite de equilíbrio » (G1 MG, 2015, n.p.). Assim, o estabelecimento de « fatores de segurança », de « valores mínimos » regulamentados estabelece o limiar do que é permitido e traduzido para a sociedade como inofensivo e seguro. Nessa perspectiva, uma atividade industrialmente produtora de risco, o uso de determinada tecnologia perigosa, o consumo ou exposição à determinadas substâncias químicas são aceitáveis dentro de determinados limites « tecnicamente » definidos. Os limites técnico-economicamente estabelecidos, como assevera Beck (2011), são uma forma de consentir o risco, que, sob esse viés, deve ser gerido conforme os patamares de segurança preconizados.
27No « Inventário de Barragens do estado de Minas Gerais », da Fundação Estadual do Meio Ambiente (FEAM, 2014), que antecede o desastre da Samarco, a barragem de Fundão foi considerada estável, ou seja, em conformidade com os fatores de segurança legalmente determinados. Não obstante, é importante dizer que quem atesta a estabilidade da barragem é a própria mineradora. As empresas enviavam ao departamento regulador, na época, o DNPM (Departamento Nacional de Produção Mineral), atual ANM (Agência Nacional de Mineração), a Declaração de Condição de Estabilidade (DCE) anual de barragem (conforme Portaria DNPM nº 416/2012).
28Atualmente, com o recrudescimento da legislação em torno das barragens minerárias, a DCE passou a ser semestral, embora ainda atestada pela própria empresa que deve enviá-la à ANM. No primeiro semestre, quem apresenta a DCE e atesta a estabilidade é o empreendedor, que pode ou não contratar uma consultoria externa para tanto. Já na segunda apresentação, em setembro de cada ano, a empresa é obrigada a contratar uma consultoria externa. Entretanto, mesmo figurando como uma consultoria externa, vale dizer que a auditoria estabelece um vínculo econômico, de contratação, com as mineradoras, o que pode inviabilizar a independência dos dados emitidos. Essa situação ocorreu inclusive no ano do rompimento, em 2015, quando a empresa de consultoria contratada pela Samarco, a VOGBR Recursos Hídricos & Geotecnia LTDA, emitiu laudo declarando a estabilidade da estrutura, omitindo da ANM os problemas técnicos na estrutura da barragem, conforme denúncias do Ministério Público Federal (2016, p. 29).
29Na racionalidade empresarial, todas as decisões no tocante aos riscos são balizadas economicamente, pautando-se em balanços de custo-benefício. Tal balizamento foi decisivo para o rompimento da barragem de Fundão. A barragem em questão foi construída pelo método de alteamento a montante, o mais econômico, de mais fácil execução e o « mais crítico sob o ponto de vista de segurança » (FEAM, 2010, p. 5). Embora tal método construtivo seja considerado inseguro, é importante frisar que a regulamentação ambiental, a legislação vigente e os processos de licenciamento ambiental só limitam uma tecnologia ou atividade se a existência de dano for extensivamente comprovada. A priorização pelo menor custo em detrimento da segurança, portanto, tornaram as barragens com método a montante uma das mais utilizadas pelas mineradoras no Brasil (FEAM, 2010). Conforme a ANM (2019), em 2019, existiam 84 barragens a montante no país, sendo que 43 delas foram classificadas como de alto dano potencial.
