Agradecimentos
Amanda Bahi de Souza, Professora de Geografia ME, Porto Alegre. CBMRS – Corpo de Bombeiros Militar do Rio Grande do Sul.
Clódis Andrade, Geógrafo, Professor Dr. da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Francisco E. Aquino, Geógrafo, Professor Dr. da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Marcelo Amarante, Geógrafo ME, Corpo de Bombeiros do RS, Porto Alegre. Marcos W. Freitas, Geógrafo, Professor Dr. da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Marquerita Martins, Psicóloga, Eldorado do Sul.
Roberto Verdum, Geógrafo, Professor Dr. da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Tiago Zilio, Professor de Geografia, Bento Gonçalves.
- 1 Contribuíram para este relato os debates ocorridos durante a 14ª Bienal do Colóquio Transformações (...)
- 2 Adota-se o conceito de inundações conforme a Codificação e Classificação Brasileira de Desastres pa (...)
1O texto1 aborda um breve histórico dos desastres climáticos no Rio Grande do Sul em 2023 e 2024; as regiões mais afetadas pelas inundações2; deslizamentos de encostas e « cicatrizes »; as operações de salvamento; os impactos sobre a infraestrutura de circulação; os apoios dos governos nas escalas federal e estadual para a reconstrução das áreas atingidas; capitalismo de desastres e propostas inviáveis; depoimentos de pessoas afetadas direta ou indiretamente pelas inundações e, por fim, breves considerações sobre o cenário atual da crise climática e o momento das eleições municipais de outubro de 2024 – quando o forte dos debates versou sobre as responsabilidades de manutenção e prevenção de inundações e a contraditória reeleição do prefeito da cidade de Porto Alegre, Sebastião Melo.
2Podemos analisar se as inundações de 2023 e 2024 tratam-se de desastres naturais ou socioambientais, mas preferimos aqui adotar que são desastres sistêmicos e multidimensionais com inúmeras frentes interconectadas, com efeitos devastadores sobre o ambiente, as mais diversas formas de vida, as cidades e as áreas agrícolas e suas economias, instituições públicas, organizações civis, a população em geral etc. Três eventos em 2023 pré-anunciavam que novos desastres poderiam se suceder considerando-se as mudan- ças climáticas e a posição do estado do Rio Grande do Sul entre as influências naturais da Antártica e da Amazônia. Em junho de 2023, um ciclone atingiu o Rio Grande do Sul na Região Metropolitana de Porto Alegre (RMPA) e, principalmente, em cidades próximas da Serra Gaúcha (Serra Geral) e no Litoral Norte causando 16 mortes. Em setembro daquele ano, novas inundações deixaram mais 54 mortos no RS, o que foi, então, considerado o maior desastre natural da história do estado até aquele período, tendo afetado especialmente o Vale do rio Taquari. Dois meses após o episódio que devastou o Vale, novos grandes volumes de chuva vitimaram mais cinco pessoas. Ao menos 28 mil pessoas precisaram deixar as residências a partir de 17 de novembro. Os transtornos ocorreram especialmente no vale do Rio Taquari, na Serra Gaúcha e na RMPA.
3Trata-se, como se vê, de uma catástrofe anunciada. Conforme a Metsul, a chuva que levou às inundações no RS apenas entre fim de abril e maio de 2024 superou 1.000 mm em algumas regiões (Chuva, 2024) enquanto a média histórica anual no estado varia entre 1.299 e 1.800 mm conforme a região (Atlas, 2022). Conforme o geógrafo da UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Francisco Aquino, as mudanças climáticas, o bloqueio atmosférico sobre o sul do país, a saída do El Niño, os oceanos aquecidos e uma grande onda de calor provocaram essa alta precipitação (IHU, Unisinos, 2024a). O desastre que se abateu entre os dias 28 de abril e fim de maio de 2024 sobre quase todo o estado – em 222.167Km² dos 281.707 km² do seu território – corresponde a uma área afetada 2,4 vezes maior do que países como Portugal ou 7,2 vezes a superfície da Bélgica – tendo impactado pelo menos 418 dos seus 497 municípios, sendo a maioria importantes produtores agroindustriais.
FIGURA 1 – Municípios do Estado do Rio Grande do Sul em situação declarada de Calamidade Pública e de Emergência em 31 de maio de 2024
Fonte: Elaborado pelos autores, 2024.