30Contribuindo para o caráter catastrófico da realização do risco, destacamos que a análise de custo-benefício, visando à redução de custos, foi preponderante não só no método construtivo da barragem de Fundão, como também em sua opção locacional. Wanderley et al. (2016, p. 32), ao analisarem o Estudo e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima) que embasou a concessão das licenças ambientais de Fundão, observaram que:
A opção pelo vale do Córrego Fundão era a única das três alternativas locacionais que produzia impactos e efeitos cumulativos diretos sobre as barragens de Germano e Santarém, podendo gerar um efeito dominó ainda mais catastrófico no rompimento, além de ser também a única opção que drenava de maneira frontal em direção à comunidade rural de Bento Rodrigues, em Mariana, ampliando ainda mais o potencial de risco socioambiental e de morte. A análise das justificativas locacionais apresentadas no EIA-RIMA indicam que a escolha por essa opção foi prioritariamente operacional, aproveitando-se do sistema de barragens de Germano-Santarém em funcionamento e diminuindo os custos da obra e operação para a destinação do rejeito. Ainda, a análise de risco do EIARIMA classificou a possibilidade de rompimento da barragem no grau mais baixo, « improvável », desconsiderando o histórico de repetidos rompimentos em Minas Gerais, no Brasil e no mundo.
- 4 Entretanto, num contexto alta dos preços das commodities, o rejeito disposto em barrag (...)
31A opção locacional desconsiderou ainda que em caso de rompimento, a grande diferença altimétrica entre o local de construção da barragem de Fundão e a comunidade de Bento Rodrigues, contribuiria para o seu caráter avassalador, como constado por Vervloet (2016, p. 114). Conforme a própria Fundação Estadual de Meio Ambiente (2010, p. 6), as variáveis consideradas para determinar a melhor opção locacional das barragens se limitam às econômicas e operacionais, já que a disposição de rejeitos ainda é um investimento sem retorno a curto ou médio prazo. Logo, para as mineradoras, as barragens de rejeito são simplesmente reservatórios de refugo da mineração, hospedam o produto indesejável do processo produtivo desprovido, num primeiro momento, de valor de troca.4 As barragens concentram o que é descartado e tornado supérfluo em termos de matéria e energia durante o processo energo-intensivo de extração-beneficiamento, representando para as empresas a opção tecnológica mais barata, embora a mais insegura. E, no contexto da megamineração, economicamente apta a explorar reservas caracterizadas cada vez mais pela baixa concentração de minérios, a quantidade de matéria-energia tornada supérflua cresce consideravelmente (WANDERLEY et al., 2016).
32Quando do rompimento da barragem de Fundão, o Brasil vivenciava o fim do megaciclo das commodities (período compreendido entre 2003 e 2013), em função, principalmente, da menor demanda de minério pela China (WANDERLEY et al., 2016). O preço do minério de ferro foi de US$ 196/t (em 2007) para aproximadamente US$ 40/t no início de 2016 (INDEX-MUNDI, 2023).
- 5 O “Projeto Quarta Pelotização” (P4P) engloba uma quarta usina de pelotização em Anchi (...)
33Para minimizar os efeitos da queda nos preços das commodities, as empresas mineradoras aumentaram a produção e, por conseguinte, a produção de rejeitos. A Samarco, especificamente, no período de crash das commodities, pôde aumentar em um terço sua produção em função do « Projeto Quarta Pelotização » (P4P)5, inaugurado em 2014, que ampliou as estruturas necessárias para o aumento da sua produção de minério de ferro (WANDERLEY et al., 2016; IN THE MINE, 2014).
34Em função do P4P, a dívida líquida da empresa aumentou, indo de R$ 2.928,00 milhões em 2010 para R$ 9.531,00 milhões em 2014 (VITTI, 2019). Em função da queda nos preços das commodities e do endividamento da Samarco, a fim de manter seus rendimentos, a mineradora buscou aumentar sua produção e reduzir seus custos. Na política de redução dos custos da empresa, conforme laudo final de investigação das causas do rompimento da barragem de Fundão da Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG, 2016), ocorreu uma redução de 29%, entre 2012 e 2015, « no orçamento da Samarco destinado ao setor de geotécnica, responsável pelo controle e monitoramento das barragens » (WANDERLEY et al., 2016, p. 55).
- 6 Liquefação: quando um solo arenoso passa a se comportar como um material no estado (...)
35Diversas perícias e relatórios foram realizados para identificação das causas do rompimento de Fundão (MTPS, 2016; PCMG, 2016). A causa técnica imediata foi a liquefação6 dos rejeitos arenosos da barragem (sob os quais foram erguidos os diques de alteamento), favorecido por questões construtivas, operacionais e de monitoramento das condições de segurança (PCMG, 2016).
36No Seminário Jurídico « Dois Anos de Mariana », na Escola Superior Dom Helder Câmara em Belo Horizonte, em novembro de 2017, o então superintendente do IBAMA em Minas Gerais, Marcelo Belizário, elenca inúmeras situações que contribuíram para o rompimento de Fundão:
- 7 Transcrição de trecho da palestra do Superintendente do IBAMA, Marcelo Belizário, dura (...)
Bom, trata-se de um desastre socioeconômico e ambiental construído, como a gente vai ver. (...) foi feito muito desaforo com essa estrutura (...). Aumentou a produção da mineradora, em um terço. Diminuiu o preço da commodity, na margem ainda cê tinha lucro, então você aumentou o nível de produção, e no final os... O resultado permanecia aquele que tinha um objetivo inicial. Adicionalmente tinha um tubo de lançamento de lama da Vale do Rio Doce dentro da bacia da Samarco. Esse tubo ele foi descoberto no trabalho do IBAMA em um plantão lá em novembro... Dentro da Samarco, o pessoal tava quase morando dentro da Samarco, e descobriu lá uma das... Das plantas, mostravam um tubo de lama da Vale. Então quando a gente foi ver, esse tubo sequer era de conhecimento do licenciamento, tá? Tinha problemas crônicos da barragem e críticos de drenagem, desde o início e toda... Ao longo da vida útil, problemas reiterados com relação à drenagem no limite, tá? Começou-se a se observar vazamento com água suja. Numa barragem quando cê vê vazamento pelo corpo da barragem com água suja, quer dizer que tá tirando material da barragem. Cê tá tirando corpo dela, criando poros, deixando ela mais leve, então com isso ela vai perdendo... Vai perdendo a massa, né, o peso dela, e vai abrindo essa suscetibilidade ao rompimento. Foi feita uma modificação de geometria do projeto da barragem. Então olhando lá no canto direito inferior [do slide de apresentação], cê vê ela alteando, até o momento que ela faz um S, tá? [Explica o motivo da alteração da geometria da barragem:] (...) tem lá também um empilhamento da Vale do Rio Doce, um empilhamento de rejeitos. Pra escapar desse empilhamento, foi dada essa solução de S, e além disso, uma ampliação acelerada da barragem de rejeitos. Então foram feitos alteamentos que não eram previstos no projeto. Eram de tantos em tantos anos, em décadas, era pra fazer um alteamento, estavam sendo feitos em anos, né? Bom, por que que isso [o desastre] aconteceu? Foi a exposição à uma sequência de riscos, que representaram a abdicação da sustentabilidade econômica, social e ambiental da própria empresa (Informação verbal – grifo nosso).7
37Há, conforme elencado pelo Superintendente do IBAMA, uma deliberada transgressão de normas técnicas e ambientais que potencializaram o risco ao longo do tempo. A partir da fala acima transcrita e de relatórios e perícias, apresentamos um quadro-síntese dos fatores (ainda que incompleto, porque há inúmeras minúcias técnicas e intercorrências que poderiam ser acrescidas) que tornaram o desastre-crime, que poderia ter sido evitado, inevitável (vide quadro 1):
QUADRO 1 – Fatores deflagradores do rompimento de Fundão
Fonte: elaborado pelos autores, com base nos seguintes relatórios técnicos: MTPS (2016); PCMG (2016); ALMG (2016).