4Conforme a situação legal dos municípios exposta no Decreto Estadual nº 57.646, de 30 de maio de 2024 (Decreto, 2024), a figura 1, acima, demonstra que 418 municípios, i.e. 80% dos 497 municípios do estado do RS estavam em situações ou de Calamidade Pública (14% deles) ou de Emergência (66% deles). Nestes municípios a população foi atingida em graus diferenciados de intensidade, como se demonstra adiante em relação às superfícies atingidas. Dentre os municípios que foram mais fortemente impactados pela tragédia, estão os mais populosos do estado do Rio Grande do Sul, principalmente na RMPA, na Região Metropolitana da Serra Gaúcha, Vale do rio Taquari e na Aglomeração Urbana do Sul. O site oficial do Governo do Estado do Rio Grande do Sul MUPRS – Mapa Único Plano Rio Grande – informa que um total de 970.788 pessoas ou 8,9% da população do estado foram diretamente atingidos em ambas as situações legais (MUPRS, 2024).
5Em 31 de maio de 2024, mais da metade da população do estado do RS (5.783.825 habitantes, i.e. 53% do total de 10.882.965 habitantes, conforme o Censo Demográfico de 2022) encontrava-se em municípios sob o Decreto de Calamidade Pública (Decreto, 2024; Tribunal de Contas, 2024) em apenas 95 municípios, equivalentes a 14 % da superfície estadual (39.833,04 km²), ou seja, numa área 1,4 vezes maior do que o estado de Alagoas e quase a área (86%) do estado do Espírito Santo (ver figuras 2 e 3). Este contingente populacional está concentrado na RMPA, na Região Metropolitana da Serra Gaúcha, Vale do rio Taquari e na Aglomeração Urbana do Sul.
FIGURA 2 – Percentuais das populações municipais do Estado do Rio Grande do Sul atingidas em municípios segundo a situação declarada em maio de 2024 no Decreto nº 57.646
Fonte: IBGE; Decreto Estadual nº 57.646, de 30 de maio de 2024.
FIGURA 3 – Percentuais das áreas municipais do estado do Rio Grande do Sul atingidas segundo a situação declarada em maio de 2024
Fonte: IBGE; Decreto Estadual nº 57.646, de 30 de maio de 2024.
6No mesmo Decreto Estadual, encontravam-se 323 municípios i.e. 66% da superfície estadual (186.334,875 km²), ou 4,2 vezes a área do estado do Rio de Janeiro, sob Emergência. Menos da metade da população do estado (4.402.001 habitantes, i.e. 40%) localiza-se nesses municípios, dispersa em diversas regiões do norte, oeste e sul do estado nas sub-bacias dos rios Uruguai e em parte do Litoral (Decreto, 2024; Tribunal de Contas, 2024).
7A principal concentração da população atingida, como citado acima, está localizada nas sub-bacias do Guaíba, onde correm os principais rios como o Taquari-Antas e o Caí, na Serra Geral, o Baixo Jacuí, Sinos e Gravataí na Depressão Central e parte do Litoral. Todos os rios dessas bacias, exceto os do Litoral, desembocam no assim denominado « Lago Guaíba ».
8O Guaíba, como preferimos denominar simplesmente, na RMPA, é o elo do sistema entre as citadas sub-bacias, a Laguna dos Patos e o seu canal de acesso em seu estuário ao Oceano Atlântico no extremo sul. O Guaíba apresenta uma exuberante paisagem aquática e insular na RMPA, com a Área de Proteção Ambiental do Delta do Jacuí (22.826,39 ha) que compartilha, aproximadamente, 62% de seu território com o Parque Estadual do Delta do Jacuí (14.242,05 ha) (Área). A figura 4 ilustra as sub-bacias dos rios Taquari-Antas- -Jacuí, Caí, Sinos e Gravataí com suas águas extravasando nas planícies de inundações em direção ao Guaíba ao lado de diversas áreas urbanas, destacando-se a RMPA e os eixos urbanizados em direção à Serra Gaúcha, o Vale do rio Taquari e a Depressão Central.
FIGURA 4 – Imagem de satélite com as sub-bacias dos rios Taquari-Antas-Jacuí, Caí, Sinos e Gravataí e suas águas nas planícies de inundações
Fonte: Pesquisa e organização de Marcos Freitas; Assessoria de Operações e Defesa Civil – AODC – do CBMRS – Corpo de Bombeiros Militar do RS, 2024. Imagem produzida com dados do IBGE, NASA Desaster, Programa Brasil Mais, CEMADEN, Fepam, Daer – RS.
9Junto ao Guaíba e suas unidades de proteção ambiental encontram-se algumas das maiores empresas do país, como montadoras de veículos, indústrias de autopeças, polo petroquímico, plásticos, produtos alimentícios e serviços de saúde e educação. A região metropolitana conta com 34 municí- pios, onde concentram-se em torno de 4,4 milhões de habitantes – 38,2% da população total do estado (Atlas, 2022). Um número expressivo de cidades como Porto Alegre, Canoas, Nova Santa Rita, Eldorado do Sul, Charqueadas, Esteio, Sapucaia, São Leopoldo, dentre outras foi fortemente atingido pelo fluxo da água, areia e detritos de todas as sub-bacias (ver figuras 5 e 6).
10A maior inundação na região do Guaíba havia ocorrido em 1941, quando a cota de inundação era de 3,00 m. As águas, na época, atingiram 4,75 m. Durante a inundação de 2024, o Governo do Estado alterou a cota de inundação para 3,60 m (devido a diferentes relevos), tendo o nível do Guaíba
FIGURA 5 – Casas de moradia destruídas pelas inundações e abandonadas em Eldorado do Sul
Fonte: Silvana B. Morandi, agosto de 2024.
FIGURA 6 – Unidade Básica de Saúde em Eldorado do Sul atingida pela inundação
Fonte: Silvana B. Morandi, agosto de 2024.
11A maior inundação na região do Guaíba havia ocorrido em 1941, quando a cota de inundação era de 3,00 m. As águas, na época, atingiram 4,75 m. Durante a inundação de 2024, o Governo do Estado alterou a cota de inundação para 3,60 m (devido a diferentes relevos), tendo o nível do Guaíba atingido nível histórico com 5,35 m (Repositório, 2024). Todo o sistema de defesa da capital e de outras cidades da RMPA contra inundações falhou. Quatro grandes barragens estavam em situação de emergência enquanto outra (Cotiporã) se rompeu parcialmente e vários diques e comportas romperam-se em Porto Alegre e região metropolitana.
12A capital gaúcha teve 22,6% da área do município e 14,5%, ou 2.631 ha da área urbana inundadas (Dois Terços, 2024; Fonseca et al., 2024). Nesta área, 46 bairros de Porto Alegre foram afetados pela inundação. Dentre os dez mais atingidos, quatro são da zona norte (Sarandi, Farrapos, Humaitá e São Geraldo), quatro da região central (Menino Deus, Cidade Baixa, Floresta e Centro Histórico) e dois da zona sul (Ponta Grossa e Lami) (Munhoz, 2024).
13A Região Metropolitana da Serra Gaúcha, de base econômica industrial e de turismo, onde destacam-se a indústria automotiva, vinhedos, produção de vinhos e espumantes de qualidade nacional com origem nas colônias imperiais com colonos de origem italiana, principalmente, da região do Vêneto (norte da Itália), conta com 864.018 habitantes – 7,9 % da população total do estado, em 14 municípios como Caxias do Sul, Bento Gonçalves, Garibaldi, Antônio Prado, Carlos Barbosa, Farroupilha, dentre outras (Seminário, 2024).
14Localizados entre a RMPA e a Região Metropolitana da Serra Gaúcha encontram-se municípios fortemente turísticos da região das Hortênsias, como Gramado, Canela, Nova Petrópolis, dentre outros com origem minifundiária com colonização principal provindos da região do Hunsrück, no sudoeste da Alemanha. É aí, justamente que localizam-se as sub-bacias Taquari-Antas e Caí na Serra Geral e o Sinos já na planície da Depressão Central que transbordaram, invadindo suas planícies de inundação e devastando cidades e áreas agrícolas.
15Nas sub-bacias do Baixo Jacuí e Taquari-Antas, as maiores da bacia do Guaíba, encontram-se municípios também de origem minifundiária como os polos regionais de Lageado e Estrela e diversas localidades que foram construídas ao longo do Vale do rio Taquari, como Roca Sales, Muçum, Arroio do Meio, Cruzeiro do Sul, Forqueta, Forquetinha e outras cujas densidades demográficas variam entre 50 e 150 hab/km², majoritariamente urbanas. Trata- -se de uma região agroindustrial com importante produção de frangos, ovos, suínos e grande geradora de empregos.