38Nesse quadro, é importante dizer que as empresas, mais do que seguir normas, calculam resultados econômicos e, por isso, flexibilizam as normas continuamente, ultrapassando, não raro, o limiar da legalidade. A racionalização das ações se dá sempre a partir de uma dinâmica de maximização da rentabilidade, visando à produtividade e redução de cus tos. A lógica de gestão dos riscos, por sua vez, considera as anomalias e as disfunções como algo natural e inevitável, que só devem ser tratadas quando excedem determinados limites, sob a perspectiva paliativa das adequações técnicas e de engenharia. A arbitrariedade nas decisões técnico-organizacionais à revelia da lei, a desconsideração pela empresa dos problemas apontados em relatórios de auditorias internas e externas e um certo laissez-faire nas ações até que a catástrofe chegue, integram a lógica econômica empresarial que visa à redução dos custos na tomada de decisão em relação aos riscos.
39A transgressão dos limites legais no tocante à barragem de Fundão também pode ser verificada na inoperacionalidade do plano de emergência existente e na ausência de um plano de contingência para as populações a jusante. A inoperacionalidade do plano de emergência, que tinha uma existência pro forma, tornou flagrante a ausência de um sistema de alarme sonoro, tecnologia elementar como instrumento de aviso em caso de rompimento.
40A empresa lidava com a preocupação dos moradores de Bento Rodrigues, situada a apenas 6 km das barragens do Complexo de Germano, limitando-se tão somente a afirmar que os reservatórios eram seguros, ou seja, o « risco era irreal » e a catástrofe era impossível. Bento Rodrigues encontrava-se na chamada Zona de Autossalvamento das barragens do Complexo Germano. A « zona de autossalvamento » (ZAS) (nome técnico-jurídico para « zona de sacrifício ») compreende a
região do vale à jusante da barragem em que se considera que os avisos de alerta à população são da responsabilidade do empreendedor, por não haver tempo suficiente para uma intervenção das autoridades competentes em situações de emergência, devendo-se adotar a maior das seguintes distâncias para a sua delimitação: a distância que corresponda a um tempo de chegada da onda de inundação igual a trinta minutos ou 10 km (BRASIL, 2017 – grifo nosso).
41Em caso de desastre, a Defesa Civil e outros órgãos públicos são responsáveis pela emissão de alertas de evacuação às populações potencialmente afetadas na Zona de Salvamento Secundário (ZSS), que abarca a área de inundação não compreendida na ZAS. Mas, caso solicitado pela Defesa Civil, o empreendedor também deve instalar sistema de alerta à população potencialmente afetada na ZSS (BRASIL, 2017). Ao ser acionado o sistema de alerta, deve-se proceder à evacuação da área, conforme Plano de Ação de Emergência e de Contingência produzidos, respectivamente, pela empresa e pelo poder público municipal.
42As comunidades a jusante também não contavam com o Plano de Con tingência das barragens, que deve ser elaborado pelo município, a partir das informações disponibilizadas pelas mineradoras. O desastre da Samarco, portanto, foi potencializado em função do despreparo dos órgãos públicos e da completa desconsideração pela mineradora das comunidades a jusante, desprovidas de qualquer instrução ou instrumento para facilitar a evacuação em caso de rompimento (a exemplo da falta de sirenes de alerta, de treinamentos de evacuação na ZAS etc.). Comunicar o risco para as comunidades a jusante (instalar sirenes de alerta, realizar treinamentos de evacuação) traria a compreensão de que o risco era real, o que não era de interesse da Samarco. Ademais, como menciona Dupuy (2016), para os « administradores do risco », a catástrofe é sempre improvável.