16Conforme acima citado, a região do Vale do rio Taquari tem sido fortemente impactada desde o ano de 2023, quando ocorreram três eventos climá- ticos (em setembro, novembro e dezembro) que destruíram cidades como Arroio do Meio (ver figura 7), Muçum e Roca Sales, terras agrícolas e que causaram alto número de mortos. Da mesma forma nas regiões das sub-bacias do Baixo Jacuí e do rio Pardo na Depressão Central as regiões agrícolas produtoras de fumo no eixo Santa Cruz do Sul – Candelária – Santa Maria foram impactadas com o extravasamento desses rios e afluentes.
FIGURA 7 – Situação atual em visão parcial da cidade de Arroio do Meio
Fonte: Luis F. Gomes, abril de 2024.
17Por fim, na Aglomeração Urbana do Sul localizam-se as principais cidades de Pelotas e Rio Grande, com tradição agropastoril e atividades industriais e portuárias. O canal da Laguna dos Patos em seu estuário é o ponto final de escoamento do sistema da Bacia do Guaíba no Oceano Atlântico, com 22 km de comprimento, dois quilômetros de largura e aproximadamente 12m de profundidade. O canal completa o grande conjunto do sistema da Bacia do Guaíba, onde se concentrou o principal cenário da catástrofe.
18A intensidade dos impactos da catástrofe deu-se de forma diferenciada em relação à sua situação de Declaração de Calamidade Pública ou de Emergência conforme citado acima quanto às superfícies municipais atingidas. O site Mapbiomas (2024), por exemplo, informa que a área atingida por movimentos de massa, tais como deslizamentos de terra, enxurradas e inundações nos meses de abril e maio foi estimada em 15.778 km2 – o equivalente a 5,6% dos 281.707 km2 de extensão do estado do RS; 6,1 vezes a superfície de Luxemburgo ou maior mesmo que a República de Montenegro, por exemplo. Um total de 298 municípios teve pelo menos 1% do território municipal afetado pelos eventos extremos. Destes 298 municípios, 73 deles tiveram mais de 10% do seu território atingido, sendo que 34 tiveram mais de 20%. No caso de Nova Santa Rita e Canoas na RMPA, mais da metade, i.e. 52,5% e 49,0%, respectivamente, dos seus territórios municipais foram inundados.
19Nas encostas da Serra Geral, conforme informações do geógrafo Clódis Andrades Filho da UFRGS, 16.862 pontos de ruptura se abriram, devastando terras agrícolas e pequenas cidades rurais tomadas pelas águas, como é o caso da cidade de Roca Sales (ver figuras 8 e 9). Em termos comparativos a eventos de grande magnitude, Andrade ressaltou que os deslizamentos revelaram-se ser, ao menos, três vezes mais do que o evento em Petrópolis no estado do Rio de Janeiro de 2011, o que também demonstra a severidade dos eventos climáticos no estado do RS como um dos mais importantes ocorridos no Brasil até os dias de hoje (Andrades Filho; Mexias, 2024).
FIGURA 8 – Deslizamentos de encostas na Serra Geral no município de Santa Tereza, Vale do rio Taquari
Fonte: Foto com drone de Clodis Andrade Filho, 2024.
FIGURA 9 – Planícies de inundação no vale do rio Taquari em Roca Sales com destaque para deslizamentos de encostas (em vermelho)
Fonte: Pesquisa e organização de Clódis Andrades Filho; Lorenzo Fossa Sampaio Mexias, 2024. Disponível em: https:// arcg.is/ezjvW.
20A respeito dos deslizamentos também comentou o geógrafo Roberto Verdum, após trabalhos de observação em campo em Linha Alcântara (ver figura 10) no interior do município de Bento Gonçalves:
A dimensão do que visualizamos por lá é colossal e não há engenharia que resolva todos os eventos que ocorreram e aqueles que estão prestes a acontecer, pelas chuvas previstas, sobretudo em setembro e outubro.
Há um contexto na gênese da questão fundiária brasileira a ser aprofundado: título da terra – mas esta terra sumiu, junto com famílias! Hoje há rocha exposta... (Verdum, depoimento, 6 de agosto de 2024).
FIGURA 10 – Deslizamento de terra em Linha Alcântara (Bento Gonçalves) junto ao rio das Antas
Fonte: Roberto Verdum, agosto de 2024.