43Nesse quadro, é importante mencionar que os instrumentos e as ações que devem ser acionadas em situação de emergência, voltadas para as comunidades a jusante, demandam dos indivíduos autorresponsabilização em relação aos riscos que são produzidos pelas mineradoras. Na referida zona de autossalvamento, como o próprio nome diz, o indivíduo deve possuir capacidade (inclusive física) de se autossalvar, ao ouvir o sistema de alerta da empresa. Então, o problema, mais do que a ausência de instrumentos e planos de evacuação em áreas sob o jugo das barragens de mineração, encontra-se no fato de que territórios e vidas estavam (sem escolha) sob o jugo de uma necroengenharia. Ou seja, o problema é que Fundão, Santarém, Germano e tantas outras barragens existem. As ações de emergência preconizadas voltadas para as comunidades a jusante não evitariam a catástrofe, nem a destruição de Bento Rodrigues, de Paracatu de Baixo e de porções das comunidades de Camargos, Ponte do Gama, Paracatu de Cima, Pedras, Borba, Campinas, Gesteira e da cidade de Barra Longa, mas poderiam contribuir para reduzir o número de mortes, ou não, já que a proximidade com a barragem torna qualquer evacuação uma questão de resiliência individual e até mesmo de sorte.
- 8 A aceitabilidade do risco é calculada através do chamado Risco Socialmente Aceitável (...)
44No caso das barragens, o trade-off entre benefícios e custos econômicos em que se dá a tomada de decisões quanto aos riscos, estabelece, inclusive, um número expectável de perdas de vidas humanas, cujo coeficiente de redução depende dos fatores de segurança adotados (ALMEIDA, 2002). Ou seja, a morte de pessoas pode, economicamente, valer a pena para determinados setores econômicos e ser, inclusive, calculada como socialmente aceitável dentro de determinados limites.8 Nessa necroecono mia (ARÁOZ, 2020), a vida é precificada e torna-se um mero fator econômico a ser considerado no cálculo de custo-benefício dos riscos. O controle técnico-econômico dos riscos, portanto, nada mais é que « um conjunto de táticas e de subterfúgios » para « lidar com o lado imoral das escolhas tecnológicas » (SILVA, 1999, p. 17).
45Nesse contexto, embora para os « administradores do risco » a catástrofe figure como impossível, sua ocorrência torna sua inevitabilidade evidente, em decorrência das transgressões legais e das análises de custo-benefício em que se dão as tomadas de decisões no tocante aos riscos. A Samarco criou o possível e, ao mesmo tempo, o real catastrófico (DUPUY, 2016), pela acumulação e pela perpetuação dos riscos, que estão implicados na própria racionalidade que vigora na sua gestão. Os problemas técnicos, as « anomalias » (para usar o jargão da empresa) envolvendo as barragens eram normalizados e tratados em termos corretivos e paliativos pelas mineradoras. Sob essa lógica, as « anomalias », as anormalidades possuem sua própria normalidade – assim se constrói, por exemplo, as ideias de « acidente » de trabalho e de « acidentes » na mineração.
46A perpetuação do perigo por meio da utilização de técnicas ou tecnologias inseguras, de uma « cultura técnica insegura » (FIRPO, 2007), torna-se parte integrante do processo de acumulação por espoliação (HARVEY, 2005), barateando a produção e cumprindo os interesses de toda uma cadeia produtiva e de uma massa global consumidora. A acumulação por espoliação advém, no caso dos empreendimentos minerários, da imputação de riscos ilimitados para aferição de lucro ilimitado e da socialização do ônus industrial, cujo bônus é sempre privado. Ou seja, os riscos ditos sócio-tecnológicos produzidos são externalizados para a população do entorno e para a sociedade em geral, não sendo considerados e contabilizados nos custos empresariais.
47Somente quando a sociedade se escandalizou com duas catástrofes em sequência, a da Samarco e da Vale em Brumadinho-MG, é que mudanças na legislação foram levadas a cabo e « riscos aceitáveis » se tornaram « inaceitáveis fontes de perigos » (BECK, 2011, p. 95). Após o desastre da Samarco, no âmbito estadual, conforme determinações do Decreto n° 46.933, de 3 de maio de 2016, as barragens de alteamento a montante em Minas Gerais passaram a ser alvo de: 1) « Auditoria Técnica Extraordinária de Segurança de Barragem »; 2) Plano de Ação para adequação das condições de estabilidade e de operação especificamente dessas estruturas; 3) suspenção da emissão e da formalização de processos de licenciamento ambiental tanto de novas barragens quanto da ampliação das barragens a montante existentes.