21Conforme os dados mais recentes divulgados pela Defesa Civil do Estado do Rio Grande do Sul, atualizados em 20 de agosto de 2024, mais de 2,4 milhões de pessoas foram afetadas; mais de 442 mil moradores tiveram que deixar suas residências (cerca de 18 mil em abrigos e 423 mil desalojados); 183 pereceram; 806 ficaram feridos; 27 continuam desaparecidas (Defesa, 2024). Em fim de agosto de 2024 ainda havia 2,5 mil pessoas desabrigadas distribuídas em 26 abrigos e três Centros Humanitários de Acolhimento em 29 municípios, sendo a maioria concentrada em Porto Alegre, Canoas e Encantado (Costa, 2024). Ocupações em prédios públicos e hotéis desativados se sucederam em Porto Alegre sendo que no caso do Hotel Arvoredo no centro da cidade, os ocupantes moradores das ilhas afetadas foram obrigados a sair sob ordens judiciais de reintegração de posse aos proprietários. A situação somente foi revertida com decisão do Supremo Tribunal Federal em favor dos desabrigados.
FIGURA 11 – Cenas de resgates aéreos pelo Corpo de Bombeiros do RS no Vale do rio Taquari
Fonte: https://www.facebook.com/reel/758618286459168 e https://www.instagram.com/p/C77j-clvdgx/.
22Conforme levantamento do Corpo de Bombeiros do RS em parceria com a UFRGS, coordenada pelos geógrafos Marcos Freitas e Letícia F. Sartorio, as buscas por desaparecidos nos desastres desde o início de maio de 2024 até 8 de agosto de 2024 atingiram cerca 670 mil pessoas em uma área estimada em 6.500 km² do Rio Grande do Sul (Freitas et al., 2024). Conforme a imprensa mais de 11 mil animais foram resgatados no estado (Agência Brasil, 2024). Resgates aéreos, como a figura 11 acima, aquáticos e subaquáticos de vítimas foram realizados por soldados de corpos de bombeiros vindos de todos os estados do país. Ajudas humanitárias também vieram de todo o país e do exterior.
23A infraestrutura de circulação foi devastada com pontes e estradas destruídas em todas as regiões atingidas. A capital ficou sem ligação externa terrestre ou aérea, salvo por uma única via simples para o litoral por onde fugiram milhares de pessoas para as cidades de praia, principalmente Capão da Canoa, Tramandaí, Torres e litoral catarinense. A rodoviária interestadual / internacional, um dos ícones de Porto Alegre, foi inundada e algumas poucas linhas de ônibus que podiam entrar na cidade através de estradas do litoral foram transferidas para um terminal urbano na zona leste. Cerca de 70 lojas entre conveniências, restaurantes, comércios e guichês de vendas de passagens foram fechados em maio. O prejuízo parcial, considerando a parte interna dos estabelecimentos, girou em torno de, ao menos, R$ 8 milhões, conforme a Associação dos Empresários da Estação Rodoviária de Porto Alegre (Aeerpa; Plentz, 2024).
24A Trensurb, por sua vez, que opera o Metrô da RMPA que se localiza exatamente no eixo da inundação e que já transportou mais de 200 mil passageiros por dia no auge do crescimento econômico da primeira década do século atual, foi fortemente impactada. Antes da inundação os trens transportavam cerca de 120 mil pessoas por dia e a rede foi quase toda destruí- da pelas inundações de maio de 2024. Seus sistemas de energia de tração, energia predial, sinalização, bilhetagem, via permanente, comunicação por rádio, além de equipamentos de oficinas, veículos rodoferroviários e edificações foram duramente afetados (ver figura 12). Toda sua inteligência de Tecnologia da Informação (TI) foi transferida, ainda durante a inundação, para o Serpro, em Brasília.
FIGURA 12 – Estação Niterói do metrô da Trensurb inundada em Canoas
Fonte: Trensurb, 2024.
25A mobilidade de trabalhadores na RMPA pelo sistema de trens, pelo que se acima se expôs, foi fortemente alterada com a catástrofe. Porém, já no dia 30 de maio, enquanto o sistema de circulação ainda estava alagado na porção mais ao sul da RMPA, a empresa inaugurou a « Operação Trilhos Humanitários » entre as estações Novo Hamburgo e Mathias Velho (bairro de Canoas) sem cobrar tarifa dos usuários. A partir de 13 de julho, a tarifa de R$ 4,50 voltou a ser cobrada, porém, com a garantia do complemento da viagem de forma gratuita, através de fretamento próprio da empresa Trensurb. Desde 20 de setembro (data comemorativa à Revolução Farroupilha), os trens estão chegando a uma das estações centrais da capital, a Estação Farrapos. A previsão de chegada à Estação Mercado, a mais central, é no dia 24 de dezembro de 2024.
26O Aeroporto Internacional Salgado Filho foi inundado tanto nas instala- ções logísticas quanto em sua pista principal. As viagens aéreas em sistema de emergência foram implementadas pela Força Aérea Brasileira enquanto pequenos aeroportos regionais (como Caxias do Sul, Passo Fundo, Santa Maria, Pelotas, Santo Ângelo e Uruguaiana) foram ativados. Os aeroportos de Florianópolis e Jaguaruna no estado vizinho de Santa Catarina passaram a operar como apoio, passando a receber passageiros do Rio Grande do Sul. O número de voos no aeroporto internacional caiu de 2.588 em abril para apenas 154 em junho, enquanto o número de passageiros caiu 92,69% em relação ao movimento daquele mês (Aires; Coan, 2024).
27O retorno parcial de atividades do aeroporto se deu em 21 de outubro enquanto os voos principais estão previstos apenas para 16 de dezembro de 2024. O prejuízo para toda a cadeia produtiva e de turismo chegaria a R$ 400 milhões / mês ao estado do RS (Fechamento, 2024). A reabertura parcial em 21 de outubro foi festejada por ministros do governo federal, o governador do estado, Eduardo Leite, e secretários do governo que se fizeram presentes ao evento festivo. A empresa aérea Azul – a primeira empresa a retomar os voos – carregou a bandeira do estado do Rio Grande do Sul em nítida demonstração de marketing publicitário.
28Os governos federal e estadual criaram mecanismos de apoio financeiro com fundos específicos de créditos para o setor produtivo, escolas públicas, rodovias, Aeroporto Internacional Salgado Filho, metrô da Trensurb, hospitais, moradias, ações de contenção e prevenção e ajudas sociais. Os recursos federais e estaduais atualizados até 31 de outubro de 2024, destinados para as reconstruções, são de R$ 111,5 bilhões sendo que 47,3 % desse total já foi pago e o demais é a promessa restante. Os recursos estaduais até o mesmo período são de R$ 3,8 bilhões sendo que R$ 2,4 bilhões ou 55,5% também já foi pago (Painel, 2024).
29O Ministério da Reconstrução do RS do governo federal atuou localmente por quatro meses, tendo encerrado as atividades em 11 de setembro próximo passado. O Ministério foi transformado em Secretaria para Apoio à Reconstrução do Rio Grande do Sul cuja estrutura ficou no âmbito da Secretaria-Executiva da Casa Civil, com dotação orçamentária de R$ 6,5 bilhões. Além disso, o governo federal antecipou R$ 5,132 bilhões em precatórios que já eram devidos (Nuñez, 17 set 2024). O governo do estado do Rio Grande do Sul, por sua vez, teve aprovada pela Assembleia Legislativa em 29 de maio de 2024 a criação da Secretaria da Reconstrução Gaúcha (SALOMÃO; SANTOS, 2024; Rio Grande do Sul, 2024).
30Os diversos créditos para o setor produtivo, por exemplo, provêm de programas e fundos como o Pronampe – Programa Nacional de Apoio às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, Fundo Social, crédito FGI – Fundo Garantidor para Investimentos para pequenas e médias empresas, Pronaf – Programa Nacional de Agricultura Familiar e créditos da Finep – Financiadora Nacional de Estudos e Projetos. Para moradias, estão previstos R$ 2 bilhões pelo governo federal para compra de 17,3 mil residências enquanto o governo estadual prevê R$ 66,7 milhões para instalação de 500 unidades habitacionais de construção modular. R$ 150 milhões foram investidos pelos governos federal e estadual na recuperação de escolas públicas (Painel, 2024).
31Em meio à imensidão da tragédia, o governo do estado do RS e a administração municipal de Porto Alegre contrataram consultorias internacionais dispendiosas – inclusive de técnicos dos Países Baixos – tanto com apoio financeiro do Governo daquele país num primeiro momento, quanto com recursos próprios. As consultorias têm repetido o que técnicos locais têm dito – e avisado há muitos anos – de que o sistema de proteção contra cheias de Porto Alegre é eficiente, mas tem faltado manutenção. Conhecidas e difundidas foram as tentativas tanto do governo do estado quanto da Prefeitura Municipal de Porto Alegre de derrubar o muro de proteção contra as cheias, conhecido como o « Muro da Mauá ». Afirmou o governador Eduardo Leite quando anunciou o lançamento do edital de revitalização do Cais Mauá, em Porto Alegre em setembro de 2023:
Um antigo porto de Porto Alegre, revitalizado, com as pessoas circulando livremente, sem ter aquele muro que dividia o antigo porto da cidade e, por lá, nesses antigos armazéns, restaurantes, espaços de cultura, de lazer, coworkings, espaços de inovação, tudo com as pessoas circulando livremente, sem precisar pagar nada para entrar lá (Eduardo Leite lança edital. 2023. Grifo nosso).