48Já sob a hecatombe da Vale em Brumadinho-MG, cuja barragem colapsada também era alteada para montante, institui-se, no âmbito federal, em 15 de fevereiro de 2019, a Resolução nº 4, que proíbe a utilização do método de alteamento de barragens de mineração a montante em todo o território nacional, sendo obrigatória a descaracterização das estruturas ou a sua adequação para o método de construção de alteamento « a jusante » ou « linha de centro » até 15 de agosto de 2021. Entretanto, a Resolução nº 4 foi revogada pela Resolução nº 13, de 8 de agosto de 2019, que flexibilizou o prazo para descaracterização das estruturas (em nome da segurança no processo), estabelecendo uma gradação temporal variável com o porte/volume da barragem, sendo que as barragens de maior volume (acima de 30 milhões de m³) poderão ser descaracterizadas até 15 de setembro de 2027.
49No âmbito estadual, é importante mencionar a promulgação, em 25 de fevereiro de 2019, da Lei 23.291 (conhecida como Lei Mar de Lama Nunca Mais), também com grande enfoque na proibição e descaraterização das barragens alteadas pelo método a montante (os avanços da referida lei no âmbito da política estadual de segurança de barragens ainda vêm sendo obstados pelo adiamento da regulamentação dos seus artigos pelo Executivo) (DOTTA, 2020 apud MILANEZ; WANDERLEY, 2020, p. 10). Como resultado, sob o horizonte das normas, das leis e regulamentos, sempre móveis e instáveis, o risco que sempre existiu deixou de ser velado e passou a ser eminente, resultando, em março de 2019, na interdição de 54 barragens e na evacuação de 998 pessoas em Minas Gerais (FERNANDES, 2019, n.p.).
50O foco, portanto, das mudanças legais e das ações de fiscalização, controle e segurança passou a ser as barragens de rejeito a montante. Entretanto, para além dos rompimentos de barragens, são inúmeros os desastres envolvendo a mineração, como desabamentos de galerias subterrâneas, desmoronamentos de pilhas de estéril (em 4 de novembro de 2018, ocorreu o desmoronamento de pilha da empresa canadense Equinox Gold, em Godofredo Viana), « acidentes » de trabalho mortais ou limitantes, atropelamentos por trens, mortes por explosão de dinamite, contaminações e adoecimentos diversos, vazamentos em reservatórios (como da barragem de rejeitos de bauxita da empresa norueguesa Hydro Alunorte em Barcarena, em fevereiro de 2018, que contaminou a bacia do rio Pará, afetando cerca de 80 comunidades) e em minerodutos (como os rompimentos dos minerodutos da Anglo American, do empreendimento minero-portuário Minas-Rio, em março de 2018, no município de Santo Antônio do Grama-MG, com afetações imediatas para o ribeirão Santo Antônio e para o rio Casca).
- 9 A Lei nº 21.972/2016 cria a SUPPRI, responsável pela avaliação dos chamados “projetos (...)
- 10 A Deliberação Normativa 217/2017 estabelece mudanças nos parâmetros de enquadramento de (...)
51Ademais, o recrudescimento da legislação em torno das barragens de mineração ocorre num contexto de flexibilização da legislação em torno dos licenciamentos ambientais (vide Lei nº 21.972/20169 e a Deliberação Normativa 217/2017 do COPAM10). O licenciamento ambiental é um rito, ao fim, viabilizador e legitimador de grandes empreendimentos que vêm anuindo riscos e catástrofes, que tendem a se potencializar na medida em que se flexibiliza a legislação vigente. Logo, não adianta o Estado recrudescer a legislação em torno das barragens de rejeitos a montante e flexibilizar os processos de licenciamento ambiental, já que os riscos e catástrofes em torno da mineração não se limitam às barragens de rejeitos.