32Mas, a violência da tragédia climática demonstrou a temeridade de projetos que preveem a derrubada do muro de proteção contra as inundações ou mesmo sua adaptação a « formas flexíveis » em meio a um projeto urbanístico bilionário no Cais do Guaíba. Toda a tragédia, no entanto, não teria sido suficiente para a revisão dos contratos com o Consórcio Pulsa RS que venceu a licitação do projeto urbanístico e de exploração comercial da área do antigo porto. Informações recentes dão conta que o consórcio aceitará assinar o contrato, mas iria propor uma mudança: fazer a nova proteção contra as cheias em primeiro lugar para proteger a área do Cais em novas inundações (Farina, 2024). Com as tragédias do Furacão Katrina em Nova Orleans (em agosto de 2005) no estado da Luisiana (EUA), os rompimentos das barragens de Mariana (novembro de 2015) e Brumadinho (janeiro de 2019) em Minas Gerais, e agora no RS, tem crescido o que é conceituado por Naomi Klein como « capitalismo de desastres » no seu livro « A doutrina do choque – a ascensão do capitalismo do desastre » (Dias, 2024). Empresas de consultoria financeira veem tragédias como oportunidades de novos negócios, dentre eles processos de privatizações de instituições públicas. Assim tem sido com a empresa Alvarez & Marsal – especialista em recuperar empresas e bancos falidos, o que chamam de turnaround (algo como « dar a volta por cima ») – que ofereceu serviços gratuitos para assessorar a reconstrução de Porto Alegre, com acesso a todos os bancos de dados do município. Na mesma linha, também foram contratadas pelo governo do estado do RS a mesma empresa Alvarez & Marsal e em seguida as consultoras Mckinsey e Ernest Young para a formulação da « Nova Agenda de Desenvolvimento Gaúcho ».
33Para tentar sanar o represamento das águas da cheia no Guaíba, devido aos ventos fortes provindos do sul, que demoravam a fluir para a Laguna dos Patos e dali para o mar, surgiram sugestões estapafúrdias de obra de engenharia para abrir-se um novo canal de escoamento da Lagos dos Patos para evacuar a água acumulada com baixa evasão pelo canal estreito em seu estuário. Tal proposta recebeu inúmeras críticas e até o momento aparentemente foi abandonada por sua inviabilidade e riscos de desequilíbrio ambiental em todo o sistema costeiro-lagunar.
34Alguns depoimentos colhidos ilustram a situação de pessoas atingidas pela inundação, como os que seguem, colhidos em Bento Gonçalves, Eldorado do Sul e Porto Alegre.
Perdemos conhecidos e amigos nos deslizamentos do Vale Aurora aqui em Bento Gonçalves. Os deslizamentos de terra não param, mais de 100 somente nesta região do Distrito de Faria Lemos. Ficamos uma semana sem água aqui também (Tiago Zillio, morador de Bento Gonçalves, 13 de maio 2024).
Estavam 26 pessoas com seus animais (...). Na cozinha, com água acima dos joelhos, me deparei com uma situação que me fez lembrar da cena do Titanic, onde o navio foi afundando e os músicos continuavam tocando...e eu, com a casa afundando, cozinhando massa (Marquerita Martins, moradora de Eldorado do Sul, 17 de agosto de 2024).
(...) De repente saíram assim, corridos, fugidos, tentando salvar a própria vida. Ainda que fosse inacreditável, mas era uma certeza. A água atingiu a casa toda. Só ficou a ponta do telhado para cima da água (Amanda Bahi de Souza, residente em Porto Alegre, família residente em Eldorado do Sul, 14 de agosto de 2024).
35Infelizmente, é imprescindível mencionar que impactos emocionais são considerados como equivalentes a traumas de guerras. A população ficou totalmente desconcertada e deprimida pois a perda de seus entes queridos, suas casas, seus bairros, seus cemitérios, seus empregos e seus vínculos de pertencimentos têm sido traumáticos em extremo. Nos termos da psiquiatra Jéssica Martani: « Voltam sons, imagens e sentimentos do momento vivido que gerou o trauma e isso começa a afetar a qualidade de vida » (Machado, 2024).
36É desnecessário afirmar que a tragédia no estado do Rio Grande do Sul foi sentida em todo o país e fora deste. No entanto, com poucas exceções, as matérias na imprensa internacional foram apenas pontuais e não informaram de forma sistemática a gravidade e a extensão do problema que ocorreu no sul do Brasil. Porém nos meios científicos a tragédia apontou para o que já vem sendo citado há tempos: a crise climática, como Pillar e Overbec (2024) assim se manifestaram na revista Science,
As inundações catastróficas que afetaram o sul do Brasil em maio [de 2024] devem servir como um aviso para as sociedades humanas de que, apesar do ceticismo ou negação da mudança climática ainda difundidos, a mitigação e a adaptação para lidar com a crise climática em andamento são urgentemente necessárias (Pillar; Overbec, 2024. Tradução nossa).
37De janeiro a setembro de 2024, o país viveu um outro extremo climático, o das queimadas, o que vem aprofundando o cenário pessimista amplamente previsto por cientistas nacionais renomados como Carlos Nobre. Nos seus termos em entrevista recente: « Estou apavorado. Ninguém previa isso; é muito rápido », disse Carlos Nobre sobre a crise climática. Adicionou sobre o calor extremo e as queimadas que « (...) esse é o máximo que já experimentamos. A crise explodiu. Temos a maior temperatura que o planeta experimentou em 100 mil anos » (IHU. Unisinos, 2024b). A recente tragédia nas regiões de Valência e Barcelona na Espanha, além de diversas outras situações de catástrofes vem confirmar as afirmações de que o planeta já atingiu níveis alarmantes.
38O lobby do agronegócio, tanto no Congresso quanto na Assembleia do estado do Rio Grande do Sul, vem, sistematicamente, há anos, flexibilizando a legislação ambiental em favor da exportação de commodities sem valor agregado, afirma o geógrafo Francisco Aquino. « A flexibilização ambiental de margens de rio, áreas úmidas e alagadas, banhados, a maior expansão sobre áreas de biomas e preservação, elas concorrem diretamente para amplificação da mudança climática e dos desastres » (IHU. Unisinos, 2024a). O autolicenciamento ambiental foi proposto pelo governador Eduardo Leite em 2019 e aprovado pela Assembleia Legislativa no mesmo ano, enquanto a questão aguarda análise no STF.
39No mês de outubro deste ano de 2024, nas eleições municipais, o grande debate deu-se sobre como reconstruir e melhorar o sistema de defesa de todas as cidades atingidas, tanto da RMPA como das demais regiões devastadas, como remover bairros inteiros de áreas inundáveis em vales onde correm as sub-bacias citadas, a construção do dique de proteção de Eldorado do Sul, previsto no PAC do governo federal etc. O caso das eleições em Porto Alegre revelou-se emblemático, pois a administração municipal que vinha sendo criticada por não preservar o sistema de proteção da cidade e tampouco das casas de bombas que deveriam devolver a água ao Guaíba, contraditoriamente viu-se o prefeito da cidade, Sebastião Melo (MDB), ser reeleito com 61,53% dos votos contra a candidata Maria do Rosário (PT), que alcançou 38,47%.
40As contradições mostraram-se ainda mais agudas quanto aos resultados dos votos do prefeito reeleito em bairros dos mais inundados como o Sarandi, zona norte de Porto Alegre, próximo ao aeroporto, com 26.042 moradores atingidos em 8.172 edificações. O sociólogo Marcelo Kunrath Silva no artigo « Os donos de Porto Alegre » identificou mais de 500 pontos de ações lideradas por empresários ligados ao prefeito Sebastião Melo durante a inundação da cidade. Operações de salvamento com apoio de proprietários de barcos e jet- -skis, além de doações de todos os tipos, suportes em espaços de acolhimento, organização em redes sociais de grupos de limpeza de casas e prédios com doações de materiais de higienização teriam sido decisivos para a reeleição do atual prefeito. Teria predominado o discurso da presença positiva do empresariado durante a catástrofe em desfavor da suposta ausência do governo federal o que teria sido impulsionado por redes sociais onde tem presença organizações como a plataforma conservadora Brasil Paralelo dentre outras.