52Para além do licenciamento ambiental, importa destacar a dimensão da fiscalização dos empreendimentos licenciados. A vulnerabilidade institucional (FIRPO, 2007) dos órgãos ambientais e de regulação é produzida pela falta de investimento público e pelo desmonte e sucateamento deliberado dessas instituições, que se reflete na carência de recursos humanos, técnicos e de condições materiais para ações externas de fiscalização e monitoramento – situação da própria Agência Nacional de Mineração (ANM), responsável pela fiscalização das barragens do setor.
53Logo, importa esclarecer: as catástrofes na mineração figuram como uma questão técnica, um problema das barragens de rejeitos com alteamento a montante? Para as empresas mineradoras, para o Estado e determinados segmentos econômicos, é melhor que a questão seja tratada como técnica, ou seja, passível de solução no nível da técnica. Os desastres, assim, devem ser tratados como um problema limitado à questão das barragens de rejeitos e, mais especificamente, a um método específico de construção de barragens. A questão é também técnica, o desastre da Samarco é também tecnológico, mas está muito longe de ser apenas técnico. Não se deve « inocentar » a tecnologia, mas reduzir os desastres da mineração e o da própria Samarco a um « problema tecnológico » escamoteia o cerne da questão: o extrativismo sem peias, o poder do segmento empresarial minerador para ditar e transgredir normas e o caráter catastrófico da mineração e do próprio modelo extrativista neoliberal.
54Reconhecer os danos e os desastres como inerentes ao extrativismo, para as corporações, é criar um estado de alerta e de negação da sociedade e, principalmente, das populações de entorno, em relação aos projetos minerários, aumentando, por fim, o custo de implantação e de manutenção dos empreendimentos. Então, econômica e politicamente, é mais interessante para o setor minerário definir um único « inimigo » para a mídia e para a sociedade – as barragens de rejeito a montante – e buscar soluções no âmbito das obras de engenharia e da parafernália técnica.
55A compreensão da questão das barragens de rejeitos, no âmbito da técnica e dos riscos, só pode ser ampliada se consideramos tal necroengenharia como expressão de dada racionalidade: por trás das barragens de mineração, encontra-se a racionalidade extrativista-industrial-financeira. Mais que uma tecnologia de armazenamento do refugo do processo extrativo, as barragens não só integram, como desvelam o modo de produção e de reprodução extrativista. A desproporcionalidade do fim (do extrativismo até a escassez, para acumulação sem fim) se reproduz na desproporcionalidade dos meios (das catastróficas barragens de mineração). Lembrando a célebre citação de Marcuse (1973, p. 19): « A tecnologia não pode, como tal, ser isolada do uso que lhe é dado; a sociedade tecnológica é um sistema de dominação que já opera no conceito e na elaboração das técnicas ». Noutros termos, as tecnologias não são neutras; nelas, há valores intrínsecos que jogam a favor ou contra determinadas racionalidades. A tecnologia, o sistema técnico, como nos lembra Porto-Gonçalves (2006, p. 332), não operam num vazio material e fora das relações sociais e de poder. Entretanto, considerar que basta uma modificação tecnológica para resolver questões que estão no cerne das relações de poder e de produção apenas recompõe a problemática socioambiental e os desastres em novas bases.
56A crítica deve ser dirigida mais que a um meio – as barragens de rejeito – ao seu fim último: a mineração que só visa à sua reprodução pela acumulação. A finalidade do « fim último » consiste em proporcionar sua razão de ser à produção dos meios (ANDERS, 2011 [1956]). Se, com a crítica dos fins, questiona-se a razão de ser, ataca-se, por conseguinte, o princípio da sacrossanta produção de meios para tanto (ANDERS, 2011 [1956]). É o que Paul Virilio (2005, p. 25) também nos convida a fazer em « L’accident originel » ao afirmar que quer se trate « do naufrágio do Titanic ou da explosão da Central de Chernobyl (...), o problema levantado pelo acontecimento catastrófico não é tanto o iceberg que aparece no Atlântico Norte certa noite de 1912 » e o « reator nuclear divergente certo dia de 1986 », mas « a fabricação do transatlântico ‘insubmergível’ » e a « construção de uma central atômica (...) ». Nesses termos, podemos parafrasear Marcuse (1973, p. 13), transmutando sua observação sobre a ameaça de uma catástrofe atômica para a ameaça de catástrofes envolvendo barragens de rejeitos no Brasil: o enfoque limitado às barragens de mineração não serviria « para proteger as próprias formas que perpetuam esse perigo? Os esforços para impedir tal catástrofe » não ofuscariam « a procura de suas causas potenciais na sociedade » extrativista contemporânea, deslocando as barragens de seu contexto?
57Uma catástrofe só se torna possível « possibilitando-se » (DUPUY, 2016), ou seja, as catástrofes em torno da mineração e, mais especificamente, a catástrofe da Samarco revela-se como « fato sob encomenda » (BECK, 2011, p. 62). Uma miríade de fatores possibilitaram a realização do risco em desastre, como a lógica empresarial de gestão dos riscos, em que impera as análises de custobenefício e a dimensão econômica na tomada de decisões, as transgressões legais da Samarco/Vale/BHP Billiton, a inoperacionalidade da lei e o sucateamento dos órgãos de fiscalização. Ao fim, para além das causas mais imediatas e técnicas que possibilitaram o rompimento de Fundão, este artigo aponta para um « estado de exceção » (AGAMBEN, 2004) que vigora nos grandes projetos de investimento. No « estado de exceção », a lei passa a vigorar a partir de sua suspensão, das suas brechas e da sua flexibilização pelo Estado, o que garante às grandes corporações o direito de agir conforme julgarem necessário, em detrimento dos direitos humanos e daqueles que vigoram na seara ambiental.
58Ademais, mais do que tratar do risco como um deflagrador do rompimento da barragem de Fundão, em sua relação com as transgressões legais e as dimensões técnica e institucional do desastre, realizamos uma crítica a sua abordagem gestionária e sua lógica técnico-econômica. No âmbito da crítica à abordagem técnico-econômica do risco, remetemos à sua propulsão e difusão nos anos 1970, a partir dos think tanks da Ford Foundation e da RAND Corporation, e à sua fundamentação nas análises de sistema (system analysis) e de custo-benefício, na « teoria da escolha racional », nas ciências econômicas e do comportamento (BOUDIA, 2011; DUPUY, 2016). A abordagem empresarial de gestão do risco remete às suas origens. Sob tal perspectiva, o risco é algo que deve ser gerido, conforme análises de custo-benefício, mitigado (o que não significa eliminado) e externalizado. Na desigualdade que perpassa os riscos dos grandes empreendimentos, eles recaem, sobretudo, sobre as populações mais vulnerabilizadas, com grande preponderância do fator raça, como demostra Wanderley (2015) para o caso da Samarco.
59Por fim, tal como aludimos no último tópico deste artigo, confrontar o desastre da Samarco desde suas causas e condições de produção, ultrapassa os questionamentos relativos às barragens de rejeitos, pois o confronto precisa se dar desde o extrativismo, em sua relação com os mecanismos e racionalidades que o possibilitam. A redução do desastre da Samarco à questão do risco em torno das barragens é uma forma de limitar as críticas ao setor minerário, ao fornecer para a sociedade a perspectiva de que a questão é tão somente as barragens de rejeitos construídas pelo método de alteamento a montante e não a mineração e o modus operandi das empresas mineradoras. A discussão limitada às barragens reduz o escopo do problema, deslocando-o do seu contexto e abrindo para uma solução tão somente tecnológica (em torno das tecnologias de disposição e reutilização de rejeitos), que passa ao largo da catástrofe minerária, que é muito mais ampla. Mais do que uma verdade técnica, o desastre da Samarco revela-se como uma verdade política, econômica e histórica.